The Queen's Path escrita por Diamond


Capítulo 45
Capítulo XLV - 28 de Fevereiro de 1873




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Largada sobre a cama de maneira displicente, Sarah ocupava suas horas observando os raios de sol se infiltrarem entre as cortinas. Tinha a ligeira impressão de que seu estômago emitira murmúrios inconformados algum tempo, mas os protestos logo se aquietaram. Seu rosto exibia um olhar apático, sem quaisquer resquícios do brilho encantador de antes.

Ao longo dos dias, Evangeline ia e vinha dezenas de vezes, sugerindo levá-la para tomar um banho morno ou mesmo acompanhá-la num passeio pelo jardim. Mas para a menina, sair daquele quarto era algo inconcebível. As paredes frias e o ambiente fechado não a incomodavam mais do que a constatação de que seu espírito estava preso às imposições de seu sangue. “Trata-se de algo que eu e Allen compartilhamos, portanto, estou fadada a perpetuar as mesmas atrocidades que ele”, refletia com desalento.

Às vezes, em meio à quietude do cômodo, podia se recordar do tilintar metálico do exato momento em que o punhal afiado se chocava contra o chão, fazendo-a cobrir os ouvidos com força na tentativa de fugir daquelas memórias que a torturavam. Pensar que poderia ter dado fim a vida de seu consorte, o único que permanecera ao seu lado a despeito de todas as crises e desentendimentos, doía tanto quanto ter uma faca enfiada em seu próprio peito. Desde então, vinha sendo perseguida por seu maior medo: colocar a vida de Edgar em risco novamente. Evitar uma nova tragédia era o motivo ensejador de seu isolamento. E se para isso tivesse que renunciar a todos os outros aspectos de sua vida, ainda seria um preço ínfimo a pagar.

Isso faz parte de minha natureza, algo contra a qual sou incapaz de lutar. Além disso, todos têm tanta certeza de que irei falhar em as minhas funções, que talvez a única maneira de não lhes dar esse gosto é simplesmente não faz nada”, concluía com pesar, sentindo a dor em seu coração torna-se ainda pior. Não lhe restavam forças sequer para pensar em seu próprio reino, mas ao menos sabia que aquelas pessoas estariam em boas mãos enquanto o jovem Avelar estivesse no comando.

Em ocasiões pontuais, lhe vinha em mente a imagem da camponesa que casualmente conhecera na praça da Catedral anos antes. Se ao menos soubesse antes que a moça de voz melodiosa e sorriso cativante era antiga noiva de Edgar, talvez certos sofrimentos poderiam ter sido evitados. “Tenho certeza de que ele seria muito mais feliz ao lado dela. Eu jamais deveria ter me intrometido em sua vida”.

Os pensamentos depreciativos faziam com que se encolhesse debaixo das cobertas, na esperança de que o tecido macio agisse como uma parede intransponível para o mundo externo. Mas nada daquilo adiantava. Não era possível escapar do inimigo quando ele habitava debaixo de sua própria pele.



Caminhando de um lado para o outro com passos inquietos e a respiração irregular, Edgar sabia que precisava acalmar a si mesmo se não quisesse pôr seu plano a perder. No entanto, era difícil manter o controle quando seu instinto desejava esmurrar as paredes e virar todos os móveis que encontrasse pela frente.

Desde a última visita do Secretário Real, estivera buscando rodear-se de certezas, refazendo seus passos naquela infinidade de papéis e documentos, constatando que o jovem Chevalier não havia mentido ou omitido uma única informação sequer. Em certo momento, foi surpreendido por um misto de curiosidade e espanto ao encontrar tantas transações financeiras assinadas por si próprio, ainda que seu conteúdo fosse inteiramente novo aos seus olhos. No entanto, uma análise minuciosa logo identificou a realidade atrás daquelas letras elegantemente falsificadas. Ainda que as duas caligrafias se assemelhavam em diversos pontos, o Duque não só podia perceber as diferenças, como sabia exatamente a quem os traços pertenciam. “Mas eu ainda não compreendo o porquê”, pensava com indignação, todas as vezes que o assunto lhe vinha em mente.

Por sorte ou acaso, numa de suas noites em que era incapaz de dormir com tranquilidade, lhe ocorreu uma súbita epifania que levou seus dedos nervosos a verterem o conteúdo de sua cabeceira no chão. Ao tomar em mãos a envelhecida carta responsável não só por arruinar seu noivado, mas também muitos anos de sua juventude e saúde, foi impossível não ser tomado por uma onda de cólera, que lhe aquecia o sangue e fazia as veias saltarem à testa. Estava atordoado e nervoso demais para dormir, e as horas seguintes foram gastas com intensa atividade mental, em que tentava reunir e o organizar as peças daquele enorme quebra-cabeças que finalmente começavam a se encaixar. Mesmo com detalhes pendentes de esclarecimentos, ele já poderia adiantar que a imagem final não era nada bonita aos olhos.

