The Queen's Path escrita por Diamond


Capítulo 7
Capítulo VII - 15 de Novembro de 1870




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— Sabe que não pode enganá-la para sempre, não é mesmo? — Edgar questionou enquanto observava o líquido avermelhado reproduzir perfeitas circunferências dentro da taça que segurava.

— Não faço idéia do que está falando. — Allen disse de modo impassível, sem sequer levantar os olhos dos papéis em que trabalhava para respondê-lo. — Seja mais específico.

— Não venha com essa de “seja mais específico”, você sabe exatamente do que estou falando. — Edgar respondeu com um sorriso provocante no rosto, parando de girar a taça em suas mãos, levando-a aos lábios.

A casa da Família Avelar possuía numerosos cômodos, logo não houve qualquer empecilho quando o príncipe solicitou um escritório para que pudesse trabalhar com tranquilidade. Assim como tudo que partia do herdeiro do reino de Odarin, seu pedido foi prontamente acatado pelo Conde Klaus. O espaço era largo e estava preenchido por estantes de livros, quadros, uma escrivaninha de madeira ornamentada e dois pequenos sofás para eventuais visitas ou reuniões.

Edgar estava deitado em um dos estofados. Uma das mãos estava repousada detrás de sua cabeça, enquanto a outra largava a taça de vidro no chão, bem ao lado de uma garrafa de vinho tinto parcialmente vazia. Desde que Allen chegou à Hallbridge eles desenvolveram uma estranha amizade. Edgar usava e abusava das informações privilegiadas de Allen acerca da Economia dos reinos próximos, o que ocasionava ganhos absurdos à cada investimento realizado. Já o príncipe necessitava de alguém que o aproximasse das famílias mais ricas e influentes que pudessem encontrar, e a personalidade afável de seu amigo era de muita valia neste sentido. Tinham este mútuo acordo e nenhum dos dois estava inclinado a desfazê-lo, desde que mantivessem o sigilo absoluto acerca daquelas pequenas trocas de favores.

— Sarah irá lhe pressionar cada dia mais, até que lhe dê uma resposta definitiva. — o filho do Conde esclareceu após alguns momentos de silêncio, em que pôde constatar que Allen não faria a menor menção de tentar adivinhar do que aquele questionamento se tratava. — Não seria mais fácil dizer-lhe logo a verdade?

— Não. — o príncipe respondeu de imediato, sem parar de escrever enquanto falava. — Sarah não entende absolutamente nada sobre política ou governança, seria gastar tempo e saliva tentar discutir este assunto com ela.

— Tenho certeza de que poderia ensinar-lhe algumas coisas sobre o assunto. Mas acredito que isto esteja muito distante dos seus interesses, não é mesmo? — Edgar questionou enquanto erguia uma sobrancelha de modo sugestivo, ainda portando o mesmo sorriso provocante. Como resposta recebeu um olhar severo por cima dos óculos de leitura de Allen. — Tudo bem, não está mais aqui quem falou.

Edgar sentou-se no sofá tão somente para servir à si mesmo mais uma taça de vinho, logo retornando à posição original. Ele fechou os olhos enquanto girava novamente a taça em sua mão, no intuito de oxigenar o vinho e tornar seu sabor e aroma mais agradáveis. Sua mente vagueou livre por alguns minutos, até lhe levar por caminhos conhecidos, porém não muito seguros. Por mais que se esforçasse para esquecer, a imagem de sua noiva e a razão ainda desconhecida para seu desaparecimento estavam encravadas em sua cabeça de modo muito mais concreto do que ele gostaria de admitir. Fossem as conversas animadas durante as caminhadas na praia de cascalhos ao fim da tarde, ou então as manhãs desfrutadas na grande fazenda em que ela lhe dava algumas amostras de como era a vida no campo. Jamais havia imaginado que se sentiria tão realizado e orgulhoso de si mesmo ao conseguir ordenhar uma vaca sem receber um coice à altura do estômago. De olhos fechados, ele conseguiria reviver aquele momento com precisão.

— É inacreditável o quanto você é desajeitado! — Anya caçoou dos esforços do rapaz enquanto tentava conter o riso, sem muito sucesso. — Não compreendo como alguém pode não saber ordenhar uma vaca. Você é uma vergonha para sua família, Edgar Avelar.

