Dynasty escrita por Senhorita Nada


Capítulo 1
Dynasty


Notas iniciais do capítulo

E não é que também não vasilei neste Delipa?? Na minha casa não entra vasilo não! :D *corre* Isso é sem sombra de dúvidas o mais produtiva que fui em anos. Duas fics de mais de 10k em dois meses? Incrível. É o poder do amor gay, gente.

Esse mês entrei de cabeça em BNHA e basicamente acordo gritando PLUS ULTRA todo dia, então fiquem com meu presentinho de iniciação no fandom. Feat Asexual Todoroki, Denki pegador e Bakugou tendo a sua disposição todos os vastos xingamentos da língua portuguesa que consegui lembrar.

Vejo vocês nas notas finais!



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O ar ainda vibra com as trombetas, gritos e tambores ao longe, trazidos pelo vento, mas são apenas os últimos confrontos de uma batalha que já foi ganha. É fim de tarde em Hosu quando Shouto se permite sentar num pedaço remanescente de meio-fio, o céu vermelho acima de sua cabeça e a rua suja de poeira vermelha sob seus pés. Ele fecha os olhos, respirando profundamente, sentindo o cansaço e alívio que parecem chegar até seus ossos. Com a adrenalina deixando seu corpo depois da euforia do combate, as dores começam a se fazer presentes, das mãos rasgadas pela guarda da espada até seus pés latejando dentro das botas.

 

A seu redor, a praça é curiosamente quieta. Era parte do centro comercial da cidade, prédios bonitos de tijolo avermelhado, decorados com murais de ladrilhos cintilantes. Os restos de um deles, antes um dragão vermelho, se espalham às suas costas. A maioria das construções caiu com a artilharia inimiga, ou foi consumida pela magia empregada na batalha. Rastros de fuligem e fumaça marcam escombros, se misturando às sombras do por do sol.

 

O vento sopra com a voz de sua mãe, doce e quieta, abafada pelos anos de ausência. Se fechar os olhos por tempo suficiente, vai parecer apenas um sonho ruim.

 

Com um suspiro, ele se força a voltar à realidade, abrir os olhos, procurar por ferimentos. É mais rotina do que de fato preocupação, algo que ele aprendera com seu instrutor ainda quando menino, no pátio do palácio. Há cortes feios em seus braços e um sob o olho direito, ainda molhado de sangue quando seus dedos o tocam. O mesmo gosto está em sua boca, e ele se pergunta se é de quando um dos soldados inimigos o socou, a língua passando delicadamente sobre os lábios machucados. Não parece ter nada mais sério do que isso e alguns hematomas, e ele decide que deve poupar Uraraka de sua visita. Ela deve estar muito ocupada pra se preocupar com algo assim. Posso resolver sozinho.

 

As pequenas chamas dançam por entre seus dedos, e ele é incapaz de conter um sibilo de dor quando ele as força contra a carne. O calor não o incomoda tanto quanto o cheiro, que o faz lembrar da batalha. Carne queimando. A maioria dos guardas de elite do Rei Endeavor usa magia de fogo. Ele se lembra de correr por Hosu, impedindo as chamas antes que se espalhassem demais, mas a cada vez que sua magia de gelo controlava o fogo, dois focos mais pareciam surgir em seu lugar. A maior parte dos moradores da cidade havia fugido antes do confronto entre o exército real e os rebeldes, sem dúvida uma decisão sábia; mas ainda havia o suficiente de civis para que cada grito ficasse marcado em sua memória.

 

Junto com meu irmão mais velho, e as pessoas que não salvei nas batalhas anteriores, e os trabalhadores daquela vila, e minha mãe há tantos anos atrás.

 

O fogo o deixa desconfortável, e ele morde o lábio inferior, tentando abafar os sons de dor para não denunciar sua posição. No coração de cada chama ele parece ver o olhar rígido do pai, o mesmo que recebia quando estava treinando e era chamado de fracasso e insulto ao nome Todoroki. No bruxulear das fogueiras de acampamento estavam sua capa e as joias da Coroa, os vários anéis brilhando em seus dedos quando assinava ordens de execução. Nos incêndios estava a sua raiva, a ira em seus gritos e suas ações, um lembrete do que aconteceria se ele perdesse o controle da magia que usava agora.

 

Aquele fogo em seus dedos e que corria em suas veias era o mesmo de Enji Todoroki. Pensar nisso lhe dava náusea, asco de si mesmo, mas ele sabia que não tinha escolha. Sem aquele poder, ele não poderia proteger seu próprio lado. Ele aprendera isso a duras penas.

 

É o seu poder.

 

— Todoroki-kun! -  Ele demora um instante para perceber que a voz em seus pensamentos é a mesma que o chama na realidade, e ergue o olhar para notar a aproximação de Midoriya, correndo até ele pela praça destruída. A armadura reluzente de paladino ainda parece estranha nele, depois de vê-lo por tanto tempo em roupas comuns, o branco e dourado polido contrastando com o verde de seus olhos e cachos. As sobrancelhas estão franzidas e há manchas de fuligem em seu rosto e parte da armadura, mas ao menos ele não parece estar machucado, e Shouto solta a respiração que não percebeu que estava prendendo. - Você está bem? Ah, está machucado!

— Sim, sim. Isso não é nada.

— Não parece nada pra mim. - Como típico de Midoriya, o rapaz parece falar mais para si mesmo do que para o ex-companheiro de viagem. Delicadamente, ele segura Shouto pelo braço, afastando os pedaços rasgados de sua camisa para olhar melhor os ferimentos abaixo. - É bom te ver. Não tive ideia de onde você, Iida ou Uraraka tinham ido parar…

— É o que acontece em batalhas, Midoriya. É uma grande bagunça.

— Você se queimou? Como aconteceu? Nossa, você ainda está sangrando... - Ele deixa as palavras sumirem em murmúrios sobre profundidade e infecção e feitiços, e Shouto sente a vontade de rir. É reconfortante, de certa forma, ver a concentração em seu rosto. Parte dele não quer interromper a trilha de raciocínio do paladino, mas a maior parte quer se certificar, tirar a preocupação de seus ombros de vez.

Você está bem?

— Huh? - Izuku leva alguns segundos para processar a pergunta, antes de se abrir num sorriso embaraçado e acalentador. - Sim! Eu consigo usar melhor o meu poder na luta agora! A-até invoquei uma bênção na minha espada! Foi legal… Q-Quer dizer, foi legal porque eu pude proteger as pessoas!

— Tá tudo bem. - O sorriso de Shouto não é bem um sorriso, e sim mais próximo a um leve curvar do canto dos lábios. - Deve ter sido legal de fazer também.

— Foi. - Há um rubor suave sob as sardas de Midoriya, e ele deliberadamente evita o olhar de Todoroki. - É ridículo dizer que me senti como… Como eu deveria ser? Como eu fui?

— É claro que não. Soa como se você finalmente está se soltando.

— Você está brincando?

— Não. Estou falando sério.

 

Midoriya esfrega as bochechas como se pudesse limpar o vermelho que teima em aparecer nelas, um pequeno sorriso satisfeito brincando em seus lábios. Ele se sente lisonjeado, e, se fosse outra pessoa, acreditaria que estavam caçoando dele; mas era Todoroki-kun, que nunca dizia o que não realmente acreditava. Pensar que ele estivesse se aproximando da lenda que fora Toshinori ainda parecia um sonho distante; por mais forte que fosse o legado do paladino All Might, Izuku não tinha sido treinado o suficiente, iniciado em seus poderes, mentorado como deveria, entre tantos outros fatores que cada encarnação do herói lendário deveria ser. Nessa vida, ele estava tendo que redescobrir tudo por si só, seus limites e suas habilidades, bênçãos e obrigações, o quanto podia se forçar antes que a magia fosse forte a ponto de quebrar seus ossos. Por mais que tivesse o apoio dos amigos, às vezes ele gostaria de que algum dos outros paladinos estivesse vivo para guiá-lo.

 

Era irônico. O homem que ordenara suas mortes era o pai do rapaz a quem ele agora curava. Tentando focar no presente, Izuku repete suas preces em voz baixa, deixando a magia fluir por seu braço, entre seus dedos, para fechar os machucados de Todoroki e as queimaduras que ele mesmo fizera.

 

O silêncio entre eles não o incomoda, o que é uma raridade para Shouto. Silêncio o lembra dos longos corredores do palácio de seu pai, das sombras de seus familiares à mesa de jantar, do frio da sala de treinamento ao fim do dia, das ansiadas ausências do rei. O silêncio de Midoriya não é cheio de expectativa ou de vigília por um grito ou uma punição. É o mais próximo que o jovem príncipe consegue pensar de um bom silêncio, de conforto na presença um do outro.

 

Quando ele começou a se sentir tão confortável na presença de Midoriya? Ele não tem certeza. Parece que há poucos meses ele tinha vindo ao reino de sua mãe em busca de aliados, e voltado com a alma de um paladino lendário cavalgando a seu lado. Izuku não era o que ele esperaria de um grande guerreiro, com o rosto sardento e infantil, o corpo mais definido que musculoso. O rapaz conseguia ser até mais baixo que ele, de tal forma que Shouto duvidava que conseguisse enfrentar a figura imponente do rei. Mas há mais em um paladino do que um guerreiro - há a proteção e a gentileza dos que são escolhidos divinos, há a cura em mais do que só feitiços.