O vento soprou com um pouco mais de vigor, bagunçando-lhe os fios claros e movimentando as garrafas reservadas para brindes especiais, fazendo-as tilintar. Estocadas a poucos passos de distância, o rapaz evitava dirigir seu olhar para aquele móvel específico praticamente o dia inteiro, cogitando a possibilidade de mandar retirá-las dali. “Não, eu manterei as coisas exatamente da forma como Sarah havia deixado”, concluiu após instantes de reflexão, voltando sua atenção para a área externa, onde via uma carruagem aproximando-se da entrada principal. A imagem fez com que ele suspirasse fundo, enquanto afastava-se da janela, deixando as vidraças abertas.

Edgar era uma pessoa pacífica por natureza. No entanto, as circunstâncias atuais ofuscavam seu bom senso, e ele bem sabia que não poderia se conter por mais do que alguns minutos.



— O que isso significa? — Gregory questionou, com um ar angustiado, ao passo que ajustava a altura seus óculos pela décima vez naquela manhã. As hastes laterais estavam gastas e envelhecidas, mas sabia que teria de usá-lo até que as lentes já não lhe servissem por completo. — Nós não podemos simplesmente ir embora assim.

— É por causa daquele homem novamente? Ele não pode aparecer assim e nos colocar na rua — Dimitri arguiu, com tanta insatisfação que sequer conseguia conter o tom exasperado de sua voz. — Essa é a nossa casa, não iremos nos render com tanta facilidade, nem deixaremos essa terra para trás!

Encarando-os com um ar desolado, Delia tinha seu coração apertado ao ver-se obrigada a levá-los para longe de sua terra natal. Ela conhecia bem a indignação e angústia de ter de deixar uma morada para trás. Entretanto, não poderia nutrir falsas esperanças de manter aquele imóvel consigo quando tinha dificuldades até mesmo em alimentar as três crianças da forma adequada.

Olhando para os lados, a jovem se permitiu um minuto para refletir, enquanto analisava o estado dos móveis, ciente da dor que carregaria consigo ao deixar tantas memórias para trás. A casa fora seu porto seguro nos dias mais difíceis, uma única certeza em meio a tantas dificuldades. “Aqui estaremos protegidos do frio”, costumava dizer a si mesma. “Ao menos temos onde dormir”, repetia ao colocá-los na cama, ciente de que não havia nada para servir no desjejum do dia seguinte.

— Eu entendo a posição de vocês, mas tentem compreender a minha também — ela insistiu, sua voz entristecida esforçando-se para demonstrar alguma doçura. Não gostava de erguer sua voz ou agir de maneira severa, pois ao final das contas, todos não passavam de crianças afastadas de suas famílias originais por um revés do destino, separados apenas pelos anos que compunham sua idade. — Adoraria permanecer aqui, onde estamos habituados e onde temos recordações tão agradáveis. No entanto, nem sempre os nossos desejos, por mais simples que sejam, são possíveis de serem atendidos.

Gregory se limitou a abaixar a cabeça, segurando seus óculos com as duas mãos, de modo que as hastes frouxas não o levassem ao chão. Dimitri não costumava demonstrar grandes doses de bom senso, mas na ocasião, o garoto percebeu que seus protestos não poderiam mudar a situação atual. Havia um silêncio perturbador entre eles que muito preocupava a camponesa, pois não tencionava deixar que suas próprias preocupações contaminasse o ânimo já abalado dos três pequenos.

— Também sentirei saudades, mas jamais poderia permitir que retornem a morar nas ruas. O melhor a fazer agora é seguir viagem, enquanto a estação está favorável. — Sua fala esforçava-se em soar otimista, embora já soubesse que todo recomeço era irrefutavelmente difícil, ainda mais quando não havia um teto para onde pudesse voltar. — Tentem pensar assim: é apenas uma casa. Nada irá realmente mudar enquanto permanecermos juntos.

— E quanto ao Elliot e o Marco? — O questionamento ingênuo partiu de Rosetta, que até então manteve-se silente, ainda demonstrando em seu rosto infantil sinais de inconformidade com aquela decisão. — Eles virão conosco também?

A pergunta repentina lhe pegou desprevenida, e Delia se viu hesitar bem mais do que gostaria. Estivera tão ocupada com seus assuntos pessoas que sequer tivera tempo de pensar nos dois rapazes, seus anjos da guarda desde que chegara ali. Ainda que as visitas tenham se tornado escassas, a jovem podia perceber a cada encontro que os dois travavam batalhas internas diariamente, às quais ela desconhecia.

