The Queen's Path escrita por Diamond


Capítulo 53
Capítulo LIII - 20 de Dezembro de 1873


Notas iniciais do capítulo

Olá meus amores, tudo bom?

Antes de mais nada, deixo aqui um envergonhado pedido de desculpas por ter demorado tanto para liberar esse Capítulo. Nessa reta final, imagino que os ânimos estejam à mil, assim como a curiosidade sobre como tudo irá terminar. Ocorre que esse mês de Janeiro e Fevereiro foram imensamente conturbados para mim, pois vinha num ritmo intenso de estudos para o Exame da Ordem dos Advogados e, logo em seguida, viajei para o exterior por duas semanas para umas merecidas férias. Quando voltei, caí de paraquedas na minha semana de fotos da formatura e tudo isso contribuiu para que a escrita ficasse em segundo plano por uns dias. A parte boa é que tudo deu certo e agora podemos retornar para a nossa programação habitual hahaha~

Inclusive, vamos começar a contagem regressiva? Aos que não sabem, este será o antepenúltimo capítulo de The Queen's Path. Eu poderia fazer muitas considerações sobre isso, mas vou deixar o textão para o nosso último encontro aqui.

Desejo a todos uma ótima leitura! ♥



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A intensa troca de olhares sinalizava uma espécie de batalha silenciosa que já perdurava longos minutos. A jovem rainha tinha seu semblante tomado por um misto de hesitação e temor, enquanto a recém-nascida não demonstrava nada além de uma curiosidade crescente em relação a mulher à sua frente.

Mais de uma vez, Sarah tencionou esticar a mão enluvada na direção da pequena Lis, que há pouco despertara e contemplava-a intensamente. No entanto, todas as tentativas de tocá-la foram interrompidas por sua própria insegurança, fazendo-a recuar um passo ou dois até conseguir reunir coragem o suficiente para uma nova investida.

Edgar e Evangeline encontravam-se dispostos a poucos passos, ambos buscando reprimir seus próprios gestos de ansiedade. Intromissões não seriam admitidas. Estando diante de uma experiência delicada como aquela, não lhes restava outra opção a não ser se manterem atentos ao que acontecia ali, esperançosos de que o simplório gesto que tanto aguardavam pudesse finalmente se concretizar.

Decidindo pôr termo àquele impasse, a menina pôs as duas mãos dentro do ornamentado berço, tomando a princesa de Odarin em seus braços da maneira que julgou ser a mais confortável. O silêncio perdurou por alguns instantes e permitiu que ela se sentisse ligeiramente mais segura de si. No entanto, quando menos esperava, um choro estridente e angustiado despontou pelo cômodo, levando uma onda de pânico à jovem rainha.

— Já chega, eu desisto!

Com um ar de frustração estampado em seu semblante, Sarah apressou-se em entregar a filha descontente nas mãos diligentes de Edgar, que cruzara o quarto em segundos para socorrê-la. De maneira habilidosa, ele amparou a recém-nascida em seus braços protetores e o gesto por si só foi capaz de minimizar o desconforto da pequena.

— Ela me odeia — concluiu a jovem rainha com indignação, seus braços cruzados e o cenho franzido servindo para realçar a imagem desgostosa que ela exibia. — Não há outra explicação plausível para tamanha revolta todas as vezes que tento segurá-la.

— Não seja fatalista — respondeu o Duque, que mantinha os olhos amendoados voltados para a figura indefesa que tinha em mãos. Não foram necessários mais que alguns segundos para que ela retomasse à calma e cessasse o choro. — Lis é apenas sensível e muito suscetível ao ambiente.

— E o que isto significa? — Sarah retrucou de imediato, visivelmente transtornada com a situação ultrajante a qual vinha sendo submetida. — Que eu não inspiro boas vibrações?

O jovem Avelar crispou os lábios em desconforto diante daquela indagação, ciente de que era preciso ter muito cuidado com seus atos e, principalmente, suas palavras. Não podia recriminá-la por estar alterada daquela forma, havendo uma justificativa para seu comportamento. Desde o nascimento da princesa, suas manhãs foram preenchidas com infindáveis tentativas de aproximação, buscando estabelecer uma identificação entre as duas. O que deveria ter ocorrido naturalmente estava tomando-lhes mais tempo que o previsto e, consequentemente, esgotando a curta paciência da monarca com a questão.

— Quero dizer que está se sentindo tão intimidada com essa nova realidade que não consegue lhe transmitir confiança — Edgar respondeu de modo ameno, no intuito de evitar uma discussão desnecessária. Foram meses de cuidado excessivo e restrições – para não mencionar as longas e angustiantes horas gastas em trabalho de parto – que, ao final de tudo, sequer conseguia segurar em seus braços a pequena vida que tinha trazido ao mundo. Limitava-se em observá-la de longe, com uma expressão magoada teimando em se sobrepor à sua máscara de indiferença. Presenciar tudo aquilo fazia com que o rapaz se sentisse impotente, não lhe restando outra alternativa senão mostrar-se presente em todos os momentos. — Precisa mostrar que tem tudo sob controle. Não quer tentar mais uma vez?

Sarah lançou um olhar desconfiado na direção de Lis, que agora repousava tranquilamente, mantendo o rosto apoiado contra as vestes macias de seu pai. Não houve uma única vez, nem mesmo quando estava dormindo, que ela tivesse se mostrado tão à vontade em seus braços daquela maneira. Pelo contrário, tinha a impressão de que a recém-nascida estava empenhada em manter-se distante, estabelecendo um perímetro que julgava ser seguro para si.

Pensar naquilo enchia seu coração de revolta. Nos últimos meses, viu-se isolada no interior de seu castelo, para que não fosse exposta às ameaças do mundo externo. Entretanto, a medida de proteção foi responsável por privá-la até mesmo do mais breve lampejo de felicidade.

Sem cavalgadas ou caminhadas pelo jardim, seus dias logo se tornaram excessivamente enfadonhos. Com Evangeline e mais duas criadas em seu encalço a todo momento, não sentia-se sequer confortável para partilhar seus pensamentos com o antigo diário de sua mãe. Em um determinado momento, nem mesmo os jarros de flores que Jacques lhe enviava a cada três dias eram capazes de alegrá-la. Presentes e cartas com felicitações chegavam a todo momento, mas a tarefa de respondê-las foi prontamente delegada para sua governanta. Tudo que desejava era que aquele sofrimento acabasse de uma vez.

Depois de abdicar tanto de sua própria vida, resguardando-se para preservar aquela que estava por vir, ver-se rejeitada daquela forma fazia com que o ressentimento tomasse conta de si, além de fazê-la se sentir estúpida por insistir numa convivência harmoniosa e vendo suas puras intenções serem frustradas daquela maneira.

