The Queen's Path escrita por Diamond


Capítulo 49
Capítulo XLIX - 11 de Março de 1873




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Murmurando uma cantiga de maneira distraída, Edeline observava os primeiros raios de sol iluminarem o rosto de Anya. As manchas ligeiramente arroxeadas debaixo de seus olhos, os ombros tensos e as mãos calejadas, nenhum daqueles detalhes havia passado despercebido aos olhos atentos da senhora Lewinter. “Essas são apenas as marcas que consigo ver”, pensava consigo mesma, enquanto afagava-lhe os cabelos claros. “Certamente existem mais cicatrizes em sua alma e em seu coração que ela jamais partilhará comigo”, concluiu enquanto interrompia a carícia para beijar-lhe o topo da cabeça.

Aquela havia sido sua melhor noite de sono nos últimos anos. Não foram poucas as vezes em que despertou no meio da madrugada, sempre com as frontes suadas e o coração aflito. Em todas elas, buscava algum conforto no quarto de sua menina, onde tornava a adormecer abraçada a uma das bonecas de pano que um dia lhe pertenceram.

Por sorte, seus momentos de inquietude haviam chegado ao fim. Somente depois de preparar tudo para seus hóspedes foi que pôde dedicar sua atenção à filha antes desaparecida. O breve relato de suas motivações foi interrompido diversas vezes por lágrimas cheias de remorso e súplicas de perdão que pareciam infindáveis. Edeline se mostrou atenta à sua narrativa apenas por sentir que Anya tinha a necessidade de ser ouvida, muito embora nada daquilo lhe importasse mais. Sua menina estava de volta e isso valia mais que qualquer justificação que ela pudesse elaborar.

— Era durante as noites frias que eu mais sentia falta de vocês. Nossos momentos juntos na sala, sentados bem próximos da lareira, você me ensinando a bordar lenços e a pregar botões, enquanto papai verificava quais entregas estavam agendadas para o dia seguinte. Lembro-me de vê-lo nos dirigindo aqueles olhares cheios de ternura quando achava que estávamos distraídas — a jovem pontuou com um ar saudoso, recordando-se de um tempo em sua vida em que fora plenamente feliz ao lado de sua família. — Diga-me, onde ele está?

— Viajando a negócios, como de costume — a senhora respondeu, tomando uma madeixa loira entre seus dedos. — Depois de seu desaparecimento, Oscar tornou-se ainda mais sério e taciturno do que antes. Dedicava mais tempo aos cavalos e touros que qualquer outra coisa. Acredito que assim o fizesse para não ter de voltar para casa e encarar seu assento vazio na mesa.

— Vejo que causei mais problemas do que havia previsto… — Anya comentou de maneira sussurrada, com uma nota de culpa presente em sua voz. A assertiva era dirigida a si mesma e tinha a impressão de que jamais poderia se perdoar por todo o sofrimento causado àqueles que lhe proporcionaram apenas o melhor dessa vida. — Sempre achei que o casamento de vocês fosse algo inabalável. Me consolava pensar que permaneceriam cuidando um do outro independentemente da minha presença aqui.

— Nenhum relacionamento é inabalável, estamos todos sujeitos a erros e a momentos de crise — Edeline pontuou em meio a um sorriso tenro, no intuito de aliviar sua menina do remorso. Ao que lhe parecia, seria muito difícil fazê-la esquecer de todas aquelas sensações e pensamentos depreciativos. — Mas Oscar sempre cumpriu com suas promessas e compromissos. Buscava externar uma imagem firme e segura para que eu não me preocupasse ainda mais, muito embora estivesse sofrendo em igual intensidade.

A fala de sua mãe fez com que permanecesse silente por alguns instante, ponderando as palavras que havia acabado de ouvir. Seu pai nunca fora uma pessoa exatamente sociável ou dada a gracejos. Por outro lado, era detentor de uma compreensão e bondade que se dirigia não só aos seus afetos, mas também às figuras desconhecidas a quem pudesse ser útil. Muitas vezes pudera presenciar suas terras serem temporariamente cedidas a outras famílias, que haviam perdido tudo para seus credores ou que simplesmente jamais tiveram  nada. Sob a proteção da Família Lewinter, trabalham arduamente até que pudessem seguir seus próprios caminhos sozinhos.

Ela já tivera a oportunidade de estar dentro dos braços de Edgar, Marco e Phillip. Todos eles haviam marcado diferentes momentos de sua vida e lhe conferido sensações únicas. No entanto, nenhum poderia lhe conferir a proteção que somente seu pai lhe proporcionava.

— Eu me pergunto se ele será capaz de me perdoar — sussurrou enquanto tornava a se aninhar no colo de sua mãe, permitindo-se ser mimada enquanto assistia o espetáculo que era o nascer do sol alaranjado sobre as terras de Hallbridge.



Sarah não tinha ideia de que horas eram quando finalmente despertou de seu sono pesado. Entretanto, a julgar pela posição em que o sol se encontrava no céu, poderia afirmar que há muito havia ultrapassado o horário que deveria ter se levantado.

Em meio a piscadas longas e sonolentas, atentou-se ao fato de que vestia a camisa branca utilizada por seu consorte no dia anterior. A vestimenta poderia abarcar duas de si com facilidade e tal constatação levou um sorriso bobo aos seus lábios. A situação – que era de uma simplicidade ímpar – certamente não poderia ter sido experienciada dentro de seu castelo, tornando aquela memória ainda mais preciosa e preenchendo-lhe com a certeza de que Edgar sempre estaria ao seu lado.

— Você me parece contente — comentou o jovem Avelar, que adentrava no quarto com o cabelo úmido e uma toalha repousada sobre os ombros. Um rápido olhar em sua direção foi o bastante para constatar o quão revigorado estava depois de ver-se livre do enorme peso que carregava em suas costas e sua consciência. — Alguma razão especial?

— Estou apenas aliviada de que tudo tenha terminado de maneira positiva — Sarah pontuou, dirigindo-lhe um sorriso amável depois de receber um beijo em sua testa. Seus olhos acompanharam a figura de seu consorte, logo localizando uma bandeja com uma pequena variedade de frutas repousada sobre uma mesa de apoio. Levou alguns instantes até que ela digerisse a informação e se desse conta de um detalhe importante. — Espere um pouco, a senhora Lewinter esteve aqui?