— Eles têm familiares que ainda necessitam da presença deles aqui — mencionou com cautela, a todo instante avaliando a reação das crianças. Nenhuma de suas palavras de encorajamento poderia mascarar a realidade ou mesmo melhorar o humor deles, e perceber isso a deixava angustiada ao ponto de sentir os olhos marejarem.  Eles não mereciam passar por mais aquela provação. — Sinto muito que essa seja nossa única alternativa.

Depositando um beijo carinhoso na testa de cada um, a ruiva teve urgência em sair dali, buscando refúgio do lado de fora imóvel, onde não poderiam presenciar seu choro amargo diante da sensação de fracasso que a invadia naquele momento.



Gilbert bateu na porta três vezes, levando alguns segundos até que lhe fosse dada permissão para ingressar no cômodo. Tinha diante de si uma situação atípica, e também curiosa. Durante o reinado de Allen, não foram poucas as vezes que teve sua presença requisitada junto ao Castelo de Odarin. Todavia, desde a morte do antigo monarca, houve um sensível distanciamento entre as duas famílias, agravado inclusive pelo retorno forçado de Charlotte a sua antiga morada em Hallbridge. Mas ele não tinha quaisquer razões para se preocupar, afinal de contas, não havia situação ruim que ele não pudesse contornar ao ponto de torná-la favorável a si. Eram anos de experiência, e se isso já não bastasse, bem sabia que seu irmão era sentimental demais para ser um problema expressivo.

Adentrando no ambiente com passos lentos, o filho mais novo do Conde Avelar trazia em mãos a carta que o convocara até ali, já bastante amassada após todas as vezes que tornou a ela, buscando encontrar em meio àquelas palavras a razão para aquele chamado inesperado. Foi curioso avistar o mais velho sentado na mesa que pertencia à rainha Sarah, e teve de reprimir um sorriso debochado ao perceber o quanto ele parecia desconfortável por estar no gabinete que servia de palco para as decisões mais importantes do reino. “Você não tem a menor vocação para o cargo que ocupa”, refletiu enquanto se aproximava da figura do Duque. “Allen podia ser muito esperto, mas deixá-lo casar com sua irmã foi um erro grave, do qual certamente se arrependeu depois. Você não é capaz de controlar nem mesmo um gato doméstico”.

— Há quanto tempo não nos vemos, irmão — ele saudou, com o ar polido enquanto portava seu usual sorriso de inabalável confiança em si mesmo.

— Foram semanas bastante agitadas — Edgar respondeu, trazendo consigo um ar vago e pesado que não passou despercebido aos olhos do caçula. — Muita coisa aconteceu.

— Posso imaginar — Gilbert pontuou, olhando para os lados, buscando algo com o qual pudesse se entreter. Aquela não era exatamente a recepção que havia imaginado, assim o comportamento de Edgar parecia um tanto distante do habitual. Parecia frio, de uma maneira tal que não havia certeza se sabia lidar com aquela nova face do primogênito. — Mas diga-me, em que posso lhe ser útil? Sabe que eu jamais negaria um chamado seu.

Após aquela tentativa desesperada de quebrar o clima pesado, tudo que pôde observar foi a aproximação do Duque com passos lentos e contidos. Olhava-o diretamente nos olhos, buscando a razão para tudo aquilo. Diante de sua ignorância, a única coisa que conseguia pensar é que não gostava nenhum pouco daquela situação.

— Algum problema? — Gilbert arguiu de maneira afável, tentando ocultar seu ar de desconfiança. — Algo que eu possa ajudá-lo?

— Muitos problemas. Mais do que consegue imaginar.

Em um universo de possibilidades, o filho mais novo do Conde Avelar jamais poderia antever o próximo gesto de seu irmão. Sentia-se tão acuado que sequer percebeu o momento em que Edgar fechou um dos punhos, esboçando logo em seguida um movimento ágil e preciso ao desferir um golpe certeiro no nariz de sua companhia, que cambaleou alguns passos para trás antes de cair sentado, atordoado com a intensidade do soco.

O ataque saíra mais fraco do que havia planejado, mas não poderia arriscar usar o punho direito e debilitar o ombro logo no início daquele embate. Instintivamente, Gilbert levou a mão ao rosto, percebendo que o sangue escorria vigorosamente de seu nariz, acompanhado ainda por um pequeno corte no lábio superior, ocasionado pela aliança de casamento.

— Você perdeu o juízo!? — o mais novo questionou com exasperação, enquanto tentava limpar o sangue que manchava suas vestes caras.

— Esse foi pela sua traição — Edgar disse num tom profundo e sombrio. Avançava na direção do desertor à sua frente, que tentava inutilmente colocar-se de pé. — E esse vai ser pelo sofrimento que você causou a mim e a Anya.