— Não é exatamente o tipo de conhecimento que se adquire dentro de uma biblioteca, ainda que rodeado de mentores. — Edgar respondeu observava de modo frustrado o balde vazio.

— É justamente isso que não compreendo. Livros são desnecessários quando o conhecimento está a disposição no mundo para ser aprendido diretamente na prática, não concorda?

A jovem camponesa não obteve resposta pois sua companhia estava concentrada demais, respirando fundo antes de empregar mais uma tentativa. Nada aconteceu. Anya aproximou-se do rapaz que estava sentado em um pequeno banco de madeira. De pé atrás de Edgar, ela abaixou-se apenas o suficiente para que sua mão recaísse sobre a dele e ela simulasse o movimento correto para obter o resultado esperado.

Ainda que levemente descrente, o rapaz tentou uma última vez e para sua surpresa, o leite espirrou de modo vigoroso dentro do balde de metal. Como uma criança que acaba de descobrir algo novo, foi impossível para ele conter o sorriso empolgado que brotou em seu rosto. Como recompensa, Anya depositou um beijo gentil no rosto de sua companhia, como se aquilo fosse um prêmio suficiente para o rapaz. Não era.

Um movimento rápido fora suficiente para fazê-la cair sentada sobre seu colo. Tomando-lhe o rosto entre as mãos, Edgar fisgou os lábios da jovem com um beijo afoito e apaixonado, que fora prontamente retribuído.

Durante toda a sua existência o nobre rapaz sentia que havia uma peça do quebra cabeça chamado de “vida” disposta ao contrário. Ainda que ele não soubesse indicar qual era, a situação muito lhe incomodava. Quando o acaso lhe levou até a camponesa de voz melodiosa e personalidade agitada, o sentimento de ausência desapareceu por completo. Anya surgiu em sua vida para lhe indicar qual peça estava virada para baixo e corrigir aquele erro bobo que tanto o incomodava. Além disso, a moça tinha prazer em lhe ensinar coisas que para ela não passavam de rotina, mas que para o filho de um Conde eram tarefas  impossíveis de serem cogitadas, muito menos executadas. Anya estava disposta a lhe mostrar um novo mundo e Edgar se mostrava um aluno bastante aplicado naquela matéria.

— Operação “ordenhar uma vaca” realizada com sucesso. Qual o próximo desafio? — Edgar perguntou em meio a um sorriso tão logo findou o beijo. Anya bordou uma sua melhor expressão reflexiva, antes de lançar o próximo desafio ao nobre sem experiência em qualquer atividade cotidiana da plebe.

— Que acha de depenar uma galinha? Poderíamos fazer guisado para o jantar. — ela respondeu incerta de qual seria a reação do rapaz. Imediatamente ele uniu a sobrancelhas em uma clara demonstração de estranhamento, fazendo com que o sorriso de antes se deformasse em uma careta cômica. Aquilo arrancou ainda mais risadas da moça de cabelos loiros. — É brincadeira! Jamais o obrigaria a isso.

— Não, é uma ideia interessante. Mas podemos deixá-la para outro dia?

Anya revirou os olhos. A educação de Edgar jamais o permitiria dizer o quanto a ideia era absurda e que ele se recusaria a cumprir. O resultado era uma escusa polida e sem qualquer autenticidade. Típico da nobreza. Estava prestes a aproximar-se para outro beijo, quando ouviram passos se aproximando do celeiro. A camponesa rapidamente saltou de seu colo, ajeitando a saia do vestido e afastando-se alguns passos.

Junto a porta, a figura de sua mãe surgiu. Aparentava ser mais jovem do que o que realmente era, possivelmente pela face bronzeada e o cabelo da cor de chocolate que não parecia esbranquiçar nunca. Trazia consigo uma bacia cheia de roupas, todas recém recolhidas do varal.

— Ainda estão aí? Estou começando a desconfiar de que Edgar mais lhe atrapalha do que auxilia em suas tarefas. — a senhora perguntou por pura implicância, afinal muito simpatizava com o rapaz. Inclusive gostava de tratá-lo como se seu filho fosse.

