The Queen's Path escrita por Diamond


Capítulo 44
Capítulo XLIV - 23 de Fevereiro de 1873


Notas iniciais do capítulo

Olá, meus queridos! Espero que estejam tudo bem com vocês!
Esse Capítulo demorou um pouco mais que o habitual, e não foi por conta do seu tamanho, mas sim porque minha vida acadêmica necessitou de um pouco mais de atenção nos últimos dias. Mas farei o possível para tentar as postagens regulares, afinal, essa grande aventura está chegando ao fim *snif*
O último capítulo resolveu alguns mistérios, mas também deixou algumas pontas soltas. Chegou a hora de colocar alguns pingos nos i's, não acham? Espero que estejam preparados para o que está por vir!

Desejo a todos uma ótima leitura ;)



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— Que cena mais incomum, vê-lo sozinho nesta sala. Perdoe-me a indiscrição, mas onde está nossa distinta Majestade?

Sustentando o ar de seriedade e indiferença, o Duque de Odarin permaneceu silente, debruçado sobre uma longa lista a qual dedicava sua atenção. Os momentos reticentes fizeram com que o Conde Van Berger se questionasse se fora realmente ouvido. Já cogitava reformular sua pergunta, mas reteve-se ao ver o rapaz empertigar-se em sua cadeira.

— Muito bem, nós iremos avaliar sua exposição de motivos, e em breve daremos publicidade à nossa decisão de qual Família se encarregará da construção da Companhia de Fundição de Minérios — pontuou com polidez, e percebendo que seria interrogado novamente, optou por adiantar-se. — Nossa Rainha não estava se sentindo disposta esta manhã, portanto, estou despachando os assuntos mais urgentes.

— Oh, compreendo — afirmou vagamente o homem já idoso, que assumiu uma postura reflexiva. — Encaminhe meus cumprimentos e votos de melhoras a ela.

— Serão devidamente comunicados — Edgar respondeu, de maneira desinteressada e mecânica.

— Uma dama tão jovem, espero que não seja nada grave — o Conde mencionou num tom estranhamente afável. “Então os rumores são verdadeiros”, refletiu com um ar vitorioso e um discreto sorriso de escárnio, que não passou despercebido aos olhos atentos do jovem Avelar. — Bem, é preciso compreender que não existe uma proporção direta entre gerenciar uma casa com muitos empregados e governar um reino em meio à crise. Talvez o peso da Coroa seja um fardo pesado demais para alguém tão inexperiente. É por essa razão que nosso Conselho é composto por homens de verdade, dispostos a cumprir suas funções sem escusas ou desvios.

— Estou certo de que o exercício de suas funções em nada se relaciona com seu mal estar recente — retrucou de maneira impositiva, demonstrando austeridade em sua fala. — Ademais, não tenho dúvidas de que ela deixará um legado maior que qualquer homem que a tenha precedido.

Uma risada debochada ecoou pelo cômodo, logo sendo substituída por uma tosse seca, cortando assim as notas de humor que julgou estarem presentes na resposta do Duque. Ainda assim, o aristocrata não deixou que o incidente interferisse em sua postura audaciosa.

— É muito comovente presenciar sua manifestação de solidariedade, mas devemos encarar os fatos: ela não está pronta para arcar com tamanha responsabilidade, além de se mostrar pouco alinhada com os nossos interesses — pontuou com um meio sorriso, entrelaçando os dedos e demonstrando convicção em seu pensamento. — Seria um verdadeiro alívio para todos se você assumisse seu lugar na regência deste reino.

— Para ser sincero, estou mais do que satisfeito com a minha posição atual — Edgar retorquiu, com impaciência — Se era tudo que tinha para tratar, peço que me dê licença, pois tenho outras questões pendentes de resolução.

O Conde Van Berger permaneceu imóvel por instantes, cogitando acrescentar algo mais em sua fala, mas concluiu já ter atingido sua cota de ousadia para aquele dia. Despedindo-se com um respeitoso menear, ele se afastou com passos lentos justificados pela idade avançada. Estava prestes a cruzar a porta do gabinete, onde quase esbarrou na governanta daquela casa, que tencionava entrar no mesmo instante. Seu semblante, assim como a maneira nervosa com que torcia as mãos denunciavam um nível de aflição incomum. No entanto, tal como orientavam os costumes, ele afastou-se para o lado para lhe conferir passagem, não recebendo mais que uma apressada vênia em agradecimento.

Aproximando-se da mesa ornamentada, ela encontrou o Duque absorto em pensamentos enquanto seus olhos encontravam-se repousados num ponto aleatório daquela pilha de materiais. A antiga servente se limitou em observá-lo por longos segundos, avaliando sua figura desnorteada enquanto tentava decifrar o que poderia ter causado tamanho impacto no comportamento do casal regente de Odarin.

Desde que retornaram do baile organizado na casa de Lorde Banville, muito antes do horário que eram esperados, ambos pareciam profundamente afetados. Edgar estava distante e taciturno, envolto por um ar de seriedade que muito se distanciava de sua personalidade agradável e solícita. Mas essas alterações não chegavam nem perto do estado de sua menina. Tomada por uma febre delirante, a jovem rainha teve de ser transportada até seu cômodo pela guarda real, incapaz de manter-se de pé, emitindo a todo instante gemidos e balbucios incompreensíveis. Evangeline manteve-se em vigília ao seu lado até que as compressas geladas começassem a fazer efeito, conferindo a Sarah um sono um pouco mais tranquilo. Mesmo após uma saraivada de questionamentos angustiados, nada que fora dito por Edgar pôde ajudá-la a compreender o que poderia ter ocasionado aquele abalo.

— Diga logo a que veio, Evangeline — ele mencionou após algum tempo, em meio a um suspiro cansado. Havia tantos assuntos para tratar, assim como correspondências para responder que quase o fazia sentir-se saudoso em relação ao proativo Secretário Real. Quase.