Antes que pudesse se dar conta, Gilbert sentiu um grito ficar preso na garganta e o ar faltar aos pulmões quando fora atingido por um chute na lateral esquerda de seu corpo. A dor o fez rolar pelo chão em meio aos gemidos baixos, apoiando a testa contra o assoalho na tentativa de recuperar o fôlego, sequer atentando para o fato de que seu sangue manchava o tapete que forrava o piso.

O Duque parou por alguns instantes, observando-o rastejar próximo de seus pés como o verme que era. Mas ele ainda não havia acabado. Não podia parar enquanto não conhecesse todos os detalhes por trás daquela traição hedionda. Mais uma vez, o vento soprou com vigor, fazendo-o recordar-se da janela que deixara aberta.

Ao tentar erguê-lo pelas vestes, pôde sentir de imediato uma intensa fisgada em seu ombro, um claro protesto de seu corpo pelo esforço excessivo. Entretanto, a ira ocupava sua mente com tanta propriedade que já não havia espaço para quaisquer outros pensamentos ou ponderações razoáveis. Ignorando a dor, ele arrastou o corpo pesado do mais novo até as vidraças. Gilbert, por sua vez, se debatia com vigor na tentativa de fugir daquelas agressões que feriam não só seu físico, mas também seu orgulho. Como poderia sair na rua com o rosto inchado e coberto de hematomas?

Rapidamente, quando o piso de madeira desapareceu de sua vista, dando lugar ao gramado brilhante da primavera dois andares abaixo, o grito de antes finalmente se libertara, só então percebendo que metade de seu corpo encontrava-se fora do castelo.

— Dê-me uma boa razão para não o jogar dessa janela como o lixo que você é — Edgar proferiu entre os dentes, ainda tomado pela revolta de descobrir que boa parte dos sofrimentos de sua vida foram ocasionados por atos arbitrários de seu irmão.

Da maneira como o segurava, os braços do mais novo encontravam-se imobilizados o suficiente para que não conseguisse esboçar qualquer revide.

— Que tal recordar-se de que está tentando matar alguém de sua própria família? — O argumento quase fez com que o Duque exprimisse uma risada irônica, por não lhe representar qualquer empecilho agora que já tinha tido a audácia de atentar contra a vida do antigo monarca.

— Você não teve essa consideração antes enviar ameaças em meu nome para Anya e sua família, ou quando arquitetou esse plano nefasto de vender Odarin à Greenwall, sem se preocupar com quantas vidas estaria prejudicando com isso!

— Mas não fui eu! — O apelo desesperado e inverídico foi responsável por enfurecer ainda mais o mais velho, que empurrou ainda mais seu torso em direção ao vazio. Ver o chão se aproximar ainda mesmo, que fossem apenas poucos centímetros, fez com que a atitude de Gilbert se mostrasse um pouco mais colaborativa com os anseios do consorte da Rainha. — Espere, eu quis dizer que nada disso foi ideia minha, ainda que as tenha executado.

— Então de quem foi? — Edgar vociferou, enquanto chacoalhava o corpo do traidor de forma ameaçadora para fora do cômodo.

— Allen me ofereceu altas quantias em troca das cartas. De que outra maneira eu poderia saldar todas aquelas dívidas? — retrucou com ansiedade, tentando a todo custo retornar para dentro do gabinete. — Além disso, ele estava sempre dizendo que tinha outros planos para você, e que não permitiria que uma camponesa qualquer se pusesse em seu caminho.

A confissão fez com que o Duque puxasse o corpo de seu irmão de volta para o gabinete, jogando o chão sem qualquer delicadeza. Suas vestes fizeram com que deslizasse sobre o piso de madeira, parando somente ao se chocar contra a mesa utilizada pela rainha. Havia uma espécie de ódio latente em seus olhos, e seu rosto inchado com marcas de sangue apenas contribuíam para aumentar o ar de decadência e amargura que o dominava.

Edgar ofegava com intensidade, dado todo o esforço empregado naquela represália. A dor em seu ombro mostrava-se cada vez mais presente, sendo necessária uma dose extra de autocontrole para não deixar aquele detalhe transparecer em seu semblante. Ainda tinha resistência para aguentar mais alguns instantes.

— Qual é o seu problema? — o Duque esbravejou, deixando toda a sua indignação transparecer em sua voz esganiçada. Quando crianças, eles tinham um lema: “Jamais deixem que nada de mal aconteça com a nossa família”. Em que momento de suas vidas o caçula esquecera-se daquilo, passando a adotar todas as medidas possíveis para direcioná-lo ao sofrimento iminente? — Me ver falhar com as minhas promessas de alguma maneira faz com que você se sinta melhor a respeito da sua vida miserável?

