The Queen's Path escrita por Diamond


Capítulo 6
Capítulo VI - 29 de Junho de 1868




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/739237/chapter/6

Edgar afastou-se de sua mansão à passos apressados. Sua cabeça parecia prestes a explodir e tudo que ele mais necessitava era de alguns minutos sozinhos. Tudo que ele gostaria era terminar de ler um livro. De pronto, não poderia ser uma tarefa difícil, mas seus irmãos faziam questão de tornar seu passatempo em uma atividade sofrida. Estava nos capítulos finais, sentado confortavelmente em uma das poltronas da biblioteca, localizada próxima à janela. O local era quase sempre  sossegado e estratégico, além de conferir-lhe uma visão panorâmica do jardim simples e rústico, ainda que extenso.

Entretanto, quando estava bem próximo ao clímax da história Gilbert adentrou o cômodo de modo angustiado, desfazendo-se em lamentos pela alta quantia que havia perdido naquela manhã em um de seus costumeiros jogos de azar. Sabia que de nada adiantava ralhar com o mais novo, eles já tinham um mudo acordo em que um não interferiria nos vícios do outro. Ele ouviu as lamúrias por alguns momentos antes de pedir licença e buscar um local mais adequado para finalizar sua leitura.

Optou um largo sofá concentrado na sala de estar e quando estava prestes a retomar a leitura Charlotte praticamente brotou de uma parede, passando a tagarelar sobre seu assunto favorito: reclamar de Beatrice. Ele afastou-se da caçula discretamente enquanto ela olhava para o lado oposto, fugindo como um gato furtivo pela janela aberta.

Já estava bastante afastado e podia sentir de imediato os benefícios do silêncio. Ele pensou retirar o livro do bolso interno de seu casaco, mas sua mão inconscientemente fora à um compartimento diverso. Ao invés do livro, uma pequena garrafa de conhaque surgiu. Já estava com a garrafa em mãos, então não via porque não aproveitar uns goles. Com aquele pensamento em mente ele sacou a rolha do recipiente e verteu metade de seu conteúdo de uma vez, sentido a cabeça esvaziar.

Acabou por sentar ao pé do carvalho em que estava apoiado, pendendo a cabeça no tronco e fechando os olhos, sentindo a bebida fazer o efeito desejado. O corpo tornava-se leve e ele parecia estar flutuando. Por um segundo sentiu-se mal com seu pensamento anterior. As coisas nem sempre foram daquele modo. Charlotte era uma menina adorável quando mais nova e Gilbert tinha o companheirismo como sua qualidade mais notável. “Quando foi que as coisas começaram a dar errado? Em que momento nossa família começou a desmoronar?”. Imaginava se havia sido com a chegada da Família Miglidori à Hallbridge. Não havia como ser. Ele e Allen tornaram amigos quase que instantaneamente, um sempre confiando plenamente no julgamento do outro. Ele tinha conhecimento de um lado pouco conhecido do jovem príncipe, mas sabia perfeitamente como lidar com ele. O problema não estava ali. Custava a acreditar que os desentendimentos tivessem chegado junto da pequena princesa de Odarin. Apesar da animosidade imediata entre Sarah em Charlotte, ele se recordava bem que suas relações familiares já não estavam nada sadias àquela época.

Ele vagueava as memórias enquanto tentava pontuar o que havia ensejado seu distanciamento de seus irmãos mais novos. A verdade lhe atingiu como um tapa e Edgar sentiu o estômago revirar de imediato.

— Foi você Anya… — ele disse em voz alta, falando consigo mesmo. — No final das contas, tudo se trata de você.

Com uma expressão entristecida, beirando o desconforto físico, Edgar sacou a rolha da garrafa novamente e tomou o restante do conteúdo em um único gole. O líquido desceu queimando, fazendo-o praguejar mentalmente por um curto tempo, ao passo que afastava toda e qualquer memória de sua noiva.