— Não, obrigada — retrucou com resolução, engolindo seco após refletir por um longo período. A resposta levou uma expressão surpresa ao semblante do Duque e ela se apressou em acrescentar: — Existem centenas de pessoas padecendo de fome e frio que fariam de tudo por um minuto de minha atenção. Eu tenho coisas mais importantes para fazer do que ficar aqui tentando convencê-la de que sou digna de confiança.

As palavras ríspidas foram proferidas com rapidez e sem qualquer embaraço, deixando o jovem Avelar atordoado de tal maneira que sequer pôde esboçar uma resposta antes que Sarah deixasse o cômodo para trás, batendo a porta com força para demonstrar sua raiva. Boquiaberto, ele olhava para trás tentando prever quando chegariam ao fim daquele transtorno.

— Embora não seja uma tarefa fácil, ao menos ela está tentando — murmurou para a recém-nascida, que tinha os olhos redondos e castanhos voltados em sua direção com um ar de pura curiosidade. — Seria ótimo se pudesse facilitar um pouco as coisas, não concorda?

Alheia ao significado daquelas palavras, a princesa de Odarin riu enquanto esticava uma das mãos na direção do macio cachecol que Edgar usava, sentindo a textura do tecido entre os dedos minúsculos enquanto soltava gritinhos de empolgação.



Empertigado em sua poltrona, Phillip tinha em mãos uma longa lista de exigências vindas dos diversos representantes das Famílias Fundadoras. “Solicitação para limpar a estrada que liga Odarin a Hallbridge, há quatro dias obstruída pela neve”, dizia uma delas. “Permissão para encerrar as atividades do comércio duas horas mais cedo em função do crepúsculo precoce ocasionado pelo inverno”, pontuava um dos itens. Nenhum daqueles pedidos dependia do aval da Rainha para serem implementados, mas parecia haver um indescritível prazer em tentar intimidá-los ao abarrotar o Gabinete Real com as volumosas pilhas de papel.

Jogando os óculos de leitura sobre a mesa sem qualquer delicadeza, o jovem Chevalier esfregou os olhos com força, buscando paciência para prosseguir com os trabalhos previstos para aquele dia que apenas se iniciava. O vento gelado da estação e as baixas temperaturas não eram nem um pouco estimulantes, fazendo-o desejar estar em qualquer outro lugar. “Há bem pouco tempo, migrar para a biblioteca acompanhado de um bom livro e uma fumegante xícara de chá seria a melhor forma de recobrar as energias”, pensou de maneira melancólica. Sua vida já não era fácil de administrar como um dia fora, e tal fato era de inteira responsabilidade da camponesa de voz melodiosa. Delia podia estar longe do alcance de suas mãos, mas as memórias que construíam juntos jamais estariam inacessíveis para ele.

Reclinando-se confortavelmente em sua cadeira, ele encarou o teto ornamentado do cômodo por longos minutos, sua mente vagueando longe do trabalho e do castelo que se encontrava. Ao fechar os olhos, o rapaz quase podia sentir a brisa fresca acompanhada do sol morno que iluminava toda a extensão da propriedade da Família Lewinter, onde havia estado dias atrás. Não demorou muito até que pudesse visualizar a porta larga em forma de arco que separava a morada do restante da fazenda.

 

— Eu também hesitei quando estive aqui pela primeira vez depois de quase uma década — Anya comentou com um ar encorajador, sua voz doce empenhada em minimizar as preocupações infundadas de sua companhia. — E mesmo depois de tudo que aconteceu, fui recebida de volta com todo o amor do mundo. Por que acha que as coisas serão diferentes com você?

Porque eles certamente irão pensar que estou aqui para levá-la para longe mais uma vez”, ele retrucou mentalmente, sentindo a garganta seca demais para fazê-lo em voz alta. O assunto teve de ser abordado pela camponesa uma meia dúzia de vezes antes que o rapaz finalmente cedesse aos seus desejos, o que não significava que sentia-se animado ou mesmo confiante. Muitos eram os detalhes que o preocupavam e, entre eles, a certeza de que sua figura não esbanjava amabilidade ou que sua personalidade em muito se distanciava dos modos afáveis de Edgar. Phillip poderia contar nos dedos de uma única mão a quantidade de pessoas que verdadeiramente gostavam dele, uma estatística que não lhe era nenhum pouco favorável.

— Eu continuo achando que essa não é uma boa ideia — retrucou em voz baixa após um longo período de reflexão. Podia sentir a palma de suas mãos ligeiramente suadas, tal como no dia em que requisitou uma audiência com o Rei Alastair.

— Tudo que querem é zelar pelo meu bem estar e minha felicidade — a jovem acrescentou com um sorriso ameno estampado em seu rosto. Apesar de toda a sua hesitação, ela sentia-se lisonjeada por vê-lo esforçar-se tanto em sua tentativa de agradá-la. — Logo irão reparar que estou feliz ao seu lado e já não haverá mais qualquer razão para se preocupar.

De imediato, as palavras de incentivo apaziguaram seu coração por um momento. Não foram raras as ocasiões em que julgou estar impondo sua presença ou aborrecendo-a com sua personalidade azeda e pouco aprazível. Ter àquela confirmação verbal suavizou suas feições tensas e ao perceber os olhos atentos da camponesa voltados para si fez com que ele inclinasse o rosto em sua direção com o intuito de beijá-la, um gesto com o qual estava se habituando aos poucos.

No entanto, segundos antes de alcançar seu objetivo, o som característico do trinco fez com que ele recuasse um passo de imediato. O afastamento repentino causou alguma estranheza em Anya, que só compreendeu a reação afobada depois de ver a porta sendo aberta pela figura infantil de Gregory, que parecia ter acabado de tomar banho e trazia um par de óculos tortos apoiados sobre o nariz curto.

— Vocês ainda vão demorar muito para entrar? — Arguiu com um ar sonolento, falhando ao tentar conter um bocejo. — A tia Edeline gostaria de poder servir o almoço antes que esfriasse.

— Mamãe sabe que estamos aqui fora? — A jovem devolveu enquanto dirigia um olhar ansioso para sua companhia, mas Phillip sequer atentou para o gesto, aparentando estar mortificado demais por quase ter sido flagrado em um de seus momentos mais espontâneos.

— Não, mas eu os vi aqui fora pela janela do meu quarto e decidi avisá-los — respondeu de pronto, enquanto a camponesa ajeitava seus óculos com um cuidado maternal. — Vão entrar agora?

O rapaz somente despertou de seus devaneios ao sentir os dedos de Anya subirem delicadamente pelo seu braço, chamando-lhe a atenção. Ela deu um passo adiante e, maquinalmente, sua companhia fez o mesmo, seguindo-a para dentro da humilde morada enquanto Gregory mantinha a porta aberta.