Sua voz alarmada e a maneira como puxou os lençóis com certa urgência até a altura de seu queixo arrancou uma gargalhada de Edgar, que tomava em mãos dois dos frutos brilhantes, logo retornando para a cama, sentando-se ao lado da menina sobressaltada.

— Não, eu mesmo desci para buscar alguma coisa para nós como desjejum. Pode parecer um tanto medíocre se comparado ao banquete que temos no castelo, mas acredito que irá gostar — ele mencionou enquanto lhe oferecia um pêssego alaranjado. — Bom apetite.

— Mas esse é o melhor pêssego que já comi na vida! – Exclamou após uma mordida insegura, apenas para ser surpreendida com seu néctar adocicado. Por um instante, assemelhava-se a uma criança que acabava de ser agraciada com uma guloseima inédita, mas muito saborosa. — É muito diferente daquele que nos servem.

— O tempo frio e a ausência de sol não favorecem a plantação de frutas como essa. Certamente muito daquilo que se encontra em nossa mesa sequer é conhecido por boa parte da população — o jovem Avelar afirmou, enquanto degustava de uma maçã. — As montanhas e as grutas de Odarin propiciam a exploração de minérios, enquanto aqui em Hallbridge não nos faltam terras férteis e colheitas fartas.

As palavras de seu consorte preencheram sua imaginação, fazendo com que se recolhesse em silêncio por alguns instantes, de maneira pensativa. As frutas de seu castelo – que supunha ser as melhores de todo o reino – sequer poderiam ser comparadas àquelas plantadas de maneira amadora nos campos vastos de Hallbridge. Por outro lado, sabia que território carecia de produtos manufaturados, tendo sua economia sedimentada em insumos de ordem primária, como a agricultura, a pesca e a pecuária.

Pensar naqueles detalhes fazia com que se recordasse das antigas lições de Evangeline, bem como os demorados discursos de Phillip sobre matrizes econômicas. Além disso, as minúcias enchiam-lhe a mente de ideias, todas demasiadamente prematuras, mas que valeriam a pena a reflexão.

Seus olhos percorreram o cômodo distraidamente e só então avistaram suas vestes do lado oposto, repousadas sobre uma poltrona acolchoada. A imagem fez com que seu semblante esmorecesse subitamente, chamando a atenção de Edgar para aquele fato.

— O que houve?

— Precisarei de ajuda para vestir meu corpete, mas acabo de me recordar que Evangeline não está aqui conosco — a menina pontuou, com um ar desanimado. Ainda que estivesse em constante processo de amadurecimento, aborrecia-lhe constatar que uma parte de si seria eternamente dependente dos cuidados de sua governanta.

— Sinto muito não poder ajudá-la. — Na ocasião, Sarah lhe dirigiu uma expressão curiosa, ainda que confusa, sem compreender a que ele se referia com sua fala. A reação honesta da menina levou um meio sorriso aos lábios do rapaz, que se prontificou em esclarecer-lhe: — Eu só sei como tirá-lo.

A resposta fez com que desviasse o olhar constrangido por um instante, enquanto o cômodo era inundado por sua risada infantil. Fazia algum tempo desde a última vez que Edgar havia lhe direcionado com um comentário provocativo. O gesto servia para lembrá-la de como apreciava sua companhia, bem como sua personalidade contagiante.

Antes que tivesse a chance de erguer o rosto novamente, ela pôde sentir o hálito quente de seu consorte sobre seu ombro desnudo, evidenciando uma perigosa aproximação. Seus olhos se fecharam involuntariamente, enquanto as mãos espalmadas subiam pelos braços de sua companhia, até alcançar seu pescoço e envolvê-lo num abraço apertado.

— Deveríamos retornar para Odarin o quanto antes, não concorda? — ela sussurrou, enquanto sentia os lábios de Edgar traçarem uma trilha por onde houvesse pele exposta, por vezes tomando rumos inusitados que ocasionavam leves espasmos.

— Acredite, o castelo não ruirá se passarmos dois dias afastados de nossas obrigações — ele retrucou de imediato, demonstrando certa impaciência. Tinha consciência de que momentos como aqueles, onde estavam longe de tudo e de todos, eram demasiadamente raros. Ninguém poderia censurá-lo porque querer aproveitar um pouco mais daquele sopro de liberdade.

— Mas nós precisamos descer, certamente estão aguardando para o desjejum — a menina mencionou entre uma risada nervosa. Os dedos do rapaz percorrendo suas costas e cintura por debaixo da camisa branca não só lhe causavam cócegas, como também a deixavam ansiosa com o prospecto do que estava por vir. Era perceptível como suas palavras baixas continham cada vez menos convicção em sua entonação.

— Eu voltei de lá a poucos minutos: não há ninguém à nossa espera — Edgar pontuou de maneira assertiva. Suas carícias tiveram de ser interrompidas por um instante, para que ela pudesse sentar-se em seu colo, numa posição que lhe favorecesse os movimentos sem magoar seu ombro. Dali, podia observar os olhos brilhantes de Sarah em sua direção, totalmente atentos a sua figura, fazendo com que fosse impossível não sentir-se o homem mais sortudo do mundo. — Assim como elas tem muito o que conversar, nós dois temos muito o que fazer.

Dita aquelas palavras, eles encerraram o diálogo entrecortado pelos toques e pelas respirações ofegantes, partindo da jovem a rainha a iniciativa de abaixar o rosto e agraciar seu consorte com um beijo úmido e doce, ao sabor daquilo que desfrutavam momentos atrás.



Cruzar os portões do castelo de Odarin intensificou o incômodo causado pela comida que revirava-se no estômago de Phillip. Retornar àquela morada, bem como caminhar mais uma vez pelos corredores exageradamente decorados, debaixo dos olhos curiosos de criados e da vigilância constante dos guardas consistiam atos rotineiros até bem pouco tempo, mas que agora aparentavam tão distantes de sua realidade.

Seu estado atual em nada se assemelhava ao dia de sua nomeação como Secretário Real. Deixar seus familiares e sua antiga morada para trás foi uma tarefa fácil e que foi executada sem qualquer dúvida ou remorso. Ao contrário, parecia ter sido tomado por um alívio libertador na ocasião, diferentemente da se sentia agora, nada além de um intruso indigno.