— Mamãe! — Anya exclamou em protesto, mas antes que pudesse dizer qualquer coisa sentiu a mão do rapaz sobre seu ombro, indicando que não havia necessidade daquilo.

— Senhora Lewinter…

— Por favor, deixe os formalismos do lado de fora da propriedade. — a senhora respondeu de imediato, sequer permitindo que ele concluísse sua fala. — Edeline é suficiente.

— Bem, haverá um baile amanhã a noite em minha casa. Minha irmã Charlotte completa seus quinze anos e gostaria de saber se me permite levar Anya como companhia.

— Por mim, não há empecilho algum. Mas não deixe que meu marido descubra, sabe como Oscar é ciumento com essa menina. — Edeline respondeu enquanto dirigia uma piscadela à sua filha. — Agora terminem de ordenhar esta vaca de uma vez, o almoço logo estará pronto e não quero que se atrasem.

Findada a discussão, Edeline seguiu para dentro de casa. Anya mal podia conter sua excitação, raramente seus pais permitiam que saísse de casa, eram superprotetores demais ainda que ela provasse como conseguia arranjar-se sozinha independente da situação.

— Mal posso acreditar que ela autorizou! Preciso escolher ainda hoje um vestido  para o baile. Ora, mas o que é que estou dizendo, é claro que não terei um vestido adequado para uma ocasião dessas.

— Não se preocupe com isso, irei providenciar o vestido de festa mais bonito de Hallbridge para você. — Edgar mencionou de modo despretensioso e assustou-se levemente ao ver a moça pulando em seus braços, incapaz de conter sua própria alegria.

— Você não existe, sabia disso? — ela disse após entrelaçar os braços no pescoço do rapaz. — Mamãe também está muito maleável esses dias, acho que por sua causa. Até mesmo me ajuda a sair de casa quando papai está viajando à negócios. É uma inspiração para mim. Ela é maravilhosa, você não concorda?

— Em parte. — Edgar respondeu enquanto afastava levemente a jovem. — Sua mãe é bastante generosa, mas minha inspiração é outra. Está bem diante de mim, na realidade.

O gracejo arrancou um sorriso envergonhado por parte da camponesa. Ela ainda não estava habituada aos cortejos de seu companheiro, embora não pudesse dizer que desgostava deles. Apenas não sabia como reagir. Diferentemente das damas da corte, ela não tinha qualquer instrução naquele tipo de situação. De modo a evitar um silêncio estranho, ela tomou o rapaz pela mão enquanto o puxava para fora do celeiro.

— Você já comeu carneiro assado? — ela questionou com rapidez, recebendo um simples menear negativo do rapaz que se deixava levar. — É a especialidade da família, você vai adorar!

Enquanto revivia aquelas memórias a sensação de vazio retornava ao peito de Edgar. O espaço deixado por Anya o atormentava de modo muito pior do que quando simplesmente não a conhecia. A situação o obrigou a verter todo o líquido da taça de uma vez, espantando a imagem de sua noiva para longe, ainda que por alguns poucos minutos. O som de batida leve o acordou de seus devaneios e Allen permitiu que a pessoa entrasse de imediato.

A porta de madeira talhada se moveu sem ruído e Sarah pediu licença para entrar no escritório. Nesta oportunidade, Edgar levantou-se do sofá e seguiu em direção à saída. Ainda que a princesa não tivesse dito nada, estava ciente de que aquela seria uma conversa particular.

— Você não precisa sair. — ela disse enquanto observava o amigo aproximar-se. — Se não quiser, é claro.

— Eu prefiro deixá-los à vontade, não se preocupe comigo. — respondeu o rapaz em meio a um sorriso amigável e uma piscadela rápida, como se desejasse um “boa sorte”. Ele não fazia a menor questão de presenciar a decepção quase certa da jovem.

Sarah meneou a cabeça levemente, agradecendo pelo incentivo e deu-lhe espaço para sair do cômodo, fechado a porta logo em seguida. Allen permanecia muito concentrado em seus papéis, mas ao perceber a aproximação da irmã, tratou de erguer os olhos e retirar os óculos de leitura, recebendo-a com um sorriso contido, mas amável.