 

A presença do sucessor de All Might foi discretamente afetando aos diferentes grupos, de tal forma que Shouto foi perceber muito meses depois. Foi numa tarde no acampamento, quando ele percebeu ter sido a primeira vez que vira Fumikage sorrir. Os dois se conheciam há anos, desde que eram crianças, quando o rapaz pássaro tinha sido recrutado como aprendiz da Guarda Real por sua magia única. Sempre fora uma pessoa solene e reservada, com tanto apreço quanto medo pela escuridão que dominava, e de tal forma sisuda que o príncipe achava que ele simplesmente não conseguia demonstrar alegria.

 

E agora aquele mesmo guarda retraído de sua infância sorria conversando com um dos revolucionários de Katsuki, Kaminari, e sentada próxima estava Tsuyu da Guilda dos Alquimistas, cuja aliança tinha demorado tanto tempo e concessões que quem sentasse ao trono no fim daquela loucura ainda estaria descontando seus impostos vinte anos após a guerra acabar. Era tão natural, ele pensou, a forma com que as diferentes partes daquele exército convergiram juntas, de ver um ex-Guarda Real rir com uma maga de um comentário que fez um inimigo jurado da Coroa corar e se perder em explicações, de ver um lado inesperado de alguém que ele considerava um amigo. E a partir dai, ele passou a prestar mais atenção nos pequenos detalhes. Os sorrisos discretos entre Iida e Uraraka quando pensavam que ninguém os via, o olhar de preocupação de Momo quando Jirou era parte dos grupos avançados, como um dos guardas de Chisaki Uno parecia estar sempre treinando com o mesmo revolucionário, e como passavam o braço pelos ombros um do outro depois de cada combate.

 

Era uma proximidade que ele nunca tinha visto, o nascimento de laços que ele antes achara impossíveis, e que só percebera o motivo ao ver como os olhares e rostos ao redor das diferentes fogueiras a cada noite se iluminavam na passagem de Midoriya. Um herói sempre deve sorrir, ele ouvira da mãe antes de dormir uma vez, mas, aparentemente, os heróis também traziam os sorrisos aos outros, e ele só notara isso agora.

 

O que o traz de volta a realidade é um toque em sua boca, suave, de mãos surpreendentemente calejadas. Izuku murmura uma pequena prece, e o calor se espalha de seu dedo para o lábio machucado de Shouto.

 

— Pronto. Melhor?

— Sim. Obrigado, Midoriya.

— De nada! Assim pelo menos não dói mais. - O sorriso dele si só seria suficiente. O príncipe se surpreende com o próprio pensamento, e é forçado a desviar o olhar pelo crescente embaraço em seu peito, os dedos tremendo levemente em seu colo. O olhar do paladino sobre ele o faz ter consciência do quão próximos estão, da sensação do toque suave de ponta dos dedos em sua pele, do calor e formigamento residual da magia em sua boca. É com alívio que ele sente a mão de Midoriya se afastando, apenas para o toque reaparecer logo abaixo de seu olho.

— D-desculpe! - Ele nota que seu sobressalto foi mais do que apenas mental quando Izuku ergue as duas mãos, sinalizando que não vai machucá-lo. - Você tem um corte embaixo do olho...

— ...Eu que peço desculpas. Não estou acostumado a nada perto da minha cicatriz. - Shouto percebe pela maneira com que Midoriya se encolhe que há mais gelo em suas palavras do que inicialmente pretendia, mas não há como voltar agora. Ele se põe de pé, limpando a poeira das roupas. - Acho que devíamos procurar os outros. Você já viu mais alguém?

— Hm, eu já falei com o Iida-kun… E eu estava lutando junto com o Kirishima e o pessoal… Quanto aos outros, não sei, não vi nem o Kacchan…  

— Então é melhor irmos atrás deles. - Ele se presta a andar, sem abrir espaço para discussão. Alguns minutos depois, consegue ouvir o som das placas da armadura se mexendo, e os passos do paladino atrás de si.

 

O centro de Hosu era a antiga catedral, uma enorme construção gótica, de ângulos afiados, torres altas e vitrais enormes. A lua cheia brilhava através de um deles, projetando sombras coloridas sobre eles quando Todoroki e Midoriya chegaram ao que tinham descoberto ser a nova concentração da liderança do exército rebelde. Aparentemente havia sido a última concentração do exército real também, antes de Bakugou tomar o local ao fim da batalha.

 

Surpreendia a Shouto que ainda houvesse uma catedral depois disso, mais ainda uma naquele estado. Que não as portas explodidas e a ausência de algumas gárgulas, o lugar estava quase imaculado comparado à destruição do resto da cidade.

 

Desde quando começaram a andar, o silêncio entre ele e Midoriya mudara de tranquilo para desconfortável, para crescente incômodo e certo remorso do príncipe. Nas poucas vezes em que conversaram nenhum dos dois falara mais no assunto da cicatriz, ao invés disso discutindo amenidades ou questionando a situação da guerra e o que viria a partir de agora. Ainda assim, de vez em quando Todoroki conseguia notar os olhares de preocupação e certo arrependimento que o paladino lhe lançava por detrás daqueles longos cílios verdes. Ao contrário de fazê-lo abordar o elefante na sala, a reação de Izuku o incentivava a se fechar mais. Alguma coisa naquele olhar o fazia sentir vulnerável, e ele não podia se dar ao luxo de se sentir assim durante uma guerra civil.  

 

A primeira a notá-los se aproximando foi Momo, que fortuitamente ergueu o olhar da bagunça de mapas que estudava. Num instante ela estava de pé, e no outro tinha seus braços ao redor do pescoço de Shouto, a cabeça apoiada em seu ombro, tentando suprimir pequenos soluços. Ele a abraça de volta, fazendo círculos pacientes em seus ombros, de certa forma relaxando com o contato familiar, com a forma com que os punhos dela seguram as costas de sua camisa, o cheiro forte de ervas mágicas e alquimia em seu cabelo.

— Ah, deuses, você está bem!! Eu fiquei tão preocupada!!! Por que não deu notícias?? - A jovem maga se afasta o suficiente para lançar a ele um olhar crítico, suavizado por suas bochechas coradas e os olhos cheios de lágrimas. Ela está se esforçando para parecer uma irmã mais velha séria, como tem sido há anos, desde que ela começara seu aprendizado com o alquimista da Corte. De várias maneiras, é isso que Yaoyorozu realmente é para ele - a irmã que Fuyumi nunca foi.

— Desculpe, Momo…- Há genuíno arrependimento na voz de Todoroki, e a reação da moça é torcer a boca em desaprovação.

— É bom que sinta mesmo! Está ferido? - Ela se dirige ao paladino, que dá um sobressalto ao ser subitamente incluído na conversa. - Midoriya-kun, ele está bem?

—Por que pergunta ao Midoriya?

—Eu claramente não posso mais esperar uma comunicação direta de você, Shouto.

— B-bom… - Izuku desvia o olhar, sem graça. - Ele estava com alguns cortes, mas eu tomei conta disso…

— Aí vocês estão, seus dois merdas! Temos uma porra de um conselho de guerra pra fazer, e vocês passeando por aí como se o corno do rei fosse largar a coroa de graça pra gente???

A voz é agressiva e facilmente reconhecível, se os insultos gratuitos não fossem suficientes. Katsuki Bakugou parece parte integrante do cenário de destruição a seu redor, com a pesada pele de lobo sobre os ombros e os inúmeros troféus de batalha pendurados no pescoço. Com um som alto, ele se larga em uma das cadeiras esculpidas da catedral como se fosse seu trono pessoal. Há manchas de sangue seco em seus braços e seu peito, mas nenhum sinal de ferida, significando que a espada presa a sua cintura tivera seu uso na batalha recente. Ele lembra ao príncipe de um dos bárbaros que lera sobre quando era criança.  

— Já vai ter reunião, Kacchan?

— A batalha acabou, porra. Planejamos a próxima!

— Talvez seja melhor nos dar um tempo de descanso, Bakugou.  

O olhar do líder rebelde é suficientemente hostil para começar explosões por si só. - Você pode descansar com a bunda sentada na porra do meu conselho, Todoroki, ou eu vou garantir que descanse de forma mais permanente. Com os dois aqui  falta aquele filho da puta obsessivo, se esse merda ainda estiver vivo! - Ele faz um som de desagrado com a língua, um tch tão pronunciado que Shouto se vê contendo um pequeno sorriso. Ele parece uma criança grande.— Estrangeiros desgraçados.  

— Quer que eu vá procurar por ele? — Você é a caralha do All Might, Deku, não um menino de recados. Senta aí e cala a boca.