— Está um pouco cedo para começar a beber, não concorda meu caro Edgar? — o rapaz assustou-se com a voz repentina. Olhando para cima, sentada sobre um dos galhos do pomposo carvalho estava a princesa de Odarin. — As comemorações nem começaram ainda. Mas você não precisa de muitos motivos para apreciar suas bebidas, não é mesmo?

— Alguns goles não farão mal a ninguém. Quer? — ele sorriu de canto enquanto levantava-se do gramado. — Você não deveria estar se arrumando? Os convidados logo começarão a chegar

— Ainda está muito cedo. — ela respondeu enquanto escorava-se novamente no caule do carvalho, de modo preguiçoso. — E se porventura eu me atrasar, eles que esperem. A estrela da festa serei eu mesma.

Ela ergueu uma sobrancelha ao rapaz combinada com um sorriso de canto. Edgar não pôde conter uma gargalhada espontânea. Se havia uma única pessoa naquela casa capaz de arrancar-lhe algumas poucas risadas era estrangeira, com sua autenticidade única. “Não, não é uma característica única. Eu já tive a oportunidade de conhecer alguém com essa mesma espontaneidade", pensou o nobre enquanto sua mente vagueava por caminhos não seguros. De modo a dissuadir-se dos pensamentos que insistiam em retornar a todo momento, ele retirou o relógio de bolso, constatando que estavam mais próximos do entardecer do que esperava.

— Sinto muito estragar seus planos princesa, mas já passa das três da tarde. Insisto que volte para poder aprontar-se. — ele disse enquanto erguia a mão, no intuito de ajudá-la a descer da árvore. — Vamos, lhe acompanho no caminho de volta.

Sarah emburrou-se com o comentário e como punição, fez pouco caso da mão que o rapaz estendia-lhe. Mostrando que não precisava de ajuda, ela desceu da árvore sozinha com um pulo. Ele recolheu a mão sem muito constrangimento, balançando a cabeça em negativa. Já esperava aquela reação teimosa e independente, apenas não sabia porque insistia naquelas gentilezas que jamais eram aceitas. A moça não era a maior simpatizante daquele tipo de festa, geralmente os convidados limitavam-se à fidalgos velhos, interesseiros e demasiadamente entediantes. Mas não ousaria atrasar-se, a despeito da brincadeira que proferira minutos atrás. Allen se chatearia desnecessariamente e aquela era a última coisa que Sarah gostaria de ocasionar em seu próprio aniversário.

Ambos puseram-se a caminhar de volta ao casarão, inicialmente em silêncio, até que este fosse rompido pela fala da moça.

— Imagino que esteja ansioso pela festa. — ela arriscou um diálogo. — Já posso até ver, dúzias de jovens damas disputando a atenção do misterioso Edgar Avelar. — Sarah comentou de modo zombeteiro, rindo em seguida de sua própria piada.

— Nossa, mal posso esperar por isso. — ele respondeu de modo irônico em meio a um suspiro cansado. Só de imaginar a cena ele sentia-se mais inclinado em não comparecer ao evento. — Agora sinto mais vontade ainda de trancar-me em meu quarto até o amanhecer. Sentiria minha falta se eu não aparecesse?

— De modo algum. — a princesa respondeu de imediato, sem dó. — Sinta-se a vontade para fazer o que bem entender.

— Delicada como sempre. — Edgar comentou com sarcasmo em meio a um riso contido. O gracejo não passava de uma brincadeira, mas a jovem respondia com a mesma rispidez de sempre. Não o incomodava, no final das contas. — Jamais encontrará um bom marido de continuar “agradável” desta forma.

— Não que eu esteja preocupada com isso. — ela respondeu enquanto analisava o estado de suas unhas. — Quem é Anya?

— Como? — ele perguntou de modo espantado.

— Você mencionou este nome mais cedo. — Sarah respondeu sem compreender o motivo daquele espanto todo. — Será alguma pretendente sua?

— É minha noiva. — ele respondeu em um tom de voz baixo e levemente mórbido. — Ou pelo menos costumava ser.