Seus olhos inspecionavam todo o ambiente, analisando os mínimos detalhes sem realmente prestar atenção neles. Sentia-se inquieto como nunca, incapaz de manter-se focado numa única coisa. Se a camponesa não estivesse segurando seu braço de maneira protetora, ele certamente teria tido um mal súbito.

— Fico tão feliz em finalmente poder recebê-lo aqui! — A voz entusiasmada da anfitriã surgiu do alto da escada, na ocasião em que ela descia para recepcionar seu convidado. Com os fios castanhos presos num rústico penteado e um vestido alaranjado combinando com a intensidade de seu sorriso, ela compartilhou uma discreta risada com sua filha quando foi recepcionada com um beijo nas costas de sua mão. — Edeline Lewinter, encantada em conhecê-lo. Posso servir-lhe alguma coisa? Rosetta me ajudou a preparar o almoço, um momento.

Antes que Phillip pudesse responder qualquer coisa, a mãe de Anya desapareceu por um corredor que ele julgava levar até a cozinha, acompanhada por uma garotinha de volumosos cabelos ruivos que só então ele percebera estar ali. Não lhe incomodava a interrupção, pois quanto menos oportunidades tivesse para expor sua personalidade desagradável, melhor seria para ambos.

Aguardando pelas instruções de como deveria proceder a partir dali, o rapaz manteve-se imóvel, até ser surpreendido pelo estrondo da porta se chocando contra a parede.

— Dimitri, não bata a porta dessa maneira! — ralhou a camponesa enquanto observava a figura arfante dos mais velho de suas crianças.

— Desculpe, eu vinha correndo e não consegui desacelerar — justificou o garoto enquanto ajeitava o quepe grande demais para sua cabeça. Embora o chapéu ainda estivesse longe do tamanho adequado, era impressionante o quanto o menino havia crescido nos últimos meses. Em pouco tempo, estaria até mesmo ultrapassando a própria jovem que o adotara. — Oscar pediu para avisá-los que logo viria ao seu encontro. Esse é o rapaz de quem estava falando essa semana? É verdade que vocês vão se casar?

O questionamento inconveniente levou um rubor imediato ao rosto de Anya, que exclamou um indignado: “Dimitri, isso lá são modos?”, enquanto o menino correu na direção da cozinha, buscando fugir de sua fúria. Antes que ela pudesse tornar o rosto para sua companhia para pedir-lhe desculpas por tamanha inconveniência, a voz de Oscar ressoou pelo cômodo, chamando a atenção dos dois de imediato.

— Eis uma pergunta bastante interessante — comentou com um ar grave e severo enquanto batia as botas do lado de fora. De imediato, a camponesa correu para ajudá-lo a retirar o casaco, deixando o jovem Chevalier desorientado e desprotegido, ainda inerte como um peso de papel no meio da sala de estar. — Espero que tenha feito uma boa viagem.

Estendendo uma das mãos, Phillip apertou a de Oscar, apenas para surpreender-se com toda a força e vigor que ele impunha no ato. Quanto ao responsável pela Família Lewinter, não lhe agradava homens que não tivessem calos nas mãos, por pensar que eles desconheciam as intempéries da vida.  Bastou olhá-lo de cima abaixo para sentir-se um tanto decepcionado com o que via. Apesar do porte elegante, o rapaz tinha um aspecto franzino e pálido, de modo que se tivesse cruzado com ele na rua, teria lhe perguntado que espécie de doença o afligia. Era muito diferente de Elliot, a quem se afeiçoara quase imediatamente. De costas largas e mãos calejadas, com o rosto constantemente queimado por trabalhar exposto ao sol, o rapaz lhe transmitia vivacidade e confiança, além de ser detentor de um talento nato para cuidar de animais de tração. Era alguém como ele que sempre sonhara em ter como membro de sua família.

— Pensei que teríamos a companhia de sua família durante esta pequena refeição. Que eles fazem?

— Meus pais são o Barão e a Baronesa Chevalier, senhor — respondeu com alguma incerteza contida em sua voz. De imediato, ele segurou as mãos atrás das costas, de modo a manter sua boa postura. — E exatamente por essa razão julguei que seria prudente mantê-los alheios a alguns detalhes de minha vida pessoal.

— Quando ainda vivia em Odarin, em um período de muita necessidade, Phillip permitiu que eu trabalhasse na casa de seus pais — Anya acrescentou com um tom ameno, a todo momento direcionando sorrisos na direção de seu pai, como se de algum modo aquilo pudesse amolecer seu coração. — Foram todos muito gentis e compreensivos comigo, lhes serei eternamente grata por isso.

O filho do Barão direcionou-lhe um olhar ansioso, ao mesmo tempo que confuso. Parecia difícil acreditar que ouvira alguém referindo-se aos seus pais como “gentis” e “compreensíveis”. Depois de encarar seus sapatos por alguns segundos até recompor a seriedade, ele tornou a encarar o comerciante, que parecia pouco envolvido pelo charme de sua filha.

— Sabe, há alguns anos, me foi oferecido um título de nobre como esses que menciona — Oscar pontuou enquanto avançava para o interior de sua morada, com passos lentos e impotentes. — Eu o recusei, sabe por quê? Não me parece lógico exibir tais honrarias quando não se é verdadeiramente nobre de espírito. Entende o que quero dizer?

Phillip tinha quase certeza de que as gotículas de suor que sentia escorrerem por sua face não tinham qualquer relação com o clima quente de Hallbridge. Como responder àquela pergunta de modo a manter a integridade de seu pescoço?

Embora não tivesse certeza se compreendia bem a mensagem, de uma coisa o jovem Chevalier sabia: ele gostaria de não estar se sentindo tão pequeno diante daquela presença.

— Oscar, você está assustando nosso convidado! — Vinda de longe, a voz de Edeline quase soou como o canto de um anjo aos ouvidos do jovem Chevalier. Ele, que era um intelectual e costumava sentir-se apto para quaisquer conversar de alto nível, agora se via internamente implorando por um assunto mais ameno. — Venham todos, o almoço está servido.

Crispando os lábios, o burguês deu-lhe as costas e avançou pesadamente em direção ao local onde sua esposa se encontrava. Phillip se manteve imóvel novamente até que a camponesa lhe dirigisse um olhar encorajador antes de puxá-lo pelo braço. Estavam praticamente todos em seus lugares quando alcançaram o ambiente, que encontrava-se envolto por um aroma maravilhoso. O casal terminou de compor a mesa debaixo do largo sorriso de Edeline e do olhar cheio de desconfiança de Oscar.