 

Não demora muito para que o ‘filho da puta obsessivo’ - Príncipe Chisaki Uno, apareça finalmente. Uma vez reunidos, os representantes dos maiores grupos do exército rebelde - os revolucionários de Katsuki, os soldados rebeldes de Todoroki, a liga dos Alquimistas de Momo e os emissários dos reinos vizinhos de Thalassa e Ingenia, ambos ameaçados de guerra pelo crescimento de Hougara sob o Rei Endeavor - começam a discussão de seus próximos movimentos após a vitória em Hosu. Apesar de terem conquistado a cidade, esta agora se encontra em ruínas, deixando poucos recursos para apoiá-los na marcha até a capital. Por sua vez, o rei se prepara para um cerco, reforçando suas muralhas e aumentando as idades mínimas e máximas de recrutamento na cidade e feudos dos arredores.

 

— Talvez possamos organizar um acordo. - Midoriya é o primeiro a sugerir, as sobrancelhas franzidas em reflexão. - Uma rendição em troca da renúncia e prisão perpétua.

— Quer que a gente perdoe esse filho da puta? - Bakugou praticamente cospe as palavras, o som seco de seu punho na mesa fazendo as velas tremerem. - Perdeu o juízo que te resta, Deku?

— Eu só quero minimizar o número de vidas que vamos certamente perder ao atacar a capital. Já tivemos muitas perdas aqui, Kacchan

.— Pois é! Pessoas morrem em guerras! Quem acreditaria nisso?

— Há uma diferença entre pessoas morrerem com ou sem necessidade. - Midoriya segura sua posição de forma admirável, encarando da mesma forma os olhos vermelhos de Katsuki que o fulminam do outro lado da mesa. - O quanto podemos salvar pra mim já é uma vitória.

— Um bom raciocínio, mas você não anda olhando suas cartas recentemente, então. - Chisaki faz menção a um de seus guardas, um homem grande o suficiente para mal caber passar pelas portas duplas da catedral. - Mostre a eles, Rappa.

— O Rei Endeavor anunciou publicamente que não renunciará em nenhuma hipótese. - Ele continua, enquanto a carta vai passando de mão em mão. Os olhos de Shouto se estreitam quando o documento chega até ele, reconhecendo a assinatura e o selo que vira tantas vezes o pai afixar. - Na mesma carta acusa vocês de traição à Coroa e ao país, e a mim e a Aizawa-san de influência estrangeira prejudicial, prometendo executar a todos nós em praça pública, e qualquer um que se suspeite estar ligado à causa. Ele também torna a Princesa Fuyumi sua herdeira, já que o Príncipe Dabi está morto.  

Os olhos dos dois se encontram, azul contra azul-e-preto. O hálito de seu irmão mais velho é uma pequena nuvem no frio do campo de batalha, o mesmo que agora se espalha dentro de seu corpo. Shouto está paralisado, tão congelado quanto os arredores, pensamentos contraditórios cortando sua mente. Ele deve ajudar? É uma armadilha? Ele não imaginava que fosse chegar a tanto. Certamente seu irmão sempre fora muito melhor com magia de fogo, mas como as coisas fugiram de controle dessa forma?

— Shouto. - A voz que o chama é quebradiça e rouca, e ele não sabe se a forma com que chama seu nome é uma maldição ou uma súplica. - Shouto...

— É sem dúvida legítimo. - Shouto se força a dizer em voz alta,  empurrando o papel nas mãos de Iida a seu lado com talvez mais força do que o necessário. - E se ele nomeou minha irmã como herdeira, sem dúvida já sabe que estou aqui.

— Bom, um pouco difícil de esconder depois do que você fez com a artilharia dele na última batalha, Todoroki… - Há um tom brincalhão na voz de Momo, uma leveza que não chega a seus olhos, fixados em preocupação no amigo de infância. - Não há muitas pessoas que podem congelar canhões daquela forma.

— O Rei Enji não é burro. - A voz de Aizawa de Thalassa é baixa, mas grave, um quê de monotonia e tédio contrastando com suas palavras duras. - Ele está tentando cortar o apoio da população a nós pelo medo. Com a mão de ferro que mantém na cidade e a ordem de executar qualquer um suspeito de estar colaborando, duvido muito que tenhamos mais informações sobre a situação da capital antes de chegar lá.

— O que isso prova é o que já esperávamos. - Uraraka dá um suspiro resignado, os nós dos dedos brancos ao redor do cajado mágico que ela aperta em apreensão. - Não vai ter rendição nem acordos. Ou ganhamos essa guerra ou morremos.

O peso dessas palavras cai sobre o grupo como o véu da madrugada no céu acima. Certamente todos já consideraram isso antes, as consequências do que estão fazendo, de por sua vida na linha por um objetivo. Não teriam chegado tão longe se não tivessem. Mas agora o que vem ao príncipe não é o medo das consequências, e sim o medo de que tudo que fizera até agora tenha sido em vão.

Até que uma voz quebra o silêncio, uma risada escrachada de desafio. O capitão rebelde bate a mão na mesa de madeira maciça mais uma vez, pequenas explosões pipocando em seus dedos, um sorriso tão afiado quanto suas lâminas em seu rosto.

— Bom, sabemos o que fazer agora. Se o grande churrasco nos desafia, nós vamos responder! Preparem seus soldados para a marcha à capital. Vamos pôr um fim nessa caralha de guerra.

 

É somente algumas noites de marcha depois que Todoroki encontra para um pouco de paz em meio ao caos, e no contexto em que se encontra isso significa alimentar seu cavalo. O estábulo improvisado parecia quase um oásis se comparado à multitude de conversas e fogueiras do lado de fora, uma quietude da qual Shouto sentia muita falta, especialmente depois de um dia estressante como aquele.

A lembrança das discussões acende fagulhas em seu peito, e ele derruba o feno na manjedoura com mais violência do que o necessário, notando depois que acabara congelando parte da comida do pobre Fuyusuke. Com um suspiro e um pedido de desculpas a seu amigo de longa data, ele se abaixa e se põe a descongelar o feno com a outra mão, os lábios pressionados em frustração. Katsuki Bakugou era uma pessoa muito difícil de lidar, isso ele bem sabia, mas parecia que nos últimos dias o loiro estava se dedicando especialmente a pressioná-lo até o limite. Por mais que não quisesse admitir, Todoroki sabia que, se esse era mesmo o objetivo do comandante rebelde, ele estava se saindo maravilhosamente bem.

Há alguns meses eu não me importava com nada que saía da boca daquele desgraçado. Por que isso está me afetando agora?

— Todoroki-kun? - Dependendo de quem fosse, ele estaria pronto para jogar uma bola de fogo na direção de quem o incomodasse; mas essa pessoa específica, para sua sorte, era alguém que parecia incapaz de deixar o príncipe com raiva.

— Midoriya. Olá.

O paladino para há poucos passos dele, brincando com os próprios dedos em nervosismo. - Você… Você está chateado? Com o Kacchan?

— Não. - Todoroki se ergue, abanando restos de feno de suas roupas. - Eu não me rebaixo ao nível de crianças de cinco anos.

A mão de Midoriya em seu ombro é surpreendentemente quente, enviando arrepios estranhamente prazerosos por sua coluna. - Não leve ao pessoal, por favor. Isso é parte de como é o Kacchan. Ele pode fazer toda essa imagem de intocável e imbatível, mas a verdade é que está com medo e não sabe processar bem isso, então ele fica com raiva. - Ele dá uma risada tímida, um quê de nostalgia perceptível em sua voz. - Ele sempre foi assim, desde que éramos crianças.

— Eu não vou perder a paciência e matá-lo, se é disso que tem medo. Ainda estamos longe de tirar a coroa do meu pai. Não vou arriscar isso.

— Quanto a isso… Todoroki-kun… Como você está?

— Hm? Melhor, as feridas curaram bem.

— N-Não. - Midoriya mede suas palavras com cuidado, receoso de afastá-lo mais uma vez. Por que não se abre comigo, Shouto? Por que não me deixa te ajudar?

— Eu quis dizer, em relação a tudo. Lutar com seu pai, com seu irmão…

Há um silêncio breve, e Izuku se convence que arruinou tudo mais uma vez. Está prestes a se desculpar quando o príncipe o responde, o ressentimento e amargura tão claros em sua voz que o paladino quase se retrai fisicamente. - Eu sempre imaginei que fosse fazer isso um dia, Midoriya. Não me incomoda. Depois do que aconteceu com minha mãe, eu sabia que iria confrontá-lo um dia.

— Você… Nunca falou sobre…

— Eu não sei onde ela está. - Shouto o corta, e dessa vez Izuku de fato se encolhe. Nem ele consegue dizer o que o deixa mais apreensivo, se a ideia de que o nobre vá machucá-lo ou quebrar e começar a chorar na sua frente. - Imaginei que estivesse com meus parentes… Mas encontrei você lá, não ela.

— Desculpe…

— Pelo quê? - É a primeira vez que o príncipe o olha diretamente desde que essa conversa começou, e o que ele vê em seu olhar é confusão. - Você não fez minha mãe sumir. Meu pai fez isso, entre todas as outras coisas que fazem dele uma pessoa desprezível. Por isso eu não tenho problemas em lutar contra ele, Midoriya.