— O que houve com ela? — a princesa questionou com curiosidade. A pergunta arrancou um olhar pesado do rapaz.

— Gilbert e eu costumávamos frequentar algumas tabernas quando éramos mais jovens. Em uma dessas noites, uma moça apresentava-se para os demais clientes. Tinha as madeixas loiras, bem claras e a voz mais melodiosa que você pode imaginar. — ele disse com uma expressão levemente sonhadora. Estava claro que se recordava da cena com certa nostalgia. — Eu queria muito conhecê-la, mas não imaginava como poderia me aproximar. Conversando com outros fregueses que tratava-se da filha de um fazendeiro que comercializava animais de grande porte. Não possuíam quaisquer títulos de nobreza, ainda que sua família detivesse uma fortuna considerável. Eram burgueses, em outras palavras. Por coincidência do destino, meu pai foi até essa mesma fazenda no intuito de adquirir alguns cavalos e fiz questão de acompanhá-lo, apenas para vê-la novamente. Estava estendendo roupas ao varal quando chegamos e cantarolava uma música qualquer enquanto trabalhava.

— Mas então, diga-me o que houve com ela! — Sarah apressou-o com impaciência. Esperava uma resposta objetiva e não uma odisséia. Edgar riu fracamente de sua urgência.

— Convidei-a para um passeio que ela aceitou imediata imediatamente. Era muito falante, mas eu gostava de ouví-la. Tinha ideias muito interessantes e uma personalidade adorável. Não tardou muito para que estivéssemos sempre juntos. Eu a trouxe para muitos dos bailes que houveram aqui. O Conde não ficou muito satisfeito com a minha escolha, como deve imaginar. Jamais imaginava que eu pudesse me interessar por alguém fora de nosso círculo social, mas não havia nada que pudesse fazer. Graças aos conhecimentos de Allen eu havia feitos alguns investimentos que rendiam muito bem e já não dependia mais do dinheiro dele para viver, diferente de Charlotte e Gilbert que são verdadeiros pródigos.

— Mas seus irmãos em nada me interessam! — Sarah ralhou diante da extensão que aquela história havia tomado. Sua curiosidade era terrível e nem mesmo o tempo havia mudado aquele seu defeito. — Diga-me, onde está essa moça agora!

— Não sei dizer. — ele respondeu com uma expressão conformada, enquanto dava-lhe os ombros.

— Como assim “não sabe dizer”? — a jovem parecia revoltada com aquela resposta. — Não estou entendendo mais nada!

— Exatamente o que lhe disse, não faço ideia de onde ela se encontra. Tudo parecia bem, eu estava prestes a propor-lhe um noivado quando alguns imprevistos ocorreram e passaram alguns dias sem que eu conseguisse vê-la. Ainda assim, lhe enviava cartas por um mensageiro todos os dias. Passada esta sobrecarga, fui até sua casa no intuito de oficializar nosso noivado e fui informado de que ela desaparecera na noite anterior.

— Mas que história terrível! Você não tentou investigar seu desaparecimento?

— Foi tudo o que fiz por muitos meses, até que desisti. Para desaparecer desta maneira só posso acreditar que ela não desejava se casar comigo e não encontrou outro meio de expressar isso. Acabei deixando de procurá-la.

— Edgar, que história mais triste. — Sarah disse com um verdadeiro pesar,  segurando-lhe o braço no intuito de ampará-lo. — Jamais poderia imaginar algo assim. O que fará agora? — a princesa perguntou com uma genuína preocupação. Parecia-lhe muito injusto tudo que havia acontecido à ele. Teve a oportunidade única de livrar-se dos odiosos casamentos arranjados e então uma fatalidade dessas. Não conhecia a jovem burguesa, mas já não lhe simpatizava nem um pouco.

— Meu pai tratará disso quando lhe convier. — ele respondeu enquanto dava-lhe os ombros, não demonstrando qualquer coisa senão infelicidade. — Nenhuma outra moça jamais poderá me fazer feliz como ela fazia.