Sarah lhe dera o impulso necessário para abandonar aqueles que jamais reconheceram seu trabalho ou apoiaram seus objetivos, além de ter sido responsável por proporcionar realizações pessoais que antes existiam apenas em sua imaginação. Por essa razão, lhe soava como um terrível gesto de ingratidão dirigir-se até ali apenas para declinar a oferta de dias atrás.

A decisão lhe custara algumas noites de sono, cuja as horas foram gastas em ponderações que não o levavam a lugar algum. Depois de uma vida sedimentada em fatos e critérios objetivos que ele havia estabelecido para si, parecia arriscado e imprudente permitir que uma decisão daquela importância fosse tomada com base em sentimentos e meras impressões. Entretanto, mesmo privado de qualquer certeza, soava bem mais agradável simular um ar confiante para a jovem rainha que expôr suas próprias inseguranças. Era preciso muita coragem e força para desviar-se dos caminhos que a sociedade lhe impunha, mas depois de testemunhar a bravura com que Sarah o fazia todos os dias, ele sentia-se tentado a fazer o mesmo.

Em meio às suas reflexões, a imagem de Delia não se afastou de sua mente nem por um momento. Poucos dias se passaram desde a última vez que a vira e seu coração já se encontrava tomado por uma apreensão crescente. Lhe custava acreditar que estivesse se habituando com tanta facilidade aos seus abraços envolventes e palavras reconfortantes, fazendo-o sentir-se saudoso até mesmo quanto ao menor dos gestos. Se fechasse os olhos por um instante, poderia recordar-se com perfeição das carícias empregadas horas antes do baile, tão eficientes em afastar suas próprias frustrações, além de lhe proporcionar sensações que até então existiam tão somente nas páginas dos romances de folhetins.

Focar sua atenção no ambiente à sua volta foi a maneira que encontrou de afastar àquelas memórias de sua mente, apenas para constatar que todo o luxo e riqueza que o circundava jamais lhe agregaram qualquer coisa. Na atual conjuntura, os móveis caros, assim como os tapetes importados e as obras de arte de gosto duvidoso exalavam uma insignificância ainda maior. A simplicidade de sua camponesa era tão autêntica quanto encantadora, fazendo-o se sentir ansioso como uma criança para estar em sua presença novamente, para somente então explorar o mundo de possibilidades que a ruiva lhe propiciava.

— Eu não esperava vê-lo aqui hoje, Senhor Chevalier. — A voz séria e altiva da governanta de Sarah foi responsável por fazê-lo interromper sua caminhada, bem como trazê-lo de volta a realidade. — E também não fui informada de sua visita.

Havia uma nota de aborrecimento em presente não só em seu tom, mas também em seu semblante envelhecido. Sempre a vira como uma figura inabalável, cheia de energia para desempenhar com maestria suas funções, mas isso em nada obstava que o tempo lançasse suas marcas sobre as extremidades de seus olhos e sua boca. Enquanto meditava sobre aqueles detalhes, ela aguardava com certa impaciência uma explicação para aquela visita inesperada.

— Imagino que até mesmo os empregados já me vejam como parte da mobília — ele mencionou após alguns instantes, mas Evangeline não demonstrou achar graça de sua fala, continuando a observá-lo com o mesmo olhar severo que lhe era habitual. — Tem razão, não enviei qualquer comunicado, apenas vim porque por ter algumas questões para tratar com a nossa rainha.

— Sinto dizer-lhe que perdeu seu tempo, pois Sarah não se encontra no castelo no momento — a governanta pontuou, enquanto consultava seu relógio de bolso pela décima vez naquela manhã. Os ponteiros avançavam pouco a pouco e não receber quaisquer notícias de sua menina estava deixando-a apreensiva. “Ela garantiu que estaria de volta ao final do dia, não imagino o que pode ter acontecido para atrasar seu retorno desta forma”, pensava com preocupação, enquanto tornava a guardar o objeto em seu bolso novamente. — Creio que estará de volta a qualquer momento. Sinta-se à vontade para aguardá-la, se assim desejar.

— Sarah não costuma ausentar-se com frequência — Phillip pontuou, recordando-se de como a menina relutava em deixar a proteção daquelas paredes para trás. Enfrentar os nobres que compunham as Famílias Fundadoras dentro de sua própria morada já consistia num enorme desafio que não poderia fugir ou adiar. No entanto, olhar para a população que padecia pela miséria do alto de sua carruagem e de seus privilégios estava além daquilo que poderia suportar. Essa era a razão pela qual trabalhava de maneira tão intensa, declinando todo tipo de evento que pudesse distraí-la de seu objetivo. Ela se permitiria algum lazer no momento em que seu povo já não lhe dirigissem olhares famintos e inquisidores. — Se me permite a intromissão, onde ela está?

— Algum lugar em Hallbridge — Evangeline mencionou de maneira vaga, visivelmente indignada por não deter mais informações à sua disposição do que aquela. — A essa altura, suponho que já saiba tudo sobre o incidente envolvendo a antiga noiva de Edgar, eu suponho.

Saber não é o mesmo que aceitar”, pensou enquanto crispava os lábios de maneira involuntária. O jovem Chevalier buscava evitar quaisquer conjecturas que envolvessem o passado da camponesa, que havia contado com a participação expressiva do primogênito da Família Avelar, a quem ele nutrira desconfianças e lhe imputara crimes de maneira tão errônea. Muito embora estivesse sempre a criticar os modos de sua família, que julgava a todos indistintamente com base em impressões superficiais, ele mesmo praticava a mesma conduta digna de reprovação.

Além disso, via a si mesmo como um intelectual, mais preparado que qualquer outro para exercer as atividades que a jovem rainha lhe confiara. No entanto, sua personalidade carecia de alguns atributos que Edgar exibia com tanta naturalidade e que certamente eram muito mais desejáveis no trato diário. Pensar naquelas minúcias servia apenas para deixá-lo ainda mais hesitante na presença da ruiva, ignorando quais gesto e falas seriam capazes de agradá-la.