— Desculpe-me interrompê-lo, sei que os últimos dias foram anormalmente atarefados — ela iniciou, e o rapaz não pôde deixar de perceber que em sua fala havia um misto de distanciamento cortês e desconfiança.

Parece que todas as pessoas passaram a me ver como um monstro”. O pensamento o relembrou de algumas das marcas que carregaria para sempre em sua consciência, um fardo leve se comparado com a dimensão de seu delito. “Não posso dizer que estão errados. A verdade é que eu deveria estar sepultado ao lado de Allen”, concluiu com amargura.

— Como ela tem estado? — Edgar questionou ao perceber o ar de reticência que pairava sobre o ambiente. Sua cabeça permanecia baixa, e seu semblante, abatido.

— A febre finalmente cedeu, mas Sarah ainda não proferiu uma única palavra. Têm comido muito pouco, quase não se levanta da cama também. — Pontuar cada uma daqueles aspectos fez com que tornasse a torcer as mãos, o que a ajudava manter seus nervos sob controle. Todavia, já havia presenciado algo similar antes, e desta vez faria tudo que estivesse ao seu alcance para evitar uma nova tragédia. “Eu não permitirei que lhe aconteça o mesmo que Beatrice”, prometia mentalmente a si mesmo todos os dias. — Adoraria saber o que houve para deixá-la neste estado, talvez assim pudéssemos tratá-la adequadamente.

— Eu também gostaria de saber.

Evangeline crispou os lábios de imediato, inconformada com aquela resposta. As palavras soaram desinteressadas, mas a realidade é que o jovem Avelar tentava há dias, sem sucesso, ordenar os pensamentos que tinha em mente. Recordava-se a todo momento da revelação de Anya, ocasião em que era tomado por uma misto de revolta e indignação, afstando-o de qualquer resquício de racionalidade. Mesmo tantos anos de pura especulação, quem poderia antever algo daquela dimensão? Nem mesmo podia crer na desconfiança de com o qual era visto por sua antiga noiva. Eram agora estranhos um ao outro, como se nunca tivesse se conhecido.

Se o assunto não bastasse para lhe exaurir as forças, os detalhes de sua conversa com Phillip dias atrás ainda geravam todo tipo de questionamento, preocupando-o com a dimensão que aquele problema poderia alcançar. Por fim, o estado de saúde de sua consorte não dava indícios de melhora, de tal maneira que ele sequer imaginava por qual daquelas situações deveria se preocupar em solucionar primeiro. Se ao menos o Secretário não tivesse sido tão impulsivo, talvez Sarah não estivesse naquele estado agora…

— Momentos antes de entrar, pude ouvir parte de sua conversa com o Conde Van Berger — a governanta interpelou, fazendo com que o rapaz erguesse o olhar, passando a encará-la com o cenho franzido. Podia sentir uma nuvem de tensão pairando sobre eles. — Até quando acha que poderá sustentar essa farsa? Logo ninguém mais acreditará que ela tem acordando simplesmente “indisposta” todos os dias.

— Não estou dizendo nenhuma mentira — retrucou, colocando-se instintivamente numa posição defensiva, não gostando nenhum pouco do rumo daquele diálogo.

— Está se abstendo de encarar a verdade! — Evangeline rebateu com veemência, deixando evidente seu esforço em controlar o tom de sua voz, àquela altura já banhada em angústia. — Você sabe que Sarah está doente! Já cogitou que ela poderia...

— Não seja ridícula! — Edgar exclamou, interrompendo sua fala sem cerimônia, agora visivelmente aborrecido com a insistência da governanta. Já tinha problemas demais para lidar sozinho, e ter de ouvir aqueles absurdos em nada iriam lhe ajudar. — Sarah não está ferida ou doente. Mesmo que tenhamos tido uma trágica sucessão de infortúnios, tenho absoluta certeza de que ela detém o total controle de suas faculdades mentais. Tudo que precisa é de algum tempo para assimilar tudo isso. Dê-lhe isso, e verá como é capaz de se reerguer sozinha.

A menina fora responsável por lhe transmitir segurança em seus momentos de instabilidade, e ele sustentava o desejo de lhe retribuir o gesto nesse sentido. O Duque de Odarin reconhecia a força transformadora que habitava no íntimo da jovem rainha, não duvidando de sua capacidade de ressurgir das próprias cinzas. No entanto, estava ciente de que nem sempre nossos anseios podem ser solucionados de imediato. Ele próprio precisou de muitos dias para superar suas crises pessoais, e Sarah foi tolerante o bastante para aguardar o seu restabelecimento. Agora, estava decidido a ir contra a vontade de todos que se opusessem para fornecer-lhe o mesmo, ainda que isso contrariasse a opinião da governanta.

— Sinto muito, mas não posso concordar com a ideia de que abandoná-la à própria sorte é nossa melhor alternativa. Duas semanas se passaram e já não suporto mais vê-la definhar! — Àquela altura, sua voz tornou-se esganiçada diante da falta de atitude do Duque, não lhe restando mais um único resquício da postura elegante e contida de outrora. — Quanto tempo mais pretender dar ela? O suficiente para que seja tarde demais?

— Basta! — Tomado por uma súbita ira, o jovem Avelar levantou-se de imediato enquanto batia o punho contra a mesa, provocando um som oco que interrompeu a onda de impropérios proferidos pela governanta. — Minha decisão já foi tomada e, portanto, esse assunto não está mais em discussão.

— Existem médicos que podem...