Dito aquilo, adentraram na mansão Avelar. Deveriam seguir caminhos opostos, cada indo até seus respectivos quartos. Sarah agradeceu a companhia, sem saber ao certo o que poderia dizer para confortá-lo. Jacques costumava lhe dizer quando era mais nova: "Todas as pessoas que conhecemos enfrentam conflitos dos quais não sabemos nada a respeito. Por isso, devemos sempre ser gentis com todas elas".

Ela esforçava-se para seguir aquele ensinamento, mas não era fácil, às vezes sentia as palavras grosseiras praticamente pularem de sua boca. Internamente, ela gostaria de ser mais parecida com Beatrice. Já havia dois anos desde que havia se casado com Allen e não houve uma única vez que ela tenha presenciado a princesa de Mivre agir de modo descortês com quem quer que fosse.

Edgar afastava-se lentamente, absorto em seus próprios devaneios, distraído demais para despedir-se de Sarah. Agora a moça sabia porque o álcool lhe acompanhava diuturnamente. Era a única coisa capaz de afastar a imagem de Anya de sua cabeça e de seu coração. Estava prestes a subir a escada quando fora interrompido pela mão delicada que lhe segurava pelo casaco.

— Não faça essa expressão de infelicidade. — Sarah proferiu em um tom de voz baixo e incerto. — Essa moça certamente não o merecia.

— Às vezes penso que sou eu quem não a merecia. — ele finalizou, retirando delicadamente a mão da princesa de seu casaco e tornando a subir até seus aposentos.



— Evangeline, seja mais delicada, está me machucando! — Sarah protestou enquanto soltava gemidos baixos de dor. Tentava respirar profundamente, mas aquela havia se tornado uma tarefa impossível minutos atrás.

— Não é minha culpa se você passa o dia a comer guloseimas. Além do mais, se não viesse aprontar-se tão em cima da hora, poderíamos fazer as coisas com mais tranquilidade. — a governanta respondeu, enquanto dava um último e forte puxão nas cordas do espartilho da princesa. Deu um nó apertado, para que o mesmo não se soltasse durante a cerimônia.

— Não conseguirei usar isto a noite toda, mal consigo respirar! — ela protestou novamente, movendo-se com dificuldade pelo suntuoso quarto que ocupava desde que chegara em Hallbridge.

— Bobagem, todas as mulheres usam, portanto é bom que comece a se acostumar. Ou você achava que envelhecer tratava-se somente de privilégios? — Evangeline respondeu com a mesma rigidez de sempre.

A jovem debutante estava pronta para rebater, mas fora interrompida por uma risada baixa e delicada. A porta do quarto fora aberta por Beatrice, que pedia permissão para entrar em meio ao riso. Trajava um elegante vestido azul celeste, adornado com pérolas por todo o torso e ombros. Os cachos dourados estavam presos em um coque baixo e firme, adornado por uma tiara de pérolas ao topo da cabeça que acentuava o ar de elegância e delicadeza característico da princesa de Mivre.

— Não seja tão dura com ela, Evangeline. Demora um tempo até se acostumar a usar os corpetes. — Beatrice mencionou com seu tom de voz contido e gentil.

— Ela não teria esses problemas se não comesse em horários irregulares.

— Bom, isso é verdade. Mas não há nada que possamos fazer agora, não é mesmo? — respondeu de imediato. Atrás de si uma empregada entrava no quarto carregando uma enorme caixa, que foi depositada sobre a cama de Sarah. Com ela reverência, ela se a ausentou em silêncio.

Beatrice dirigiu-se até a elegante caixa e retirando-lhe a tampa, revelou um vestido rosê, de forro acetinado e revestido de tules no mesmo tom, deixando Sarah absolutamente maravilhada com a peça.