— Para ser honesto, sim — Gilbert sibilou de maneira provocante, expondo pela primeira vez em sua vida toda a inveja que sentia do mais velho. — Faz com que eu me sinta cem por cento melhor.

Àquela altura, Edgar não teve mais condições de conter uma risada incrédula que escapou por seus lábios. Tanto sofrimento causado, assim como tantas pessoas atingidas, tudo por conta de um sentimento tão infantil e irracional como aquele. Se ainda fossem crianças, talvez alguns daqueles gestos poderiam ser compreendidos, mas os anos se passaram sem que Gilbert conseguisse deixar o ressentimento de ser o preterido em sua família para trás.

Tornando a olhar para a figura do mais novo, sentado no chão, tentando recolher os estilhaços de orgulho e dignidade que ainda lhe restavam, o Duque não pôde evitar de sentir pena daquela figura patética.

— O seu problema sempre foi comigo — ele murmurou, enquanto tentava assimilar todas aquelas informações. Subitamente, ele se sentia muito cansado. — Por que se envolver nos esquemas de Allen? Será que não pensou, nem por um minuto sequer, em toda a população de Odarin, ou no quanto eles iriam sofrer diante de uma invasão? Quantos iriam perecer na tentativa de proteger suas casas e suas famílias?

— Ouro e joias são argumentos transformadores. Além disso, de que me importa a vida dessas pessoas? Eu não vivo aqui, assim como não os conheço. Eles nem mesmo pertencem ao meu círculo social — Gilbert pontuou, enquanto dava com os ombros, evidenciando todo o seu descaso e ausência de consciência. — Por outro lado, eu teria o privilégio de saborear a sua queda. O filho favorito, o prodígio da família, jogado ao fundo do poço. Sem dinheiro, sem sua amada camponesa, e sem títulos de nobreza para exibir.

Edgar se limitou a menear negativamente, sentindo-se mais uma vez enojado diante da podridão humana. Uma dúzia de impropérios cruzaram sua mente, mas de que adiantaria proferi-los? Nada do que dissesse poderia mudar a essência rasa e fútil de seu irmão. Além disso, seu ombro latejava de tal maneira que era preciso trincar os dentes, sob pena de deixar um gemido baixo.

— Eu sabia que você não teria coragem — ele provocou, tornando a chamar a atenção do consorte da Rainha, que encontrava-se absorto em pensamentos. Além disso, ele jamais aceitaria uma derrota de cabeça baixa — É covarde demais para eliminar seus inimigos. Você é fraco, e não passa de uma vergonha para a Família Avelar.

— Podemos até partilhar do mesmo sangue, mas eu não sou como você — Edgar concluiu, exibindo de maneira intencional um ar de superioridade. — Afinal de contas, eu sou um cavalheiro.

Sem mais nada a acrescentar, o jovem Avelar caminhou lentamente para fora do escritório, alheio a todas as palavras vindas de Gilbert depois daquilo. Sem que tivesse se dado conta, sua mão esquerda encontrava-se repousada sobre o ombro direito, apertando a região com força, buscando aliviar minimamente as dores que sentia. A adrenalina esgotou-se mais rapidamente do que gostaria e ele se sentia prestes a desmaiar.

A dupla de guardas o encarava com um olhar de espanto, pois estavam prestes a invadir o cômodo mesmo sem autorização. Os baques ocos, assim como os gritos ali proferidos não passaram despercebidos, mas a ausência de chamado os havia compelido a interromper o que se passava do lado de dentro.

— Retirem o traidor que aqui se encontra, confisquem seu o passaporte e adotem todas as medidas necessárias para que ele não volte a ingressar nos domínios de Odarin. Decreto que, a partir desta data, Gilbert Avelar está proibido de retornar a este reino, e o descumprimento desta ordem acarretará em sua execução imediata. — As palavras autoritárias foram ditas de maneira tão natural que surpreendeu a ele mesmo. Estava agindo como um verdadeiro governante, ainda que aquela não fosse sua verdadeira intenção. “Jamais tive delírios de grandeza, e nem mesmo nutri qualquer anseio por este cargo”, refletiu com algum desgosto, enquanto desejava poder proferir aquelas palavras para a rainha acamada, que tinha todas as razões possíveis para desconfiar de si.

Sem dar atenção à ação dos guardas, Edgar avançou pelos corredores com lentidão, tentando administrar a dor enquanto cambaleava sem rumo definido. Os espasmos tornavam-se insuportáveis e anuviavam sua mente na medida em que ele insistia em continuar andando. Sarah estava longe de seu melhor estado, de tal modo que ele não se permitiria fraquejar neste momento. “Eu ficarei bem, tudo que preciso é de algum repouso”, pensou com um ar otimista, sentindo-se obrigado a parar por um instante para recuperar o fôlego.