— Não era bem por isso, é que… - Midoriya morde o lábio inferior, subitamente cheio de dúvidas. Deveria falar sobre isso com Todoroki? Afinal, o príncipe já tinha o suficiente com o que lidar, o tanto de luto e raiva que o próprio Izuku não entenderia, mesmo que tivesse empatia por ele. Suas próprias questões pareciam tão menores em comparação a isso que ele se sentia bobo, quase culpado por deixar coisas pequenas o afetarem quando pessoas como Shouto e Kacchan conseguiam ser tão fortes. Mas ao mesmo tempo havia aquele brilho nos olhos de cores diferentes que ele admirava, a sensação de proximidade e confiança que pairava agora entre os dois e que ele tão desesperadamente queria sentir com aquela pessoa.

Todoroki se abrira a ele, mesmo que pouco, e o garoto se sentia no dever de retribuir esse voto.

— O que aconteceu com você. Com você, com Kacchan, com Uraraka e Iida, Kirishima e Kaminari… Não foi justo. Nenhum de vocês merecia. Perder a família, passar fome, o recrutamento… Todos vocês foram injustiçados diretamente pelo rei, e tem todos os motivos de estarem aqui, motivos fortes… E enquanto isso eu estava escondido e bem… Sendo inútil. V-você vai a Thalassa em busca de respostas, procurando pela sua mãe, e o que você encontra? Eu. Desapontador, não? - A risada que sai de sua garganta é amarga e dolorida, e agora que tocou no assunto, Izuku sente que não conseguiria parar nem se quisesse. - Ah, eu sou um herói. Eu fui o maior herói de todos quando era Toshinori... É o que me dizem… Mas eu não me sinto muito heróico, sabe? Eu estou aprendendo agora a usar meu poder, lutando numa guerra onde todos estão envolvidos de tal forma que me sinto um intruso. Sei lá, eu não mereço estar aqui...

O toque em seu queixo é suave, mas firme, e ele sente sua cabeça sendo pressionada para cima. Midoriya tem consciência do quão ridículo deve parecer agora a Todoroki, com as bochechas vermelhas e manchadas de lágrimas, ainda mais patético do que seu natural. Mas a expressão que vê no rosto do príncipe não é de desapontamento ou desprezo, e sim de exasperação.

— É claro que merece. Você não precisa ganhar algum direito de intervir com sofrimento. Você está aqui lutando pelo que acredita, e nisso já está sendo um herói. Lutar por mais do que ressentimento… Você aqui traz esperança pras pessoas, não percebe? Você trouxe esperança para mim. - Há um leve rubor, quase imperceptível, no rosto de Shouto ao admitir aquilo. - O que você me disse daquela vez… Eu estava pronto para morrer nessa guerra, Izuku, eu estava quase ansiando por isso, e aí eu encontrei você. Você não tem ideia do efeito que tem nas pessoas.

Ele me chamou pelo meu nome… Ele disse que sou importante… Ele disse que mudei a visão dele… E dos outros… O jovem paladino estava em choque, o próprio coração batendo assustadoramente alto em seus ouvidos, a respiração presa na garganta. Ele não sabia como lidar com aquilo, além de chorar com ainda mais força. Pensar que alguém que ele admirava… Que ele amava…. O considerava tanto era tão poderoso que era quase insuportável. Izuku honestamente sentia que, se Shouto soprasse na direção dele agora, ele cairia morto no chão.

— E-eu tenho um efeito nas pessoas? - Foi o máximo de resposta que seu cérebro sobrecarregado conseguiu produzir, e ele quase desfaleceu de fato quando viu o príncipe sorrir - não o sorriso contido e guardado que ele mostrava vez em quando, mas um sorriso real, profundo, e para ele.

— Pode apostar. Um efeito incrível, de lembrar que a vida vale a pena. Então sorria. Não tem do que ter vergonha.

Shouto se dá conta de que se aproximou mais do paladino do que pretendia. Ele consegue sentir a respiração de Midoriya em seu rosto, consegue contar suas sardas. Mesmo no escuro, aqueles grandes olhos verdes o olham de volta, as pupilas dilatadas de expectativa. Ele imaginou que fosse ficar nervoso quando esse momento chegasse, mas, agora que está aqui, é tudo tão simples. Apenas um passo. Ele precisa apenas se inclinar, e vai mudar a relação deles para sempre.

O beijo começa tímido. Apenas um toque, nenhuma pressão, nada além do coração de Shouto desenfreado e uma sensação molhada em seus lábios. E então Izuku pressiona de volta, e ele sente os pelos do pescoço se arrepiarem quando os dedos do paladino o tocam, puxando mais para perto, mais para ele. Ele faz a mesma coisa - é isso que tem que fazer? É assim que se corresponde? Ele nunca beijou antes. Momo estava certa, ele deveria ter se aventurado mais antes. -  sentindo os cachos macios sob seus dedos, um arrepio descendo pelas costas de Izuku quando seus dedos gelados encontram a pele. Nenhum deles sabe ao certo quando o beijo ficou mais profundo, quando a pressão entre os lábios aumentou e não foi suficiente, quando suas línguas se tocaram pela primeira vez.

Algo em Shouto ainda acha isso tudo muito estranho, os sons em sua garganta e a saliva no canto da boca e o momento em que seus dentes se tocaram - mas ao mesmo tempo é bom, é certo— porque é com Midoriya, e ele confiaria sua vida ao paladino e é isso que faz agora.

É uma risada alta do lado de fora do estábulo que o traz a realidade, e ele se afasta, arfando e com o rosto quente. Ele vê a confusão e a dor perpassarem o rosto de Izuku por um momento, antes que ele também perceba os sons, e as atenções dos dois se voltam ao lado de fora. Há passos pesados perto da porta, e uma voz grossa cobrando uma luta de outra pessoa que não parece muito interessada.

— Pelo amor dos deuses, Rappa. - Há alguém logo atrás da parede contra a qual Midoriya estava - quando exatamente isso aconteceu também? -, uma segunda voz com um subtom de irritação crescente. - Eu tô cansado. Luto com você amanhã.

— Mas Fat! - Rappa é um dos guardas de Chisaki, ele se lembra, e o tom de súplica em sua voz agora não combina em nada com o homem enorme a qual ele sabe que ela pertence.

— Estivemos numa batalha faz poucos dias! Contenha esse fogo no rabo e deixe suas feridas sararem! - O homem chamado Fat finalmente aparece em seu campo de visão, uma silhueta alta e corpulenta recortada contra a luz que passa pela porta. Ele os vê também, pois seus olhos se arregalam num instante, e de sua boca sai um som parecido com Oh.

Era o que ele precisava para se desvencilhar de vez de Midoriya, reunindo os pedaços de sua compostura. A seu lado, o paladino parece genuinamente em choque, observando o recém-chegado com uma expressão vaga de pânico. Por trás de Fat, a figura aquilina de Rappa espiou para dentro do recinto, soltando um pequeno assobio assim que notou os dois.

— Não se preocupe. - Shouto é rápido em dizer, e ainda mais rápido em agarrar a mão de Midoriya e dar as costas a esse lugar como se nunca estivesse estado ali. - Já estamos saindo.

 

Contrariando todas as suas expectativas, ele sobrevive àquela noite e às subsequentes, apesar de seu receio de que alguém vá confrontá-lo sobre o que aconteceu de qualquer forma. Do que exatamente ele tem medo - de ser rejeitado? Ridicularizado? - nem Todoroki tem muita certeza. Ele já viu homens se beijando no acampamento antes, e é amigo de Yaoyorozu, então sabe que mulheres fazem o mesmo. Ele sabe que o revolucionário Kaminari tem uma lista, e que ele próprio está nela, e se dispõe plenamente a continuar a ser uma falta na coleção bizarra do loiro. Ele viu Iida e Uraraka de mãos dadas e já ouviu os gritos de Bakugou antes, e só de pensar nisso ele já sente suas bochechas corando. Depois de seu terceiro encontro fortuito com Midoriya, ele senta à beira de uma fogueira solitária, tentando acalmar a forma com que seu coração ainda parece querer rasgar o caminho para fora de seu peito.

Não há o que temer. Não há problema nisso. Ninguém vai nos julgar. Por que com ele seria diferente? Só por ele ser um príncipe? Chisaki também é um príncipe, com uma filha fora do casamento e uma aversão tão grande por pessoas que a existência daquela criança era em si um milagre, e não parecia a Shouto que ele fosse tratado de forma diferente dos demais. Por mais que a razão o diga que a chance disso acontecer é mínima, a apreensão parece ter feito uma casa permanente em seu peito, se recusando a sair. Era como se parte dele continuasse repetindo, com uma voz assustadoramente semelhante à de seu pai, falha falha falha fraqueza fraqueza fraqueza. Você está ficando fraco. Esse garoto vai ser seu fim.

— Caralho, Todoroki. Tenta não tocar fogo na gente. - É com surpresa que ele vê que a figura de Bakugou se juntou a ele. Aparentemente o capitão consegue ser discreto quando quer, ou ele próprio estava muito preso em seus delírios de autocrítica para notar que o loiro se aproximara. A fogueira entre eles brilhava com força numa luz azul, as chamas fortes e altas reagindo inconscientemente às suas dúvidas, e é com certa vergonha que Shouto faz um gesto e as retorna ao tamanho e cor natural.