— Eu o havia encomendado há alguns meses atrás para o aniversário de minha irmã mais nova. Que cabeça a minha, sequer me recordei que você faria anos muito antes dela. Espero que goste, de todo modo. — ela respondeu enquanto dava espaço para que aniversariante pudesse avaliar a vestimenta.

Sarah mal tinha palavras para descrever seu encanto. Jamais vira nenhuma peça similar àquela. Obviamente, um desenho requintado como aquele só poderia ter saído da cabeça de Beatrice. Era um dos motivos de admirá-la tanto. Sem demoras, Evangeline ajudou-lhe a vestir a peça e calçar seus sapatos de baile. Ainda estava longe de se considerar pronta para a comemoração de seu aniversário, mas não poderia conter sua curiosidade. Com os cabelos ainda soltos e o rosto lavado, ela correu até o largo espelho na parede de seu quarto.

O silêncio reinou por longos minutos dentro do cômodo. A jovem princesa não dizia uma única palavra. Se encarava no espelho quase em transe, era difícil acreditar que a imagem refletida era sua. Desde que saíra de Odarin, a moça havia crescido muitos centímetros, mas ainda era considerada pequena pelas demais damas de sua idade. Os cabelos castanhos antes desgrenhados agora formavam perfeitos cachos que adornavam o rosto levemente bronzeado do sol. Apesar de muito comprimidos dentro do espartilho, os seios fartos ainda se faziam presentes e eram motivo de orgulho pessoal de Sarah, ainda que ela jamais admitisse aquilo. Ela não punha quaisquer dúvidas em sua própria beleza, mas por alguma razão algo naquela imagem não parecia certo. Sempre que se olhava vinha a sensação de que faltava algo em si, algo que ela não era capaz de especificar com precisão.

— É muito lindo, Beatrice. — ela respondeu quase emocionada. — É perfeito, na realidade.

— Fico feliz que gostou. Mas falta algo ainda. — a cunhada lhe respondeu com um sorriso sincero. Dirigiu-se até a mais nova e quando estava atrás de si, retirou o colar de pérolas que trazia no pescoço e pôs na princesa de Odarin. — Completamos anos várias vezes na vida, mas nenhuma delas é tão especial quanto os quinze anos. Feliz aniversário, minha querida amiga.

— Beatrice! — ela exclamou enquanto observava seus movimentos elegantes. — Fico muito feliz com seu gesto, mas é seu colar de pérolas, você está sempre usando-o. É uma jóia de família, não posso aceitar.

— Não seja boba, Sarah. Você é minha família agora. Não há ninguém a quem eu considere mais digna deste colar do que você.

Sem palavras que pudessem descrever sua gratidão, ela correu até os braços de Beatrice, abraçando-a com força. A loira assustou-se com o gesto, não estava habituada àquelas demonstrações de afeto tão sinceras, mas não tardou em retribuir. Muito embora não tivessem praticamente nada em comum, as duas mantinham um relacionamento muito próximo. A princesa de Mivre sempre fez questão de ressaltar sua condição de amiga, mas sabia que Sarah idealizava em si uma verdadeira mãe. Não podia culpá-la por isso, afinal de contas a jovem jamais teve a oportunidade de receber qualquer afeto materno. Não era de se espantar que não tivesse quaisquer referências mesmo para as condutas mais básicas.

Com um gesto, Beatrice dispensou Evangeline que deixou o quarto sem questionar. Sabia que sua menina estava em boas mãos e seguiu até seus aposentos para aprontar-se. Quando já estavam à sós, encaminharam-se até a luxuosa penteadeira presente no cômodo. Sarah sentou-se na cadeira enquanto Beatrice mexia em seus volumosos cachos, imaginando qual penteado seria mais adequado à ocasião.