— Anya nos falou muito de você — disse a anfitriã com uma voz doce, enquanto punha uma das mãos sobre a de sua visita de maneira tenra. — Saiba que é um prazer indescritível para nós poder recebê-lo aqui em nossa casa.

O rapaz não tinha muita certeza do que Anya poderia ter lhes dito a seu respeito que não soasse extremamente errado ou inconveniente aos ouvidos de dois pais protetores como eles aparentavam ser. Ainda assim, depois de assentir para aquelas palavras como se as merecesse, as costas de sua mão continuou aquecida mesmo após a senhora ter retornado à sua posição original.

Em uníssono, os habitantes daquela morada proferiram palavras de agradecimento por sua mesa farta e pelo teto firme que havia sobre eles. Em seguida, as crianças praticamente avançaram sobre a comida, sendo calmamente seguidos pelos mais velhos.

À princípio, a única inclinação do Secretário Real era de virar as costas maquinalmente e afastar-se com passos largos daquela propriedade até que pudesse esquecer-se do constrangimento de estar ali. No entanto, sentia que todos à sua volta — à exceção do próprio Oscar Lewinter — faziam o possível para que ele se sentisse confortável. Ciente daquilo, o nervosismo infantil e quase irracional começava a dar espaço para uma nova sensação.

Estar diante de toda aquela fartura, bem ao lado da camponesa que lhe furtava toda a paz de espírito e embaralhava seus pensamentos, juntamente do casal de anfitriões e suas três crianças adotivas, o rapaz sentiu algo de familiar naquela cena, embora sua própria família jamais tivesse partilhado uma refeição tão calorosa e amigável quanto aquela.

O sentimento lhe era estranho e reconfortante ao mesmo tempo, de modo que levou alguns minutos até que a realização o atingisse por completo. Ver-se devidamente acompanhado de todos os membros que compunham a Família Lewinter fazia com que se sentisse em casa, de uma maneira como ele nunca havia experimentado em sua própria morada em Odarin.

Ali, de alguma maneira, ele se sentia acolhido e, principalmente, aceito tal como era.

 

— Phillip, você não está prestando atenção!

O Secretário Real sobressaltou-se em sua cadeira, tornando a abrir os olhos com um ar de urgência. À sua frente, a Rainha de Odarin encontrava-se inclinada sobre a mesa onde costumavam trabalhar juntos, encarando-o boquiaberta enquanto lhe dirigia um olhar de pura indignação.

Ao que parecia, estivera sonhando acordado mais uma vez. Justo ele, que sempre fora tão compenetrado em seu trabalho, agora sentia dificuldade em concentrar-se até na menor das atribuições desde sua reconciliação com Anya. Via-se constantemente dividido entre as obrigações de seu cargo e os momentos de deleite que eram gastos ao lado de sua camponesa.

— Desculpe, disse alguma coisa? — Questionou com um tom apologético, buscando agir de modo a não levantar suspeitas, embora já esperasse pelo fracasso de sua tentativa.

Sabia que não poderia sustentar aquele ar de naturalidade para sempre e muito em breve deveria compartilhar a verdade com a jovem rainha. No entanto, todas as vezes em que cogitou introduzir a questão, as palavras simplesmente desapareciam de sua mente e ele simplesmente não sabia por onde começar.

— Eu disse que estou retomando meus afazeres mais cedo que o previsto, pois ao menos sei que minhas cartas e relatórios não irão chorar em desespero todas as vezes que precisar tocá-las. — Repetindo sua fala de maneira encolerizada diante da desatenção de seu Secretário, a menina não se incomodou em tentar conter os gestos extravagantes que denunciavam raiva. — Posso imaginar como foi difícil responsabilizar-se sozinho por todas as minhas atribuições últimas semanas, mas não podemos continuar dessa maneira. Sei que tem comparecido a reuniões e feito viagens diplomáticas em meu nome, mas percebo que seu regresso tem sempre demorado um ou dois dias além do necessário. Nunca consigo encontrá-lo no castelo e quando finalmente surge a oportunidade, você sequer escuta o que estou lhe dizendo!

Phillip não ousou interromper o desabafo angustiado da jovem rainha, sentindo através de cada uma daquelas palavras o peso da mágoa que ela vinha suportando sozinha. Estava tão compenetrado em suas memórias deleitosas que acabou por negligenciar o tormento de Sarah.

— Já é o bastante a sensação de inutilidade que minha filha tem me feito experimentar — sentenciou enquanto alinhava uma pilha de cartas pendentes de resposta. — Eu não preciso passar pelo mesmo no que tange meu próprio reino.

Ainda que seu semblante continuasse a exibir traços de irritação, ao menos seu pequeno discurso parecia ter chegado ao fim. Compenetrada em estabelecer uma lista de prioridades antes de efetivamente se debruçar sobre o trabalho acumulado, a menina manteve a cabeça baixa, evitando a todo custo olhar para o rapaz à sua frente. Enquanto buscava assimilar tudo que havia ocorrido em sua ausência, o jovem Chevalier teve tempo suficiente para refletir sobre sua conduta.

Lembrar-se que sua amiga e Soberana era uma pessoa que abominava mentiras acima de qualquer outra coisa serviu para agravar o peso em sua consciência. Quanto mais os dias passavam, mais confortável ele se sentia com a situação em que estava inserido. No entanto, quando ela descobrisse a verdade, toda a confiança e a cumplicidade arduamente conquistadas iriam por água abaixo. Precisava dizer-lhe o que se passava o quanto antes, pois a estimava demais para permitir que algo assim acontecesse.

— Ouça, Sarah… — mas mesmo diante daquele prenúncio, a jovem Rainha não se dignificou em erguer o rosto da carta que redigia. Apesar da muda reprimenda, ele prosseguiu:— Tem uma situação que vem se prolongando já há algum tempo e que eu gostaria que tivesse ciência.

— Continue — disse num tom autoritário, ainda que seus olhos continuassem rebaixados. — Diferentemente de você, eu sou toda ouvidos.

Foram necessários alguns segundos de respirações profundas e vagarosas até que dissesse aquilo que pretendia. Estava longe de se sentir preparado para revelar aquele segredo e arcar com a consequente reação de Sarah, mas estava decidido. Já havia adiado aquela conversa por tempo demais.

— Eu conheci uma pessoa — revelou com nervosismo, mantendo-se atento a quaisquer reações adversas que ela pudesse apresentar. — Esse tem sido o motivo de minhas abstenções frequentes e distrações.

— O que você faz ou deixa de fazer em sua vida privada não é de meu interesse — a menina  interrompeu-o, sua voz soando desinteressada enquanto despejava algumas gotas de cera derretida sobre o envelope, com o intuito de selá-lo com o brasão da Família Real. — Ao menos enquanto estiver desempenhando sua função apropriadamente, é claro.