— Sarah não é capaz de dormir tranquilamente enquanto houver uma alma necessitada a quem ela possa ajudar de imediato — ela prosseguiu, sendo aquela constatação responsável por colocar no rosto da governanta com um tímido sorriso de admiração pela menina a quem vira crescer. — Em suas próprias palavras, ela não poderia permitir que Delia, ou como quer que esta moça se chame, continuasse distante de sua família quando já não havia motivos para fazê-lo. Com isso em mente, decidiu que iria levá-la de volta a casa de seus pais, que possuem uma grande propriedade destinada a criação de animais de tração.

Aquelas palavras, ditas de modo casual e despretensioso, causaram uma reação nervosa no filho do Barão Chevalier. Respirar parecia ter se tornado uma tarefa demasiadamente penosa, enquanto suas roupas aparentavam estar pequenas demais para serem usadas, causando-lhe a incômoda sensação de sufocamento.

Se a pretensão de Delia era retornar para o conforto e a proteção de seu antigo lar, então por que ele estava ali, prestes a desperdiçar sua carreira, atirando-a pela janela sem se importar com as consequências? Por que se dispor a cuidar dela, quando já haviam tantas pessoas empenhadas em fazê-lo, mas nenhuma atenta às necessidades dele próprio? “Por que ela não me disse uma única palavra sobre isto?”, pensava enquanto sua frustração se transformava numa espécie de raiva contida.

— Espere, onde está indo? — Evangeline indagou ao vê-lo afastar com pressa na direção da saída do castelo, sem dizer-lhe uma única palavra explicativa. Estava pronta para formular um novo questionamento, mas seus olhos atentos flagraram uma movimentação indevida, o que acabou por interromper sua pretensão inicial. — Parem, vocês dois! Que pensam que estão fazendo?

Os dois oficiais da Guarda Real deram um passo para trás, atendendo ao comando da governanta enquanto afastavam suas mãos do quadro de Katherine. Se eles estavam fartos de fazer buscas no castelo, o mesmo poderia ser dito de Evangeline, que já não suportava mais ter de vigiá-los dia e noite como um cão de guarda para que não fizessem nada que considerasse impróprio.

— Nosso superior ordenou que as buscas deveriam continuar até encontrar àquilo que nossa majestade deseja reaver — respondeu um deles de maneira mecânica.

— Um grupo de cães farejadores seriam mais úteis que todo o contingente da Guarda Real para esta tarefa — ela disparou com indignação, mal podendo acreditar que aquelas mãos ineficientes e desastradas poderiam ter maculado o quadro de sua amada rainha. Além disso, tinha certeza de que nenhum daqueles parvos jamais seria capaz de localizar o esconderijo cuidadosamente planejado pela mente doentia de Allen, de modo que aquelas diligências lhe pareciam como uma imensa perda de tempo. — Posso garantir-lhes que não há nada aqui que possa interessá-los. Prossigam com as buscas noutro lugar e não ousem tocar neste quadro novamente.

Com uma apressada reverência, os dois oficiais não necessitaram mais que alguns segundos para desaparecer de sua vista. Com um suspiro cansado, Evangeline aproximou-se da última lembrança de sua antiga senhora, acariciando a moldura como se o estivesse fazendo sobre a mão de Katherine. “Se anos atrás eu tivesse sido cuidadosa como agora, talvez você ainda estivesse aqui conosco” ela ponderou, enquanto uma única lágrima recheada de remorso escorria por sua face.



— Que quer dizer com “não pretende ficar”? — Sarah indagou com incredulidade, não sendo capaz de crer naquilo que ouvia. Suas mãos seguravam firmemente o encosto da poltrona disposta em seu quarto, enquanto Anya estava empenhada em puxar e amarrar as fitas de seu corpete. — Você sempre falou de seu país com tanto amor e carinho, como pode simplesmente decidir ir embora agora que finalmente sabem que está sã e salva?

— Você não compreende — a camponesa pontuou, finalizando seu trabalho com um último laço apertado no elegante vestido da jovem rainha. — Voltar para casa me aliviou de um terrível fardo, tanto que não sou capaz de mensurar a satisfação que é poder rever minha mãe. Por outro lado, as coisas não serão tão simples com meu pai. Para alguém que sempre achou que eu havia morrido em razão de algum ato criminoso, ele não será capaz de me aceitar novamente quando souber que agi por conta própria.

— Diga-me, o que mais poderia ter feito? — a menina retrucou, girando sobre os calcanhares para poder encará-la de frente com firmeza. — Estava sob ameaças, faria o que fosse necessário para protegê-los. Recordo-me bem quando me disse que eles estariam seguros enquanto se mantivesse afastada. No entanto, asseguro-lhe de já não há mais perigo algum.

— Ouça isto: minha mãe casou-se muito nova e contra a vontade de sua família. Precisou romper os laços com todos que conhecia para que pudessem ficar juntos. Pouco anos depois que nasci, ela foi acometida de uma doença voraz e desconhecida, que perdurou por muitas semanas. Temíamos por sua vida e em diversas vezes pensamos não haver mais esperança. Meu pai lhe providenciou tudo, desde clínicos renomados até remédios de todos os tipos apenas para vê-la restabelecida. Ela foi capaz de se recuperar após muitas incursões médicas, sob o preço de carregar para sempre algumas sequelas e, entre elas, estava a impossibilidade de tornar a ter filhos novamente.

— Eu sinto muito — Sarah mencionou com a voz baixa, evidenciando seu pesar em ouvir aquele triste relato. Entretanto, ainda não conseguia perceber a relação entre os dois assuntos, de modo que se viu obrigada a questioná-la. — Desculpe-me insistir nisso, mas por que este revés representa um impeditivo para sua permanência?

— Sempre fui a única filha dos dois e logo me revelei sua maior decepção — Anya esclareceu, enquanto olhava para as próprias mãos, buscando forças para colocar em prática tudo aquilo que suas palavras exprimiam. Partir uma segunda vez talvez fosse ainda mais difícil que a primeira, mas ainda assim ela precisava fazê-lo. — A dor que lhes causei jamais poderá ser esquecida e se lembrarão disso todas as vezes que dirigirem o olhar para mim. Não é o tipo de vida que desejo para ninguém.