Uma valsa animada preenchia o salão e embalava os nobres que ocupavam o largo espaço. Sarah observava os convidados da sacada da larga escadaria, ainda que seus pensamentos estivessem muito distantes.“Gostaria tanto que estivessem aqui comigo neste momento, mamãe. Me sinto tão sozinha… é uma sorte que tenha Beatrice aqui comigo. Edgar também não é de todo ruim, sempre nos divertimos muito juntos”. A princesa riu levemente com seus próprios pensamentos. Ela gostava das pessoas que havia conhecido em Hallbridge (à exceção de Charlotte, por questões óbvias), mas jamais poderia negar a saudade dos serventes de Odarin. Haviam preenchido sua infância de um modo tão simples e ao mesmo tempo tão verdadeiro que por vezes ela se questionava se não seria mais feliz se não tivesse nascido naquele meio aristocrático.

— Preparada para seu momento? — Allen disse com o mesmo tom de voz impassível, ainda que gentil enquanto se aproximava de sua irmã mais nova, despertando-a de seus devaneios.

— Acredito que sim. — ela respondeu de modo incerto, forçando um sorriso confiante na esperança de convencer seu irmão de que estava tudo sob controle.

O jovem devolveu-lhe o sorriso amável e depositou um beijo em sua testa de modo cuidadoso, para não bagunçar-lhe os cabelos. Em seguida, desceu pela larga escadaria indo em direção à multidão.

O silêncio imperou tão logo Allen surgiu no salão térreo. Todos aguardavam ansiosos por suas palavras. Apesar de não ter tido a oportunidade de ser coroado como Rei, era respeitado e admirado como tal. Seu discurso começou como de costume, agradecendo não só a presença dos convidados, mas também o eterno apoio à Família Miglidori, que servia o povo de Odarin havia muitas gerações. Por mais que tentasse manter o foco, a princesa não conseguia ouvir as palavras polidas de seu irmão. Acabou soltando uma risada baixa, reação natural às idéias que por vezes brotavam em sua mente. “Elliot certamente iria debochar de mim se me visse neste estado de nervos. Ainda assim, gostaria que ele estivesse aqui. Talvez sua implicância fosse capaz de acalmar-me um pouco”, ela concluiu no momento em que Allen finalizou seu discurso, que fora seguido por calorosos aplausos. Um instrumental iniciou-se e Sarah pôs-se a descer as escadarias lentamente, tal como havia ensaiado centenas de vezes ao longo dos últimos dias, sob a orientação de Beatrice e Evangeline.

Alguns rostos lhe eram familiares, mas a grande maioria era composta por fidalgos das mais diversas patentes das quais ela desconhecia qualquer informação que pudesse ser relevante. Sarah ensaiou seu melhor sorriso tímido, segurando a mão de seu irmão logo que os degraus acabaram. Os nobres afastaram-se de modo quase ensaiado, formando um caminho estreito por onde os dois herdeiros do reino de Odarin caminharam até chegar à parte ovalada do saguão. Uma valsa se iniciou e ambos puseram-se a dançar em sintonia. A jovem dama rezava mentalmente para não pisar nos pés de seu irmão, um erro crasso que ela havia cometido pelo menos uma dúzia de vezes durante os ensaios.

— Relaxe, você está indo muito bem. — Allen sussurrou para a mais nova, adivinhando seus pensamentos e tentando acalmá-la de imediato.

— Diga isso ao pobre Edgar, não sei como estava conseguindo andar hoje pela manhã. — ela respondeu também em um sussurro, arrancando uma risada baixa do príncipe.

Logo a valsa acabou e os dois foram recepcionados por outra salva de aplausos. Sarah fez uma leve reverência, como se saudasse a todos os presentes. A orquestra retornou ao trabalho e logo o salão fora tomado por casais. Allen logo lhe pediu licença, para que pudesse tratar de um assunto urgente com um visconde que avistava ao longe. Quase que simultaneamente, Edgar aproximou-se da aniversariante, arrastando Charlotte consigo.

— Você está radiante nesse vestido, Sarah. É um vestido digno de uma princesa, realmente. — Edgar comentou enquanto abaixava a cabeça para beijar-lhe as costas de sua mão.