Ela continua aborrecida comigo”, Phillip constatou, mantendo-se silente por um segundo para pensar em como prosseguir. Improvisar um discurso que o permitisse sair vivo da audiência com o Rei Alastair e sua guarda de lanceiros prontos para atacar havia sido infinitamente mais fácil do que aquilo que estava fazendo agora.

Uma pena ouvir palavras tão duras — comentou com um fingido ar de desalento. Sabia que a melhor maneira de abaixar a guarda da jovem rainha seria apelando para a curiosidade infantil que lhe era característica. — Anya ficaria desapontada com o tamanho do seu descaso conosco.

— Do que está falando? — ela indagou com impaciência, chegando até mesmo a fechar uma das mãos em punho durante o processo. — Qual a relação de Anya com essa questão?

Por favor, Sarah”, pensou enquanto esboçava uma expressão de descrença ao mesmo tempo que erguia uma sobrancelha de maneira sugestiva em sua direção. “Você é mais sagaz do que isso”.

Levou alguns instantes até as informações de unissem de modo coerente em sua mente, o que causou um ar de espanto ao seu semblante juvenil. “Ele não pode estar falando sério”, mas o jovem Chevalier não dava quaisquer indícios de que fosse uma brincadeira fora de hora. Ao invés disso, a encarava com seriedade enquanto aguardava por seu posicionamento final.

— Devo confessar que não sei bem o que dizer. — Aquilo foi tudo que conseguiu exprimir num primeiro momento, fazendo com que o silêncio reflexivo se prolongasse por mais alguma instantes. Não havia como precisar se Phillip tinha conhecimento ou não de seu parentesco com Anya, mas sem sombra de dúvidas estava ciente do que acontecera entre ela e Edgar quase uma década antes. Pensar naqueles detalhes começava a deixá-la atordoada, de modo que sentiu a necessidade de compartilhar suas impressões iniciais. — Para ser sincera, eu nem mesmo sei se consigo acreditar em tamanha coincidência, se é que podemos chamar assim.

A confissão levou uma tímida risada aos lábios do Secretário Real. Ele também não conseguia crer no rumo que sua vida havia tomado nos últimos anos e divertia-se ao imaginar que, dentre tantos caminhos possíveis, acabara sendo agraciado com o melhor de todos.

— Eu poderia elucidar algumas das circunstâncias que levaram a isso, mas temo que não tenhamos tempo disponível para fazê-lo no momento — ele pontuou enquanto observava um mensageiro ingressar no Gabinete Real com discrição, trazendo consigo uma caixa com os relatórios da fronteira. Intimamente, sentia-se grato por ter escusa para superarem aquele assunto de uma vez por todas.

— Suponho que sim — respondeu depois de assentir para o servente, só então olhando em volta e dando-se conta de que havia muito trabalho pela frente. As pilhas de papéis que começavam a se acumular ao redor de sua mesa serviam para corroborar com aquela constatação. — Mas antes, preciso que me responda com muita sinceridade: vocês estão felizes?

O questionamento inesperado o apanhou desprevenido. Entre uma centena de possibilidades que havia imaginado de antemão, aquela em especial não se encontrava em sua listagem hipotética, mostrando-lhe que o passar dos anos não a impedira de surpreendê-lo sempre que a oportunidade surgisse.

— Sim — Phillip respondeu com franqueza, sem hesitar ou tentar camuflar aquilo que verdadeiramente sentia. Poder afirmar sua própria felicidade em voz alta aproximava ainda mais aquele sonho da realidade, preenchendo-o de uma forma como nunca antes havia experimentado. — Mais do que poderíamos desejar.

Diante daquele retorno positivo, já não havia mais nada que Sarah pudesse acrescentar ao assunto, de modo que se limitou em agraciá-lo com um sorriso tenro antes de debruçar-se novamente sobre sua correspondência.

O jovem Chevalier era um rapaz dedicado e leal. Anya não só era gentil, como também atenciosa. Ambos tinham sua cota de imperfeições e limitações, era bem verdade, mas enquanto pudessem cuidar um do outro, então não seria ela a formular quaisquer objeções.



Depois de uma infinidade de cartas respondidas e memorandos assinados, a jovem rainha despediu-se de seu Secretário Real com um sorriso ameno, ciente de que havia feito o suficiente por um dia. Tudo que desejava naquele momento era rumar até seus aposentos e dormir até o dia seguinte. Parecia-lhe estranha a sensação de saudosismo que tinha em relação aos seus afazeres oficiais, que a despeito de todo o cansaço proveniente do trabalho incessante, ainda resultava numa obrigação muito mais agradável e recompensadora do que interagir com sua própria filha.

Sem que pudesse escolher, sua vida fora tomada por cuidados excessivos, roupas infantis, visitas inconvenientes e o choro intermitente da recém-nascida, que ecoava por seus ouvidos, ferindo-lhe de maneira física e psicológica. Sabia que todos aguardavam ansiosamente pela chegada de um herdeiro, alguém para perpetuar a linhagem da Família Real. Entretanto, poucos eram capazes de imaginar o quanto lhe custava viver tendo que atender a todas àquelas expectativas. Era exaustivo e, se Edgar não estivesse continuamente prestando-lhe apoio, ela não seria capaz de cumprir com metade do que lhe era imposto.

Alcançando o último lance de escadas, a jovem rainha avançou na direção de seu quarto, estranhando a quietude do andar e ausência de empregados à vista. Tinha a esperança de encontrar seu consorte aguardando-a, pois teriam muito para tratar naquela noite. A recente confissão de Phillip era algo que precisava ser partilhado com ele o quanto antes e já poderia antever uma reação adversa para aquela revelação. “Você seguiu em frente com sua vida, não pode esperar que Anya permanecesse presa ao passado para sempre”, ensaiou mentalmente as palavras que diria quando chegasse a hora.

Em um determinado momento, Sarah aproximou-se do quarto da recém-nascida. Não tinha a menor intenção de voltar lá tão cedo, ao menos enquanto a humilhação vivida naquela manhã permanecesse viva em sua mente. No entanto, vozes vindas do interior do cômodo chamaram-lhe a atenção de tal modo que a fizeram interromper seu trajeto.

A porta fechada abafava o som e para compreender o que se passava ali, foi preciso aproximar o rosto da fechadura. Duas vozes distintas travavam um diálogo tenso que constantemente era entrecortado pelas risadas infantis de Lis, o que de imediato instigou-lhe a curiosidade. Uma claramente pertencia Edgar, o que em nada a impressionava, uma vez que o Duque passara a dedicar boa parte de seus dias desprendendo cuidados e mimos para sua filha. Quanto a outra, feminina e entoada sob um inconfundível tom petulante, lhe trouxe péssimas recordações e de imediato levou um fulgor de raiva ao seu semblante.