A jovem rainha manteve-se silente por alguns instantes, ponderando aquilo que havia acabado de ouvir. Compreendia os receios de sua amiga, embora não aceitasse aquela solução como a única viável ao caso. “Se ao menos eu tivesse herdado a sabedoria de Jacques, talvez pudesse dizer algo que a fizesse mudar de ideia”, concluiu com desânimo, não lhe restando outra alternativa senão aceitar aquela decisão.

— Não se abata por minhas dores, por favor — a camponesa afirmou, apressando-se em tomar as mãos de Sarah entre as suas, enquanto lhe dirigia um sorriso fraco, ainda que verdadeiro. — Desde o instante em que nos conhecemos tudo que fez foi prestar-me seu auxílio, mesmo quando tudo que eu poderia lhe oferecer em troca era minha amizade. Saiba que serei eternamente grata por tudo que fez por mim.

Devolver-lhe um sorriso acanhado foi tudo que a menina conseguiu expressar, antes de serem interrompidas pelo rangido proveniente do trinco. A figura de Edeline logo se fez presente e vê-las uma ao lado da outra servia apenas para realçar ainda mais suas semelhanças físicas.

— Seus cavalos logo estarão prontos — a anfitriã mencionou, em meio a um sorriso amável. — Desçam por um instante, eu gostaria de lhes mostrar algo.

As duas jovens trocaram olhares curiosos ao mesmo tempo que incrédulos, reação esta que a arrancou um tímida risada de Edeline. O caminho até o andar inferior fora percorrido em silêncio e somente ao chegar na sala de estar foi que um quadro disposto sobre a mesa de centro chamou a atenção de suas visitas. Embora tomado pelas manchas amareladas de mofo em algumas partes, ainda era possível distinguir a imagem de seis moças enfileiradas ao lado de um casal de idosos. Todos trajavam roupas elegantes e exibiam uma postura distinta, num típico retrato familiar.

— Perdoe-me o seu estado, mas este quadro tem tantos anos que não apresenta a mesma qualidade que um dia já teve — explicou a anfitriã, tomando o objeto entre os dedos, passando a acariciá-lo de maneira tenra. — Conseguem reconhecer alguém nesta imagem?

— Essa é você, sem dúvida alguma — Anya mencionou, enquanto apontava para umas das mulheres ali reproduzida. Os volumosos cachos castanhos e a pele ligeiramente bronzeada do sol não deixavam quaisquer dúvidas aquele respeito. Curiosamente, ao seu lado havia uma jovem de feições idênticas, cuja a única diferença residia no cabelo claro e liso. Todas trajavam vestidos de cores variadas e era perceptível o zelo do pintor em tentar reproduzir mesmo os menores detalhes. — Quem são essas que estão ao seu lado?

Antes que pudesse ter seu questionamento respondido, Sarah tomou o quadro das mãos de Edeline de maneira cuidadosa, passando a analisá-lo com mais atenção. Algo ali lhe parecia familiar, embora não souber precisar o quê de imediato. Seus olhos percorreram o rosto de cada uma das moças que ali estavam, até se fixarem na figura da penúltima delas, cuja as ondulações de seu cabelo escuro aliadas ao sorriso enigmático somente poderiam pertencer a uma única pessoa no mundo.

— Espere um instante, esta aqui é a minha mãe — a menina pontuou com exasperação, aproximando ainda mais a gravura dos olhos, apenas para se certificar de que eles não lhe pregavam peças. — Disse-me ontem que a havia conhecido. Está me dizendo que...

— Katherine não era a mais velha de nós, mas sempre agiu como se fosse a matriarca da família — Edeline comentou, em meio a uma risada discreta e saudosa. Tomando o quadro de volta, permitiu que seus dedos deslizassem com carinho sobre a figura da falecida irmã, recordando-se de seu sorriso que sempre fora complexo demais para ser descrito. — Não havia nada de ordinário nela e nunca sabíamos o que esperar quando estava tramando algo. Nenhuma de vocês jamais questionou a razão para serem tão parecidas?

Sarah e Anya tornaram a trocar olhares, como se buscassem se certificar daquilo que haviam acabado de ouvir. Haviam sim algumas semelhanças, mas nada que as fizesse cogitar qualquer grau de parentesco. Além disso, dada as circunstâncias em que se conheceram, tal absurdo jamais poderia ter sido cogitado.

— Sem sua ajuda, eu jamais teria conseguido me desvencilhar dos abusos de nosso pai, assim como não teria me casado com Oscar — ela continuou, enquanto as costas de sua mão dirigiram-se até o rosto de Anya, acariciando-o de maneira tenra. De igual modo, sua única filha também havia sido uma conseqüência dos atos de sua amada irmã. — Henrique sempre teve um imenso fascínio por ela, cedia a todos os seus caprichos. É realmente uma pena que não tenha tido a chance de conhecê-la.

— Desculpe-me interrompê-la, senhora, mas creio que esteja errada. — As palavras polidas e firmes de Sarah chamaram a atenção das duas, que lhe dirigiam olhares curiosos. Não tencionava ser rude em sua fala, mas havia algo naquela narrativa que precisava ser esclarecido imediatamente. — Pelo que me foi relatado e até onde as evidências apontam, meus pais tinham um terrível e conturbado relacionamento, muito distante do encantamento que descreve para mim.

Soava-lhe demasiadamente estranho aos ouvidos ouvir alguém se referir a Henrique como seu pai. Desde que tivera acesso aos segredos escondidos no diário de sua mãe, sua mente parecia finalmente estar alinhada com os anseios de seu coração, aceitando a figura de Jacques como familiar com prontidão. Isso, é claro, ninguém além dela poderia cogitar.

— Não me referia ao seu pai, minha querida — devolveu-lhe a anfitriã, exibindo uma expressão divertida, ainda que insondável. — Na realidade, eu fazia menção a Henrique Primeiro, seu avô paterno.

A informação deixou a jovem rainha sem fala por alguns instantes. Se havia uma tarefa que detestava quando criança, aforas suas aulas de caligrafia, era ter de estudar a árvore genealógica da Família Real. Entretanto, agora que aquilo lhe fora pontuado, recordava-se como o antigo monarca fora nomeado em homenagem ao seu pai, um exímio rei conforme constava nos registros históricos. Seus olhos encaravam Edeline com intensidade, ávida por saber mais do passado oculto de sua mãe.