— Foi um mimo de Beatrice, fico feliz que tenha gostado. — ela respondeu em resposta, dirigindo-lhe um sorriso animado e sincero. Estava aliviada de vê-lo mais alegre do que quando se separaram naquela manhã.

— De muito bom gosto, por sinal. — ele respondeu do modo galanteador, arrancando uma risada da princesa, que revirou os olhos, já habituada com aquele cortejo. Charlotte até então encontrava-se muda e com a expressão fechada, até levar uma leve cotovelada do rapaz. — Lotte, por que não aproveita e parabeniza a nossa aniversariante?

— Perdoe-me minha rudeza, Alteza. — a ruiva respondeu de modo irônico, enquanto projetava um olhar enfurecido para Edgar. — Felicitações pelo seu aniversário. Esperamos sempre o melhor de seu reinado. Oh não, espere, acabo de me recordar: você não tem mais nenhum reino para chamar de seu.

— Agradeço pelas felicitações, Charlotte. — Sarah respondeu tentando segurar uma ofensa. Beatrice havia lhe advertido que a ruiva possivelmente tentaria arruinar sua noite, destilando seu veneno quando menos esperassem. Assim, deu-lhe uma excelente ideia de como poderia responder às afrontas da ruiva. — Desejo-lhe o melhor também, inclusive inclusive ao seu marido. Oh não, espere, acabo de me recordar: você não tem nenhum marido.

— Ao menos tenho uma casa para morar! — Charlotte retrucou enfurecida com a audácia da jovem em responder-lhe daquela forma. — Não preciso me locupletar de favores para dormir debaixo de um teto!

— Charlotte, pelos Deuses, isso não são modos de falar com uma princesa! — o Conde Avelar repreendeu-lhe com veemência, aproximando-se do pequeno grupo logo que sua filha estava a proferir grosserias. — Princesa Sarah, perdoe-me pela falta de modos de minha filha. Às vezes acho que estes penteados apertam-lhe o cérebro e lhe tomam a razão.

A ruiva enrubesceu diante das risadas que seguiram aquele sermão. Seu pai costumava aparecer sempre que estava a ter sua troca de alfinetadas diária, sempre no exato momento em que as circunstâncias iriam conspirar para que ela parecesse a vilã. Como era incompreendida! Naquela ocasião fora obrigada a ouvir mil gracejos serem dirigidos à Sarah. Já não fosse aquilo castigo suficiente, sequer gostaria de imaginar as advertências que ouviria após as comemorações. Felizmente, logo foram interrompidos quando um Barão convidou a princesa para uma dança. Seu desconforto era quase palpável, mas que poderia fazer? A atual conjuntura a obrigava a sorrir e estender a mão, concedendo aquela dança.



Sarah afastou-se do ambiente absolutamente exausta. Já havia tido sua companhia requisitada para dançar pelo menos uma dúzia de vezes por diversos nobres, passando parte do tempo forçando-se a lembrar o nome de cada um deles. Pediu um momento para recuperar o fôlego e foi sentar-se junto a uma janela, onde observava o jardim encoberto pela escuridão da noite. Estava absorta em pensamentos quando Edgar juntou-se à ela na janela, de modo silencioso e sem interromper-lhe os pensamentos.

— Finalmente entendo porque detesta festas. — ela comentou num sussurro, sem dirigir-lhe o olhar, ainda encarando o jardim. — Se alguém vier requisitar-me para mais uma dança, juro como irei simular um desmaio. Meus pés estão me matando!

Edgar riu daquela confissão, enquanto tragava um longo gole de sua taça de champanhe. Cada gole concedia-o alguns minutos extras de tolerância daquela tortura velada. Estava a encarar o jardim do mesmo modo que a princesa, buscando enxergar o que podia atrair-lhe a atenção do lado de fora da mansão. Acabou concluindo de que o que quer lhe a distraísse, estava vivo em suas memórias e não do lado de fora da casa.

