The Queen's Path escrita por Diamond


Capítulo 43
Capítulo XLIII - 12 de Fevereiro de 1873


Notas iniciais do capítulo

Olá meus amores, tudo bem?

E hoje, The Queen's Path dá um grande salto, supera seu recorde de palavras escritas por capítulo e traz a resolução de alguns dos mistérios que nos acompanharam ao longo dessa jornada. Espero que o ritmo intenso de acontecimentos permitam que vocês atravessem essa quase 11 mil palavras voando.

Desejo à todos uma ótima leitura!



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/739237/chapter/43

Organizar todos os preparativos para iniciar a construção da Companhia de Fundição de Minérios de Odarin mostrava-se mais trabalhoso do que Sarah havia imaginado. Por outro lado, aqueles pequenos obstáculos não se comparavam a dificuldade que tivera em convencer os nobres a lhe apoiarem nesse intento. Tais detalhes não foram suficientes para desanimá-la, pois acreditava fervorosamente que o crescimento industrial seria a chave para alavancar a economia de seu reino. Além disso, tudo que seus habitantes precisavam era de uma oportunidade para se reerguerem. Por que não dar a eles meios para tanto?

Sua concentração destinava-se a correspondência à sua frente, ocasião em que ponderava com cautela qual seria a pessoa mais indicada para gerenciar aquela obra de perto. Edgar e Phillip, sentados cada um num estofado distinto, ocupavam-se em outras tarefas secundárias.

O silêncio do ambiente foi subitamente interrompido por três batidas firmes junto à porta. A menina autorizou a entrada, e logo a imagem de sua governanta fez-se presente.

— Perdoem-me a interrupção, mas venho para avisar que o médico está aqui e deseja vê-lo — ela anunciou, dirigindo seu olhar atencioso à figura de Edgar. — Pelo que ouvi dizer, parece ter vindo para suspender o uso de sua tala imobilizadora.

— Que notícia maravilhosa! Eu irei acompanhá-lo… — a jovem rainha mostrou-se reticente logo que percebeu os olhos escuros de Phillip repousados sobre si, encarando-a com seriedade. — …assim que terminar de redigir esta carta. Vão na frente, logo me juntarei a vocês.

Com um sorriso acanhado, ao mesmo tempo que encorajador, Sarah indicou a porta com um rápido movimento de sua cabeça, demonstrando que se faria presente assim que possível. Seu consorte se limitou a devolver a gentileza, agraciando-a com um olhar amável e retirando-se do local na companhia de Evangeline, deixando a rainha à sós com seu Secretário Real.

— Me desculpe, eu me deixei levar por um instante — a menina reconheceu com timidez.

— Ainda está se habituando à essa nova realidade, nada mais normal do que isso.

O silêncio tornou a reinar no ambiente, e logo o rapaz percebeu que aquele talvez fosse o momento pelo qual vinha esperando.

— Sarah, existe um assunto que gostaria de tratar com você já há algum tempo, mas estive aguardando pelo momento adequado — Phillip iniciou, sentindo-se ligeiramente tenso diante da questão que ali seria tratada, ainda que convicto de suas ideias. Sua fala cumpriu com o dever de capturar a atenção da jovem rainha, que deixou seus papéis de lado para dedicar-lhe toda a sua atenção. — Mas antes, preciso saber o quanto confia no Duque Avelar.

— Meu consorte, você quis dizer — ela corrigiu, trazendo um ar astuto em seu semblante. Julgava demasiadamente exagerada a maneira impessoal como seu Secretário costumava se referir a ele, e já estava cansada da estúpida desavença perpetuada pelos dois. — E não compreendo onde pretende chegar com esse questionamento. Edgar tem defeitos e limitações como qualquer outra pessoa, mas isso não me impede de confiar plenamente nele ou em seus julgamentos.