— Ele era um homem formidável, embora achassem que já estava longe de suas faculdades mentais quando encantou-se pela figura de sua mãe. Katherine, astuta como era, certamente percebeu o mesmo e não permitiu que a oportunidade lhe escapasse entre os dedos. Na época, estávamos residindo numa cidade campestre, próxima de Greenwall, onde diziam haver o clima era ideal para tratar doenças senis. Nosso pai estava debilitado pela velhice e já não suportava o rigor do clima de Odarin. Por ocasião do destino, o antigo monarca residia numa enorme mansão próxima pelo mesmo motivo.

Sarah dedicava toda a sua atenção àquela narrativa, que soava como um conto épico aos seus ouvidos. O diário que lhe fora entregue por Jacques tinha a apresentado um pouco mais da personalidade de sua genitora, fazendo-a sentir-se mais próxima de sua figura materna. No entanto, aqueles fatos datavam de muito antes de sua chegada no castelo, revelando-lhe então uma parte de sua vida que ela jamais cogitara conhecer.

— No último verão que passamos juntas, recordo-me que ele já não suportava passar um único dia sem vê-la, mesmo que por um breve instante. Presenteava-a com todo tipo de jóias e vestidos, pois não admitia que ela utilizasse os trajes cosidos por Sophie, a mais velha de nós. Queria possuí-la com exclusividade, tanto que esforçou-se muito para isso, mas ela não cederia tão facilmente, sabia exatamente onde pretendia chegar. — O semblante de Edeline deixava evidente que ela revivia todas aquelas memórias preciosas em sua mente, exibindo um sorriso distraído enquanto as palavras ganhavam forma naturalmente. — Já havíamos perdido contato quando soube de seu noivado com Henrique Segundo, que certamente ocorreu por imposição de seu maior admirador. O engraçado é que ela sempre externou o desejo de tornar-se rainha, mas ninguém jamais lhe deu a menor atenção. Tomávamos aquele sonho insano como um mero devaneio, algo improvável demais para tornar-se realidade. Mas Katherine sempre soube exatamente o que estava fazendo. Eu sempre a admirei muito e você, ainda que não a tenha conhecido, deve fazer o mesmo. Não havia ninguém neste mundo com uma força de vontade maior do que ela e imagino que tenha herdado essa sua característica.

Sarah não pôde conter um meio sorriso acanhado, estando certa de que Edgar ou mesmo Evangeline haveriam de concordar com aquela assertiva caso estivessem ali. Todos aqueles detalhes acerca da juventude de sua mãe lhes eram inéditos, além de explicarem muito de sua origem, como a razão pela qual o antigo monarca não demonstrava qualquer apreço por sua falecida esposa. Contudo, aquilo não era o suficiente, pois ela desejava formular muitos outros questionamentos sobre o assunto.

Embora soubesse que deveria partir o quanto antes, já não lhe restava a menor vontade de fazê-lo. Gostaria de ficar, longe das obrigações e das regras que lhe sufocavam. Ali, afastada da nobreza e de todos os seus fardos, poderia ser exatamente quem era, filha de um simples jardineiro, fruto de uma paixão indevida e arrebatadora.

É tarde demais para desistir”, concluiu com um ar tristonho, ainda que resignado. Já havia aceitado aquele destino como seu e de nada lhe adiantaria fugir da realidade. Ao menos agora tinha a certeza de que, ao lado de seu consorte, nenhuma meta estaria fora do seu alcance.

Há poucos passos dali, as fechaduras da porta de entrada rangeram levemente, abrindo espaço para que passadas cansadas invadissem aquela humilde morada. No entanto, antes que pudesse alcançar seu destino final, as botas sujas de terra retiveram-se junto ao limiar entre o corredor e a sala de estar. Oscar Lewinter havia vivido estações o suficiente para que julgasse já ter visto de tudo nessa vida. Entretanto, o que seus olhos lhe exibiam naquele momento de consistia num misto de uma piada ruim e uma aparição perturbadora.

— Meu amor, não imaginei que fosse estar de volta tão cedo — Edeline exclamou com euforia, logo após perceber os olhos pesados de seu companheiro sobre si.

Erguendo-se num salto, seus pés rapidamente a levaram até o local onde o burguês permanecia inerte, olhando na direção da camponesa com uma expressão mortificada, como se estivesse diante de um fantasma. De modo eficiente, a anfitriã puxou-lhe por ambas as mãos, afastando-o do cômodo para que pudessem conversar à sós por um instante.

— Quem é aquela moça que…

— Exatamente quem está pensando — Edeline adiantou, incerta de como deveria se portar naquela situação. Mordia o lábio inferior, na tentativa de conter um pouco a excitação que parecia estar prestes a transbordar. Depois de muitos anos, sua família estava reunida novamente. — Nossa criança está de volta, não é maravilhoso?

— É impossível — ele pontuou, a todo momento espiando sobre seu ombro, apenas para ter certeza de que ela continuava lá, sem que tivesse desaparecido como poeira no meio do deserto. — Já se passou muito tempo, anos demais para que tenha retornado agora.

Um longo suspiro e algumas piscadas se fizeram necessárias para que Edeline mantivesse a calma necessária para lidar com aquela situação. Seu marido nunca fora uma pessoa fácil de ler, mas os anos de convivência lhe ensinaram alguns dos sinais mais importantes e que usualmente denunciavam seu estado de espírito. Embora aparentasse estar genuinamente confuso, não havia traços de irritação ou aborrecimento em seu semblante. Ainda assim, ela procederia com cautela, até que estivesse inteiramente certa daquilo.

— Compreendo que no momento tudo lhe pareça surreal demais para acredite em mim. — Apesar das palavras brandas, Edeline precisou segurar firmemente o rosto de seu companheiro entre as duas mãos, pois a todo momento ele tornava a olhar para trás, como uma criança assombrada por fantasmas do passado. — Nós desejamos esta graça por tanto tempo, qual o sentido em contestar os termos de seu retorno justamente agora que ela está aqui, ao nosso alcance novamente?