— Vai demorar muito até eles começarem a ir embora? — Sarah questionou ainda num sussurro, finalmente dirigindo-lhe um olhar cansada. Trocaria até mesmo sua joia mais preciosa pelo benefício de poder retornar ao seu quarto.

— Bem mais do que o que você gostaria. — ele respondeu em um tom franco e lhe direcionou um meio sorriso entediado. — Mas não se engane, essas festas não passam de um pretexto para a música alta e as roupas extravagantes. No final das contas, tudo que querem é um motivo para que possam celebrar o próprio dinheiro. É deprimente.

Sarah passou a fitá-lo com certo espanto. Edgar era conhecido pela personalidade afável e descontraída, portanto era de se admirar uma confissão daquelas. O dono da presença mais agradável de Hallbridge portava uma expressão séria e tinha o cenho franzido, duas coisas que não lhes eram características. A jovem não imaginava o que estaria se passando por detrás daquele olhar austero e a situação lhe levou a tomar uma decisão inesperada. Segurando a mão de sua companhia, ela o puxou para fora do salão, seguindo em direção à porta mais próxima, aventurando-se pelo jardim escuro.

Não puderam se afastar muito da casa, pois esta era a única provedora de iluminação. Caminharam em silêncio por alguns minutos, até encontrarem um banco de ferro, próximo a uma janela, onde sentaram-se juntos. Sarah não dizia uma única palavra, apenas encarava o céu estrelado.

— Sua saudade tem nome? — Edgar questionou enquanto pintava um charmoso sorriso, libertando-a de seus pensamentos. O ar fresco e ameno da noite fora suficiente para suavizar sua expressão de antes.

— Como disse? — ela questionou piscando diversas vezes, sem compreender a pergunta.

— Reconheço um olhar de saudoso à milhas de distância, então gostaria de saber a sua tem um nome. — ele esclareceu enquanto apoiava ambas as mãos atrás do corpo, escorregando um pouco no banco enquanto pendia a cabeça para trás, encarando-a de soslaio.

— Oh sim, claro. — ela respondeu e passou a encarar as próprias mãos. — Tem muitos nomes para falar a verdade. Sabe Edgar, minha mãe morreu quando ainda era muito nova e Allen jamais estava no castelo comigo. Eu me sentia muito sozinha então, não me restava outra opção senão interagir com os serventes do castelo. Foram experiências muito agradáveis, acabei aprendendo muitas coisas com eles.

— Aprendendo com o serviçais, tem certeza disso? — ele perguntou enquanto erguia uma sobrancelha, incrédulo daquilo. Estava quase certo de que a maioria mal saberia ler o próprio nome.

— Sim, aprendi. Quando se tem a mente aberta, é absurda a quantidade de coisas que consegue aprender com as pessoas, por mais simples que elas sejam. — Sarah respondeu levemente aborrecida. Não gostava que menosprezassem as únicas companhias que teve em toda sua infância. Os defenderia sempre que tivesse oportunidade. — Já faz cincos anos desde que saímos de Odarin para Hallbridge. Eu não tenho notícias deles desde então, por vezes me pergunto se estão todos bem.

Edgar assentiu em concordância, mas manteve-se em silêncio, buscando digerir aquelas palavras. Ele conhecia o sentimento, sabia bem como era perder noites de sono, preocupando-se com o bem estar de alguém sem nunca receber qualquer notícia. Por um momento lembrou-se de sua noiva e na forma repentina como fora abandonado por ela. “Você me compreendia como ninguém Anya… acho que jamais entenderei o porquê de sua partida. Onde quer que esteja, só espero que esteja bem. E feliz.”, ele divagava até ser interrompido pela princesa. Sarah havia se levantado do banco e estava de costas para ele. Algo importante estava por vir.

— Irei requisitar uma audiência com Allen tão logo seja possível. Já nos refugiamos por tempo demais. — ela disse cheia de certeza. Edgar não compreendia de pronto o que ela queria dizer, até ouvir o que veio em seguida. — Está na hora de voltarmos à Odarin.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "The Queen's Path" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.