— Ouvi uma confusão, por acaso sabe do que se trata? — Estava quase desacordado, quando a voz ansiosa de Evangeline foi responsável por fazê-lo abrir os olhos novamente. — Mas o que houve com você? Não me parece nada bem.

E de fato, o estado do Duque beirava o lastimável. Seu rosto suava bastante, e ele aparentava estar em evidente sofrimento.

— Nada demais — ele retrucou em voz baixa, enquanto tentava visualizar uma rota de fuga. A última coisa que precisava naquele momento era dos questionamentos infindáveis da governanta. — Estive apenas colocando o lixo para fora.

Os olhos de Edgar logo encontraram uma porta a poucos passos dali e, se sua memória não lhe pregava peças, tratava-se de um quarto de hóspedes. Valendo-se de seus últimos resquícios de energia, ele caminhou apressadamente na direção do cômodo, sendo prontamente seguido por Evangeline. Por sorte, fora ágil o suficiente para trancar-se no interior antes que ela pudesse continuar atormentando-o. Seu corpo se moveu mecanicamente até a cama, não precisando mais que alguns segundos para adormecer diante da intensidade das dores.

Do lado de fora, a governanta se questionava o real significado por trás daquela afirmação. A despeito da rapidez do encontro, certos detalhes não lhe passaram despercebidos. Entre eles, estava uma das mãos do jovem Avelar, com marcas características do que aparentava ser sangue.



Ainda que o comércio estivesse cheio de transeuntes com a chegada da primavera, Delia sentia-se incapaz de compartilhar minimamente daquela euforia. Enquanto caminhava apressadamente na direção da casa da Família Chevalier, sua mente ocupava-se em refletir sobre outras questões. Partir era inevitável, mas a forma como iria fazê-lo é que representava um verdadeiro problema. Uma voz interna insistia para que não se preocupasse com isso, e apenas o fizesse de maneira natural, como se jamais tivesse estado lá. “Pare com isso, você está apenas se repetindo. Se realmente pretende ir embora, tenha a decência de fazê-lo abertamente desta vez”, ralhou consigo mesma.

A morada de arquitetura clássica e suntuosa logo adentrou em seu campo de visão, fazendo-a reter-se por alguns instantes. Tinha a certeza de que seu rosto estava vermelho, assim como os olhos se encontravam inchados. Refletindo por um instante, talvez fosse melhor começar contando a Julie e Emma. Estava certa de que as duas iriam surtar à princípio, mas logo iriam compreender suas razões.

Suspirando fundo, ela adentrou no jardim, ainda que sem nenhuma vontade. Antes que pudesse contornar o imóvel até a porta dos fundos, encontrou o filho mais novo do Barão sentado no balanço de jardim com uma expressão reflexiva no rosto. Parecia perdido em meio aos pensamentos, mas ao som do menor ruído tornou o rosto na direção da empregada, encarando-lhe com seriedade.

— Eu não esperava vê-lo aqui — ela comentou com um ar incerto, sentindo-se ligeiramente desconfortável debaixo daquele olhar inquisidor.

— Está deixando Odarin para trás? — o rapaz rebateu, de maneira seca e sem rodeios.

— Quem lhe disse isso? — O questionamento soou incrédulo e fez com que se sentisse estúpida diante do olhar arrogante que recebeu em seguida. É claro que ele sabia. Phillip sempre sabia de tudo. — Não é como se houvesse qualquer alternativa para mim neste lugar. Talvez seja a coisa certa a fazer.

— Eu gostaria de poder fazer algo para ajudá-la — confessou o jovem Chevalier num tom baixo, enquanto seu semblante exibia um ar pesaroso. Erguendo-se de seu assento, ele caminhou lentamente na direção de Delia, que o recepcionou com um gesto tímido, trazendo uma de suas mãos para perto de seus olhos atentos, afagando-a com delicadeza.

— Não seja bobo, desde que nos conhecemos essa foi a única coisa que tem feito por mim, ainda que à princípio eu não fosse capaz de enxergar isso — a ruiva confessou em meio a uma tímida risada, ainda acariciando os dedos do rapaz à sua frente. Depois de olhar com atenção, pôde atestar a presença de finas marcas brancas em suas falanges, decerto cicatrizes ocasionadas pelas grandes pilhas de papéis que manuseava todos os dias.

— Mas não foi o suficiente. — Um instante de hesitação e ele precisou fechar os olhos por um instante, tomando fôlego e ponderando pela última vez qual seria a melhor forma de exprimir seus pensamentos. Tratava-se de uma importante decisão e ele não gostaria de arriscar tudo por uma má escolha de palavras. — Eu posso fazer muito mais, se me permitir permanecer ao seu lado.

