The Queen's Path escrita por Diamond


Capítulo 50
Capítulo L - 24 de Abril de 1873


Notas iniciais do capítulo

Olá meus amores, tudo bom?
Quem diria que aquela que começou esse trabalho sem grandes pretensões fosse chegar ao Capítulo 50! A trama já está nos seus momentos finais e eu preciso confessar que já estou morrendo desses personagens que já me acompanham por tanto tempo. Foi um projeto maravilhoso e que me proporcionou um mundo de experiências boas. Gratidão é a palavra do dia ♥

Desejo a todos uma ótima leitura!



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Bastou alcançar o topo da extensa trilha de pedregulhos para que a jovem rainha se esquecesse completamente da dificuldade que tivera em chegar ali. Havia incredulidade estampada em sua face e seu olhar exibia um brilho de pura curiosidade. Semanas atrás, quando estivera naquele terreno pela primeira vez, Sarah admirou-se ao constatar que seu Secretário Real realmente conseguira encontrar um espaçoso pedaço de terra que fosse ligeiramente plano, tal como havia requisitado. No entanto, sua surpresa de antes não poderia ser comparada com a que sentia naquele momento.

As estacas de madeira que cercavam o local já não estavam mais lá. Da mesma forma, o agrupamento de caprinos que pastavam com um ar sossegado fora substituído por uma multidão de homens, que trabalhavam incessantemente na construção da Companhia de Fundição de Minérios. As primeiras instalações já tinham estavam prontas e todos se ocupavam em trabalhar no alicerce das edificações. Observar seu projeto abandonar as abstrações da mente e tomar forma diante de seus olhos era como um sonho se tornando realidade.

— Ainda há muito a ser feito, mas espero que este prelúdio seja de seu agrado — pontuou uma voz familiar, com uma nota de ansiedade fazendo-se presente. Os olhos da menina se voltaram para a figura do Lorde Banville, que esgueirava-se entre os trabalhadores para alcançá-la. — Diga-me, o que tem achado?

— A reconstrução do castelo me ensinou algumas coisas sobre o assunto, portanto, eu diria que está fazendo um excelente trabalho — Sarah comentou, dirigindo-lhe um sorriso entusiasmado que fora prontamente retribuído.

— Lhe asseguro que ficará ainda mais satisfeita quando terminarmos. — O semblante de Robert exibia todo o seu orgulho em poder fazer parte de um feito tão importante como aquele. Tinha mais algumas ponderações a respeito da obra que desejava compartilhar, mas sua fala fora bruscamente interrompida por um acesso de tosse, tão súbito e intenso que o obrigou a tornar o rosto para o lado oposto.

— Estou certa disso, mas receio que talvez esse fardo seja desgastante demais para alguém em suas condições — a jovem afirmou, contornando o rapaz que lhe dera as costas enquanto retirava um lenço de algodão de suas vestes. Empunhando-o com delicadeza, ela se ocupou em limpar a fina camada de poeira escura que se acumulara sobre sua pele enquanto ele buscava recuperar o próprio fôlego. — Percebo o quão empenhado está, mas odiaria transformar este ofício na causa de sua ruína.

— Todos os homens precisam de algum propósito que venha dar sentido às suas vidas pois, caso contrário, estarão mortos muito antes de deixarem este mundo para trás — Robert acrescentou, direcionando à sua companhia um olhar consternado. Estava habituado ao cuidado excessivo e às gentilezas de sua mãe e irmãs, mas receber tamanha atenção da rainha em pessoa o deixava ligeiramente desconcertado. — Acredite, não há nada que eu deseje fazer mais neste momento. Além disso, essas crises são mais recorrentes do que pode imaginar, de modo que já estou acostumado.

Aquelas palavras soaram pesadas e mórbidas aos ouvidos de Sarah, mas ela nada acrescentou na ocasião. Por mais que estimasse a companhia do distinto rapaz, seus encontros normalmente encerravam-se com aquele tom agridoce, causando-lhe uma dor que já era familiar, mas que pela primeira vez ela experimentava com tamanha antecipação.

O primogênito da Família Banville podia perceber o sofrimento de Sarah todas as vezes que mencionavam aquele assunto, indicando-lhe que ela deveria ter sofrido muito com as perdas de sua família. Tencionava dizer-lhe algo para aliviar seu semblante aflito, mas, no momento, nada lhe vinha em mente. Por sorte, ouviu seu nome ser chamado ao longe, no exato momento em que a figura de Phillip Chevalier surgiu em seu campo de visão, decerto para relembrá-la de seus próximos compromissos. Com um meneio respeitoso, ambos se afastaram vagarosamente, constrangidos demais para dizer qualquer coisa.

— Espero que não tenha se esquecido da visita à Catedral — pontuou o Secretário, logo que esteve próximo o suficiente para se fazer ouvir. Seu rosto exibia uma expressão mais séria e animosa que o habitual já havia alguns dias e tal fato não passou despercebido aos olhos de sua rainha. Ainda assim, ela optou por aguardar até que ele decidisse compartilhar seus pensamentos quando julgasse adequado. — O Arcebispo deseja mostrar-lhe os progressos que fez na ampliação da igreja com alguma urgência.

— O Arcebispo deseja pedir mais dinheiro para si sob o falso pretexto de ampliar as dependências do templo para receber mais fiéis — Sarah retrucou de imediato, sendo bem sucedida em conter um atrevido revirar de olhos, embora não tenha tido o mesmo êxito com o suspiro cansado que lhe escapou logo em seguida. — Estou farta de ouvir mentiras daqueles que apenas pretendem sugar as riquezas deste reino até a última gota.

Phillip esboçou um meio sorriso diante daquela confissão sincera. Aos poucos, Sarah vinha adquirindo um elevado nível de perspicácia em relação à Coroa e aos constantes abutres que a cercavam, o que apenas a tornava ainda mais admirável. Seus comentários afiados, por outro lado, pareciam ter uma influência direta do Secretário Real e tal constatação o fazia sentir-se contraditoriamente orgulhoso e envergonhado ao mesmo tempo.