Estalando a língua com desaprovação, o rapaz sentia-se ainda mais nervoso diante daquela resposta. Fazê-la encarar os fatos e aceitar a realidade não seria uma tarefa fácil, e desejava fervorosamente que a razão se sobrepusesse à emoção nos próximos minutos, aclarando sua mente para uma verdade incontestável.

Com efeito, o jovem Chevalier caminhou até a cadeira próxima e inclinou-se para frente, assumindo uma postura confidente que instigou ainda mais a curiosidade de sua companhia.

— Muito antes de receber o seu convite para exercer essa função, algo já vinha me intrigando. Após a morte de Henrique Miglidori, Odarin passou anos sendo governada pelo Conselho das Famílias Fundadoras, gerando este caos organizacional que hoje somos obrigados a enfrentar. E como sabe, por mais que se aumentasse os tributos, nunca parecia haver o suficiente para cobrir os custos do reino. Quando Allen assumiu o trono, adotou a política de aumento na arrecadação, mantendo-se firme a esse posicionamento durante seu curto período de regência. Recorda-se de quando lhe disse que tínhamos em nossos cofres mais recursos que o esperado?

Sarah meneou positivamente em silêncio, não ousando interrompê-lo e mantendo-se atenta à sua linha de raciocínio, de modo a não perder um único detalhe. Afinal, tinha interesse em saber onde aquele discurso poderia levá-los.

— Pois bem, a situação me parecia estranha, além de inconsistente com a nossa realidade. Veja bem: tínhamos valores muito superiores do esperado para um período de crise financeira, ao mesmo tempo em que representavam montas ínfimas se comparado com aquilo que fora arrecadado. O cenário singular me instigou a buscar conhecer com precisão como se dava a administração de nossas contas, e então a realidade veio à tona: não só nossa contabilidade está um caos, como verdadeiras fortunas simplesmente desapareceram!

— Espere um momento! Está me dizendo que Edgar é responsável por tudo isso? — Seu questionamento era dotado de um fervor num nível que o rapaz ainda não havia tido a chance de presenciar, fazendo-o recuar por um segundo, o suficiente para que ela expressasse sua indignação. — É absurdo, e até mesmo ultrajante vê-lo fazer acusações dessa estirpe! Francamente, dentre todas as pessoas, eu poderia esperar um gesto desleal como esse de qualquer um, menos você.

— Eu imaginei que ouvir o relato dessa maneira causaria essa impressão, por isso me retive durante tanto tempo, para coletar todas as provas de que precisava. — Era primeira vez em muito tempo que se sentia tão nervoso, mas não tinha caminhado tanto para desistir justamente agora. Sem perder um único instante, ele ergueu-se de sua cadeira, buscando nas volumosas estantes repletas de registros àqueles que precisava para corroborar com sua tese. — Veja esses relatórios comerciais, vindos diretamente da guarda da fronteira. Observe bem essas montas expressivas. Sua descrição se limita a uma única palavra: Greenwall. Não acha estranho que tenhamos tantos recursos entrando de um reino com quem sequer mantemos relações comerciais? E não é só isso, olhe nosso assentamento contábil. Se presumirmos que esses valores são realmente lícitos, por que então não se encontram registrados ou mesmo contabilizados no erário de Odarin?

Escondendo a face entre os dedos, Sarah sentia sua respiração torna-se subitamente ofegante, enquanto uma dor de cabeça latejante dava indícios de se manifestar. Não ousaria dizer que aquele raciocínio carecia de lógica e, no entanto, tudo lhe parecia surreal demais para ser verdadeiro.

— Por que acha que Edgar foi o responsável por tudo isso? — sua pergunta soou baixa, ao passo que sua voz aparentava estar banhada em angústia. — O que ele ganharia tramando algo tão… eu nem mesmo sei como descrever tudo que acaba de me dizer.