Aquelas palavras chamaram a atenção de Delia, que ergueu os olhos para encará-lo enquanto buscava compreender a real intenção por trás daquelas palavras. Embora soubesse que o rapaz era mais solidário do que sua personalidade deixava transparecer, ela não esperava por algo daquela dimensão. Enquanto se ocupava em refletir sobre o assunto, seu coração passava a bater de maneira ainda mais intensa.

— Não seja tolo, jamais poderia se habituar à minha realidade — ela pontuou em meio a um riso franco e sem humor, deixando evidente sua descrença naquela fala solidária. — Ainda que não saibamos para onde estamos indo, esteja certo de que luxo e conforto não estarão nos acompanhando.

— Esses privilégios jamais me trouxeram qualquer alegria ou satisfação — Phillip rebateu de imediato. Já esperava uma resposta evasiva como aquela, mas não se daria por vencido tão facilmente. Se ele pudera aprender algo com a jovem rainha é que para alcançar a felicidade, é preciso lutar por ela todos os dias. — Eu não sou nenhum santo, mas sinto que você me inspira a ser uma pessoa melhor. Uma vida modesta é um preço baixo a se pagar por um pouco de satisfação pessoal.

Os olhos da camponesa tornaram a se abaixar, enquanto ponderava o peso daquelas palavras. Era curioso constatar como ele era analítico, mesmo quando se referia aos próprios sentimentos e anseios, um traço de sua personalidade que jamais conseguiria dissociar. Ela aprendera a lidar com aquilo, assim como o tom presunçoso e o ar retraído. Além disso, desde o incidente com Julian, sentia-se segura sempre que o rapaz estava por perto. Era uma presença reconfortante, algo do qual carecia imensamente àquela ocasião.

— Mas e quanto ao seu cargo junto a Família Real? — ela questionou num tom incerto, logo se arrependendo de fazê-lo. O semblante do rapaz tornou-se sombrio de imediato, demonstrando o quão desconfortável o assunto soava em seus ouvidos.

— Eu falhei com a Sarah — retrucou em meio a um murmúrio constrangido. A vergonha em reconhecer seus erros de modo tão aberto diante do consorte da rainha continuava presente, mostrando-se um sentimento pesado demais para que pudesse digeri-lo com facilidade. — Enquanto estive presente, tudo que fiz foi causar conflitos e sofrimento, ainda que ela mesma não fosse capaz de perceber isso. O melhor a fazer agora é manter-me afastado. Estou certo de que Edgar cuidará bem dela.

O comentário sincero de Phillip a atingiu com força, ocasionando-lhe a súbita sensação de mal estar. No dia do baile, ela tivera a oportunidade de atestar a veracidade daquelas palavras, ao constatar que o zelo do jovem Avelar era cego ao ponto de correr para socorrê-la logo após quase ter sido gravemente ferido por suas mãos. A cena lhe pareceu absurda, e em seu lugar ela teria corrido para o mais longe possível. “Essa sou eu, sempre fugindo para atender ao meu instinto de autopreservação”, concluiu, deixando transparecer seu descontentamento. Por vezes, se questionava qual seria o estado atual de sua vida caso tivesse enfrentado aquelas ameaças ao invés de simplesmente esconder-se delas. “Edgar não é como eu.  Seu altruísmo faz com que esteja sempre tão preocupado em atender às necessidades daqueles à sua volta que negligência a si mesmo”.

Delia conhecia bem aquela característica, e o invejava por isso. Saber de seu casamento com Sarah lhe trouxe uma incômoda certeza: ele faria tudo que pudesse para fazê-la feliz, ainda que se tratasse de uma união por pura conveniência política. Era sua natureza, algo que o rapaz não poderia resistir. No entanto, agora não se tratava unicamente de uma questão de zelo. Edgar a protegia tão cegamente porque a passagem do tempo transformou a convivência pacífica num sentimento mais forte e resistente as adversidades.

Doía-lhe pensar que tivera a oportunidade de experimentar algo semelhante, mas que se perdera por puro descuido. Marco se manteve ao seu lado e durante meses sustentou aquele relacionamento sozinho, antes de finalmente dar-se por vencido. O medo que alimentava de seu próprio passado não só o fizera sofrer, como também lhe levou ao isolamento, de tal maneira que havia se tornado uma estranha para ele e para si mesma.

— Então, o que me diz?

Novamente, as palavras de Phillip capturaram sua atenção, fazendo-a esboçar um meio sorriso ao perceber a dose de ansiedade contida nelas. Era uma reação compreensível, dada a sua falta de habilidade no que dizia respeito às normas de convívio social. Mas talvez houvesse algo além disso. Ele certamente estava farto do isolamento e da solidão. E nesse aspecto, a jovem não poderia estar mais de acordo.