Estendendo o braço em sua direção, o jovem Chevalier caminhou ao seu lado com cautela, auxiliando-a na descida dos pedregulhos irregularidades até o local onde a carruagem os aguardava. Havia uma enorme lista de tarefas a serem cumpridas, visitas que precisavam ser prestadas e eventos que exigiam a presença da rainha. Era uma rotina verdadeiramente intensa e, em seu íntimo, o rapaz sentia-se grato que assim fosse. Somente quando estava inteiramente focado no trabalho é que a imagem chorosa de Delia desaparecia por completo de sua mente.

Demorou algum tempo até que sua própria ira se apaziguasse e ele pudesse recobrar a razão. No entanto, já era tarde demais. Sua camponesa havia partido na companhia das três crianças, levando consigo uns poucos pertences e todo resquício de alegria que ele tivesse lembrança. Não houveram abraços protetores, palavras de conforto e muito menos a troca de carícias enamoradas. Ao invés disso, apenas acusações recheadas de mágoas, um diálogo precário e a certeza de que jamais se veriam novamente. O desgosto e o arrependimento logo o atingiram, mais novas sensações a serem adicionadas em sua lista de descobertas recentes, não que aquelas duas fossem necessariamente agradáveis ou prazerosas.

Já acomodados dentro do veículo oficial, Phillip observou a figura de sua companhia, que parecia compenetrada em apreciar a paisagem verde e cheia do frescor primaveril ao lado de fora. Ele reconhecia a íntima amizade entre os dois e esperava que o exercício de seus cargos não alterasse o comportamento pessoal da menina. Levou algum tempo até reunir coragem suficiente para externar seus pensamentos, não sendo capaz de disfarçar o tom receoso que se apossou de sua voz.

— Posso fazer-lhe uma pergunta? — A indagação lhe chamou a atenção, que ergueu uma sobrancelha enquanto lhe dirigia um olhar confuso. O rapaz não era dado a rodeios e quando desejava questionar algo, costumava fazê-lo de pronto. Assentindo, ela aguardou ansiosamente pelo que viria a seguir. — Por acaso já experimentou algum arrependimento que a fizesse desejar voltar no tempo, para que pudesse agir de modo diverso? Ou nossa distinta rainha não comete erros dessa dimensão?

O gracejo foi responsável por lhe arrancar uma tímida gargalhada, que logo foi controlada. Sem dúvidas, tratava-se de uma pergunta incomum e, partindo de uma pessoa tão autoconfiante quanto seu Secretário Real, apenas aumentou suas desconfianças. Phillip reassumiu o antigo cargo logo após seu retorno de Hallbridge e por mais que estivesse satisfeita em tê-lo ao seu lado novamente, seu semblante perdido evidenciava algo de errado em sua vida pessoal que ela desconhecia. Talvez agora estivesse prestes a saber um pouco mais das razões que justificavam seu abatimento repentino.

— Qual o sentido em especular sobre situações que não podem se concretizar? — ela devolveu com um sorriso resignado. A resposta vaga e imprecisa o fez contorcer o rosto numa expressão de desagrado. Não era a resposta que estava esperando e tampouco se daria satisfeito com ela.

— Não fuja de minha pergunta, esse tipo de postura sequer combina com você — o rapaz pontuou num tom de censura, mas logo recordou-se de que aquela não era a maneira correta de se reportar a ela. Buscando acalmar os próprios ânimos, ele respirou profundamente algumas vezes, prosseguindo com uma entonação mais suave: — Diga-me a verdade, eu gostaria de ouvi-la.

Desta vez, sua voz denotava uma espécie de melancolia que a fez ponderar por alguns instantes, recapitulando em sua mente algumas de suas mais importantes decisões e feitos nos últimos meses. Arrepender-se estava intimamente atrelado à existência humana e não seria ela a exceção àquela máxima, mas a ideia de poder reverter tais situações lhe soava incômoda.

O quão diferente as coisas teriam sido se tivesse fugido com Elliot quando tivera a chance? Qual seria a atual situação de Odarin caso tivesse rejeitado o casamento com Edgar? Teria sido capaz de preservar a vida de Beatrice se estivesse mais atenta ao sofrimento de sua própria família ao invés de ater-se somente aos seus próprios problemas? Não raras foram as vezes em que sua consciência a atormentou com aquelas perguntas em seus momentos íntimos de reflexão. No entanto, retornar a elas agora com um novo olhar, mais ponderado e amadurecido, era como dialogar com uma versão mais jovem de si mesma.

— Como qualquer outra pessoa, tenho sim minha cota de arrependimentos pessoais. Entretanto, eu cometeria os mesmos erros novamente se me fosse dada a oportunidade de reescrever a história.

— Qual o sentido disso? — Phillip retrucou de imediato, tomado por um misto de curiosidade e surpresa.

Seus últimos dias foram preenchidos por um enorme peso, que carregava desde sua discussão com Delia. Não podia evitar o ressentimento de ser preterido novamente, da mesma maneira como sua família o havia tratado durante toda a vida. Permitiu que ela visse seu lado mais vulnerável e lhe ofereceu toda a sua dedicação, mas nada disso foi o suficiente para conquistar sua confiança. Por alguma razão que não sabia precisar, sentia-se traído e, ainda assim, desejava não ter se excedido tanto antes de se reportar a ela. Perder o controle era definitivamente uma das sensações que mais abominava, por fazê-lo se sentir pequeno e indefeso demais para reagir de modo diverso.

— Veja, é realmente incômodo constatar que somos repletos de imperfeições e estamos sujeitos a todo tipo de falhas. No entanto, não me parece certo renegar todas essas escolhas em função de uma vida menos atribulada. — Tais palavras foram proferidas com um ar confiante e uma entonação elegante, que cada dia se fazia mais presente nas falas da jovem rainha. Seu discurso fez seu Secretário piscar algumas vezes, ouvindo-a com ainda mais atenção e admiração. — Somos frutos de nossas escolhas, sejam elas boas ou ruins. Foram meus erros, muito mais do que meus acertos, que me guiaram até aqui. Reverter isso seria como negar a pessoa que sou hoje.

Por um momento, cogitou que Sarah estivesse tentando consolá-lo pela maneira inadequada como havia se reportado a camponesa ruiva, mas logo lhe ocorreu que a menina nada sabia sobre o incidente ou da situação que o antecedeu. Tal constatação serviu para conferir um tom de honestidade ainda maior a sua resposta, deixando-o pensativo.