— Acha mesmo que essa foi uma decisão sábia? — Questionou o jovem Avelar, com gravidade e preocupação presentes em sua fala. — Seria de bom tom nos ter dito que viria.

— E estragar minha visita surpresa? De maneira alguma! — Retrucou a segunda voz, demonstrando pouco interesse com as questões que pairavam sobre a mente do rapaz como uma nuvem carregada. — Ao que me parece, o frio deste lugar congelou seu senso de humor. Você nem mesmo parece feliz de poder rever sua irmã.

Abrindo a boca para rebater a alfinetada que acabara de receber, Edgar acabou por perder sua oportunidade ao vislumbrar a porta se abrindo de maneira súbita, revelando a figura descontente de Sarah. A expressão de seriedade e desagrado estampada em seu rosto tornou-se ainda mais pesada ao constatar que Lis se encontrava nos braços da ruiva, rindo de maneira abobalhada em sua direção.

— Se não me falha a memória, creio ter sido muito clara em minhas palavras quando lhe disse que já não era mais bem vinda aqui — declarou a jovem rainha enquanto dirigia à sua visitante indesejada um olhar repreensivo. — Não só deixou de nos avisar a respeito de sua chegada como nem mesmo se preocupou em requisitar uma autorização, demonstrando uma falta de respeito e elegância sem precedentes. Posso saber o que está fazendo em minha residência?

— Por céus, poupe-me de seus discursos elaborados e de suas perguntas tolas — Charlotte retrucou, sem deixar-se abalar pelas palavras ríspidas que acabara de ouvir. Ela não poderia esperar por uma recepção mais calorosa do que aquela. — Muito em breve estarei partindo numa viagem da qual não tenho a pretensão de retornar tão cedo. Assim, julguei que seria uma boa oportunidade para vir aqui parabenizá-los por sua mais recente conquista e para conhecer a nova princesa de Odarin. Ela tem o nariz de nossa família, você percebeu?

Sarah tinha as bochechas avermelhadas diante de tamanho disparate e controlava-se para não bufar de maneira audível. Seu olhar indignado voltou-se para seu consorte, mas decepcionou-se ao constatar que ele sorria estupidamente diante do gracejo que acabara de ouvir. Ver o quão facilmente manipulável Edgar poderia ser em certas ocasiões lhe aborrecia imensamente, mas esse sentimento sequer poderia ser comparado ao ultraje que sentia ao ver sua filha alegrar-se muito mais com a presença da ruiva do que com a sua própria. Presenciar a cena levou um sabor amargo à sua boca, mas ela não se permitiria fraquejar enquanto houvessem olhares atentos às suas reações.

Enquanto assistia aos dois membros da Família Avelar afagarem e bajularem a pequenina Lis, sua mente trabalhava de maneira intensa, buscando uma maneira de ver-se livre daquela presença inconveniente. Cogitou até mesmo a ideia de arrancá-la daquelas mãos maliciosas e predatórias, mas logo recordou-se de que o gesto resultaria num choro revoltado e incontrolável por parte da menina. Resignada, não lhe restou outra alternativa senão aguardar que a devolvesse para a segurança de seu berço, pois só assim poderia forçar sua saída, nem que para isso tivesse de recorrer ao auxílio da Guarda Real.

— Não aborreça sua mente atribulada com a minha presença, eu não pretendo me demorar — Charlotte comentou em tom casual, como se pudesse ler seus pensamentos. Seus olhos, astutos como uma raposa selvagem, capturaram um gesto inquieto promovido pela jovem rainha, o que confirmou seu palpite inicial. — Para seu alívio pessoal, partirei amanhã mesmo, depois que meus cavalos tenham tido um descanso apropriado. Apenas não desejo me aborrecer com os trâmites tediosos de uma estalagem, ainda mais diante do avançar da hora.

— Para onde está indo? — Edgar perguntou com curiosidade, ainda que seus olhos permanecessem fixos no minúsculo nariz de sua filha, confirmando a indubitável semelhança entre seus traços e os de sua irmã. O questionamento despretensioso do rapaz ocasionou, de imediato, uma nova onda de indignação na jovem rainha, que tencionava encerrar aquele encontro o quanto antes.

— Viajarei por terra até o porto de Mivre e então tomarei um navio para Sísia — respondeu com simplicidade, balançando a princesa em seus braços, arrancando outra risada entusiasmada dela.

— Sísia?! — retrucou o jovem Avelar com descrença. Tinha a esperança de que se tratasse de uma travessura de sua irmã, mas nada em sua fala ou comportamento lhe deu qualquer indício daquilo. — Você enlouqueceu? Sabe qual a distância daqui até a ilha de Sísia? Vai passar semanas num navio até chegar numa ilha remota e então, o que fará depois?

— Você não espera que eu tenha guardado em mente todos esses detalhes, não é mesmo? — Rebateu com impaciência, voltando sua atenção para a pequena Lis, que a encarava com grande expectativa. A menina era ainda mais graciosa do que havia imaginado e a constatação a fez lamentar que seus planos envolvendo a maternidade tivessem sido frustrados com a morte inesperada de Allen, um evento ao qual ela jamais seria capaz de superar por completo. — Estou cansada de olhar pela janela e vislumbrar o horizonte coberto por um pasto amarelado que lentamente é devorado por vacas, cavalos e carneiros. Além disso, é impossível desfrutar um dia de mercado sem que o cheiro de peixe fique impregnado em minhas vestes ou que a maresia estrague meu cabelo. Preciso de um pouco de vivacidade em minha vida, com novas companhias e paisagens. Entende o que quero dizer?

A confissão fez com que uma tímida risada escapasse pelos lábios incrédulos do Duque. Ele jamais diria tais palavras em voz alta, mas cada vez mais Charlotte assemelhava-se com sua mãe. Tinha um espírito intenso demais para o inevitável marasmo da vida no campo e não seria uma advertência que a faria mudar de ideia, de modo que ele reteve seus apontamentos para si.

— Confesso que estou surpreso em saber que nosso pai concordou com tamanha empreitada. Como conseguiu convencê-lo?

— Não consegui. Mas isso já não tem importância, pois não dependo de mais ninguém para fazer aquilo que desejo. — Suas palavras fizeram com que o rapaz estreitasse os olhos por um instante, mostrando-se visivelmente confuso e curioso. Sua reação levou um provocante sorriso aos lábios da jovem ruiva. — Você requisitou que Gilbert viesse ao seu encontro e isso me deu tempo suficiente para descobrir o local onde ele escondia sua pequena fortuna. Quando o devolveu para nós naquele estado deplorável, seu precioso tesouro já estava sobre a minha posse e nosso pai ciente de todos os crimes que cometeu. Sem conseguir formular uma justificativa plausível para ter manchado o nome da Família Avelar desta forma, eles travaram uma discussão terrível e ao final de tudo, simplesmente desapareceu. Não tivemos mais notícias suas desde então.

