Virando do avesso escrita por calivillas


Capítulo 15
Um pouco sozinho




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Júlia demorou a dormir, ainda sentindo o cheiro de Ricardo entre os lençóis, na fronha. Na manhã seguinte, bem cedo, acordou atordoada, levantou a cabeça do travesseiro, ao ouvir seu nome, sendo chamado do lado de fora da casa. Ao olhar da janela viu Mauro, parado no portão, segurando duas bicicletas.

— Vamos passear um pouco por aí, Júlia!

— Por quê?

— Porque eu estou cansado de ficar sozinho e você também deve estar. Você sabe andar de bicicleta, não sabe?

— Sim, eu sei. De quem é essa aí? – Ela apontou para a outra bicicleta quase nova, que ele trouxe.

— Da minha filha, mas ela nunca usou. Você vem ou não vem? –

 Júlia pensou que não teria nada para fazer, só curtindo a solidão, poderia cair na tentação e ligar, novamente, para Leandro, seria melhor ficar longe do telefone.

— Eu vou! Mas eu já vou logo avisando, que estou meio fora de forma.

— Prometo pegar leve com você.

— Só me dê um tempo para me arrumar e comer alguma coisa. Quer entrar?

— Não, eu espero você aqui fora, mas não demore!

Ela se arrumou depressa, engoliu uma fatia de bolo que estava em cima da mesa da cozinha e saiu de casa. No entanto, apesar da sua animação, não era nada fácil para Júlia, pedalar por aquelas estradinhas de terra batida, irregulares e esburacadas, porém as belas paisagens campestres compensavam todo aquele esforço, até não aguentar mais, cansada e suada, morrendo de sede.

— Chega! Preciso parar um pouco! – Ela gritou ofegante para Mauro, que estava um pouco mais adiante, já parando a bicicleta.

Assim, sob a sombra convidativa de uma árvore grande, na beira do caminho, os dois encostaram as bicicletas e sentaram para descansar.

— Tome um pouco de água – Mauro entregou uma garrafinha para ela, que retirou da sua mochila.

— Você tem água! – Ela exclamou satisfeita, não podia estar mais feliz ao beber um gole.

— Sou um homem prevenido. Sempre trago um pouco quando saio por aí. Quer uma maçã? – Mauro perguntou, retirando uma maça da mochila.

— Não, obrigada

— Sempre eu vejo você pedalando muito por aí.

— Ordens médicas, preciso fazer exercícios.

— Você não parece assim tão fora de forma.

— Eu melhorei bastante depois de quase enfartar.

— Mas você é muito jovem para isso.

— Mas, minha vida era puro estresse, na verdade foi um ataque de ansiedade, mas pensei que estava morrendo. Levava uma vida muito estressante, atuo no mercado financeiro, era um workaholic, viciado em trabalho, então quando dei por mim, tinha perdido minha mulher e meus filhos, e piorei depois que eles foram embora, trabalhava ainda mais, como um louco, até achar que estava perdendo minha vida.

Aquela história fez Júlia se lembrar de Leandro, que também trabalhava nessa área e como ele era determinado em ascender profissionalmente, a todo custo.

— Foi por isso que você veio parar aqui? Para relaxar?

— Foi. Eu me dei umas férias, longe de todos os problemas por algum tempo. Comprei aquela casa, sem televisão, computador ou celular. Passo dia, pintando, cuido do jardim e da horta, cozinho. Tudo que sempre pensei em fazer e nunca tive tempo.

— E como está indo?

— Estou quase enlouquecendo! Não aguento mais tanta paz! Estou morrendo de saudades do gás carbônico, dos engarrafamentos, do meu celular, dos estresses do dia-a-dia! Já estava pensando em voltar, quando você apareceu.

— Eu?

— Você também estava sozinha. Pensei que teria alguém para, pelo menos, conversar.

— Como você soube que eu estava sozinha?

— Cidade pequena. Então, apareceu o garoto do circo e você ficou muito ocupada por esses últimos dias.

— Então a cidade toda estava falando sobre mim? A vadia da cidade grande que pegou o garoto do circo – Júlia deu um riso nervoso

— De certo modo, você se tornou uma celebridade local, mas, pelo menos, deu um novo assunto para as conversas.

— E, agora, que estou desocupada, o que gostaria de conversar?

— Qualquer coisa, sem ser jardim e tempo.

— Nem circo. Mas sabe o que gostaria mesmo?