Apesar de sua conduta questionável, havia de reconhecer que todos os caminhos levavam a um mesmo fim, afinal de contas, suas personalidades além de demasiadamente distintas também eram conflitantes. Insistir naquela união improvável seria como adquirir um imóvel em ruínas; tudo viria abaixo quando estivesse diante da menor das perturbações. Permanecerem juntos significava abrir mão de algo que lhes era demasiadamente importante e nenhum dos dois parecia realmente disposto a tamanha renúncia. “Como ela bem pontuou, de nada adianta reconsiderar aquilo que já está feito. Tudo que me resta é tirar alguma lição disto tudo, para que não venha a cometer as mesmas imprudências no futuro”, concluiu o rapaz consigo mesmo.

Seu olhar pensativo repousou sobre a jovem rainha novamente, que o observava com paciência e amabilidade em seu olhar. Sarah tivera a sorte de ter encontrado alguém que fosse capaz de tolerar suas falhas e suportar os seus erros. O mesmo poderia ser dito de Edgar, que encontrara na menina um porto seguro para ampará-lo em suas crises. Ainda que não tivesse tido a mesma felicidade, não podia deixar de sentir-se contente por ela.

— Confesso não estar esperando por uma resposta dessa dimensão — ele comentou após uma longa reflexão. Uma tímida risada escapou por seus lábios, sendo necessários alguns instantes até que recuperasse a seriedade de antes. — Definitivamente, você se tornou uma das mais excepcionais damas em nosso meio.

— Acha mesmo isso? — Ela retrucou, num tom ligeiramente vaidoso, agraciando-o com um sorriso amável. Mesmo que não tivesse sido específico em sua confissão, já podia perceber em seu semblante alguma melhora, o que servia para amenizar suas preocupações.

— Evidente que sim — ele pontuou, de modo bastante confiante, tal como lhe era característico. — Aquele que houver de discordar simplesmente não passará de um parvo.



— Por céus, Anya, que diabos está fazendo? — O questionamento estupefato ecoou sob a voz imperiosa de Oscar, que caminhava apressadamente na direção de sua filha. Quando esteve próximo o suficiente, seu primeiro gesto foi tomar de suas mãos um caixote de madeira com as ferramentas que havia encomendado na cidade vizinha. — Esta caixa pesa tanto quanto um bode pronto para o abate, você não deveria transportá-la para lugar algum.

— Eu apenas almejava guardá-la no local correto — ela retrucou de imediato, enquanto encolhia os ombros diante da reprimenda. Deveria ser a terceira vez que tentava ocupar-se com algo, mas todas as suas tentativas foram interrompidas por empregados que prontamente a substituíram nos trabalhos que buscava executar. Os anos vividos em Odarin a acostumaram a trabalhar desde o alvorecer até tarde da noite, de modo que ver-se ociosa a incomodava mais do que gostaria de admitir. — Estou apenas tentando ser útil, que mal há nisso?

— Não queríamos que voltasse para tratá-la como escrava ou nada parecido — o comerciante rebateu, marchando na direção do armazém onde poderia empilhar aquela mercadoria sobre outras de tamanho semelhante. — Temos mãos o suficiente à nossa disposição para fazer o trabalho pesado, não há necessidade alguma de perturbá-la com isso.

— Preciso me ocupar com alguma coisa, ou acabarei enlouquecendo — Anya retorquiu com um ar de indignação, enquanto cruzava os braços e exibia uma expressão emburrada. — Caso não saiba, já estou bastante habituada ao trabalho pesado, não há com o que se preocupar.

O comentário fez com que uma expressão dolorida cortasse o semblante do burguês e a jovem logo se arrependeu do que havia dito. Por alguma razão que desconhecia, seus pais se sentiam pessoalmente culpados por tudo que lhe acontecera, como se não a tivessem protegido o suficiente. Como resultado, agora ela se via tolhida em todas as suas pretensões e a morosidade fazia com que seus dias parecerem intermináveis. Seus protestos, por outro lado, quase nunca eram realmente enfáticos, pois o receio de magoá-los era maior que tudo.

— Imagino que tenha tido de enfrentar todo tipo de dificuldades no tempo em que esteve sozinha. No entanto, posso lhe garantir esses dias chegaram ao fim — ele pontuou, sua voz denotando que aquela conversa estava encerrada.

Resignada, Anya se limitou a acompanhá-lo em silêncio durante sua inspeção pelos arredores da extensa propriedade. Havia um enorme número de camponeses empenhados em seus afazeres diários e todos erguiam os chapéus ou acenavam em sua direção, numa demonstração de respeito ao senhor daquelas terras.

Ao longe, avançando às pressas pela estrada de terra, o mais velho dos três órfãos surgiu correndo enquanto segurava o quepe olivado para que o vento não o levasse embora. Invadindo a campina esverdeada, não tardou até que parasse a poucos passos do comerciante, completamente sem fôlego. Respirava ruidosamente e tinha as frontes molhadas de suor, ainda se habituando ao clima litorâneo de Hallbridge.

— O que traz para mim desta vez, Dimitri? — questionou de pronto, ainda que soubesse que o menino precisaria de mais alguns segundos para se recompor.

— O Capitão Nicolai Lamarche deseja vê-lo ainda hoje, senhor — o garoto anunciou, adotando uma postura ereta e mantinha queixo erguido, como se aquele comportamento pudesse dignificá-lo de alguma forma. Tinha esperança de que gestos como aquele o fariam assemelhar-se a figura respeitosa do próprio Oscar Lewinter, a quem passara a admirar de maneira incondicional desde que chegara em sua nova morada. — Seu navio partirá em alguns dias e, por isso, ele deseja fazer negócios o quanto antes. Precisa de muitos suprimentos para a viagem, foi o que me disse.

Oscar coçou a barba por uns instantes, pensativo. Não tinha tanta afinidade com o referido Capitão, se comparado ao demais integrantes da marinha a quem igualmente oferecia seus serviços, de modo que via ali uma excelente oportunidade para fazer negócios e ampliar sua clientela. Mais pedidos significava mais trabalho e, consequentemente, mais postos disponíveis em sua fazenda para atender a todos.