— É realmente isso que deseja? Encher seu quarto de médicos, para que todo o reino tome conhecimento do estado em que ela se encontra? Ou que lhe prescrevam as mesmas fórmulas que dariam aos loucos e desajustados? — Algo no semblante do rapaz continuava indecifrável aos olhos de Evangeline. Sua fala convicta parecia estar revestida de uma resolução energética. Entretanto, suas reais intenções não eram nada fáceis de serem interpretadas. — Posso não ser o consorte perfeito, mas não permitirei que Sarah passe por mais essa humilhação. Agora volte aos seus deveres, não deveria se afastar dela por tanto tempo.

— Você não a conhece como eu conheço. Não se lembra do que aconteceu com a pobre Beatrice? Sarah está a um passo de cometer uma loucura semelhante, e me pede para dar-lhe algum tempo? — Tentar recuperar a calma de antes era inútil, e ela sabia disso. No entanto, falar começava a se tornar uma tarefa penosa no estado em que se encontrava, e o pânico parecia consumi-la por dentro, paralisando seus movimentos aos poucos. Não se sentia insegura daquela maneira desde a morte de Allen, quando seu pesadelo de anos parecia ter chegado ao fim. Ledo engano. Apelar para o lado sentimental não demonstrou surtir quaisquer efeitos no rapaz e só então percebeu que estava diante de uma face desconhecida do Duque de Odarin. Uma com a qual não sabia lidar. — Como espera que eu aceite algo assim? Estamos apenas perdendo tempo, e a cada minuto que se passa nos aproximamos mais de uma nova tragédia!

— Estamos em claro desacordo nessa questão, mas sinto lhe informar que a última palavra ainda é a minha. Não tente medir forças comigo, porque você vai perder — ele ameaçou, de maneira severa e com um ar autoritário, surpreendendo não só a senhora à sua frente, mas também a si mesmo. — Lhe direi pela última vez: minha decisão foi tomada, e nada que disser mudará meu posicionamento. Sempre respeitei sua posição, e confesso que não gostaria de chegar a esse ponto, mas você não me dá outra escolha. Guardas!

Evangeline não esperava vê-lo perder a paciência daquela maneira e a ordem a deixou desconcertada por um instante, sem saber como deveria reagir àquilo. De imediato, os dois guardas adentraram no ambiente, esboçando uma reverência logo que cruzaram a porta.

— Tirem-na daqui e não a deixem entrar novamente, está atrapalhando minha concentração.

Os sentinelas se entreolharam por um segundo, incertos se haviam compreendido corretamente. Desde que se tornaram responsáveis por controlar a entrada e saída do Gabinete Real, jamais receberam um mandamento semelhante, além de estarem habituados a personalidade afável do jovem Avelar. Entretanto, desobedecer a um ditame do consorte da rainha, seu imediato direto, estava longe se ser uma opção viável. Assim, o mais audacioso deles ergueu a mão na direção do braço da governanta, segurando-a com firmeza.

— Afaste-se de mim, não sabe do que sou capaz — ela vociferou, chacoalhando o braço com violência, logo afastando-se alguns passos dos oficiais aproximavam-se de maneira ameaçadora, fazendo com que se afastasse do Duque. — Como ousar fazer isso, Edgar? Eu esperava um pouco mais de decência de você.

Sem se incomodar com as ofensas que lhe eram dirigidas, o rapaz apenas tomou um papel onde planejava redigir uma carta. Ignorava todo o barulho à sua volta, enquanto os dois membros da Guarda Real se esforçavam para compeli-la a se retirar do cômodo. Quando finalmente obtiveram sucesso, a porta foi fechada com discrição e o silêncio tornou a reinar no ambiente.

Somente então Edgar se permitiu suspirar profundamente, enquanto uma onda de cansaço se abatia sobre seus ombros. Na tentativa de ignorar sua própria condição, aproximou a caneta do papel esforçando-se para lembrar o que pretendia escrever antes de ser interrompido pela antiga servente. Seus olhos repousaram sobre os próprios dedos, e só então percebeu como tremiam violentamente. “Está ficando mais forte”, constatou enquanto apertava o objeto que tinha em mãos com força, buscando conter o ímpeto de recorrer às garrafas de vinho dispostas do lado oposto do gabinete.

Transcreveu um pensamento, a primeira ideia que lhe ocorreu na ocasião, cujo intuito era apenas distraí-lo daqueles tremores incontroláveis, mas estes fizeram com que sua elegante caligrafia mais se assemelhasse a um borrão disforme, ilegível demais até para ele. Com o sangue borbulhando de frustração, foi impossível conter o ímpeto de limpar a mesa com os braços, jogando todos os objetos que haviam sobre ela no chão, em completo descontrole. Sua testa logo se chocou contra o tampo de madeira enquanto enterrava os dedos trêmulos nos fios loiros. “O que diabos eu tinha em mente quando achei que poderia arcar com todas essas responsabilidades sozinho?”. Não conseguia lidar com as pessoas à sua volta, fossem os nobres ou mesmo a governanta do castelo. Não tinha controle sobre seu próprio corpo, estando impossibilitado até de escrever uma simples carta.

Poucos depois de seu casamento, ele havia se comprometido a cuidar de Sarah. Agora, quase um ano depois, pôde constatar como suas palavras eram de pouca valia, pois estava sempre falhando com suas promessas diante daqueles a quem mais amava.



Ainda que o jardim da Família Chevalier não fosse grandioso ou elegante como o que rodeava o castelo de Odarin, o gramado esverdeado com mudas de flores esparsas trazia certo charme àquela morada. Aos poucos, o ar primaveril invadia as ruas e as casas, trazendo sorrisos bobos aos rostos de crianças e idosos. Phillip, por outro lado, mantinha seu semblante inalterado diante da mudança de estação. Nem mesmo o aumento de temperatura — algo que ele há muito ansiava — foi capaz de suavizar suas feições endurecidas. Com o olhar pesado, os lábios crispados e os punhos cerrados, tinha-se ali a personificação da insatisfação.