— Não sou ingênuo o suficiente para achar que esse esquema envolvia uma única pessoa. Deve haver também um mandante em Greenwall, que disponha de tempo e livre entrada em nossos territórios. Mas pense comigo: durante o reinado de Allen, quem era responsável pelas movimentações financeiras, correspondência, relacionamento com representantes externos? Além disso, todos esses documentos possuem a sua assinatura. — O apontamento fez com que a dor consumisse o rosto da jovem, que mantinha as sobrancelhas franzidas e continuava quase sem fôlego. — E até mesmo antes disso, quem foi o braço direito de seu irmão desde a juventude, agindo quase como uma sombra?

— Mas nada disso faz sentido. — Phillip já esperava por aquilo. Passional como era, não tinha dúvidas de que a menina relutaria em aceitar aquelas revelações. Sua vida consistia numa sucessão indefinida de atribulações e por mais que ele visse aquilo com pesar, não poderia guardar uma descoberta daquela dimensão para si. — Digamos que esteja certo, e todo esse dinheiro esteja realmente esteja vindo de Greenwall para Odarin. Sinceramente, eu não consigo imaginar qual a intenção por trás disso tudo.

— Não percebe, Sarah? Estão vendendo nosso reino para Greenwall.



A jovem rainha buscava aliviar toda a sua ansiedade e tensão na caminhada pelos largos corredores do castelo, seguindo na direção de seu cômodo. Sentia-se tonta, ao passo de que sua cabeça latejava e o nó em sua garganta continuava presente. Por vezes, ela cruzou com alguns de seus criados, mas sequer atentou para as respeitosas reverências destinada a si. Sua mente estava longe, ainda refletindo sobre as palavras que tinha escutado de Phillip momentos antes.

 

— Esta crise econômica é uma grande mentira, nunca houve em Odarin carência de recursos públicos, estamos praticamente nadando em dinheiro enquanto a população morre de frio e fome! O reinado de Henrique representou um período de prosperidade, ao qual as pessoas rapidamente se acostumaram. O crescimento da população coincidiu com a interrupção dos investimentos, causando a falsa sensação de instabilidade e recessão.

— Quando penso que as coisas estão retornando aos eixos, me vejo novamente envolta por uma nuvem negra de mentiras e traições — ela lamentou, sentindo um nó se formar em sua garganta, enquanto a angústia de pensar em seu consorte arquitetando e executando algo daquela dimensão lhe causavam tremores nas mãos. — Diga-me então, onde está todo esse dinheiro agora?

— Não tenho a menor ideia — o rapaz confessou à contragosto, enquanto exalava um suspiro cansado, tendo cada vez menos motivos para acreditar na humanidade. — Por que não pergunta ao nosso principal suspeito?

— São acusações muito graves, além de informações demais para serem avaliadas de uma vez só — Sarah proferiu com pesar, enquanto seu conflito interno florescia na dor contida em seus olhos. — Precisarei de algum tempo para ponderar este assunto com calma.

— Ainda que Allen esteja fora de nosso alcance, existem outros culpados que não podem ser deixados impunes — Phillip prosseguiu, consciente de que estava sendo forçoso com ela. No entanto, não admitiria que tais atos caíssem no esquecimento e fossem tacitamente perdoados. — Embora os registros terminem ali, nada nos garante que esses pagamentos não continuam sendo realizados com a mesma periodicidade. E então? Esperaremos que Greenwall surja no horizonte, armada até os dentes para clamar uma terra que efetivamente adquiriu?

— Já lhe disse que preciso pensar! — A voz da jovem soou alta e autoritária, enquanto direcionava ao Secretário sua expressão mais severa, demonstrando que sua decisão era definitiva. Involuntariamente, o rapaz crispou os lábios, mas nada disse. — E temos ainda este maldito baile, organizado pelo Lorde Banville. Imagino que seja tarde demais para cancelar agora. Portanto, sugiro que volte para casa e acompanhe sua família durante o evento desta noite.

As palavras o atingiram em cheio, fazendo-o sentir-se momentaneamente desnorteado. Desde que fora nomeado àquele cargo, vinha acompanhando-a em todas as solenidades e reuniões. Estava ali para prestar-lhe assistência, de modo que não compreendia o que justificava aquele pesado olhar de desconfiança que recaia sobre si.