Observando com atenção o fazendeiro à sua frente, Dimitri desejou que houvesse algo em seu rosto além de manchas de poeira e suas bochechas lisas e coradas, pois o gesto empregado por ele parecia ser algo digno de admiração.

A amargura que sentiu ao abandonar a casa em que fora acolhido acabou passando despercebida dada a calorosa recepção que tiveram em Hallbridge. Seria eternamente grato que Delia — pois ainda não havia se habituado a chamá-la pelo nome verdadeiro — tivesse se esforçado tanto para cuidar deles, a despeito de todas as dificuldades que lhes foram impostas. No entanto, sua vida pregressa em nada se comparava com a que tinha agora, muito mais confortável e proveitosa do que antes.

— Muito bem — acrescentou o comerciante, depois de findo seu breve momento de reflexão. — Se sua partida está prevista para daqui a poucos dias, então devo vê-lo sem qualquer demora. Gostaria de me acompanhar durante o encontro?

Os olhos do menino brilharam diante do convite e tornando a segurar o quepe pela aba frontal, ele meneou enfaticamente, incapaz de proferir uma única palavra. O acessório tornou-se um item indispensável em sua vestimenta diária, tendo-o recebido das mãos do próprios Oscar, depois de constatar que o sol intenso incomodava demasiadamente o garoto, impedindo-o de abrir os olhos e enxergar com clareza. O gesto serviu para selar uma espécie de contrato mudo entre os dois, transformando-o no mensageiro pessoal do burguês.

Depois de receber um rápido beijo sobre a testa, Anya não pôde evitar um sorriso amável na direção dos dois enquanto os via se afastarem na direção do porto. Conseguia ver com clareza o que ele estava fazendo, pois o método de educação através do trabalho fora igualmente empregado consigo muitos anos antes. Nenhuma riqueza surgia do nada e para conquistar aquilo que se deseja é necessário arregaçar as mangas e a barra do vestido. Em seus momentos de dificuldade, quando supunha enfrentar uma batalha dura demais para si, era aquele ensinamento que a fazia continuar de pé, tentando sem nunca desistir.

Somente depois de ver seu pai montar no cavalo e trotar para longe, com uma fina nuvem de poeira erguendo-se por onde passava, foi que a jovem decidiu voltar para casa, onde horas vazias a aguardavam até o pôr do sol.

Adentrando pela porta dos fundos, seus pés se arrastaram até a larga mesa onde realizavam as refeições. Durante sua infância, Anya sempre julgara que o móvel era demasiadamente grande para uma família tão pequena quanto a sua. No entanto, agora que tinha os pequenos para darem uma nova vida àquele ambiente, seu tamanho era ideal para comportar a todos confortavelmente. “Talvez a mesa fosse apenas um sinal. Eles sempre estiveram destinados a vir para cá, preenchendo os dias de minha família com a alegria que eu lhes tirei”, ela concluiu com certa melancolia, enquanto ocupava um dos assentos livres.

Diante de si, havia uma cesta de batatas cobertas por um pano, apenas aguardando o retorno de Edeline do mercado para serem descascadas. Sem pensar duas vezes, a jovem esticou as mãos, puxando o recipiente para si e ocupando-se em adiantar os preparativos para o jantar. As crianças rapidamente se habituaram ao novo lar, ao passo que ela própria ainda não conseguia aceitar seu próprio retorno. Em outras circunstâncias, seu último dia em Odarin teria sido celebrado diante do prospecto de um futuro novo e melhor. No entanto, sua partida teve um gosto amargo e a sensação de algo inacabado lhe preenchia o peito.

Sem que se desse conta, ela flagrou a si mesma optando por trajetos mais longos durante suas caminhadas, para que pudesse cumprimentar o Senhor Morris em sua livraria ou despedir-se de Julie e Emma quando passasse pela casa da Família Chevalier. Para sua infelicidade, seus caminhos não tornaram a se cruzar com os de Phillip e não lhe restava outra alternativa senão aceitar que aquele breve e incomum envolvimento havia chegado ao fim.

Eles haviam se conhecido numa situação bastante peculiar e, de início, o relacionamento dos dois não inspirava boas lembranças. Ela não saberia precisar em que momento a sensação de aborrecimento e inconveniência se transformaram em zelo e estima de sua parte, mas tudo aconteceu de maneira tão natural que realmente não se incomodava com aqueles detalhes. Suas tentativas de recolher-se dentro de uma concha protetora logo restaram frustradas, pois o rapaz era capaz de decifrar cada uma de suas expressões e gestos com extrema facilidade, ainda que externar seus próprios anseios lhe parecesse um obstáculo quase intransponível.

O tom de voz presunçoso, o semblante costumeiramente impassível, sua maneira desconcertada de agir todas as vezes que a jovem se aproximava demais, Anya sentia saudades daqueles gestos ingênuos, ainda que autênticos. Sem que pudesse evitar, por vezes ela se perguntava se algum dia eles tornariam a se encontrar.

Não seja estúpida”, ralhou consigo mesma, depois de finalizar o trabalho com as batatas. “Phillip gosta de testar a si mesmo todos os dias e admira muito o trabalho de Sarah para deixá-la desamparada. Ele jamais abandonará seu cargo de Secretário Real e o melhor a fazer é aceitar isso de uma vez por todas”.

O pensamento fez com que o ambiente ao seu redor subitamente lhe parecesse estranho, hostil. Retornar para casa estava se mostrando uma tarefa mais difícil do que havia imaginado, pois de nada adiantava que seu corpo estivesse ali, se sua mente permanecia presa em sua antiga morada. Desvencilhar-se das dores do passado não seria fácil, mas, por sorte, ela sabia a quem poderia recorrer.

Com certa pressa, Anya se dirigiu até a pequenina biblioteca de sua casa, que servia muito mais de escritório para seu pai e quarto de costura para sua mãe. Alcançando uma pequena escrivaninha, logo encontrou os utensílios necessários para elaborar uma carta. “Eu só preciso tornar este lugar familiar e aconchegante novamente. A presença de um rosto amigo certamente irá ajudar neste processo”, ponderou enquanto rascunhava as primeiras frases de sua mensagem.