Desejava desaparecer ali mesmo, pois só assim não seria obrigado a conviver com suas próprias falhas. A morte seria preferível a isso, mas era orgulhoso demais para atentar contra sua própria vida. Não havia nada mais penoso para si do que admitir que estava errado, e ainda assim, ele o fizera. Certamente aquela estava longe de ser sua decisão mais sábia. No entanto, algo em seu coração o dizia que tinha agido corretamente.

Não que essa realização tenha tornado a situação menos humilhante para ele, e recordar-se do ocorrido, dias antes, apenas fazia com que se sentisse ainda pior...

 

Caminhando pelos corredores parcialmente vazios do castelo, o Secretário Real — se é que ainda podia se considerar detentor daquele cargo — avançava com um ar pesaroso. Desde o baile na mansão do Lorde Banville, as palavras sussurradas de Charlotte revelaram um novo ângulo ao caso que tinha em mãos, trazendo à tona fatos que modificaram de modo substancial sua teoria. Agora, diante dessas informações inéditas, ele sentia-se pequeno e estúpido. Foram incontáveis noites mal dormidas, gastas com a colheita de dados, lendo e analisando relatórios comerciais, tudo para chegar à uma conclusão precipitada e errônea, denunciando ao mundo que era mais ingênuo do que gostaria de admitir.

A cada passada ele podia sentir o peso em seus ombros aumentando, assim como a náusea desconfortável que havia se instalado em seu estômago naquela manhã. Tentava afastar sua mente desses detalhes, pois ainda tinha um último dever a cumprir à serviço da Família Real de Odarin.

Sua caminhada fora mais longa que o usual, mas encontrar aquele a quem buscava não lhe trouxe qualquer alívio. Constrangimento não era uma sensação com a qual estivesse acostumado e também não era das mais agradáveis. Suspirando longamente, ele abriu as portas da biblioteca, avistando o consorte da rainha concentrado numa pilha de papéis dispostos sobre uma mesa de estudos.

— Perdoe-me por interrompê-lo — anunciou de maneira altiva, o que chamou a atenção do rapaz a poucos passos dali. — Existe um assunto da maior importância que preciso tratar com você.

— Depois de tantos dias, muito me admira vê-lo aqui — pontuou o jovem Avelar, enquanto repousava sobre o colo os documentos que analisava com atenção. Sua voz era tranquila, mas estava longe de demonstrar a usual simpatia. — Pensei que não teria mais a obrigação de encará-lo novamente.

Phillip crispou os lábios ao constatar que ambos vinham pensando no mesmo. Foram tão poucos meses de secretariado, tinha a certeza de que ninguém se recordaria dele, caso o Duque de Odarin tornasse a ser o braço direito da rainha. Exceto, é claro, por sua família de desajustados, que jamais o perdoariam por renunciar ao cargo e todas as facilidades dele advindas. No entanto, que tipo de homem ele seria se, depois de causar tamanho prejuízo, apenas se eximisse de sua responsabilidade?

— Eu não teria vindo se não fosse realmente necessário — retrucou, à contragosto, tentando lembrar a si mesmo porquê estava ali.

— Não tínhamos a necessidade de um terceiro interveniente como Secretário Real, mas você veio mesmo assim — Edgar alfinetou, estabelecendo ali um ar hostil. Desde a primeira vez que o vira, sentiu em seu íntimo que o rapaz representava uma ameaça a sua tranquilidade recém adquirida e seu julgamento não poderia ter sido mais acertado. No entanto, veio então a realização de que o tempo gasto em confrontações como aquela apenas prolongava o período gasto na presença do jovem Chevalier. — Diga a que veio de uma vez, ainda tenho muito o que fazer.

— Imagino que à essa altura Sarah já tenha lhe questionado acerca das questões que discutimos sobre os assentamentos contábeis de Odarin...

— Eu ficaria feliz se ela me questionasse sobre qualquer coisa, mas desde o término do baile na mansão do Lorde Banville, não tem sido capaz de proferir uma única palavra. Na realidade, mal tem tido forças para se levantar de sua cama. — A voz do Duque detinha um misto de agressividade e apreensão. Pela primeira vez, Phillip reparou na maneira como ele franzia as sobrancelhas e fechava os punhos ao mencionar o estado da jovem rainha. Sabia reconhecer falsas demonstrações de afeto, e aquela não era uma delas. — Mas adoraria saber o que disse para deixá-la em tal estado de perturbação mental.

Saber como suas palavras duras e incisivas a afetaram negativamente a saúde da menina foi como receber um soco no estômago, mas ele se esforçou para não demonstrar aquilo. “Espero que agora esteja satisfeito consigo mesmo”, pensou com amargura, em mais um de seus momentos de penitência pessoal, antes de respirar fundo e prosseguir com sua fala.

— Eu o acusei de traição à Odarin por aceitação de suborno — ele iniciou, à princípio em meio a um murmúrio ao sentir a voz vacilar. Admitir aquele erro em voz alta era ainda mais difícil do que sua imaginação pudera prever. Ainda que estivesse confuso, Edgar manteve seu semblante indiferente, aguardando até que a confissão se encerrasse antes de intervir. — Constatamos diversos registros de grandes verbas vinda de Greenwall para cá, mas as informações limitam-se a indicar sua entrada, sem que tenha lhe sido dada qualquer destinação. Também não temos qualquer comprovação de que tenham ingressado em nos cofres da Família Real. Tínhamos suspeitas, agora devidamente comprovadas, de que havia um acordo comercial para que Greenwall incorporasse as terras de Odarin aos seus domínios.

— Phillip, um reino não obedece às mesmas regras de uma propriedade privada — ele retrucou de maneira impaciente e descrente. Há muito tempo, já havia percebido um considerável número de inconsistências nos registros contábeis do reino, mas nada que o levasse à um desfecho tão absurdo e surreal. — Não se pode simplesmente comprá-lo com grandes remessas de ouro.