— Desculpe-me, mas eu imaginei que…

— Mudança de planos — ela proferiu de imediato, não permitindo nem mesmo que ele finalizasse seu raciocínio. Havia uma resolução ímpar em seu olhar, algo que ele não podia ignorar. — Está dispensado por ora.

 

Com a mão repousada sobre o trinco, Sarah mantinha a testa pressionada contra a porta e os olhos fechados, buscando forças para adentrar naquele cômodo e encarar seu consorte como se tudo estivesse na mais perfeita ordem. Estava farta de todos aqueles jogos políticos, de traições e de mentiras. Por que o mundo não poderia ser um pouco mais transparente e verdadeiro em suas intenções?  Por que não poderia ter um pouco de paz em sua vida, apenas para variar? “Estou começando a achar que existe alguma lei divina contra o sossego e a calmaria”, pensou com certa amargura, enquanto sentia a angústia aflorar novamente em seu peito.

Tinha plena consciência de que qualquer outra pessoa que tivesse lhe dito disparate semelhante seria imediatamente enxotado de sua presença, além de sofrer severas punições em seguida. No entanto, com Phillip era diferente. Conhecia seu caráter bem demais para saber que ele jamais faria uma acusação daquele porte sem que estivesse muito certo de sua conclusão. E haviam tantas provas materiais que demonstravam o recebimento daquelas verbas! Era difícil buscar argumentos para defender seu consorte quando tudo parece indicá-lo como um dos principais culpados.

Engolindo seco, ela adentrou em seu cômodo de uma vez, para que não houvesse tempo hábil para desistências.

Evangeline se punha de pé, ao lado da janela, observando atentamente as recomendações do médico. Este, por sua vez, movimentava com cautela o braço de seu consorte, ora erguendo-o sobre a cabeça ou levando-o para trás das costas. Alguns dos ângulos experimentados fizeram com que o Duque fechasse os olhos com força, empenhando-se para conter quaisquer manifestações verbais de sua dor. Sarah observou a cena em silêncio por alguns instantes, ainda incerta de como deveria se portar, de modo que seus pensamentos nebulosos não pudessem ser previstos.

— Diga-nos, como ele está? — Sua fala saiu baixa e contida, mas o foi o suficiente para chamar a atenção do clínico, que ainda não havia dado conta de sua presença.

— Sua recuperação tem sido bastante positiva, mas uma lesão dessas não é tão simples de reverter. Precisará de mais algum tempo até recuperar a integralidade dos movimentos. Mas veja o lado bom, ao menos está livre disso — concluiu com um sorriso encorajador, enquanto indicava que a tala imobilizadora já não seria mais necessária. — Procure não se mover com brusquidão enquanto isso. Erguer ou carregar objetos pesados está terminantemente proibido também.

A jovem exibiu um sorriso aliviado e agradecido. Jamais se perdoaria se tivesse causado ao seu consorte danos permanentes daquela dimensão. Em sentido contrário, lhe afligia profundamente não saber precisar se as ações de Edgar já teriam ocasionado prejuízos irreparáveis à Odarin. O pensamento fez com que seu semblante adquirisse um ar sombrio, difícil de desvencilhar ou mesmo disfarçar.

— Sua governanta já está ciente dos cuidados diários que eu gostaria que fossem cumpridos. Retornarei em um mês, para avaliar como estão nossos avanços. Com a sua licença, Majestade.

Após ensaiar uma vênia polida, não recebendo mais que um firme menear em resposta, o médico retirou-se do cômodo. Sarah presenciou o momento em que os olhos de seu consorte recaíram sobre si, aguardando por alguma reação àquelas boas notícias. No entanto, tudo que encontrou foi uma expressão angustiada acompanhada pelo ar reticente de sua companheira. Analisava-a com cuidado, sem conseguir imaginar o que poderia perturbá-la daquela forma.