Empurrando para longe do prato os pedaços de carne que acompanhavam a mousseline de batatas, Sarah mantinha-se à mesa apenas por uma questão de cortesia, ciente de que assim que terminasse sua refeição, os pratos seriam imediatamente retirados, tivessem os demais terminado ou não. Com a lateral dos olhos, podia perceber que Edgar e Phillip não davam sinais de saciedade, saboreando o prato com o mesmo apetite que tinham ao início do jantar.

Tinha conferido à Maria, servente responsável pela cozinha, liberdade total para criar e apresentar os pratos que julgasse adequados. O sabor quase sempre estava do seu agrado e naquele dia não havia sido diferente. No entanto, a cada mínima garfada a jovem rainha sentia como se já tivesse comido o bastante por uma semana inteira, de modo que o alimento formava um bolo em sua garganta, difícil de engolir ou de ser degustado da forma como deveria.

— Assim como pediu, eu preparei o seu discurso para a reinauguração da Catedral de Odarin — pontuou o Duque, seus olhos ainda fixos no prato à sua frente. A informação surgiu de maneira casual e despretensiosa, mas logo um pensamento provocante levou um meio sorriso jocoso aos seus lábios, fazendo-o sentir-se obrigado a acrescentar: — Mesmo sabendo que você irá jogá-lo pela janela, optando por dizer a primeira coisa que lhe vier em mente, creio que irá gostar do resultado.

— Que acusação absurda! — Sarah retrucou de imediato, incapaz de conter uma risada que sucedeu sua fala falsamente indignada. — Eu jamais faria algo assim. Apenas adiciono um toque pessoal quando estou discursando, o que não significa que seu trabalho tenha sido inteiramente desperdiçado.

Imediatamente, Edgar lhe lançou um olhar cheio de significado e em instantes ambos tornaram a rir de maneira tímida. Ambos sabiam que tempos calmos e tranquilos como aquele costumavam anteceder momentos conturbados e tensos, de modo que permitiam-se ficar mais à vontade para aproveitar tudo aquilo que a vida tinha para oferecê-los. Atualmente, pairava sobre eles um ar de serenidade, que decididamente gostariam de manter inalterado o máximo possível.

Phillip se limitava em observar a cena em silêncio, não sendo capaz de compartilhar o bom humor do casal. Sentia que estava se tornando ainda mais azedo e, por vezes, era preciso policiar a si mesmo para não esboçar comentários atravessados em excesso. Vinha investindo todas as suas energias no trabalho diuturnamente. Entretanto, quando se recolhia em sua cama, os instantes antes de dormir eram preenchidos por uma sensação de infelicidade e frustração. Estava orgulhoso por estar participando de mudanças tão expressivas e positivas em Odarin, mas suas conquistas não poderiam ter um sabor mais amargo do que aquele.

O sorriso doce, as carícias que empregava nas costas de suas mãos, o ar reticente ou mesmo o aroma de canela que emanava de seu cabelo todas as vezes que a brisa soprava com um pouco mais de intensidade, todos aqueles aspectos da camponesa lhe faziam falta de tal maneira que nem mesmo ele sabia lidar com aquela sensação de vazio. “Pare de pensar asneiras, esqueça-a de uma vez”, ponderava consigo mesmo, entre uma garfada e outra. “Ela retornou para a casa de seus pais, pois é o lugar onde deseja estar. Afinal, nenhuma pessoa em sã consciência escolheria alguém tão intragável como eu”.

Os pensamentos depreciativos foram devidamente adubados com doses cavalares de remorso, germinando com extrema facilidade na mente do Secretário Real. Mesmo no auge da primavera, Odarin lhe parecia mais cinza e fria do que nunca, algo com o qual teria de se habituar novamente.

Sua linha de raciocínio teria seguido adiante por mais alguns minutos, mas o brusco arrastar de uma das cadeiras contra o assoalho de madeira projetou um ruído desagradável que espantou a todos os presentes. Os criados apressaram-se em recolher os pratos inacabados logo que atentaram para a figura altiva de Sarah, que havia se erguido num salto exagerado. Muito embora os rapazes não tivessem terminado sua refeição ainda, os dois ocuparam-se em dirigir olhares preocupados à jovem rainha, que mantinha a boca coberta com uma das mãos e os olhos fechados.

— Sarah, aconteceu alguma coisa? — pontuou Edgar com alguma cautela, dirigindo-lhe um olhar ansioso.

— Perdoe-me a interrupção inesperada, eu não estava me sentindo bem — ela respondeu, depois de descobrir a boca, respirando fundo algumas vezes. O leve desconforto de antes repentinamente se transformou numa forte náusea e por um instante ela achou que não fosse capaz de conter o mal estar. — Preciso de um pouco de ar fresco, certamente fará com que eu me sinta melhor.

Embora pequenina, a jovem rainha caminhava numa velocidade impressionante, não demorando mais que alguns segundos para cruzar o salão, rumando na direção de seu extenso jardim. Edgar ponderou se deveria acompanhá-la, mas logo concluiu que talvez ela desejasse ficar sozinha. Mantendo-se junto à mesa, pensativo, o jovem Avelar intimamente não só desejava que a caminhada realmente a fizesse se sentir melhor, como também que aquele repentino mal estar não fosse o prenúncio de algo pior.



Com as mãos apoiadas sobre a cintura, Sarah avançava sobre os ladrilhos que rodeavam sua morada, tal como fazia quando não passava de uma criança ingênua tentando escapar de suas lições. O ar puro encheu-lhe os pulmões, fazendo a sensação nauseante regredir o suficiente para se tornar tolerável, não conseguindo imaginar o que poderia tê-la afetado daquela maneira. “Talvez o ar carregado da construção, ou então o terrível hálito de cebola do Arcebispo, eu não seria capaz de mensurar qual dos dois fora mais desagradável”, cogitou enquanto se aproximava de uma muda de lavandas, permitindo que o seu aroma fresco espantasse os males que a incomodavam.

— Há algo que eu possa ajudá-la?