— Ainda que as terras não possam ser diretamente adquiridas por transferências monetárias, o mesmo não se aplica à colaboração da Família Real, mais especificamente de seu governante — o rapaz elucidou, com uma pontada de orgulho presente em sua voz. — Depois de atingido o valor acordado, buscarão um motivo qualquer para declarar uma guerra. Encare essas fortunas como uma indenização, capaz de garantir uma conquista grandiosa sem maiores manifestações de resistência. Odarin foi propositalmente construída próxima à uma cordilheira, para que nosso clima e geografia adversos viessem a desencorajar quaisquer invasões de reinos vizinhos. Entretanto, é uma terra fértil em minérios e com alto potencial de exploração. Por que sacrificar centenas de famílias num combate quando um acordo comercial pode facilitar tudo?

O jovem Chevalier tinha todas aquelas minúcias muito claras em sua mente, o que fez com que o Duque se questionasse por um instante se não havia sido ele a arquitetar aquele plano ardil. Todavia, a desconfiança logo se mostrou infundada no momento em que parou para refletir sobre o assunto. “Ele não revelaria todas essas informações, cheias de detalhes substanciais, se fosse responsável por isso”, ponderou em silêncio, enquanto tentava ordenar as ideias.

— “Devidamente comprovadas”, foi o que disse antes — o jovem Avelar arguiu, esforçando-se para compreender aquela linha de raciocínio. Aquela narrativa tinha o deixado tão atordoado que sequer lhe ocorreu a ideia de refutar as acusações que lhes eram dirigidas. — De quem obteve essa comprovação?

— Sua irmã mais nova. — A informação, dita de modo quase casual, fez com que ele se empertigasse em sua cadeira, dando mais atenção àquelas palavras. — Em suas próprias palavras, Charlotte tomou conhecimento deste acordo há pouco tempo, e por mais que ansiasse em revelá-lo, não teve outra oportunidade para fazê-lo senão na mansão de Robert Banville. Seu testemunho confirma a participação ativa de nosso antigo regente neste estratagema.

— E por ter sido seu Secretário Real à época, acredita que fui cúmplice neste esquema?

— Essas foram minhas conclusões iniciais e as que compartilhei com Sarah, na manhã que antecedeu o baile. — Aquele era o momento crucial. Tomando fôlego mais uma vez, sabia que precisava ir até o fim, ou jamais estaria em paz com sua consciência novamente. — Entretanto, eu estava errado em meu julgamento. Sem dúvidas, Allen não poderia pôr este plano em prática sem a presença de um intermediário que agisse em seu nome. E essa função não poderia ser desempenhada por qualquer pessoa. Era preciso que detivesse relevante posição social, pois somente dessa maneira teria acesso à Corte de Greenwall, assim como um passaporte que lhe conferisse trânsito livre entre os reinos.

— Quem poderia compactuar com algo dessa dimensão? — Edgar questionou com incredulidade, até mesmo se esquecendo de toda a hostilidade e animosidade de antes por um instante. Estavam diante de algo muito além de meras desconfianças e inimizades. Sentia-se até mesmo sem chão ao constatar a viabilidade de uma negociação com aquela. Além disso, Allen tinha um intelecto singular para tornar tudo que aparentava ser impossível em algo perfeitamente possível.

— De acordo com sua irmã, Gilbert Avelar vem atuado como mediador há muitos anos — Phillip acrescentou, percebendo o momento em que o Duque se encostou novamente em sua cadeira, custando a acreditar no que acabara de ouvir. “E cheguei a pensar minha família era problemática”, pensou enquanto observava o semblante perdido daquele diante de si. De início, a estranha aproximação da ruiva no dia do baile, assim como tudo que lhe fora revelado parecia ser apenas uma maneira torpe de desviá-lo de sua investigação, uma tentativa desesperada de inocentar o consorte da rainha. Mas como poderia saber que vinha buscando a punição dos possíveis responsáveis por aquela traição? Como teria antevisto que ele era seu principal suspeito? Refletir sobre aqueles detalhes fez com que analisasse os novos fatos com mais atenção, até que não houvesse mais dúvidas. — Talvez consiga saber mais detalhes se puder encontrá-la pessoalmente.

— Por que está me contando tudo isso? — questionou, com uma genuína expressão de dúvida que o pegou desprevenido, necessitando de alguns instantes de poder respondê-lo.

— A sensação de estar errado num julgamento é abominável. No entanto, não sou capaz de suportar injustiças — ele iniciou, com toda sua convicção e orgulho depositado nelas. — Tenho muitos defeitos, assim como qualquer outra pessoa. Mas asseguro-lhe de que deslealdade não é um deles. Meu intuito sempre foi ajudar, e eu jamais faria algo para prejudicá-la. Ao menos, não propositalmente.

O cômodo tornou-se silencioso, pois ambos entraram em estado de reflexão. Entretanto, o ar pesado e tenso de antes parecia ter se dissipado. Havia se instaurado entre eles uma espécie de trégua, pois pela primeira vez estavam alinhados num mesmo objetivo: salvar Odarin da eventual invasão de Greenwall, que poderia ocorrer a qualquer momento.

— Mande meus cumprimentos, assim como minhas desculpas a ela. Eu gostaria de ter feito tudo diferente. Sinto muito por todo o transtorno.

— Phillip — Edgar chamou-o, instintivamente erguendo-se de sua cadeira para fazê-lo ao perceber que o rapaz já caminhava apressadamente em direção à saída. Havia algo que precisava dizer ao seu mais novo aliado antes de deixá-lo partir daquela maneira. — Obrigado por compartilhar tudo isso comigo. Eu adotarei as medidas necessárias para evitar que o pior aconteça.