— Em que posso lhe ser útil, irmãzinha? — ele questionou sem sair de onde estava, apenas aguardando que ela fosse direto ao assunto. Ele já sabia do que se tratava e não tinha qualquer interesse em se delongar naquele assunto.

— Acredito que ainda se lembre da última vez que conversamos. Você sabe, sobre nosso retorno à Odarin. — ela arriscou o diálogo, extremamente incerta. Allen costumava ser sempre muito carinhoso com ela, mas não lhe passava despercebido como seu humor ia do ótimo para o péssimo em questão de segundos. “Ele não gosta de ser contrariado”.

— Lembro-me perfeitamente. — ele respondeu de modo seco, desmanchando o sorriso de imediato, passando a assumir uma postura séria. — Você certamente também se lembra de minha resposta àquela época.

— Pediu-me um tempo. Pediu-me para ter paciência. Eu lhe dei os dois, deixei esse assunto esquecido por mais de um ano. — Sarah insistiu, aproximando-se da escrivaninha, apoiando ambas as mãos na mesa. — Eu já sei o que pensava naquela época, desejo saber o que você pensa agora.

— Renovo meus pedidos de outrora, evidentemente. — ele respondeu enquanto dava o ombros, deixando transparecer certo descaso com o assunto. — Tudo há seu tempo para acontecer e impacientar-se não irá resolver nada.

— Está tramando algo, eu sinto isso! Por que então não compartilha seus planos comigo? Quem sabe não posso ajudá-lo. Deixe-me fazer algo, quero ser útil. Me incomoda sentar e aguardar sem qualquer previsão, parece até mesmo que estamos apenas perdendo tempo.

— Perdendo tempo para que? Sinceramente, não entendo essa sua pressa em retornar já que não há ninguém nos esperando em Odarin. — ele questionou levemente irritado com aquela pressão.

A princesa desviou o olhar, enquanto mordia o lábio inferior. “Pode não ter ninguém esperando por você, mas comigo as coisas são diferentes...”. Estava tentando formular algum bom argumento, mas era difícil quando o mais velho dominava aquela arte. Era parte de seu trabalho afinal, as reuniões que participava não se restringiam a longas horas sentado ouvindo asneiras. Era necessário ouvir e se fazer ouvir, e o príncipe de Odarin certamente era invejado pelos demais nobres neste último quesito. Allen aguardava não muito ansioso pelo próximo argumento de sua irmã. Era difícil dissuadi-la de algumas ideias e ele não gostaria de ter de erguer a voz ou ser grosseiro com a caçula para conseguir aquilo. No entanto, sua paciência era bastante limitada.

— Desculpem-me, estou interrompendo algo?

A atenção dos irmãos Miglidori voltaram-se para a figura que encontrava-se em pé junto a porta. Charlotte desenhava seu melhor sorriso inocente enquanto proferia aquelas palavras. Era o mesmo que sempre utilizava quando Allen estava por perto e o mesmo que fazia Sarah revirar os olhos, tamanha a falsidade oculta por trás daquele rosto dissimulado.

— Não está interrompendo nada. — Allen respondeu, recebendo de imediato um olhar estupefato da mais nova. Óbvio que estava interrompendo, já que encontravam-se no meio de uma discussão. — Não faça essa cara, você me fez uma pergunta e eu já lhe dei minha resposta.

— Mas Allen…

— Você ouviu o que o príncipe disse. — Charlotte a interrompeu antes que ela pudesse concluir seu pensamento. — Se não tem mais nada a dizer, peço que se retire Sabrina, tenho um assunto da maior importância para tratar com o príncipe agora.

— O meu nome é Sarah, e não Sabrina. — a princesa respondeu com asco, incapaz de conter aquela reação sincera.

— Tanto faz meu amor, eu não perguntei seu nome, apenas pedi para que se retire. — Charlotte proferiu em seu melhor tom de voz zombeteiro, destinando-lhe um risinho vitorioso ao final de sua fala.

Irritada, transtornada e sentindo-se levemente humilhada após aquela cena, a jovem não disse mais nada antes de sair do escritório, fazendo questão de bater a porta com força de modo a deixar claro sua indignação com a presença indesejada da outra. Após a saída da princesa, Charlotte direcionou seus olhos e atenção à única pessoa capaz de despertar-lhe o interesse naquela casa.