Oscar não só ouvira, como também compreendera tudo aquilo que fora dito por sua esposa. No entanto, responder racionalmente àquele questionamento parecia estar além da sua capacidade mental. Anya estava li, não muito diferente desde a última vez que a vira e com uma aparência muito mais saudável do que seus pesadelos costumavam exibir. Abster-se de externar suas dores o fizera envelhecer mais rápido que o esperado, não sendo poucas as vezes em que questionava sua própria sanidade, coisa que tornava a fazer neste exato momento.

No cômodo ao lado, Anya caminhava de um lado para o outro, torcendo as mãos de maneira nervosa, incerta de como reagir com aquela chegada inesperada. Tinha a esperança de que já estaria em Odarin quando ele retornasse de sua viagem, pois somente assim não seria obrigada a enfrentar seus olhos severos e inquisidores. Agora, sem saber qual seria sua reação, seu ímpeto era pular pela janela e apenas correr para longe dali.

— Que está esperando? — Sarah indagou em meio a um sussurro, enquanto dirigia um ar incrédulo para sua amiga. — Vá até lá e diga-lhe o que precisa ser dito. Ele é seu pai, não um estranho qualquer.

— Não posso fazer isso, Sarah — a camponesa rebateu de imediato, sibilando aquelas palavras entre os dentes, evitando emitir o menor ruído que fosse. — Não me surpreenderia se a essa altura ele me detestasse.

— Não diga tolices! — A jovem rainha retrucou com veemência, esforçando-se para conter  o tom autoritário. — Fizeste o mesmo tipo de especulação antes de falar com sua mãe e já vimos que suas preocupações não se justificam. Pare de fugir e enfrente seus medos de uma vez.

Respirando fundo e soltando ar pela boca algumas vezes, Anya precisou esforçar-se para evitar que mais lágrimas surgissem em seus olhos. Ela estava cansada de chorar e de fugir e mesmo que detestasse concordar com Sarah naquele aspecto, estava na hora de encarar seus monstros interiores de frente.

Os primeiros passos foram tímidos e vacilantes, mas aos poucos ganharam um pouco mais confiança e firmeza. Em instantes, ela já podia observar as costas largas de seu pai, que ouvia atentamente as palavras de sabedoria proferidas por sua mãe. A jovem limpou a garganta no intuito de chamar-lhes a atenção, ainda não que soubesse o poderia dizer numa situação como aquela. Sua imaginação pouco otimista buscava antever a expressão que Oscar lhe dirigiria e diante de uma infinidade de cenários, vê-lo portar um olhar marejado e emotivo foi demais para que ela pudesse suportar.

As passadas incertas foram prontamente substituídas por um caminhar apressado, até que já não houvesse mais qualquer distância a ser percorrida. Seus braços envolveram o torso do comerciante com força e ter seu gesto prontamente retribuído amenizou todas as suas mágoas e remorsos de imediato.

— Ah, minha cigarrinha — ele proferiu com um ar de alívio, valendo-se do apelido infantil que sua menina recebeu quando demonstrou os primórdios de seus dotes artísticos. Depois de agraciá-la com alguns beijos no topo de sua cabeça, apoiou uma das bochechas cobertas pela barba clara no topo de sua cabeça, certificando-se de que ela não se transformaria em pó caso a abraçasse com força demais. — Você foi embora e nos deixou aqui com um vazio imensurável em nossos corações.

— Me perdoem — Anya respondeu em voz baixa, utilizando-se de um tom choroso que simplesmente não conseguia mais evitar. — Por todo o sofrimento e preocupação que lhes causei durante esses anos, peço que me perdoem.

— Você está de volta, não há nada mais que poderíamos querer — Edeline concluiu enquanto afagáva-lhe as costas, mais do que contente em ver sua família unida novamente.

As dobradiças da porta rangeram mais uma vez, agora revelando a figura do Duque de Odarin, que acabava de retornar de sua caminhada pela propriedade, pronto para informar à sua anfitriã que seus cavalos estavam prontos para partir. No entanto, antes que pudesse pôr em prática sua intenção, seu olhar cruzou-se com a expressão impetuosa que Oscar lhe dirigia. A figura do burguês sempre impusera respeito por onde quer que fosse e Edgar não seria a exceção àquela regra. Não podia imaginar o quanto Anya já havia lhe revelado acerca da verdade dos fatos, de modo que o ligeiro tremor que sentiu na ocasião não era de todo injustificado.

— Anos atrás, você tinha me feito uma promessa de que deixaria minha família em paz e que não tornaria a procurar pela minha filha. — A princípio, seu tom de voz aparentava estar tomado por uma cólera contida, como uma fera que rosna de maneira ameaçadora antes de atacar sua presa. No entanto, de modo inesperado, suas feições se suavizaram, para logo em seguida concluir seu pensamento: — Eu serei eternamente grato por não ter me dado ouvidos. Obrigado por trazê-la de volta.

De maneira respeitosa, Edgar se limitou em menear a cabeça positivamente, aceitando aquelas palavras de bom grado. Aquele pesadelo finalmente havia chegado ao fim, para todos os  envolvidos.

De maneira quase instintiva, seus olhos buscaram a figura de sua consorte, que encontrava-se de pé na extremidade oposta do cômodo. Embora não tivesse trocado uma única palavra àquele respeito, bastaria uma breve análise de seu semblante para perceberem que compartilhavam da mesma sensação de orgulho, como se tivesse acabado de cumprir uma importante tarefa.

Juntos, eles haviam superado mais essa etapa de suas vidas. Agora, estava na hora de voltarem para casa.



— Diga-me, quando pretende voltar agora?

— Em dois ou três dias, no máximo. Não quero deixá-los aflitos novamente — Anya respondeu em meio a uma tímida riso, sentido-se leve e plena para primeira vez em anos. — Recorda-se a história que lhe contei nesta manhã? Pois bem, agora minha mãe finalmente poderá ter a casa cheia de crianças, como sempre sonhou.

As duas jovens compartilharam uma risada contente, que ecoaram pela cabine da carruagem. Edgar, por sua vez, não partilhava da mesma euforia e manteve o semblante impassível durante boa parte da viagem de volta. Pensava que já não valeria a pena partilhar de suas emoções com a antiga noiva, agora que havia uma outra pessoa em sua vida plenamente disposta a conviver com suas falhas e imperfeições.