Pressentindo algo de errado ali, Evangeline apressou-se em romper com aquela estranha quietude, buscando no amplo anexo destinado às vestimentas do casal dois vestidos de festa, dispondo-os sobre a cama em seguida.

— Diga-me, qual desses gostaria de usar hoje à noite: o vermelho ou o azul? — ela questionou à sua menina, fingindo ignorância quanto ao clima pesado que havia se instaurado ali sem razão aparente. A pergunta capturou sua atenção por alguns segundos, apenas.

— Escolha aquele que julgar mais adequado, qualquer um está bom para mim — a jovem rainha apressadamente, tornando o rosto e deixando o quarto para trás à passos rápidos.

Sentia-se sufocada ali dentro, e não conseguiria pôr os pensamentos em ordem enquanto estivesse sob a vigilância de Edgar. Precisava de paz para ponderar aquela questão tão delicada. Além disso, não permitiria que seus sentimentos interferissem em seu julgamento desta vez.



— Que surpresa vê-lo aqui, pensei que nos veríamos somente na mansão do Lorde Banville — Florence pontuou enquanto forçava um sorriso na direção do filho mais novo, que trazia no rosto uma expressão sisuda. — Está com um aspecto tão deprimido, o que houve?

— Se eu quisesse conversar com alguém, fique certa de que seria a última pessoa a quem pediria conselhos — ele rebateu de modo impaciente, sem nenhuma intenção de soar delicado ou gentil. Quanto mais rápido o deixassem em paz, melhor. — Portanto, guarde seus gracejos dissimulados para o jantar desta noite.

— Não precisa ficar nervoso — respondeu a Baronesa, imediatamente desistindo de tentar agradar ao rapaz. Já subia as escadas na direção de seu quarto quando acrescentou num tom fingidamente afável, sua última tentativa do dia: — Pedirei que lhe tragam algum refresco, espere um instante.

Phillip não deu ouvidos àquela última fala e seguiu na direção da sala de estar, ainda consternado com o que acontecera no gabinete real momentos antes. Caminhava de um lado a outro, além de alisar os cabelos com nervosismo enquanto se punia mentalmente, cogitando o que poderia ter feito de diferente para que ela não tivesse reagido daquela maneira.

Mesmo ele, que sempre fora tão bom com palavras e argumentos, não havia sido capaz de mostrar-lhe os fatos com clareza e guiá-la até a razão. Receava de que seus sentimentos se sobrepusessem a tudo e optassem pela absolvição do Duque. As evidências eram claras como a luz do dia e ele não admitiria uma resolução injusta para o caso em questão. “Sarah fará justiça em seu julgamento, tenho certeza disso”, pensou com ansiedade, dirigindo-se até os pés da lareira, ainda em reflexão. “Sua máscara finalmente caiu, Edgar Avelar, e você pagará caro por todo o mal que causou”.

Há alguns metros dali, caminhando com passos vagarosos através do extenso corredor, Delia transportava uma bandeja com um pesado bule de chá. Tentava adiar aquele encontro ao máximo, e por vezes tinha a impressão de que a Baronesa sempre a requisitava para servir aos seus filhos de maneira intencional, colocando-a sempre numa situação vulnerável diante daqueles dois homens intragáveis.

Ao perceber que a bebida destinava-se ao filho mais novo do Barão, teve a sensação de ser aliviada de um enorme peso. O pensamento lhe arrancou uma discreta risada, pois meses atrás sentiria calafrios só de vê-lo adormecido sobre a poltrona. Lentamente, e de uma maneira tão natural que não saberia descrever, Phillip venceu sua resistência e adquiriu um pequeno espaço em seu coração. Além disso, não foram poucas as vezes em que o rapaz se dispôs a ajudá-la, em certas ocasiões até mesmo contra sua vontade, como quando a convenceu a aceitar aquele trabalho.

Era muito grata por todo o suporte que tinha recebido, vindo justo num momento tão difícil de sua vida. Por essa razão, sentia-se intimamente culpada por ainda não ter tido coragem suficiente para vencer seu orgulho infantil e agradecê-lo adequadamente.