— Você foi maldosa. — Allen lhe advertiu, portando um sorriso de canto.

— Perdoe-me, sei o quanto adora sua irmã, mas confesso que ela me tira do sério. Não sei como tem paciência para lidar com ela. — a ruiva respondeu enquanto se aproximava a passos lentos, dando a volta na escrivaninha, parando de frente para o rapaz enquanto tamborilava os dedos longos e delgados na mesa de madeira.

— Ela é jovem, ainda vai amadurecer. — o príncipe respondeu enquanto subia o olhar lentamente. Havia algo de diferente nas vestes de Lotte, mas ele não sabia precisar o que era.

— Talvez, no ano de 1970, na melhor das previsões. — a jovem respondeu, sentindo-se extremamente vaidosa com o olhar faminto que recebia e que apenas ela conseguia arrancar.

O príncipe Allen, sempre tão sério e contido em suas reações perdia a compostura sempre que a ruiva se fazia presente. Era como se Charlotte emanasse luxúria pelos poros do corpo e ele era obrigado a admitir como era afetado por aquele pecado ambulante, personificado naquela moça de tez alva salpicada de sardas, madeixas alaranjadas e sorriso obsceno. Ajeitando-se melhor na cadeira, ele subiu ambas as mãos pelas coxas da jovem à sua frente, ainda que por cima do tecido do vestido rosado, deixando muito claras suas intenções naquele momento.

Charlotte compreendeu de imediato aquele gesto e aproximou-se ainda mais, sentando-se sobre o colo de sua companhia com as pernas afastadas, enquanto subia as mãos do pescoço até a fina barba negra com possessão, antes de agracia-lo com um lascivo beijo. As duas bocas se moviam com voracidade, em perfeita sintonia. Instintivamente, ele subiu as mãos até o torso da jovem, desfazendo o laço que segurava o vestido em seu devido lugar e não tardou até que descobrisse o que havia de diferente na vestimenta. A ruiva não usava seu espartilho habitual. Aquilo servia para demonstrar que ansiava por aquilo tanto quanto ele, senão mais.

— Você demorou desta vez. — ele apontou enquanto sentia seu lábio inferior ser mordiscado de modo sensual.

— Quer dizer que sentiu minha falta? — ela questionou em um tom provocativo. A resposta para aquela pergunta não veio em forma de palavras, mas através de suaves beijos que subiam do pescoço até a base da orelha, arrancando alguns suspiros sôfregos de Charlotte.

A demora em procurá-lo havia sido proposital. Ela sabia que Beatrice no auge de sua passividade jamais seria capaz de saciar os desejos mais profundos daquele homem. Era um jogo perigoso, mas ela estava disposta a apostar todas as suas fichas, nem que aquilo significasse ocupar uma posição inferior em relação a loira. “Quem se importa se não estou legitimada, é a mim que ele procura quando necessita de alívio”, ela pensou enquanto mordia os lábios, tentando omitir um baixo gemido.

A ruiva jamais admitiria em voz alta o  quanto gostava de levar seu príncipe até o limite da racionalidade. Eram como duas feras famintas e ela gostava de vê-lo devorá-la sem qualquer pudor.



O inverno se aproximava do mesmo modo tímido, tal como nos anos anteriores. Os dias se tornavam mais cinzentos e menos quentes, as árvores erguiam-se sobre o céu turvo de modo resistente, seus galhos secos e pontiagudos tomavam o lugar das folhas amarronzadas que raramente resistiam àquela estação. Beatrice estava sentada à soleira da janela, com o olhar muito distante dali. Seu castelo em Mivre estava localizado na parte central do reino, onde o inverno não era tão rigoroso como em Odarin e o verão não era tão implacável como em Hallbridge. Ela relutava em admitir que sentia falta de casa.

Desde muito pequena até a idade adulta havia sido instruída de como ser uma princesa. Apesar de ser a filha mais velha, ela bem sabia que jamais seria rainha de seu próprio reino, pois as leis de Mivre nunca permitiriam o reinado de uma mulher. Ciente daquilo, seus pais fizeram o possível e o impossível para deixar-lhe em uma posição honrada e à sua altura. No caso, se não podia ser rainha em seu próprio reino, por que não em outro? Como uma boa dama faz em toda e qualquer ocasião, ela aceitou aquele destino que lhe fora imposto sem reclamar ou fazer cara feia. Ela aceitou a infelicidade sem qualquer questionamento.