O tom pacífico de Jacques chamou-lhe a atenção e vê-lo fez com que um largo sorriso cruzasse o rosto da jovem rainha. Já havia algum tempo desde a última vez que o tinha visto, um fato que decididamente a incomodava. Depois das descobertas recentes, desejava que pudessem desfrutar de alguns momentos juntos, na tentativa de recuperar um pouco do tempo que fora perdido. Ela até mesmo ofereceu-lhe um cômodo no castelo para que pudessem ficar mais próximos, mas o jardineiro fora terminantemente contra aquela ideia. “Uma atitude precipitada como essa geraria comentários de todos os tipos e colocaria seu segredo em risco”, foi o que lhe disse na ocasião. Mesmo que tivesse cogitado as consequências daquele ato e já estivesse ciente daquilo que lhe fora dito, a pessoa em questão era alguém por quem estava disposta a enfrentar qualquer tipo de represália. No entanto, teve de concordar com ele que o melhor a fazer era permanecer da maneira como sempre estiveram.

— Não se incomode comigo, estou apenas desfrutando um pouco de meu jardim — ela respondeu com um tom ameno, ainda sorrindo na direção de seu pai. Olhando-o com atenção, podia perceber que alguns fios brancos despontavam de seu cabelo claro, fazendo-a desejar que as circunstâncias atuais lhe permitissem cuidar dele da maneira como merecia. “Terei de confiar esta incumbência a Elliot”, ela adicionou uma nota mental para si mesma, mais um assunto que tinha para tratar com o rapaz. — Não tenho tido tempo ou disposição para visitá-lo como gostaria, o que é quase uma heresia de minha parte, devo dizer.

— Este lugar estará sempre à sua espera, de braços abertos para recebê-la, não importa quanto tempo se passe — Jacques pontuou logo em seguida, havendo algo de sombrio em seu semblante que a menina não soube identificar de imediato. Ela flagrou ainda o exato momento em que ele cerrou os punhos, um gesto que em nada combinava com a sua personalidade pacífica. — Ouça, Sarah, eu lamento muito não poder ter sido mais presente na sua vida. Você merecia mais…

— Do que você está falando? — ela o interrompeu logo que compreendeu a intenção por trás daquelas palavras. Sua boca estava levemente retorcida num sorriso incrédulo, mal podendo acreditar naquilo que ouvia. — Você esteve presente em grande parte de minha infância, me contando histórias e ensinando-me coisas novas todos os dias. Retornou para o castelo quando mais precisei de sua ajuda e permaneceu aqui comigo mesmo depois dos conflitos que tive com Elliot. Por céus, Jacques, você foi o melhor pai que alguém poderia desejar e eu serei eternamente grata por cada uma dessas coisas. Apenas gostaria de ter descoberto tudo mais cedo, pois só agora vejo que me amou como nenhuma outra pessoa no mundo.

O jardineiro ficou sem fala por alguns instantes, buscando internalizar tudo aquilo que acabara de ouvir. Seu coração palpitava com duas vezes mais intensidade, deixando sem reação. Desde o falecimento de Katherine, as únicas palavras que estava habituado a ouvir eram as represálias da governanta.

— Evangeline amou você — ele mencionou após alguns instantes, sua voz soando distante. Algumas verdades eram incontestes e aquela em específico era uma que ninguém jamais poderia deixar de reconhecer. — À sua própria maneira, ela o fez com muita dedicação.

— Acredito que sim — a rainha respondeu em meio a uma tímida risada, contente por vez o rosto de Jacques tornando-se sereno novamente. — Eu devo muito a Evangeline. A vocês dois, na realidade.

Se lhe fosse dada a oportunidade, Sarah teria se atirado nos braços de seu pai, no intuito de envolvê-lo num apertado abraço. No entanto, estava ciente de que o gesto não seria bem recebido, pois ele sempre mostrava-se reticente diante de qualquer aproximação sua, como se cometesse uma grave infração. Mesmo impedida de aproximar-se em função dos costumes enraizados pelo tempo, ela sentia-se completa como nunca antes. Sua paixão pelas flores, assim como seu apreço pelo simples e aversão pelo luxo, todas as vezes em que se olhou no espelho e sentiu que algo ali não se encaixava… As peças daquele quebra-cabeças finalmente revelavam uma imagem acabada e não apenas fragmentos de uma menina em busca de respostas.

— Finalmente achei você! — A voz esganiçada de Evangeline fez-se presente, chamando a atenção dos dois. A jovem não pôde evitar de sentir-se como uma criança de dez anos de idade novamente, ao ver sua governanta aproximando-se com pressa e indignação. — Por céus, Sarah, está na hora de pôr um fim nesta situação em caráter definitivo. Estes guardas irão me levar a loucura se continuarem mais um dia aqui. Estão sempre entrando onde não devem, fazendo perguntas sobre assuntos que não lhes dizem respeito, atrevidos de uma maneira que não consigo suportar.

— Perdoe-me por isso, minha querida, imagino que acompanhar esses procedimentos tem sido uma tarefa muito desgastante para você — a menina devolveu num tom conciliador, na esperança de que aquilo pudesse acalmar os ânimos da antiga servente. —  No entanto, nada pode ser feito quanto a isso, ao menos enquanto não encontrarmos aquilo que procuramos.

— As buscas da Guarda Real já duram semanas e sua estadia irá se estender por muito mais sem que sejam capazes de localizar uma única moeda — a governanta retrucou, ainda enfurecida com o prospecto de ver sua morada sendo maculada daquela maneira. Só de pensar na quantidade de vezes em que devem ter tocado no quadro de Katherine sem a sua autorização chegava a lhe causar acessos de cólera. — Se Allen realmente utilizou este castelo como esconderijo – coisa que eu duvido muito e que não dispomos de qualquer evidência –, então este é um mistério que jamais poderá ser solucionado por homens estúpidos como os que aqui estão agora.

— Que estão procurando? — Jacques questionou após presenciar o diálogo das duas. Não desejava intrometer-se em questões oficiais de que não dispunha qualquer conhecimento, mas se algo fora perdido nas dependências do castelo, então ele gostaria de prontificar-se a ajudá-las nas buscas.

— Nada que possa lhe interessar!