Em resposta muda, o jovem Chevalier apenas assentiu positivamente, antes de tornar o rosto e se retirar do cômodo. Havia uma lágrima teimosa presa na lateral de seu olho esquerdo, mas seu orgulho pessoal jamais o permitiria derramá-la diante de alguém.

 

Já não sabia mais precisar quantas vezes se obrigara a reviver aquele diálogo. Ele se sentiria um pouco melhor se o Duque tivesse sido ainda mais hostil enquanto lhe dirigia outras tantas ofensas. Talvez isso amenizasse a angústia por desconhecer o real estado de saúde de Sarah. Mesmo com tudo que fora dito, não ousaria retornar ao castelo quando havia sido ele o causador de seu sofrimento e enfermidade. Nem mesmo os apelos angustiados de Evangeline, que empregara uma visita no dia anterior o fizeram mudar de ideia. Tinha a certeza de acabaria piorando ainda mais a condição da jovem rainha.

Nada daquilo deveria ter acontecido. Por que tinha se precipitado, revelando tais questões horas antes de um baile? Se tivesse aguardado apenas mais um dia, quantos desentendimentos e dores não poderiam ter sido poupados? Quando estivesse recuperada, Sarah o perdoaria após acusações tão graves contra seu próprio consorte? E se não tivesse a oportunidade de restabelecer sua saúde? Aqueles questionamentos o deixavam sem fôlego, e ele teria tido uma crise nervosa se não tivesse percebido uma presença simbólica ao seu lado, perturbando sua quietude.

— Posso me sentar aqui?

A pergunta fora protagonizada por uma voz doce, que deixava transparecer notas de constrangimento. Não era necessário tornar o rosto para saber que a criada ruiva se encontrava ao seu lado, observando-o com timidez.

— Não, vá embora — ele retrucou de modo seco, sem meios sorrisos presunçosos ou olhares cheios de significado. — Você mentiu para mim.

O retorno da mansão do Lorde Banville não havia sido conturbado apenas para a Família Real. Se Florence ralhando com os mais velhos diante de sua inaptidão para cortejos não fosse suficientemente desagradável, ele não pudera deixar de reparar no semblante abatido e infeliz da empregada que os acompanhava. Entretanto, seus questionamentos teriam que aguardar pela ocasião em que dispusessem de alguma privacidade. Apesar da resistência inicial, não demorou para que suas forças se exaurissem e ela deixasse escapar um choro que há muito vinha sendo suprimido. Com ele, vieram também à tona alguns de seus segredos mais antigos, entre eles sua verdadeira identidade, assim como tudo aquilo que acontecera longe do salão cheio de convidados.

Como um bom cavalheiro, ele deveria tê-la acolhido em seus braços e dito-lhe que tudo ficaria bem, mesmo que aquilo fosse uma inverdade. No entanto, Phillip não soube como reagir àquilo, razão pela qual manteve-se inerte por longos minutos. Tudo que conseguia pensar era na impressão que tivera desde o instante em que se conheceram, e em como havia deixado todas aquelas desconfianças de lado para acolhê-la na casa de sua própria família.

— Eu menti para muitas pessoas — ela pontuou, enquanto se ajoelhava junto ao gramado simplório, tomando as mãos do rapaz entre seus dedos, esboçando uma carícia gentil, que por sorte não fora bruscamente repelida. — Não espero que compreenda meus atos em momento algum. Apenas gostaria de saber se há algo que possa fazer para ajudá-lo.

Mesmo que uma dúzia de palavras atravessadas e recheadas de mágoa tenham cruzado seu pensamento, ele optou por manter-se silente. Não tencionava fazer quaisquer concessões, mas julgou que ela já havia sofrido o suficiente por uma vida. Não desejava ser o responsável por adições desnecessárias àquele conjunto de experiências ruins. Aquela linha de pensamento talvez fosse a única coisa boa advinda da atual condição de Sarah.

— Eu nem mesmo sei como devo chamá-la a partir de agora — ele confessou em voz baixa, ligeiramente consternado por permitir aquela aproximação. Mesmo à contragosto, era preciso admitir como a companhia da jovem acalmava seu coração e seus pensamentos turbulentos.

— Pode me chamar de “amiga”.

Diante daquela fala, veio então um discreto sorriso encabulado da parte do rapaz, possivelmente o primeiro em muitos dias.



Com a cabeça repousada sobre o colo de sua governanta, Sarah quase não podia sentir os dedos finos da antiga criada afagando-lhe os cabelos castanhos, àquela altura opacos e quebradiços. Tomada por um estado de letargia, o menor movimento requeria um esforço descomunal, razão pela qual ela vinha evitando mover-se. Trancada em seu quarto, apenas suas necessidades básicas capazes de lhe tirar da cama, pois o restante do tempo era gasto àquela maneira, em meio a um silêncio reflexivo, ignorando tudo em seu redor. Quantos dias se passaram desde que estivera na mansão de Robert Banville? Não tinha a menor ideia. Quando fora a última vez que vira seu consorte? Também não saberia dizer.

A verdade era que tais informações de nada lhe serviam, de modo que não se preocupou em formular quaisquer questionamentos acerca delas. Aliás, vinha abstendo-se de ouvir sua própria voz já tinha algum tempo. Começava até mesmo a esquecer-se das entonações que costumava utilizar. “Não é o bastante”, pensava consigo mesma.

Havia uma única coisa que a jovem rainha não conseguia esquecer, por maior que fosse seu empenho: o gesto mortal que havia esboçado enquanto tinha o punhal em mãos no dia do baile. Daquela noite, não restavam mais que alguns lapsos de memória, mas o momento em que tomou o afiado objeto em mãos, erguendo-o no intuito de ferir Edgar mortalmente, estava bastante vivo em sua mente. “Chega, eu não aguento mais pensar nisso”.