Entrelaçando seus dedos, Delia avançou dois passos, de modo que pudesse apoiar o rosto sobre o peito de sua companhia. À princípio, o rapaz não soube como reagir ao gesto, mantendo-se inerte até decidir apoiar os lábios e a ponta do nariz sobre os fios acobreados, aproveitando o silêncio e a proximidade reconfortante. Se havia algo que estava ávido em aprender era como se portar diante daquelas singelas demonstrações de carinho, que ainda lhe pareciam tão impróprias.

Eu não cometerei o mesmo erro novamente”, ela ponderou, finalmente revestindo-se de alguma confiança.

— Nós deixaremos Odarin em uma semana.



O sol recolhia-se lentamente junto ao horizonte, mas nem a penumbra que começava a apossar-se do cômodo da rainha era capaz de fazê-la parar. Debaixo da luz fraca e ondulante do candeeiro aceso, seus dedos enfraquecidos moviam-se tão rapidamente quanto possível, enquanto seus olhos castanhos absorviam o conteúdo daquelas páginas amareladas de maneira ávida.

Sem que tivesse se dado conta, seu corpo havia cedido à falta de energia e ela adormeceu sobre a cama que raramente deixava. Não soube precisar o horário em que tornou a acordar, mas a julgar pelo tom alaranjado do céu, já deveria estar próximo do fim do dia. Suas pestanas ainda estavam pesadas quando algo percebeu algo de diferente em seu quarto. Disposto sobre a penteadeira na extremidade oposta, havia um delicado vaso recheado de camélias, montado de modo tão delicado como somente seu jardineiro seria capaz de fazer.

O perfume fresco das flores indicava que haviam sido recém colhidas, e por mais que não houvesse disposição ou ânimo para movimentar-se, foi impossível resistir ao aroma que se apossava do ambiente. Cambaleando sobre os pés fracos, ela deixou os dedos sentirem a textura macia das pétalas enquanto sua mente retornava para algum ponto no passado, onde se permitia correr, cavalgar e explorar todas as maravilhas expostas em seu jardim. Eram boas memórias, mas não passavam de tempos remotos que já não retornariam mais.

Estava pronta para retornar ao refúgio de seu emaranhado de lençóis, onde entraria em estado de reflexão até o momento em que Evangeline surgisse, importunando-lhe para que comesse algo. No entanto, antes que pudesse se afastar, seus olhos capturaram a imagem de um discreto objeto oculto atrás do vaso. Tratava-se de um caderno envelhecido, sua capa de couro dando sinais de desgaste pelo tempo ao passo que a beirada as páginas pareciam estar puídas devido ao manuseio excessivo. À princípio, o item não lhe chamou a atenção, e ela julgou que o antigo servente pudesse tê-lo esquecido ali por engano.

No entanto, sua percepção mudou completamente após folhear as primeiras páginas. Não se tratava de um caderno qualquer, mas sim de um diário. Tomada pela curiosidade, a menina sentou-se junto a banqueta do móvel, passando a explorar as memórias ali eternizadas. De início, os acontecimentos lhe pareceram confusos, até que os nomes dos personagens daquela antiga trama fossem explicitados, conferindo-lhe uma estranha sensação. Apesar dos fatos inéditos, tudo ali lhe parecia familiar.

A horas se passaram rapidamente e escuridão tomou conta do cômodo por completo. Sarah perdera as contas de quantas vezes tinha lido cada um daqueles relatos e confissões. A trajetória da antiga possuidora daquele caderno fora interrompida de maneira brusca e inesperada, o que ficou evidente pela quantidade de páginas ainda em branco, que poderiam ser facilmente preenchidas com os muitos questionamentos que tinha em mente.

Não havia um adjetivo exato que pudesse definir seu estado de espírito naquele momento. Pela primeira vez em muitos dias, ela olhou para os lados e se sentiu sufocada pelas paredes de pedra. Aquele castelo não lhe pertencia, assim como as terras que o circundavam. Sentia-se uma intrusa em sua própria realidade, e quanto mais pensava no assunto, mais o ar faltava em seus pulmões.

Sem saber de onde havia extraído forças para tal, Sarah sentiu urgência em inspirar um pouco de ar fresco, de modo a manter-se a acordada. O quarto que estava localizado no andar térreo lhe conferiu pronto acesso a área externa daquela antiga morada. O ar fresco rompeu contra seu rosto anêmico e pela primeira vez em muitos dias, ela se sentiu aliviada. Mas aquilo não era suficiente. Aquelas páginas lhe trouxeram mais questionamentos que respostas, e ela não estaria em paz consigo mesmo enquanto tudo não fosse esclarecido.

Ciente disso, ela avançou em direção a escuridão, caminhando com passos vacilantes, enquanto trazia consigo o diário de Katherine em mãos.


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