A breve narrativa fez com que Edgar se mantivesse silente por um instante, refletindo sobre os últimos acontecimentos. Se Gilbert de fato havia perdido tudo que possuía, então onde quer que estivesse, estaria empenhado não só em se reerguer, como também em se vingar pelo ocorrido. Instintivamente, seus olhos correram até a janela mais próxima enquanto se perguntava se Alastair seria capaz de oferecer-lhe abrigo em troca de informações valiosas que pudesse utilizar contra Odarin. Tratava-se de uma possibilidade real e plausível, mas ele deixaria para pensar nas eventuais consequências do desaparecimento de seu irmão num outro momento.

— Gilbert está apenas colhendo os frutos pelos anos vividos meio a sua ambição desmedida — mencionou de maneira vaga, na expectativa de que sua fala pudesse encerrar com o assunto. — Talvez essa experiência o ensine a ser uma pessoa melhor daqui em diante.

— Eu não apostaria uma única moeda nisso — Charlotte pontuou com um ar desapontado, devolvendo a princesa para os braços cuidadosos de seu pai. — Será difícil para nosso pai ver-se sozinho naquela casa enorme. Sugiro que o convide para passar alguns dias aqui, talvez a presença de sua primeira neta possa distraí-lo dessa infeliz sucessão de eventos.

Edgar assentiu, indicando que tomaria as providências necessárias para concretizar aquele pedido. O Conde Avelar, apesar de antigo aliado da Família Real de Odarin, era uma pessoa discreta e ponderada. Sem que houvesse um convite formal para tanto, ele jamais viria visitá-los, temeroso de que sua presença pudesse de algum causar algum distúrbio na rotina do castelo.

— Sei que adorariam contar com a minha presença durante a ceia, mas temo estar cansada demais para tanto. Ao menos suas criadas foram diligentes em providenciar um quarto para mim. — Aquelas palavras, proferidas mediante uma amabilidade fingida, provocaram uma intensa inquietação em Sarah ao perceber que a ruiva caminhava em sua direção, portando o usual sorriso presunçoso que exibia indiscriminadamente para todos. Quando esteve próxima o suficiente, a filha do Conde lhe disse em meio a um sussurro: — Sei que jamais me pediria um conselho, mas lhe darei um mesmo assim: acabe com essa tola inimizade e poupe sua energia para quem realmente deseja vê-la fracassar. Além disso, você não sabe quando poderei ser útil novamente.

Os passos de Charlotte ecoaram pelo cômodo até que o som da porta se fechando impusesse um silêncio perturbador no ambiente. O Duque continuava a embalar a pequena de maneira zelosa, que demonstrava claros sinais de cansaço depois de ter recebido tanta atenção. Não demoraria muito até que cedesse ao sono e pudesse ser deixada em seu berço, onde estaria segura debaixo do olhar vigilante e protetor de Evangeline.

— Está feliz agora?

Haviam lágrimas frustradas presas nas laterais dos olhos da jovem rainha, mas por alguma razão, o choro permaneceu preso em sua garganta, tomando-lhe o ar e impedindo-a de falar. Olhava para seu consorte com fúria diante de sua falta de atitude. Lis não detinha sequer um mês de vida, mas já ferira seu orgulho como poucos tiveram a chance de fazer. Sentia-se absolutamente menosprezada pelo pequeno núcleo familiar que construíra mediante tantos sacrifícios, como se buscasse impor sua presença num local ao qual não pertencia e nem mesmo era bem vinda.

— Não me olhe dessa forma, eu não a pedi para vir — Edgar se defendeu, ao perceber que Sarah aguardava por uma manifestação sua. No entanto, sua escolha de palavras não poderia ter sido mais infeliz, algo que pôde constatar pela maneira como ela reagiu.

Tomada por uma repentina exaustão, a jovem se limitou em menear negativamente, externando sua decepção com a falta de percepção de seu consorte. Seus problemas iam muito além da visita indesejada de Charlotte, mas o Duque não parecia ser capaz de compreender isto por conta própria. Ofendida e cansada demais para ingressar numa discussão verbal, ela se limitou a girar sobre os calcanhares e deixar o cômodo para trás em silêncio, buscando refúgio em seu próprio quarto.



Impaciente e atribulada, Sarah dispensou o auxílio de uma empregada para desfazer seu penteado, ocupando-se ela mesma daquela tarefa. Descontava toda a sua frustração nas madeixas emaranhadas, as quais constantemente ficavam presas nas cerdas de sua escova e, como consequência, eram impiedosamente arrancadas. Tinha a esperança de que a dor física pudesse se sobrepor a qualquer outra, distraindo-a de seus problemas atuais, mas, para sua infelicidade, logo percebeu que uma somava-se a outra, deixando-a num estado de completa desesperança.

Por que as coisas tinham que acontecer daquela maneira? Estava cansada de transpor obstáculos e encontrar outros tantos em seu caminho. Era desgastante a necessidade de provar o seu valor a todos à sua volta, estando sua própria filha incluída naquela lista. Tudo que desejava era um pouco de tranquilidade, assim como algum distanciamento daquela realidade tortuosa.

Tinha a certeza de que seu cabelo se encontraria num estado paupérrimo na manhã seguinte, mas não havia nada que desejasse fazer a respeito. Desde que pudesse passar algum tempo sozinha, digerindo suas próprias frustrações, então talvez pudesse pensar numa solução com mais clareza.

Seus desejos, no entanto, raramente poderiam ser atendidos e, justo quando almejava por um pouco de isolamento, os passos pesados de seu consorte se fizeram presentes, embora ele nada tenha dito. O silêncio pesado se prolongou por longos minutos, cada um compenetrado em suas próprias reflexões.

— Tenho um assunto para tratar com você — Sarah mencionou com um ar de indiferença, ainda sem tornar o rosto em sua direção. — É sobre a Anya.

— Eu prefiro não arruinar minha noite com questões desagradáveis como essa — o jovem Avelar retrucou de imediato, ainda compenetrado em trocar suas vestes por algo mais confortável.

— Por céus, Edgar, pare de agir como uma criança! Você não pode fugir de seu próprio passado.

— Não estou fugindo, apenas adiando este assunto para amanhã — respondeu com brandura, deixando para depois a tarefa de trocar suas vestes. Ao invés disso, o rapaz caminhou até o local onde a jovem rainha estava sentada e colocando-se ao seu lado, prosseguiu sua fala com a mesma calma de antes: — O que eu gostaria de saber agora é o que tanto tem lhe preocupado. E não adianta tentar disfarçar, você mente terrivelmente mal para uma monarca.