— Então. - Katsuki soa casual, os olhos avermelhados observando seus movimentos como um tom de serpente acompanhando a presa que deixa o príncipe desconfortável. Uma das mãos do revolucionário brinca com um dos muitos colares que ele leva no pescoço, ganhando tempo antes que ele solte a bomba: - Quanto tempo mais vocês vão ficar de viadagem no meu acampamento?

— Huh?

— Você e o filho da puta do Deku. - A voz do comandante rebelde é tão abertamente acusatória que isso desarma Todoroki quase tanto quanto a suposta cristalização de seus medos. - Acha que não fiquei sabendo de vocês no escurinho do estábulo? Estamos numa maldita guerra, deixe pra dar o rabo quando ela terminar.

— Não vejo como estamos te atrapalhando. - Seu coração bate como um tambor de guerra em seus ouvidos, mas ele se recusa a demonstrar fraqueza a Katsuki de todas as pessoas.

— Você é burro ou o quê? Qualquer tipo de rumor vai afetar a moral do acampamento. O que vão achar quando descobrirem que o príncipe que eles esperam que suceda o trono é um viadinho do caralho?

Ouvir seus próprios receios na voz de Bakugou é o que finalmente pressiona Shouto através do limite. As palavras escapam dele antes mesmo que tenha ciência do que está dizendo. - Eles não parecem ter problemas com o Capitão deles beijando um dragão de vez em quando. Ou você acha que não sabem do que tem entre você e Kirishima?

Para o jovem nobre, tudo passou como num estalo. Bakugou está diante dele, segurando-o pelo colarinho da camisa, e ele próprio tem os dedos profundamente enterrados na pele de lobo que o líder rebelde usa nos ombros. Ele se lembra vagamente de que prometeu a Midoriya que não mataria Katsuki, mas a opção de bater nele até chegar perto disso está se tornando bastante desejável o quão mais ele consegue ver o próprio reflexo naqueles olhos vermelhos.

— Eu venho querendo te dar uma nova cicatriz há meses, Todoroki. Não me tente.

— Pelo contrário. Vá em frente. Eu venho querendo te ensinar respeito há muito tempo também.

O punho de Bakugou se move ao mesmo tempo em que Shouto o chuta com a perna encolhida, erguendo o braço esquerdo para amparar o soco que manda agulhadas de dor ombro acima. Ele não está brincando. O príncipe se afasta com um rolamento, tentando criar mais espaço entre eles, mas o líder rebelde é tão ágil quanto é forte, e a dor do golpe subsequente entre as omoplatas quase expulsa o ar de seus pulmões. Ele consegue aparar os próximos socos velozes, mas não o chute que o atinge nos rins, lançando uma dor estridente por seu corpo. Se aproveitando da oportunidade, a mão de Katsuki encontra seu pescoço, e as costas de Shouto colidem dolorosamente contra o chão quando o outro combatente joga seu peso sobre ele.

Ele podia usar magia, afastá-lo com fogo ou gelo, mas seu orgulho o impede. Ele é um príncipe real, e não vai ser derrotado em combate por uma mula teimosa arrogante. Bakugou está sorrindo vitorioso acima dele, as mãos se fechando como cobras ao redor de seu pescoço, próximo o suficiente para que sinta sua respiração em seu rosto, seus narizes se tocando, o suor pingando em sua pele. Com uma das mãos o príncipe segura firmemente um dos pulsos do capitão rebelde, puxando para aliviar a pressão. Com a outra, num movimento rápido e treinado à exaustão, ele pressiona dois dedos na base da garganta do loiro, atingindo sua traqueia. A dor e a falta de ar súbitas distraem o revolucionário por segundos preciosos, tempo suficiente para que Shouto acertasse uma joelhada precisa em sua virilha e uma cotovelada na lateral de seu rosto, o empurrando para longe dele.

Bakugou consegue amparar a queda com os braços, um som como um rosnado rouco vindo de sua garganta quando ele focaliza novamente em Todoroki. O príncipe está de pé, arfando porém atento, com uma mão alisando as marcas vermelhas ao redor de seu pescoço.

— Que merda foi essa, seu filho da puta desgraçado? - Katsuki percebe que sua voz está rouca, se pelo golpe em seu pescoço ou pelo desejo em suas veias, ele não liga e não consegue precisar. O maldito Todoroki parecia insuportavelmente desejável naquele momento, o cabelo bagunçado, a lama do chão em suas roupas amarrotadas, as marcas dele em sua pele...

— Você tentou me esganar. - Aquela voz indiferente sempre fazia a raiva pulsar dentro dele. Como se o maldito não ligasse pra nada, nem pra ele nem pra porra da guerra… Mas ele liga pro Deku, não? O suficiente para deixar a língua dele entrar em sua boca.

— Eu não ia lhe matar. — O capitão se põe de pé, lambendo o sangue que escorria do canto da boca depois que o último golpe de Todoroki cortara seu lábio. O filho da puta parece que nem pisca. Maldito… Eu odeio você...

— Eu também não. Só te ensinar o seu lugar.

A magia de Bakugou desperta com sua raiva crescente, a ponto de que pequenas explosões aparecem naturalmente a cada movimentação de seus dedos, lentamente aumentando em intensidade. Num ataque súbito, ele se lança na direção do príncipe com ímpeto, se impulsionando com seu poder. Todoroki o acompanha como pode, girando o corpo para não dar as costas ao adversário, mas com uma explosão o loiro desvia rapidamente de curso, pegando-o desprevenido. Com uma das mãos ele agarra o pulso do príncipe, com a outra seu cabelo, e continuando o movimento ele o projeta pra longe com força. O rapaz atinge o chão com um baque alto, um som de dor escapando por entre seus lábios. Não tão intocável, heh? Você sente dor como plebeus normais.

— Você não ia me botar no meu lugar hm? Então por que você que está no chão que nem cachorro? Vem pra cima, se acha que aguenta! Me queima, me congela, faz o seu melhor! Você vai precisar!

Ele escuta a respiração arfante do outro, percebe como seus braços tremem quando ele se impulsiona para se levantar novamente, a expressão breve de dor que passa por seu rosto quando se põe de pé, lançando uma pontada afiada de remorso direto ao coração do loiro. Nenhum desses sinais de fraqueza, no entanto, chegam ao olhar de Todoroki. Ele parece no máximo aborrecido, como se o melhor que Katsuki pudesse lhe dar não fosse suficiente, e o pensamento o faz se jogar no combate ao mesmo tempo em que o outro faz o mesmo. Eles se cruzam no meio do caminho, trocando golpes que não chegam a conectar, e ele está sempre à espera de uma chama ou do chão escorregadio ou de lanças de gelo que nunca vem.

Os minutos se arrastam, e a frustração de Bakugou também. Ele está arfando com cada movimento, os músculos de seus braços e pernas tremem e queimam de esforço, há hematomas por boa parte de seu corpo, a grama do local da luta está arruinada por todas as vezes que usou sua magia, e ainda não há sinal de Todoroki fazer o mesmo. Por mais que o príncipe pareça estar ainda pior que ele fisicamente, em nenhum momento recorre à magia, como se achasse que pode ganhar a luta na força física apenas, inflamando ainda mais a raiva do revolucionário. Ele parte pra cima com mais intensidade, pronto para morder, chutar e quebrar cada pedaço de Todoroki para que ele o leve a sério.

O próximo golpe que conecta é um soco nas costas, do lado esquerdo, logo acima dos rins, e o adversário desvia mas não o suficiente. Ele o vê cair de joelhos, o ar expulso de seus pulmões, momentaneamente paralisado pela dor, e a única coisa que quer fazer é gritar pra que ele acabe logo com o sofrimento e lute de volta como deveria. Ele podia ter me queimado! Podia ter me feito escorregar, podia ter me parado no lugar, podia ter feito tanta coisa, eu sei, eu já o vi lutando, eu sei do que ele é capaz. Então por que não luta comigo? Por que não olha pra mim??

— Por que não usou a sua magia??? Puta que pariu, por que não me leva a sério?? Por que é sempre o Deku??? - Katsuki percebe que não só está gritando, sua voz quebrada e mais estridente a cada frase, mas que está chorando agora. Ele mal consegue ver o rosto chocado de Shouto, distorcido pela água em seus olhos, e pela impressão de que o outro possivelmente o despreza agora, o olha com a mesma superioridade desdenhosa com que o Todoroki mais velho o olhou no dia em que seus pais foram para a forca.

Por mais que tente impedir, as grossas lágrimas teimam em descer pelo seu rosto. Ele quer gritar, quer bater mais ainda em Todoroki, quer bater em si mesmo, mas acima de tudo quer continuar falando. — Isso é… Injusto. Por que não eu??? Sabe quanto tempo eu rezei? ANOS! Na esperança do novo portador ser EU! De mudar as coisas! De salvar meus pais! Mas não, tinha que ser a porra do Deku, e ele tinha que ser levado pra ser protegido pela caralha da realeza, enquanto eu fiquei aqui, passando fome e sendo incapaz de salvar a minha própria família. Eles queimaram. Por conta do seu pai.