Se Delia não tivesse a empurrado para trás, fazendo com que perdesse o equilíbrio e acabasse desacordada, então ela estaria definitivamente sozinha. Edgar era o último familiar que ainda possuía, e mesmo assim algo em seu interior ansiava por vê-lo morto. À princípio, julgou que pudesse ter sido vítima de um surto ou delírio, mas logo que seus ânimos se acalmaram, a verdade se fez presente. Aquele instinto assassino não passava de um traço de personalidade, uma pequena amostra do sangue que percorria suas veias.

Estava tudo muito evidente agora. Seu irmão, detentor de uma frieza calculista, havia destruído o espírito de Beatrice até que seu corpo vazio desse os passos necessários para alcançar um fim semelhante. Já ela, ansiosa e imediatista como era, não hesitou em atender ao desejo homicida na primeira oportunidade que lhe surgiu. E aquela não fora uma tentativa única. Em Hallbridge, semanas antes, foram suas palavras destrutivas que levaram o Duque até os estábulos, onde a tempestade e a agitação dos cavalos poderia ter dado vim a à existência do jovem Avelar.

Dizimar toda a vida que se encontrava ao seu redor fazia parte de sua natureza, e agora que estava ciente disso, só havia uma coisa a fazer: isolar-se até que seu corpo não tivesse mais forças para perpetuar o mal que havia em si. Aquela foi a maneira que havia encontrado de interromper a maldição que se abatera sobre sua família, sabia-se lá há quantas gerações.

— Você precisa comer alguma coisa. Vou buscar algo para nós na cozinha — Evangeline mencionou, seu tom de voz amável buscando qualquer reação que fosse de sua eterna menina. Mas ela nada disse. Com um suspiro cansado, a governanta se limitou a depositar um carinhoso beijo na testa de Sarah, deixando-a para trás logo em seguida.

Eu sou um monstro”, pensou ao ver sua companheira fechar a porta do quarto, deixando-a sozinha por alguns instantes. Uma lágrima salgada escorreu por uma de suas bochechas pálidas, mas ela não se incomodou em limpá-la. “E monstros não merecem saborear o dom da vida”, concluiu com melancolia.



Depois que Maria se comprometeu a deixar uma leve refeição nos aposentos de Sarah, Evangeline tinha mais um lugar para ir antes de retornar à sua vigília. Cada passo dado em direção ao seu destino acentuava o gosto amargo presente em sua boca. Detestava pedir auxílio a quem quer que fosse, mas aquela estava longe de ser considerada uma situação ordinária. Sarah precisava urgentemente de ajuda e já havia esgotado quase todas as suas opções.

À princípio, Edgar se mostrou reticente em adentrar no cômodo em que a tinham isolado, o que pareceu demasiadamente suspeito aos olhos da governanta. No entanto, a experiência mostrou-se desastrosa. Sua presença a perturbou de tal maneira que a menina correu até o ponto mais extremo do ambiente, tal como um animal arredio faria, antes de perder os sentidos mais uma vez. Receosos de que aquilo pudesse lhe causar algum prejuízo, eles não tornaram a repetir a tentativa.

A despeito da ausência injustificada do Secretário Real no castelo, a criada não desistiu facilmente, indo procurá-lo em sua antiga morada. No entanto, nenhuma de suas súplicas surtiram o efeito esperado. Apesar da amizade mantida pelo dois, algo parecia perturbar a consciência do jovem Chevalier, que declinava cada um de seus pedidos com veemência, ainda que não lhe oferecesse maiores explicações.

Por fim, Evangeline buscou ajuda na casa da camponesa ruiva. Sabia as duas há muito tempo não se viam, mas estava desesperada ao ponto de ignorar aquele detalhe. Tinha esperança de que o coração condescendente da moça se compadecesse diante da situação. No entanto, Delia se limitou a mandá-la embora, enquanto afirmava que jamais tornaria a pisar no castelo, por qualquer motivo que fosse.

Seus passos alçaram o extenso jardim, e desde então ela já podia sentir o constrangimento tomando conta de si. Reafirmava a si mesma de que fazia aquilo pelo bem estar da menina, e somente depois de ter exaurido todas as suas alternativas.

Aos fundos do castelo, havia um espaço considerável destinado à plantação de hortaliças e frutos. Na medida em que se aproximava, já podia vislumbrar a figura do antigo jardineiro ocupando-se com o plantio. Sabia exatamente onde poderia encontrá-lo dada a estação do ano em que estavam. Mesmo após tantos anos, sua rotina trivial permanecia a mesma, sem qualquer alteração.

— Aí está você — Evangeline mencionou, valendo-se de uma postura otimista que causou imediata estranheza no servente a quem ela se dirigia. — Imagino que já saiba sobre a atual condição de Sarah.

— Ouvi algo sobre isso na cozinha — Jacques pontuou, ainda concentrado em perfurar o solo, abrindo espaço para as novas mudas de plantas. — Como ela está?

— Nada bem. Pensamos que seu mal estar era causado pela febre alta que a fazia delirar. No entanto, sua temperatura finalmente cedeu, mas ainda se recusa a comer quase tudo que lhe é oferecido. — Soltando um suspiro cansado, seu semblante denunciava o estado de desconsolo em que se encontrava diante daquela situação desesperadora. — Sinceramente, não consigo imaginar o que pode ter acontecido para deixá-la nesse estado.

— Não tente procurar nos galhos aquilo que se encontra oculto nas raízes — ele proferiu no mesmo tom impassível que lhe era característico, o que arrancou um imediato revirar de olhos da governanta.