Por diversas vezes durante o trajeto seus dedos buscaram as pequeninas mãos enluvadas de Sarah, entrelaçando-os de maneira cuidadosa e protetora. No entanto, bastavam poucos segundos daquele íntimo contato para que se recordasse de que não estavam à sós. Com isso, ele afastava sua mão discretamente, cruzando os braços para evitar de repetir o gesto, enquanto desejava chegar em casa a todo custo.

Aquilo não passou despercebido aos olhos de Anya, mas já não a afetava mais. Eles pareciam satisfeitos com a companhia um do outro, de modo que ela sentia-se incapaz de nutrir rancor em função da felicidade alheia. “Ao menos, tudo se resolveu da maneira como deveria ser” refletia enquanto observava a casebres de Odarin tomarem conta da paisagem esverdeada, típica da estação primaveril.

Com um solavanco, a carruagem interrompeu sua trajetória e o cocheiro apressou-se em auxiliar a jovem camponesa a desembarcar.

— Mande-me uma carta caso necessite de qualquer coisa — Sarah pontuou da pequena janela, enquanto ofericia-lhe um sorriso orgulhoso ao mesmo tempo que encorajador.

— Eu jamais me esquecerei do que fizeram por mim. Venham nos visitar quando tiverem a oportunidade, tenho certeza de que meus pais ficarão satisfeitos em recebê-los.

Um breve aceno encerrou aquela despedida e a carruagem logo se distanciou, seguindo de maneira trepida em direção a colina onde o castelo fora construído. Anya permaneceu inerte alguns instantes, apenas imaginando como seria seus dias daqui para frente. Ela mal podia esperar para conferir aos seus pequenos uma vida mais digna e cheia de possibilidades.

Tencionando entrar o mais rápido possível para contar-lhes a novidade, ela girou sobre os calcanhares na direção da casa que a acolhera por muitos anos. Entretanto, seus pés não se moveram com a intenção de entrar, pois a figura de Phillip aproximando-se com um um ar muito distinto daquele que usualmente portava causou-lhe uma estranheza imediata.

— Você mentiu para mim — ele pontuou entre os dentes, enquanto seu semblante externava uma expressão furiosa ao mesmo tempo que magoada. As palmas de suas mãos suavam e tremiam levemente, demonstrando o estado de perturbação que se encontrava. Havia tanto para dizer e, ainda assim, aquela foi a única coisa que sua mente confusa e seu coração ferido puderam formular.

— Pensei que já tínhamos superado essa questão — ela retrucou com um ar cansado, recordando-se de já ter ouvido aquelas mesmas palavras semanas antes.

Buscando compreender a razão por trás daquela estranha manifestação, Anya buscou sua mão para que pudesse acariciá-la, um gesto já repetido tantas vezes que começava a se tornar um hábito. Entretanto, sua tentativa de aproximação restou frustrada ao ver o rapaz recuar dois passos, como se buscasse uma distância segura.

Ainda sem compreender o que poderia ter ocasionado aquele comportamento, a camponesa não pôde evitar de encolher os ombros, sentindo-se desconfortável pela forma como ele a encarava. Sua expressão transtornada fazia com que se lembrasse da maneira como Edgar havia se dirigido a ela no dia anterior.

— Se você não me disser mais nada, então não poderei ajudá-lo de maneira alguma… — arriscou um diálogo, apenas para ser bruscamente interrompida.

— Ajudar? Acha que isto é uma piada ou algo do gênero? — ele rebateu de imediato, sua voz alterada atingindo ao menos duas notas acima de sua entonação usual. — Decidiu voltar para a casa de seus pais sem dizer-me uma única palavra enquanto eu estava aqui, prestes a pôr um fim em minha carreira, a única coisa que efetivamente possuo?

— O quê? Não, tudo ocorreu de maneira inesperada! — Ela retrucou de imediato, sua voz soando esganiçada diante de tantas imputações injustas.

— Você pode ter enganado Edgar por anos com suas palavras doces, mas não fará o mesmo comigo!

— Por céus, o que está dizendo? Acha mesmo que pedi por esta vida e por todos esses problemas? Eu não tive outra escolha senão…

— É claro, você nunca tem qualquer escolha, as coisas simplesmente acontecem sem que tenha a oportunidade de fazer absolutamente, não é mesmo? — O tom presunçoso assumiu o controle e Phillip sequer refletia naquilo que estava dizendo. Apenas sentia um enorme peso em seu coração e tinha pressa em livrar-se do incômodo que se abatia sobre ele.

— Falando desta forma, eu nem mesmo consigo reconhecê-lo — Anya pontuou, exibindo-lhe um olhar magoado. Ela não ouviria todos aqueles disparates sem nem ao menos se defender. — E também, eu jamais pedi que desperdiçasse sua carreira para que viesse comigo. Você decidiu por vontade própria.

— Exatamente. Estou satisfeito por ter mudado de ideia à tempo. Eu não gostaria de ter que conviver com o arrependimento desta decisão que, como você bem pontuou, foi baseada em minha vontade própria.

As palavras duras do jovem Chevalier atingiram-lhe como um golpe definitivo, dizimando qualquer bom sentimento que os últimos acontecimentos pudessem ter lhe proporcionado. Ele lançou-lhe um último olhar severo e antes de receber qualquer resposta, afastou da mesma maneira nervosa com a qual havia se aproximado.

A Anya não restou qualquer opção senão cair de joelhos junto ao chão, sem acreditar na discussão que acabara de travar. Nenhuma conquista vinha sem sacrifícios e renúncias, fato este que ela sabia melhor que qualquer outra pessoa. Ainda assim, havia um aperto em seu peito de dificultava-lhe a respiração e a deixava sem forças para manter-se de pé. “Edgar, Marco e agora Phillip também… todos entraram em minha vida de maneira espontânea e partiram por culpa exclusiva minha”.

A solidão era uma sensação fria e sombria que a atormentava  constantemente. Portanto, doía-lhe ainda mais constatar que todas as vezes em que estivera sozinha havia sido por consequência de seus próprios atos e palavras. Não havia ninguém a quem pudesse culpar, senão ela mesma e aquela constatação feriu-lhe de tal modo não conseguia sequer reunir forças para erguer-se novamente.


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