Beatrice fazia um esforço real para adaptar-se àquela nova realidade. No entanto, ela desgostava do clima, da comida e principalmente da presença inevitável de Charlotte. Sem que houvesse uma real razão (pelo menos que lhe fosse perceptível), a ruiva fazia questão de deixá-la desconfortável em diversas situações. Ela se sentia envergonhada na maioria das vezes e se lhe fosse permitido, sairia correndo de um cômodo a outro apenas para poder chorar em silêncio. No entanto, ela apenas bordava seu melhor sorriso tenro e tentava ignorar as ofensas. Suas lágrimas poderiam esperar até que ela estivesse sozinha em seu quarto, abafando o choro no travesseiro ou almofada mais próximo.

Se havia uma única coisa boa que ocorrera em sua vida desde que saíra de sua casa em Mivre, havia sido a pequena Sarah, que atualmente já não era mais tão pequena assim. A caçula da Família Miglidori tinha o dom de iluminar qualquer ambiente com a sua personalidade extrovertida e alegre. Beatrice sentia-se bem em sua companhia, era uma verdadeira distração para sua real situação.

— Espero que esse seu olhar tristonho seja apenas fome. — a jovem ergueu o olhar da janela, sem entender de pronto o que se passava. Virando o rosto, ela pôde vislumbrar a figura de Gilbert em pé diante de si, trazendo consigo uma caixa peculiar debaixo do braço. — Não se preocupe, logo o jantar estará servido.

— Não é com o jantar que estou preocupada. — ela respondeu com um fraco sorriso, na tentativa de dissuadi-lo daqueles pensamentos.

— De todo modo, tenho algo aqui que talvez possa alegrá-la. — ele respondeu em meio a um sorriso animado, enquanto estendia a caixa para ela.

Beatrice tomou o embrulho em mãos, estranhando o formato e perguntando-se o que poderia ser. Era redonda e estava envolta em um tecido muito bonito, além de ter um laço vermelho que a mantinha fechada. Abrindo o pacote sem muita pressa ou empolgação, seus olhos brilharam ao retirar a tampa da caixa. Meio cinza e meio branca, uma gatinha com um laço rosado preso ao pescoço praticamente saltou para fora, olhando em todos os lados antes de voltar-se para a moça e soltar um miado faminto.

— Que coisa mais lindinha! — ela respondeu visivelmente animada com o presente, pegando a pequena nos braços, que imediatamente subiu em seu ombro.

— Imaginei que pudesse lhe entreter um pouco, você estava muito cabisbaixa esse dias. — ele respondeu com um genuíno sorriso. Beatrice achou a iniciativa encantadora, mas se conhecesse melhor o caçula da Família Avelar, saberia que gestos como aquele não eram de seu feitio. — Se houver algo mais que eu possa fazer por você, por favor não hesite em pedir.

— Obrigada Gilbert, você é um amor. — ela respondeu enquanto ria ao observar a gatinha equilibrar-se em seu ombro, tentando retornar ao colo, mas sem encontrar um caminho seguro para fazê-lo.

Um servente logo apareceu para anunciar o jantar. Beatrice levantou-se de imediato, seguindo para a sala de jantar. Levou alguns segundos a mais até que Gilbert fizesse o mesmo. Ele esperava alguma retribuição além do agradecimento polido. Suspirou levemente desanimado. Não fazia mal, ele não desistiria facilmente.

O jantar transcorreu como todos os outros. Edgar parecia empenhado em tentar levantar o astral de Sarah, que parecia desolada com a falta de perspectiva em retornar para casa. Os gracejos e as piadas logo cumpriram seu papel em arrancar algumas risadas tímidas da jovem, fazendo o primogênito da Família Avelar sorri orgulhoso de seu próprio talento. A ausência de Allen e Charlotte foi percebida por todos, mas ninguém ousou tecer qualquer comentário a respeito.