Desde que podia se recordar, Evangeline odiava toda aquela tranquilidade e indiferença com a qual o jardineiro via o mundo. Jamais pudera compreender como alguém, principalmente sua amada Katherine, podia ter tanto apreço por alguém tão apático e sem personalidade. No entanto, assim como sua mãe, Sarah demonstrava uma estranha afeição pelo servente. Se sua intervenção pudesse trazê-la de volta, então estaria disposta a qualquer sacrifício, mesmo que isso significasse rebaixar-se à um nível tão baixo.

— Não sei como consegue imaginar tantas analogias envolvendo jardinagem — pontuou com algum aborrecimento transparecendo em sua voz. Foi preciso respirar fundo novamente, antes que dissesse algo que pudesse prejudicar sua última esperança de ver sua pequena restabelecida. — Por que não fala com ela? Talvez consiga arrancar-lhe uma palavra, uma reação, qualquer coisa serve!

Jacques precisou parar por um segundo, pois acabava ser pego desprevenido por aquelas palavras estranhamente gentis. Não se recordava de vê-la se portando daquela maneira em nenhum outro momento de sua vida. Todavia, logo pôde compreender a intenção por trás daquele tom pacífico, o que o fez tornar a trabalhar como se nada tivesse acontecido.

— Por que eu faria isso? — questionou, com um fingido ar de incredulidade.

— Está brincando comigo? — ela interpelou de imediato, estupefata diante de tamanha falta de reação. Não existiam adjetivos suficientes para descrever o quanto odiava aquela postura desinteressada. — Estamos falando da rainha de Odarin, será que isso significa alguma coisa para você? Qualquer um morreria pela honra de poder ajudá-la nesse momento de precisão.

— Nesse caso, melhor seria procurar uma dessas pessoas — ele afirmou com descaso, seu olhar ainda voltado para as glebas de terra à sua frente. A julgar pela forma como o rosto da governanta tornou-se vermelho, sabia que seu autocontrole estava chegando ao limite. — O que a faz pensar que algum gesto meu a fará se sentir melhor? Não tenho a lhe oferecer mais que algumas analogias envolvendo meu ofício.

— Acha mesmo que não já tentei isso? — ela retrucou com impaciência, mal podendo acreditar que estava ouvindo respostas debochadas daquele homem. Que mais teria de fazer até que cedesse ao seu pedido? Queria vê-la implorar de joelhos? — Por céus, Jacques, nós a vimos crescer, como consegue não se solidarizar com o seu estado num momento como esse? Você deveria sentir-se na obrigação de lhe prestar auxílio!

— Deveria? — arguiu, com um ar de descrença. Passava a encará-la em seus olhos, podendo presenciar o momento exato em que sua postura altiva vacilou por um instante. Evangeline poderia ser destemida, mas ele sabia exatamente o que fazer para quebrantar aquela atitude desdenhosa. — O que a fez mudar seus conceitos? Se minha memória não falha, por muitos anos a ouvi dizer que eu não passava de um jardineiro simplório e sem instrução, que não merecia a menor atenção. Sendo assim, meus deveres se limitam a zelar pela área externa desse castelo. Por que eu deveria me sentir obrigado a fazer qualquer coisa além disso?

— Porque você é o pai dela! — Sua exclamação soou muito mais alta do que havia esperado, e sua primeira reação foi levar ambas as mãos até a boca, se questionando como poderia ter caído num truque tão baixo como aquele. Seu semblante passou a exibir uma raiva silenciosa, diante de um ato tão ardiloso como aquele.

— Que momento conveniente para se recordar desse detalhe, não é mesmo? — ele rebateu com veemência, sua voz assumindo um tom agressivo que jamais havia utilizado antes. — Em todos esses anos, fui obrigado a vê-la fazer de tudo para me afastar dela, sem que pudesse dizer uma única palavra em protesto. Acha mesmo que pode simular uma voz doce e me convencer a fazer o que quiser?

Ainda que não fosse de seu feitio fazer acusações severas, aquelas palavras duras, assim como muitas outras, passaram anos suprimidas em seu peito, sem que ele ousasse proferi-las em voz alta. Sua consciência conferiu à Evangeline todas as concessões possíveis, mas era preciso pôr um basta em tudo aquilo, e ele acabara de chegar ao limite de sua tolerância. Seu semblante enraivecido se suavizou apenas ao perceber que o rosto da governanta encontrava-se banhado em lágrimas pesadas.

— Me perdoe… — ela sussurrou, não lhe restando mais que um fio de voz. Havia em seu íntimo a certeza de como fora injusta com o jardineiro em diversas ocasiões. No entanto, jamais tivera aquela realidade jogada em sua face daquela maneira, que resultou num choro silencioso e constrangido. — Sei que nem sempre agi da melhor maneira, mas fique certo de que tudo que fiz foi na intenção de protegê-la. Por favor, Jacques, pense nela por um instante. Nós já perdemos Katherine anos atrás, não podemos perdê-la também.

A súplica angustiada, que pela primeira vez soava como um pedido humildemente verdadeiro, foi responsável por acalmar os ânimos entre os dois. Esfregando os cabelos claros enquanto buscava retomar o controle e a parcimônia de antes, ele suspirou longamente.

— Sei de algo que talvez possa ajudá-la — afirmou após instantes de reflexão, recobrando o tom sério e impassível de antes. A informação levou uma onda de alívio ao rosto de Evangeline. Se ele não pudesse fazer algo por sua menina, então ninguém mais no mundo poderia.

O amargor da mágoa continuava presente em seu coração, de modo que o antigo servente teve de lembrar a si mesmo o porquê de estar fazendo aquilo. O que tinha em mente era um gesto que lhe custaria muito. Precisaria valer-se de todo o seu desprendimento para concluir aquela ação. Entretanto, algo em seu íntimo lhe trazia a certeza de que o sacrifício valeria à pena.

Além disso, Jacques faria qualquer coisa para coisa para ver a flor mais preciosa de seu jardim florescendo novamente.


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