— Dinheiro — Sarah interveio, colocando-se entre os dois antes que a governanta se rendesse ao hábito de dirigir palavras grosseiras ao jardineiro, um comportamento reprovável e que ela jamais fora capaz de compreender. — Descobrimos recentemente que altas quantias foram pagas por Greenwall a título de suborno. Negócios fraudulentos que datam do governo de Allen. Se não encontrarmos estas verbas o quanto antes, Odarin terá sérios problemas para enfrentar num futuro próximo.

A informação não foi capaz de alterar o semblante calmo de Jacques, mas foi bem sucedida em elevar o nível de irritação de Evangeline, que parecia estupefata em ver a jovem rainha revelando segredos de Estado a um servente sem qualquer instrução.

— A situação pode não ser favorável mas lhe asseguro que não estamos tão desesperadas ao ponto de…

— Evangeline, por favor! — O tom autoritário da menina foi responsável por silenciar sua governanta, fazendo-a engolir as próprias palavras, mesmo que seu semblante continuasse a demonstrar a mesma indignação de antes. Após um suspiro cansado, Sarah tornou a dirigir o olhar ao mais antigo servente daquele castelo. — Nunca percebeu ou presenciou qualquer movimentação suspeita que possa nos dar alguma direção? À essa altura, qualquer indício pode nos ajudar.

O questionamento, proferido num tom ameno, fez com que Jacques direcionasse o olhar para a extensão de seu jardim, como se investigasse os mais obscuros recantos de sua memória, em busca de uma resposta que pudesse soar satisfatória. Desde a morte de Katherine, o mundo perdera uma parte considerável de seu brilho e ele se via constantemente preso ao passado, uma vez que o presente lhe parecia irrelevante na maior parte do tempo. Ainda assim, um ou outro fato eram capazes de chamar sua atenção e logo recordou-se de algo que pudesse ser útil a elas.

— Um pequeno grupo com trajes do Exército costuma aparecer aqui de tempos em tempos, muito depois do pôr do sol — ele mencionou de maneira vaga, esforçando-se em relembrar mais detalhes que talvez fossem importantes demais para não serem mencionados. — Embora eu não possa precisar o intervalo exato, eles vinham com uma expressiva frequência, carregando caixotes pesados que sempre eram levados até a entrada do Salão Externo.

A revelação fez com que Sarah e Evangeline trocassem olhares ansiosos. A governanta tinha conhecimento de toda a rotina da casa, mas não sabia de nenhum carregamento que chegasse depois do entardecer. A jovem rainha sentia que aquela poderia ser a informação que faltava para solucionar o conflito de uma vez por todas.

— Se importa de nos mostrar onde fica?



O Salão Externo tratava-se de um anexo ao castelo, criado pouco tempo depois da construção original, tendo sido concebido com uma boa intenção, apesar da ingenuidade do arquiteto responsável por projetá-lo. Inspirado num suntuoso templo, o edifício contava com um teto alto, colunas largas e talhadas desde a base até o pico, assim como aberturas no formato de arabescos que permitiam a entrada de luz.

Visualmente, era uma obra admirável e detentora de uma beleza ímpar, mas que tinha pouca utilidade dada a falta de funcionalidade. O local era demasiadamente escuro e a abertura dos arabescos não era suficiente para iluminar o ambiente, mas permitia a entrada de correntes de ar que apagavam as velas a todo momento, tornando-se impossível de utilizá-lo. O espaço requeria um conjunto de fatores favoráveis para atingir o seu propósito e, não inclinados a contarem com a sorte, os monarcas passaram a utilizar tão somente o Salão Interno, deixando aquele outro monumento como obra meramente decorativa em sua propriedade.

Mesmo que o dia estivesse claro, algumas lanternas a óleo se fizeram necessárias para que tivessem uma visibilidade razoável dentro do local. Integrantes da Guarda Real apalpavam paredes, examinam o chão, tudo que fosse necessário para acabar com aquela busca infindável e, consequentemente, acabar com o martírio que era trabalhar com a governanta sempre presa aos seus calcanhares.

— Esse é o local onde descarregavam os caixotes? — A jovem rainha questionou com um ar preocupado, recebendo um mudo menear do jardineiro em resposta. — Eu não compreendi quando disse também que tratava-se de um grupo com trajes do Exército. Qual a razão para tamanha especificidade?

— Porque não se tratavam de oficiais do Exército de verdade, ou ao menos não agiam como se fossem — Jacques retrucou, mantendo os braços cruzados, sentindo-se ligeiramente desconfortável por invadir um ambiente ostensivo como aquele. Além disso, podia sentir os olhares do Duque de Odarin e do Secretário Real sobre suas costas, julgando-o e tentando avaliar se suas palavras mereciam algum crédito.

— Como pode ter tanta certeza?

— Eu saberia se fossem — ele pontuou, com um ar de mistério. No entanto, julgou que a menina merecia uma justificativa um pouco mais elaborada do que aquela, de modo não tardou em acrescentar: — Afinal de contas, eu já fui um Oficial do Exército.

Aquelas palavras surpreenderam a jovem de tal maneira que passou alguns instantes boquiaberta, tentando digerir aquela nova informação. Depois de anos presenciando a aura pacífica que emanava dele, bem como vendo-o sempre rodeado de flores, era demasiadamente difícil imaginá-lo trajando um uniforme e trazendo uma arma apoiada sobre um dos ombros.

— Não creio que haja algo aqui, Majestade — pontuou um dos guardas, depois de explorar toda a extensão do salão. — Vasculhamos todo o local e não identificamos nada suspeito.

— Como ousa dizer que vasculharam tudo quando nem mesmo verificaram o primeiro andar? — retrucou Evangeline, com aborrecimento e impaciência.

— É uma escadaria meramente decorativa, senhora — o Oficial pontuou com paciência, ciente de que não deveria ceder à tentação de responder a governanta à altura enquanto estivesse na presença da rainha. — Como pode perceber, a escada não leva a lugar algum.

A única coisa meramente decorativa que temos aqui é o seu cérebro”. Sem poder externar seus pensamentos, certa de nada adiantaria tentar mostrar aos guardas o que lhe parecia simplesmente óbvio, Evangeline ocupou-se em subir os degraus forrados por um manto vermelho até alcançar o topo, onde uma parede de madeira tinha uma centena de ilustrações talhadas em profundidade. Tateando a superfície empoeirada, seus dedos longos e ossudos logo encontraram um espaço livre entre duas gravuras, bem no local onde estava disposta a maçaneta da porta oculta.