Em pouco tempo, cada um dirigiu-se ao seus respectivos aposentos. A princesa de Mivre seguiu visivelmente mais alegre, graças ao presente de Gilbert. Ela ainda tentava pensar num nome, embora não conseguisse se decidir por si só. Provavelmente recrutaria a ajuda de Sarah no dia seguinte para realizar aquela tarefa.

 

 

— Bem vindo de volta. Como foi o seu dia? — Beatrice saudou assim que viu pelo espelho de sua penteadeira o momento exato em que Allen adentrou no quarto.

— Cansativo. — ele respondeu como de costume, monossilabicamente e sem esboçar qualquer emoção.

— Você não desceu para jantar, aconteceu alguma coisa? — ela questionou com uma genuína preocupação. As pessoas sempre lhe diziam que tinha um instinto materno amplo, gostava de assegurar-se do bem estar de todos a sua volta.

— Estava ocupado e comi no escritório. — não havia qualquer necessidade de especificar qual havia sido sua refeição.

— As refeições são um horário sagrado, é um momento único para partilhar com a família. — Não houve resposta para seu apontamento. Beatrice franziu os lábios, talvez não tivesse sido clara o suficiente. Resolveu arriscar uma pergunta. — Será que posso saber com o quê você estava tão ocupado?

Antes que pudesse se dar conta, sua escova de cabelo foi parar ao chão, não produzindo qualquer som com a queda em razão do fofo tapete que forrava o quarto. Sua voz ficou presa em sua garganta e os olhos encheram-se de lágrimas de modo quase instantâneo. A mão que anteriormente segurava a escova estava comprimida de modo bizarro, seus dedos pareciam quase tortos dentro do punho fechado de Allen.

— Quem você pensa que é para fazer-me esse tipo de questionamento? Desde quando devo-lhe qualquer satisfação? — ele questionou de modo sombrio, com o cenho franzido. — Achei que tivesse sido muito claro sob quais termos esta união seguiria no dia de nosso casamento.

A princesa de Mivre fazia questão de esquecer daquele dia, ou melhor, daquela noite específica. Poucas mulheres àquela época poderiam relatar que tiveram agradáveis noites de núpcias. No entanto, a sua não poderia sequer ser comparada ao pior pesadelo do pior pecador do continente.

— Pare por favor, você está me machucando! — sua súplica saiu baixa, quase um sussurro, enquanto duas silenciosas lágrimas rolavam pelo rosto pálido de medo. Um pouco mais de pressão, um pequeno movimento e ela visualizaria seus próprios dedos estalando como gravetos partindo-se ao meio.

— Você sabe muito bem que este pode ser um relacionamento bastante pacífico. — ele alertou antes de finalmente libertar a mão de sua consorte. A ponta de seus dedos já estava roxa aquela altura. — Desde que você saiba exatamente qual o seu lugar. Uma princesa? Não me faça rir. Não passa de um objeto de troca, tão preciosa quanto uma cártula comercial. Mas isso, é claro, você já sabia.

Afastando-se sem mais nada a dizer, o príncipe apanhou uma muda de roupas e dirigiu-se à casa de banho, onde uma banheira de água quente e sais de banho o aguardava. Após encontrar-se novamente sozinha ao quarto, Beatrice apoiou a testa sobre a penteadeira, passando a verter sua dose diária de lágrimas de modo silencioso. Ela amava profundamente seus pais, mas era obrigada a reconhecer a verdade nua e crua contida nas palavras de seu consorte. Seu amor e admiração eram inúteis, ela fora usada como objeto de troca sua vida inteira.

Assustou-se levemente ao sentir algo pular em seu colo. A pequena gatinha repousava sobre suas pernas e lhe encarava de modo curioso. Sem se incomodar com a expressão chorosa, ela passou a acariciar sua mais nova companhia, passando o dedo de modo delicado sobre sua cabeça, arrancando um som baixinho da gata, que fechou os olhos para aproveitar melhor aquela carícia.

— Sabe o que temos em comum? Nenhuma de nós duas jamais será livre.

Após proferir aquilo, a gatinha soltou um miado e saiu imediatamente de seu colo, seguindo em direção a janela. Aquilo arrancou um sorriso triste e amargurado de Beatrice. “Até você tem mais força para protestar e agir contra as injustiças do destino do que eu”.


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