— Não

— De ver suas pinturas. Eu fiquei muito curiosa, desde que me disse que pintava.

— Não tenho coragem de fazer isso com você – Ele balançava a cabeça em negação e sorria.

— Não podem ser tão ruins assim? Deixa eu ver e eu lhe darei uma opinião sincera.

— Por favor, eu prefiro que você minta um pouco.

Assim, eles se levantaram e continuaram andando o caminho de volta para a casa, devagar, lado a lado, empurrando as bicicletas.

— Então, o que achou? – Mauro perguntou, ansioso, enquanto, Júlia examinava, minuciosamente, suas telas em um dos quartos da casa, que ele usava como estúdio.

— Bem, minha opinião sincera é que as suas pinturas não são ruins. Tem um que de primitivo e abstrato, uma mistura de Picasso na fase cubista com Paul Klee.

— Mas, também, não são boas.

— Juro, Mauro! Não são ruins mesmo!

— Não faz mal. Não pretendia seguir a carreira de pintor, mesmo – Ele deu de ombros.

— Talvez, você esteja à frente do nosso tempo. Lembre-se que Van Gogh vendeu somente uma pintura, enquanto era vivo, mesmo assim para o próprio irmão – Júlia explicou, fazendo cara de intelectual, tentando segurar o riso.

— Você quer dizer que sou um gênio da pintura incompreendido?

— Quem sabe, daqui a uns cem anos, suas pinturas valerão milhões?

— Engraçadinha! Mas, agora, eu insisto que você experimente mais uma das minhas habilidades, Júlia!

— Qual?

— Vou cozinhar para você! – Mauro anunciou com grande pompa.

— Você cozinha como pinta?

— Não, felizmente para você, eu cozinho melhor.

— Ótimo, porque estou morrendo de fome.

— Se você me ajudar, iremos mais rápido.

— Então serei sua subchefe, hoje.

— Primeiro, vamos até a minha horta, escolher umas verduras para a salada.

Júlia preparou uma bela salada com as verduras frescas da horta do quintal de Mauro, que se aprimorou nos seus dotes culinários e, quase no final da tarde, sentados na mesa da cozinha, de forma bem informal, eles apreciavam a boa refeição que fizeram juntos. Não era nada muito sofisticado e complexo, usaram muitas das sobras da geladeira, mas o melhor tempero é a fome, e já estava anoitecendo quando começaram a comer.

— Você quer uma cachacinha para acompanhar?

— Não, depois de ontem. Obrigada.

— E um vinho tinto, para me acompanhar. Vai cair bem com a carne assada.

— Aceito – Júlia concordou, Mauro serviu um copo para ela e outro para si mesmo.

— Não tenho taças aqui.

— Tudo bem.

— Dizem que o vinho tinto faz bem para o coração – ele se justificou, depois levantou um brinde – A um ótimo final de dia! A boa comida e a excelente companhia! - Júlia acompanhou o brinde, então começou a rir.

— O que é tão engraçado?

— Esqueci de avisar Maria que não iria jantar hoje?

— E daí?

— Ela deve estar pensando que sou mesmo uma vadia. Primeiro, eu levo Ricardo para dentro de casa, depois desapareço com você – Júlia continuava a rir.

— Deixa ela pensar o que quiser. Você não precisa se justificar com ninguém, principalmente, o que se faz entre quatro paredes.

— Mas, eu sempre me preocupei muito com a opinião dos outros.

 - Só pessoas muito infelizes e sem nada para fazer se preocupam com a vida alheia. E elas não merecem sua atenção, Júlia.

— Você é um cara legal, Mauro. Por que seu casamento acabou? – A pergunta saiu espontânea.

— Porque não era um cara legal antes. Só pensava no trabalhar, ganhar mais e mais dinheiro. Só mudei quando perdi tudo, fiquei sozinho. Como eu já falei, meus filhos moram na Suíça, mal vi eles crescerem, por causa do trabalho. Tive que aprender da maneira mais difícil.

— Eu lamento por isso! – Júlia colocou a mão sobre a de Mauro, ele sorriu para ela. Segurou sua mão e a beijou, suavemente, uma, duas vezes. Ela retirou a mão, com delicadeza.

— Acho melhor, eu ir embora – Júlia se levantou, pronta para sair.

— Não, por favor, espere! Não vá embora! Acho, que estou me sentindo um pouco sozinho – Mauro pediu, e ela não queria ir embora, pois sabia que somente solidão a esperava.


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