Sarah crispou os lábios diante daquele apontamento, mostrando-se reticente em responder àquele questionamento. Muito embora lhe aborrecesse a falta de visão de seu consorte, era preciso reconhecer que situações como aquela eram frequentes, onde ele estava sempre buscando compreendê-la e apoiá-la, tal como um verdadeiro companheiro faria. Decidindo que deveria dar-lhe algum crédito por isso, ela corrigiu sua postura antes de começar a falar de maneira incerta, ainda que sincera.

— Quando era mais nova, me parecia que haviam exigências demais para ser uma dama. Há alguns anos, pensei que me tornar uma Rainha seria o maior desafio que teria de enfrentar. No entanto, ser mãe é… — As palavras lhe fugiram na ocasião e ela sentia-se fragilizada só por ter de abordar aquela questão em voz alta. Fazê-lo tornava o problema muito mais real e palpável do que gostaria de imaginar. — Evangeline me disse que eu saberia exatamente o que fazer quando chegasse a hora, mas ela estava enganada! Assim como não tenho a menor ideia do que estou fazendo, me angustia não saber o que minha filha espera de mim.

— Tudo que ela precisa no momento é do seu amor — Edgar disse de maneira tenra, tomando-lhe uma das mãos para beijar e fazer uma suave carícia com os dedos em seguida.

— Acha mesmo que eu não a amo? — Sarah retrucou com a voz esganiçada. — Há um orgulho indescritível em olhar para Lis e perceber que fui capaz de conceber algo tão puro e inocente. No entanto, todas as vezes que eu a toco, parece que lhe transmito apenas as piores sensações ou até mesmo que estou tentando machucá-la. É como se meu amor não fosse o suficiente e ela esperasse algo mais de mim, mas eu não faço ideia do que possa ser.

Seu desabafo poderia ter se prolongado por mais alguns minutos se a jovem rainha não tivesse sido tomada por um choro tímido e envergonhado. O rapaz continuava a observá-la com atenção, só agora compreendendo suas angústias. Aquele discurso era novo para ele, pois até então imaginava que o cerne da questão residia no fato de julgar que ela não fosse capaz de nutrir qualquer sentimento pela recém-nascida, quando na realidade era exatamente o oposto.

Segurando ambas as mãos da menina, ele a instigou a colocar-se de pé, guiando-a para fora de seus aposentos com passadas apressadas. À princípio, Sarah nada compreendeu e se deixou ser levada para longe sem contestar. Entretanto, perceber que se aproximavam do quarto da princesa fez com que ela enterrasse os pés descalços no chão, obrigando-o a parar por um instante.

— Não, Edgar, eu já tive humilhações o suficiente por um dia. — Sua voz chorosa fez com que o Duque desse pouco crédito àquelas palavras, puxando-a mais uma vez, mas ela permanecia inerte. — Estou falando sério! Se eu fizer isso ela irá…

— Chorar? Ela tem um pouco mais do que duas semanas de vida, não sabe fazer quase nada além disso — ele retrucou com um ar grave, levando-a a encolher os ombros como uma criança intimidada. — Você tem sido uma Rainha exemplar, do tipo que não se curva diante de um Conselho composto por abutres ou mesmo de um reino inimigo, por mais ameaçadora que a situação possa parecer. Não me parece lógico que esteja com medo de um pequeno bebê, ainda mais nossa filha.

Com um olhar encorajador, o jovem Avelar abaixou o trinco com cuidado para não produzir qualquer ruído e manteve a porta aberta à espera de Sarah. A menina, por sua vez, hesitou por alguns instantes antes de avançar silenciosamente para o interior do cômodo.

O ambiente estava escuro, havendo apenas uma única vela que resistia acessa, quando todas as demais já haviam sucumbido ao frio da noite. Sentada numa poltrona, Evangeline cochilava com um livro de bolso aberto sobre seu colo. Ao lado, deitada em seu berço ornamentado, a pequena Lis dormia com uma tranquilidade ímpar e somente aquela visão foi responsável por fazer sua mãe hesitar mais uma vez.

— Ela está dormindo, não é nenhum pouco prudente acordá-la — sussurrou na direção de seu consorte, mas Edgar não deu ouvidos àquela escusa amedrontada. Fechando a porta com o mesmo cuidado de antes, ele pôs as mãos sobre os ombros da jovem rainha, empurrando-a até que estivessem próximos o suficiente da recém-nascida.

— Tente novamente — ele murmurou com a voz grave. Sua fala gerou uma onda de pânico na menina, até que acrescentasse de maneira protetora. — Eu irei ajudá-la desta vez.

Suspirando fundo, Sarah percebeu que não havia escapatória. Aquele era um temor que precisava ser enfrentado o quanto antes e a presença protetora do rapaz bem atrás de si lhe trazia algum conforto e segurança.

Inclinando-se na direção da pequena princesa adormecida, a jovem rainha a tomou em suas mãos, valendo-se de todo o cuidado e delicadeza do mundo em sua nova tentativa. Lis moveu-se de um lado para o outro, como se relutasse deixar o conforto e o calor de sua cama para trás. O gesto foi responsável por deixá-la nervosa de imediato, mas antes que pudesse colocá-la de volta no berço, pôde sentir os braços de Edgar contornando sua cintura até se encaixarem debaixo dos seus.

Habilmente, o Duque indicou que ela deveria segurar a cabeça da recém-nascida com uma das mãos, inclinando seu corpo para que ela ficasse ligeiramente elevada e com as costas bem amparadas. À princípio, Sarah se sentiu como uma marionete que obedecia aos comandos de seu condutor, apenas imitando seus movimentos. No entanto, ao vê-la aninhar-se mais contra o seu corpo, tomando uma de suas madeixas castanhas entre os minúsculos dedos antes de tornar a dormir foi o suficiente para deixá-la sem palavras.

Sem que se desse conta, havia um sorriso bobo em seu rosto enquanto embalava o sono da filha. Pouco a pouco, as dúvidas e incertezas de antes se dissiparam como uma nuvem de fumaça. Devia àquilo ao seu consorte, não sendo capaz de imaginar como poderia recompensá-lo por tanta sabedoria e paciência consigo.

Mas o jovem Avelar, que continuava a segurá-la apenas por precaução, não estava preocupado com detalhes como aquele. Sentia-se orgulhoso não só de poder fazer parte daquela família, como por tê-la visto superar mais um obstáculo que à princípio lhes parecia intransponível. Depositando um beijo em seu ombro esquerdo, sabia que compartilhavam um sentimento em comum.

Nenhum deles se recordava de ter experimentado tamanha felicidade antes, restando-lhes apenas o desejo de que a sensação perdurasse por muito mais tempo.


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