— Fica aqui a porta para a antessala de descanso — ela proferiu enquanto dirigia um olhar inquisidor ao responsável pelas buscas no castelo. — Tratando-se de uma regalia exclusiva dos monarcas e seus consortes, sua porta permanece escondida entre os desenhos no tablado de madeira.

— Mas está trancada — pontuou um dos guardas de patente inferior, que havia escutado com clareza ao mecanismo que oferecia resistência a pretensão da governanta de ingresso no cômodo secreto.

Sarah observava a tudo com atenção e diante do comentário simplório, tinha a certeza de que Evangeline se permitia revirar os olhos graças as sombras que encobriam seu rosto. Tudo estava acontecendo rápido demais para que ela pudesse assimilar com clareza e as náuseas agora retornavam com a mesma intensidade de antes. Estava longe de ser um bom momento para sentir-se indisposta, de modo que ela teria que vestir sua máscara de neutralidade se quisesse ir até o fim.

— Não me importa se a entrada está obstruída ou não — ela mencionou com um ar autoritário, esforçando-se para não deixar sua voz transparecer o incômodo que sentia. — Deem um jeito de abri-la, mesmo que para isso seja necessário destruir o tablado.

— Sarah, espere um momento. — Os olhos da jovem encontraram o semblante incerto de Edgar, que até então não havia proferido uma única palavra desde que fora convocado para realizar aquela inspeção. Podia perceber que havia um quê de ansiedade em sua expressão. Num sussurro, ele externou suas preocupações de modo que somente ela pudesse ouvi-lo. — Tem certeza que deseja fazer isso? Estamos falando de uma construção secular e a única coisa que tem em seu favor é o depoimento de um criado.

— Não me resta outra escolha — ela retrucou em bom tom, chamando a atenção de todos os presentes. Não pretendia impor sua vontade sem considerar a opinião de seu consorte, mas precisava ser firme naquilo que havia decidido. Apesar de todo o em seu empenho como Duque de Odarin, não era sobre ele que a população depositava toda esperança e expectativa. — Não sabemos quanto tempo ainda nos resta para solucionar esta situação e eu jamais permitirei que meu reino seja objeto de transações comerciais como uma mercadoria ordinária e sem valor. Precisamos fazer algo para impedir que este plano odioso se concretize, mas para isso preciso que confie em mim.

— Eu concordo com esta decisão. Não podemos aguardar de braços cruzados e, a essa altura, medidas severas como essa se fazem necessárias — A voz de Phillip fez-se presente e algo em seu semblante sério transmitia a Edgar a confiança de que ele precisava.

— Eu compreendo — ele concordou, dirigindo um olhar de cumplicidade ao Secretário Real. Depois de seu pedido formal de desculpas, foi impossível para ele não reconhecer o talento nato do jovem Chevalier para exercer aquele ofício, além de ser o único capaz de frear as decisões prematuras de Sarah com sua fala firme e sedimentada nos mais variados argumentos.

Superado aquele último impasse, o pequeno grupo assistiu a meia dúzia de tentativas frustradas dos guardas em tentar destrancar a porta sem que fosse necessário arruinar o trabalho do artista que havia projetado aquele inteligente tablado de madeira que escondia uma passagem para uma antessala. Não era possível forçar a entrada, pois a porta se abria para fora e a madeira era resistente demais para que eles a superassem com as mãos vazias.

Sarah podia sentir seu estômago dar voltas e a ansiedade parecia tornar a situação ainda mais desesperadora. Tudo que queria era ver aquele problema chegar ao fim, pois só então poderia se concentrar nas futuras melhorias que pretendia desenvolver em seu reino. Quando sentia que já não podia mais esperar, deu ordem para que os guardas buscassem os utensílios necessários para que a porta fosse destruída e a passagem liberada. ”É uma pena perder um trabalho arquitetônico com este grau de perfeição, mas já não posso esperar mais”.

Ao som estrondoso da primeira marretada se chocando contra o tablado de madeira, a jovem rainha assustou-se e imediatamente suas mãos buscaram o braço esquerdo de Edgar, segurando-o com força. O gesto não passou despercebido aos olhos de Jacques, que sentiu um certo alívio em constatar que a menina tinha tido a felicidade de encontrar alguém à sua altura.

Pouco a pouco, a madeira foi cedendo as repetidas investidas nos guardas, liberando a entrada para a antessala de descanso. Erguendo as lâmpadas de óleo, o interior do cômodo revelou dezenas de caixotes de madeira empilhados. Batendo na lateral de um deles, era possível ouvir o som das moedas tilintando umas contra as outras.

Pela primeira vez em semanas, Phillip exibia um sorriso ambicioso, esquecendo-se momentaneamente de suas próprias frustrações, sendo preenchido pelo sentimento de euforia. Ele estava certo e estava ali a prova material que precisava para mostrar que ele não estava louco ou nada do gênero. Era impossível negar, amava sentir-se parte de tudo aquilo, de estar trabalhando para transformar Odarin em algo que ela jamais deveria ter deixado de ser: grande.

Sarah, por outro lado, não tinha certeza de como reagir a partir de agora. Desarmar aquele plano não seria algo simples, mas ela precisava ir até o fim, pelo bem de seu povo. Estava tão compenetrada nas ações da Guarda Real que sequer atentou para os dois serventes mais antigos do castelo, que estava a poucos passos atrás de si.

— Seu jardineiro tonto, por que nunca mencionou nada sobre isso antes? — Evangeline sibilou entre os dentes, incrédula de que aquele segredo tivesse permanecido escondido por tanto tempo e bem debaixo de seus narizes.

Observando os baús recheados de moedas de ouro, o jardineiro mantinha seu semblante inalterado. Dinheiro nunca fora algo capaz de encher-lhe os olhos e desde que tivesse o suficiente para levar uma vida digna, então ele estaria satisfeito. A pergunta da governanta era um tanto interessante e meia dúzia de possíveis respostas percorreram sua mente, enquanto um meio sorriso irônico cruzou os seus lábios. Ora, não havia sido ela a ordenar que ele se abstivesse dos assuntos da Coroa?

— Nunca me perguntaram nada.


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