— Bakugou…

— E aí você aparece, o filho do próprio filho da puta, e eu estava pronto pra te odiar até a outra vida, mas caralho, você faz isso ser muito difícil! E então você traz a porra do Deku, e o Deku é um maldito paladino dos deuses, e ele está sempre sorrindo e curando as pessoas e falando aquelas merdas sobre salvar os outros e eu quero muito odiar vocês dois, mas eu não consigo

Ele está de joelhos agora, soluçando a ponto de seus ombros balançarem, as mãos cruzadas sobre a boca na vã tentativa de abafar os sons patéticos que saem da sua garganta, e essa é mais uma coisa que ele não consegue fazer. Não consegue bater o Deku, não consegue salvar seus pais, não consegue proteger seus amigos, não consegue a atenção dele, aposto que ele te acha patético agora, um idiota que sonhou alto demais e queimou.

— Ao invés disso eu tenho que ver vocês sorrindo e conversando e se beijando e saber que nunca, nunca, eu vou fazer parte disso, porque eu não sou um guerreiro divino ou um príncipe real, não sou como vocês, e eu tentei, eu tentei tanto...

Ele sente as mãos em seu ombros e o tranco de quando ele o impulsiona para trás, para erguer a cabeça e olhar pra ele e por mais que não queira ele não consegue resistir. O que ele vê é seu reflexo patético no fundo daqueles olhos, que por algum motivo não parecem julgá-lo, não parecem desprezá-lo como ele antecipava.

— Katsuki. Do que está falando? Você que é o líder da revolução, não? Você uniu todas essas pessoas na busca para serem livres, muito antes de eu ou Midoriya entrarmos no cenário, e mesmo agora é a sua autoridade que eles procuram, não a minha e não a dele. Isso não é igualmente importante? Se estamos aqui agora, foi porque você deu o primeiro passo.

— Então por que… Porque eu sinto tão…

— Porque você é um idiota. - Há uma naturalidade tão profunda em como Shouto diz aquilo que Katsuki sabe que devia se sentir ofendido, mas ele está encantado demais em quão bonito o príncipe parece assim de perto, quando se inclina mais para perto dele. Há um corte em sua sobrancelha e outro em seu lábio inferior, e em retrospecto olhar para os lábios de Shouto Todoroki quando ele estava tão perto era uma ideia muito ruim. Mas… É impressão, ou ele está se aproximando mais ainda? - Você não precisa ser igual a ninguém. Já é bom o suficiente sendo você.

Beijar Bakugou é consideravelmente diferente de beijar Midoriya. Ele aprende essa lição no instante depois que ele pressiona seus lábios juntos, quando o loiro captura seu lábio inferior e o puxa delicadamente. A pressão entre eles é considerável, lábio contra lábio, peito contra peito, as mãos do revolucionário em sua lombar, suas próprias nas costas dele, um segurando o outro com medo de que vá embora, com anseio de que fique perto. A língua dele está em sua boca, ansiosa e raivosa como o próprio, e alguns dos toques mandam arrepios por seu corpo, enquanto outros lhe fazem cócegas. Ele não consegue impedir uma risada do fundo de sua garganta, ao que Bakugou parece responder apenas pressionando mais, os dentes arranhando contra seu lábio, uma de suas mãos achando o caminho para seu cabelo e acariciando os fios branco e vermelho. Isso é ele pedindo desculpas por puxar meu cabelo? Hmmmm, é bom. Eu aceito as desculpas.

É com surpresa que Shouto percebe que se sente bem. Sem fôlego, dolorido, com uma dor de cabeça a caminho de todas as vezes em que bateu no chão, mas bem, livre de uma forma. Tudo é diferente, o beijo, a situação, a pessoa, como ele se sente, mas se assemelha mais a um aspecto diferente da mesma coisa, uma outra perspectiva que ele ainda não tinha percebido. Seu coração ainda bate velozmente em seu peito, sua pele formigando a cada toque dos dedos ou da boca de Katsuki nele, a mesma curiosidade estranha de saber que algo que ele rejeitaria normalmente parece se encaixar tanto com a pessoa certa. A sensação de agora não é de uma confiança confortável, como ele sente com Izuku, e sim mais aproximado a uma fraqueza compartilhada. Um voto mudo de confiança entre ele e Katsuki, de mostrar um ao outro alguns de seus pontos fracos.

Bakugou faz um súbito movimento com a língua que manda o que parecem choques elétricos por seu corpo, e Shouto é incapaz de conter um gemido que escapa de sua garganta. É claro que ele sabe o que faz, ele já fez isso antes, nem eu nem Izuku já… Ele escuta a pequena risada que Katsuki dá em um de seus breves intervalos para respirar, e ao abrir os olhos para censurá-lo é que ele nota que, atrás do loiro, há dois olhos verdes arregalados o encarando de volta.

De imediato, ele se afasta definitivamente de Katsuki, ainda arfando demais para conseguir falar. O príncipe acaba tendo que quase empurrar o loiro para longe quando ele tenta beijá-lo de novo, uma lamúria surpreendentemente aguda escapando do revolucionário quando seus lábios encontram a bochecha de Shouto ao invés de sua boca. É quando o príncipe finalmente consegue chamar a pessoa atrás dele que Bakugou para, igualmente presa da apreensão.  — Midoriya...  

 

Izuku não olha para trás. Ele apenas corre, sempre chorando, sempre tão fraco, as unhas se enterrando na carne da palma das mãos quando ele fecha o punho em impotência. Por que ele sequer estava surpreso? Por que ele estava machucado? Não é como se eles fossem um casal. Shouto nunca dissera isso, nunca dissera que o amava, nunca prometera compromisso… E ainda assim, doera profundamente vê-lo beijando Bakugou, e ele sabia que não era pelo físico, não era por um sentimento vão de posse. Era mais uma prova do quanto ele ainda era o fracassado de sempre, de que ele não conseguia ser como Kacchan, de que ele nunca conseguiria vencer Kacchan. Todas as palavras daquela noite, sobre ser um herói, sobre mudar as pessoas… Elas tinham algum peso, se no fim ele não conseguia se provar sequer para o melhor amigo de infância?

Ele sempre admirara o loiro rebelde. Desde quando eram crianças, quando ele era o chefe das crianças do vilarejo, até hoje, quando o via como comandante do exército. Antes, ele soubera que admirava o que nunca poderia conseguir; alguém que nasceu sem dons mágicos, atléticos ou acadêmicos estava destinado a uma vida de mediocridade, enquanto que quem tinha os três, como seu amigo, iria deixar realmente sua marca no mundo. Desde que se descobrira All Might, no entanto, alcançar ou até superar Kacchan se tornara um sonho possível, uma motivação só dele além de honrar a memória de Toshinori. Agora tudo isso parecia ridículo. Não importava se ele era All Might ou não, se ele ainda não sabia lutar como Katsuki, liderar como Katsuki, unir pessoas como Katsuki, e, a mais nova parte da lista, beijar como Katsuki.

Ele para, limpando as lágrimas das bochechas como pode, percebendo que se afastou um pouco do local do acampamento. Está quase em cima de uma pequena colina, e, olhando para trás, pode ver as luzes brilhantes das fogueiras no pequeno vale abaixo, em comparação com as luzes mais altas e mais fortes dos pontos de vigília ao longo de seu perímetro. No alto da colina em que se encontra há o que parece ser um monte de pedregulhos. Ao se aproximar, ele nota que é uma estrutura antiga, um pequeno altar de pedra ou mesmo túmulo, um lugar praticamente esquecido, tanto que não tomaram ciência dele quando escolheram a posição das vigílias. O tipo de lugar pra mim. O jovem paladino senta na grama alta, as costas apoiadas em uma das pedras antigas, e apoia o rosto nos joelhos, deixando as últimas lágrimas escorrerem. Talvez eu consiga um pouco de paz, pelo menos, por enquanto...

— Caralho, Deku. Chorando de novo?

— K-Kacchan… P-por favor, me deixa. - Ele praticamente implora, abraçado aos joelhos, os olhos fechados com força como se pudesse fugir daquela situação desejando. Se fechar os olhos por tempo suficiente, vai parecer apenas um sonho ruim. Ele sente o calor do corpo de Katsuki quando este senta ao seu lado, ignorando seu pedido como lhe era de prache.

— Não. Não até a gente conversar.

— Desde quando você conversa comigo?

— Desde quando você espiona as conversas dos outros e sai correndo depois?

— E-eu ouvi os barulhos e... Tive medo de que… - Midoriya solta um som entre risada e fungado. - De que estivessem brigando.

De alguma forma, o comentário deixa Katsuki sem graça. Ele corre os dedos pelo cabelo loiro, desviando o olhar mesmo sabendo que Izuku está muito ocupado chorando para olhar para ele agora. — Tecnicamente, estávamos mesmo. Uma coisa levou a outra...

— Eu sou um idiota ingênuo mesmo… Claro que ele só queria me animar.

— Para de resmungar e fala pra fora, que doença do resmungo é essa! Diz na minha cara!

O paladino ergue o olhar pela primeira vez naquele ponto, os olhos verdes ainda cheios de água, mas a voz firme e clara quando ele responde. - ...É claro que o príncipe iria preferir alguém como você do que eu.

— Você tá me zoando, filho da puta? Você é a porra do All Might!

— E do quê isso vale se eu mal sei usar esse poder?? Você… Você sempre foi melhor, em tudo. O seu poder é seu poder! O do Todoroki-kun também...  Mas não o meu. A minha magia é a magia do All Might. Não tem nada nela que seja meu.  O único motivo das pessoas sequer me darem uma chance é por causa do Toshinori… E eu não sou Toshinori. Eu sou o Izuku. Mas ninguém quer o Izuku… Nem mesmo o Todoroki-kun, ao que parece.

A dor o atinge antes mesmo que possa reagir. Em um instante, estava sentado, falando com Katsuki; no outro, estava com o rosto no chão, a mão na bochecha subitamente dolorida. Ele se levanta, os dedos longos ainda acariciando a área machucada, e nota o punho ainda cerrado do loiro que o encara de braços cruzados.

— K-Kacchan...

— Continue falando merda e eu te dou de novo, demônio. Escuta bem. Você tá certo! Você sempre foi um fracassado do caralho! Se as coisas tivessem continuado assim, eu não teria problema! - Katsuki parece ainda mais irritado do que seu normal, apontando um dedo acusatório para Midoriya. - Mas não continuaram. E essa é a porra do ponto, Deku, você é o All Might. Que merda é essa de que esse poder não é seu?? É claro que é! Esse é seu poder desde quando sua alma tocou a terra pela primeira vez! Porque isso é quem você é. O mesmo imbecil que estendia a mão pra mim quando eu era moleque. Tch. Devia ter visto que você ia ser o pau no cu de um paladino.

— Kacchan...

— Sabendo ou não usar esse poder, ele é seu, e você é a porra da esperança dessas pessoas. E não sei do que tá reclamando, você tá fazendo um trabalho do caralho, o suficiente pra você ter derretido aquele filho da puta, e eu… Eu…

Izuku está surpreso. Eles nunca tiveram uma conversa daquele tipo, tiveram? Fazia tempo que ele sequer ouvia Katsuki falando tanto, ainda mais falando bem dele, a sua maneira Kacchan de ser. Ainda mais, é a primeira vez que ele percebe aquela nota de insegurança na voz de seu amigo, a ideia de que ele se sinta ameaçado assim como o próprio Midoriya se sente ameaçado com tudo aquilo, a ideia de que Kacchan o vê e o admira de sua própria maneira, e ele não sabe o que dizer. Ele não sabe o que dizer, que não achar que ele é um completo idiota, porque isso faz total sentido e como ele nunca percebeu antes...

Além disso, há outra coisa que agora o jovem paladino consegue perceber. Uma coisa que se mostra evidente no jeito com que Katsuki pressiona os lábios e evita seu olhar. — ...Você ficou com ciúmes?

Dessa vez ele consegue ver o soco vindo, e, para sua própria surpresa, sua mão se move a tempo de segurar o pulso de Katsuki. Quando eu fiquei tão rápido? Eu nunca fui capaz de acompanhar o Kacchan em combate. Os dois se olham mais uma vez, vermelho e verde, e Midoriya é quem primeiro desvia o olhar. Ele solta seu amigo de infância, embaraçado, esperando pelos gritos e pela dor que não vem. Ao invés disso, Katsuki revira os olhos, soltando um tch especialmente pronunciado.  

— Viu?? Você antes só apanhava. Agora consegue me enfrentar. Isso me deixa doente, seu pedaço de merda. Mas não tanto quanto ver você chorando aí como um adolescente por conta do crush da escolinha! Tenha coragem, porra! Se eu ter ficado com aquele duas caras te incomoda tanto, vai falar com o pau no cu do Todoroki e faz ele ser direto quanto a quem ele quer pegar duma vez por todas!

— Não há necessidade. Eu já estou aqui.

Todoroki acaba de despontar no alto da colina, o cabelo vermelho e branco bagunçado pelo vento forte, sua roupa ainda amarrotada e puxada de ter lutado com Bakugou e beijado Bakugou em seguida; ele empurra alguns fios soltos para longe do rosto, a luz da lua em seu rosto, e tanto Katsuki quanto Izuku sentem que essa seria uma boa hora para morrer sem arrependimentos. Shouto caminha até eles com tranquilidade, sentando em frente aos dois com a serenidade de quem sabe que essas roupas específicas não tem mais salvação depois desta noite.

— Ah! Todoroki-kun!

— Falando no demônio de duas caras… Eu disse que resolvia isso sozinho!

— É inevitável não ficar com receio de que vocês se matem caso estejam sozinhos. - Ele percebe o quão tensos os dois estão, e sabe que isso vai muito além dele, para algo que diz muito mais sobre como sentem em relação um ao outro. Ele gostaria de ajudar, mas não tem ideia do como; seu próprio coração bate desgovernado naquele momento, as dúvidas e inseguranças borbulhando sob uma superfície de calmaria. O que é que ele sente? Ele está apaixonado por um deles? Pelos dois? Isso é sequer possível? Como se sabe que se ama mais de uma pessoa quando nunca se amou ninguém dessa forma? O peso dos olhares dos dois sobre ele é sufocante. Ele sabe que esperam uma resposta, e a única coisa que pode oferecer é a verdade.

— Você quer que eu seja direto, certo? Então, muito bem. Eu não tenho ideia do que está acontecendo. No geral, não me dou bem com sentimentos pra começar… Mas eu realmente nunca me senti dessa maneira antes. - Como Izuku tinha feito antes dele, Shouto abraça suas pernas, apoiando o queixo nos joelhos, quase se escondendo por trás da gola alta de sua roupa. - Não sei o que fazer. Eu me sinto bem estando com vocês dois, e é só isso que sei.

— Então você não tem ideia do que está sentindo.

— Em resumo, sim.

— Bom, que sorte a nossa, Deku. Esse daí é um constipado emocional. - Katsuki tem o cotovelo apoiado na pedra e o queixo apoiado na mão, quase deitando por cima do que Izuku realmente esperava não ser um túmulo. - Não sei porque precisa de todo esse protocolo. Quer dizer, não está bom do jeito que tá? No máximo podemos fazer um rodízio. Funciona pro Kaminari.

— E-e se pudéssemos estar todos juntos...? - A ideia lhe vem mais como um pensamento em voz alta, e Izuku leva um susto ao ver como os outros dois se viram para ele, confusão expressa no rosto de Todoroki, e surpresa para Bakugou. - É-é só uma ideia! E-Eu entendo, é algo bem radical, se não concordarem…

Um sorriso maldoso se espalha pelo rosto de Katsuki, um brilho em seu olhar fazendo Izuku corar até a raíz dos cabelos. — Um ménage, Deku? Eu não acharia que você é um desses pervertidos!

— N-não é isso! E-eu quero dizer… N-nós três… Claramente…

— Você me quer tanto assim? Se interessou quando me viu beijando o duas-caras, hm?

— K-Kacchan!!!

— Eu não vejo problema. - Todoroki intervém, interrompendo o passatempo de Bakugou de continuar torturando Midoriya com sua atração por ele. - Pelo contrário, me parece que pode dar muito certo.

— Tch. São dois pervertidos, então. - Katsuki finge irritação, passando os dedos pelo cabelo com um ar de descaso. - Vou aceitar por enquanto, mas não pensem que engulo essa coisa de estar a três. Só acho que estamos num momento crítico dessa guerra, e devemos evitar conflito interno.

— Isso é… Surpreendentemente maduro da sua parte, Katsuki.

— Eu sou maduro, seu almofadinha do caralho.

— Ah, Kacchan… Antes que eu esqueça… Obrigado. - Midoriya sorri, honestamente agradecido, e adiciona rapidamente quando percebe que Katsuki não entendeu o que queria dizer. - Pela conversa que tivemos. Devíamos fazer isso mais vezes.

— Você também, cala a porra da boca, Deku! Eu estou aturando você. Nada mais que isso, tá?

Fizemos uma promessa aquele dia. De sempre estar lá um pelo outro. Pode não ter sido uma promessa falada, mas estava implícita, um dever que todos nós tomamos a partir desse dia. Estava nos toques durante o treino, e nos olhares durante as reuniões, e nas batalhas lado a lado que nos levaram até as portas do castelo real, e ao Rei Endeavor.

 

O fogo está por toda parte, como um de seus pesadelos trazido a vida real. O príncipe está desesperado, lutando por entre os corredores estreitos, o som estridente de aço em pedra e aço em aço zumbindo em seus ouvidos, o cheiro sempre presente de fumaça e carne queimada em seus pulmões e em suas roupas. Ele salta as escadas, procurando por eles, um nó de ansiedade em sua barriga e a apreensão pulsando em seu sangue. Ele passou aqui a maior parte da sua infância, e os pensamentos lhe voltam.  Uma sala onde ele costumava brincar com Momo, Fumikage e Tenya queimou, apenas pedra enegrecida no lugar das tapeçarias atrás das quais eles gostavam de se esconder. Um escada sinuosa onde ele costumava vir quando queria fugir do pai está com os primeiros degraus manchados de vermelho, e ele não pode nem quer descer o resto para descobrir o que houve lá embaixo. Há corpos em seu caminho, os que já estavam mortos e ele espera que não sejam conhecidos, e os que o atacam em desespero, pois tem mais medo de seu rei do que do exército que os ataca. Estes são os que ele sabe que irão aparecer de novo em seus sonhos, a longa lista de fantasmas que o acompanha desde que a guerra começou.

 

Todoroki abre seu caminho até o pátio do castelo com o sabre na mão, a outra congelando o que está muito longe ou perigoso de ser tocado, e os pensamentos contraditórios e frequentes que vem a sua mente são seus amantes e seu pai. Ansiedade, medo, insegurança, ressentimento, amor, se misturam dentro dele e correm por suas veias viscosos como piche.

 

Ele sai à luz do dia, e a primeira coisa que escuta é o rugido de Kirishima em sua forma dragão, cuspindo fogo sobre os defensores das muralhas. Todo o perímetro está tomado de lutas, feridos e mortos, soldados uniformizados com o vermelho e laranja de seu pai, e as várias cores da aliança rebelde se unindo contra eles. Ele vê rostos conhecidos em meio à dança macabra, mas eles passam muito rápido, e a batalha muda muito depressa para que consiga precisar quem está aonde. Há seteiros disparando contra o dragão, e magos invocando raios e fogo que alguém - aquela era Uraraka? - refletia de volta o quanto podia. Ele está prestes a correr até a feiticeira para ajudar quando seu olhar se foca do outro lado, na muralha acima ao portão, e ele percebe, sentindo seu coração parar, que lá estão as duas pessoas que ele mais queria ver, e a uma pessoa que ele nunca mais queria ter que encontrar de novo.

 

 

— Você é uma vergonha para o nome Todoroki.

— É esse o seu melhor? Você é fraco, Shouto. Assim não poderia derrotar nem um mago aprendiz.

— A nossa dinastia vai durar mil anos. Isso é, se você não estragar tudo antes.

— Você era mais capaz quando era mais novo. Mais inteligente.

— A sua mãe se foi. Não me importo para onde. Foque no seu treinamento, que é o que interessa.

— Esse mundo em que aquelas coisas estão não é o seu.

— Você nasceu para carregar a minha vontade, e a vontade de todos os outros Todorokis antes de mim. É para isso que você foi feito, e você não irá tornar tudo isso em vão.

— É disso que você gosta? Patético.

O Rei Endeavor continua tão alto e intimidador quanto seu filho lembrava. Sua armadura completa está envolta em chamas, assim como a espada larga em sua mão e o escudo grande na outra, e ele faz arcos precisos com a lâmina na esperança de atingir um dos dois guerreiros que o enfrentam. Katsuki em algum ponto perdeu sua capa de pele, e de longe Shouto consegue ver apenas vagas sombras escuras onde ele sabe que ficam suas tatuagens, onde ele passou tantas vezes os dedos que agora poderia tracejá-las de cor. Ele está sorrindo, o maníaco que é, uma espada em uma mão e sua magia explosiva na outra, apagando as chamas com o vácuo antes que o rei consiga encurralá-los. Midoriya parece tão pequeno comparado a seu pai quanto Shouto imaginara inicialmente, o que ele compensa com velocidade e pensamento estratégico. Ele parece concentrado, a mão livre em frente a boca como o príncipe aprendeu que ele gosta de fazer quando pensativo. Com um gesto brusco, ele faz uma dúzia de lanças douradas surgirem às suas costas, e as lança na direção do adversário.

Ele mal pode acreditar no que está vendo, um sorriso de euforia se espalhando por seu rosto. Por mais que saiba que a batalha ainda está longe de terminar, ele não consegue conter a animação, a sensação primordial de liberdade, de retribuição, de ver as pessoas que ele ama enfrentando e derrotando alguém que lhe fez tanto mal. Eles estão conseguindo. Eles vão conseguir. Eles vão vencê-lo!

Há um lamento longo, profundo e doloroso, maior e mais longo do que qualquer coisa produzida por um ser humano, e o som de algo pesado caindo. Todoroki consegue cobrir a tempo seu rosto antes que os escombros e a poeira o atinjam de frente. Um dos defensores da muralha foi parar a seus pés, o corpo torcido e machucado, as mãos frias ainda segurando seu arco. Ele escuta gritos vindos de toda parte, de feridos e moribundos, mas o mais alto é o que o faz tremer dos pés a cabeça - é a voz de Izuku, e o que ele diz o faz engolir em seco.

— Kirishima! KIRISHIMA!

Por entre a poeira, ele consegue distinguir o vulto do dragão que está espalhado por cima da muralha leste, mas não consegue dizer se está vivo ou morto. Sem pensar duas vezes, ele pega o arco e as flechas do soldado morto e se precipita para dentro da nuvem de poeira, ciente de que a queda deve ter quebrado a maioria dos acessos ao topo das muretas. Tossindo e cobrindo os olhos como pode, ele consegue cruzar até o outro lado sem problemas. A maioria das sombras com quem cruzara no caminho não se mexia mais.

Subindo com dificuldade no que resta da muralha leste ele consegue ver que o dragão ainda respira - fracamente, o peito escamoso subindo e descendo com dificuldade. Ele precisa de ajuda, e agora. Ao se virar instintivamente para a muralha Norte, a muralha do portão, ele vê Midoriya se pondo de pé, o olhar nervoso imediatamente atraído para o corpo do companheiro caído e, subitamente, notando sua presença.

Atrás dele, Shouto vê com olhos arregalados seu pai erguer lentamente a espada.

Ele tem o arco em mãos e a flecha encaixada em segundos, mas aí já é tarde - a espada larga de Endeavor se choca contra as espadas duplas de Bakugou, lançando faíscas sobre os três lutadores. Ele vê Katsuki tentar conectar mais dois ataques rápidos, suas lâminas brilhando contra o fogo da armadura do pai, quando Enji consegue encaixar uma finta bem treinada, e a espada flamejante perfura o peito de Katsuki até o outro lado, o grito de Midoriya ressoando em seus ouvidos.

Endeavor sorri, menos um, agora o outro, finalmente a satisfação de matar pessoalmente o maldito All Might, quando a pontada de dor corre pelo seu braço e seus músculos falhos simplesmente soltam a espada. Ele vê com surpresa uma camada de gelo se espalhando pela superfície de sua armadura, apagando as chamas. Uma flecha está bem cravada na junta de seu ombro, onde a proteção é menor para propiciar o movimento. Essa flecha é logo seguida por outra, na junta do cotovelo do braço do escudo, e outra, no joelho. Em todas elas, a maldição de gelo se espalha lentamente, ameaçando apagar o incêndio de vez. O arqueiro, ele vê agora, está ao lado do dragão moribundo, o símbolo da Casa Todoroki bordado em seu alforje.

Shouto!— Ele não precisa estar próximo para saber o que seu pai está gritando. A mesma coisa que seu irmão disse antes de morrer, o mesmo nome que sua mãe murmurou antes de queimá-lo, o nome que Momo, Fumikage e Tenya o chamavam quando não havia adultos por perto, o mesmo que agora cai tão perfeitamente das bocas de Bakugou e Midoriya. Shouto. Shouto. Shouto. Todas aquelas vozes parecem estar com ele agora. Ele põe outra flecha no arco e puxa a corda, sentindo os músculos do braço tensionarem, a magia correr entre seus dedos.

A última flecha, a flecha de fogo, encontrou seu alvo na garganta, e o rei caiu.


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Notas finais do capítulo

Woof! That was quite a ride, wasn't it? :D *Foge de leitores irritados*

Se o Bakugou ou o Kirishima estão vivos? Talvez. Quem sabe. Eu *poderia* ter terminado na ceninha dos três decidindo virar um OTP, até pensei sobre, mas o angst é grande demais em mim, e eu já tinha muito foreshadowing sobre o Kacchan estar condenado, então tinha que ter essa cena. O Kiri acabou puxando o palitinho pequeno também porque ser um dragão é algo meio chamativo. SORRY BOYS! Eu ainda amo vocês!! D:

Por que o Chisaki está na aliança? Porque o Endeavor quer destruir o reino dele, e principalmente porque eu o amo. E eu amo RapGum também, a tal ponto que eles acabaram aparecendo mais do que deveriam DUHSUHGIGR Eu shippo demais esses dois, vocês não tem ideia!

Uma das frases que o Shouto se lembra de ter escutado do Endeavor no final foi dita pelo meu próprio pai. Fanfic também é catarse emocional, galera.

Also, essas duas cenas de beijo foram basicamente a primeira vez que eu escrevo ACTUAL ROMANCE em tipo, 6, 7 anos. Desculpem se ficou uma bosta aaaaaaa

Se você leu até aqui, MUITO obrigada por prestigiar o meu trabalho! Agradeceria se pudesse me dizer o que achou numa review!

E com isso me despeço de vocês por agora. Até o próximo Delipa que eu participar, hahaha.



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