— Você me parece um tanto abatido — ela comentou com uma voz doce, no intuito de chamar-lhe a atenção. O rapaz tinha o braço apoiado contra a cornija da lareira, encarando com um ar reflexivo as cinzas e resquícios de lenha queimada que jaziam ali. Dificilmente conseguia destrinchar suas feições, sendo mais fácil questioná-lo diretamente. — Aconteceu alguma coisa?

— Estava a tratar de um assunto com Sarah, e acabei dizendo algo que aborreceu. — A resposta soou seca, apenas evidenciando o estado de perturbação que ele se encontrava. Poucas eram as situações capazes de tirá-lo do sério, e a ruiva se perguntou se conseguiria animá-lo.

— Por que será que não estou surpresa? — Mencionou com humor, na esperança de aquilo pudesse fazê-lo rir. No entanto, tudo que recebeu foi um significativo olhar de irritação. — Não se preocupe, ela tem muito mais apreço por você do que eu. Portanto, digo-lhe por experiência própria que logo tudo será esquecido.

Enquanto explicava sua linha de raciocínio, a jovem serviu-lhe o chá e estendeu a delicada xícara na direção do rapaz. A bebida foi recepcionada com uma expressão desconfiada, mas ele se rendeu à gentileza, aceitando-a mesmo à contragosto.

— Já sabe o que vai fazer em relação à sua casa?

— Tenho alguma opção, senão desocupá-la ao término dos noventa dias? — Delia arguiu retoricamente, desta vez assumindo um semblante desesperançoso. — Poderia alugar um quarto mas, de que me adianta, se muito em breve não serei capaz de honrar com as parcelas do aluguel? Estaria apenas causando transtornos ao este proprietário sendo sua inquilina.

Diante daquela triste confissão, Phillip passou a encará-la com mais atenção, esquecendo-se momentaneamente dos problemas que ficaram para trás, no castelo. Que mais poderia fazer por ela? Tinha de haver uma outra saída, mas sentia-se tão cansado e frustrado naquela ocasião que sequer conseguia pensar com clareza.

A criada podia sentir o peso dos olhos escuros sobre si, encarando-a com piedade e compaixão. Como poderia tê-lo julgado tão mal? Era certo que tinha modos bastante peculiares, mas não era uma má pessoa. Longe disso. Poucas vezes na vida tivera a oportunidade de conhecer alguém tão prestativo, ainda que seu ar presunçoso e os discursos recheados de ironia sempre dessem a entender exatamente o oposto.

— Tem sido muito gentil comigo nos últimos tempos — ela afirmou timidamente, sua voz baixa soando como uma confissão. Não sabia explicar porque se sentia tão nervosa, e apertava suas mãos no intuito de conter aquela sensação incômoda. — Desculpe-me por não ter retribuído seus gestos da maneira como merece.

— Eu sou uma pessoa bastante gentil depois que você supera minhas cinco camadas de antipatia, arrogância, medo, timidez e solidão — retrucou o jovem Chevalier com uma ponta de sarcasmo, finalmente parecendo um pouco mais consigo mesmo desde que chegara ali.

Aquela resposta arrancou um fraco sorriso de Delia, consciente do quão verdadeira era sua fala. Não tinha culpa por ser daquela maneira, pois anos de reclusão e de desprezo de seus familiares o levaram àquilo. Doía-lhe o coração imaginar o quão terrível teria sido sua infância, crescendo num ambiente sem afeto até que tivesse maturidade suficiente se isolar de tudo e de todos.

Talvez por vê-lo assumir a responsabilidade pelo seu bem estar tantas vezes. Ou então, por se afeiçoar tão facilmente às pessoas ao seu redor, tencionando cuidar de todos. Algo fazia com que se sentisse responsável por ele. Naquela ocasião, não tinha certeza do que perturbava seus pensamentos, mas ansiava em lhe proporcionar algum consolo, por mais momentâneo que fosse.

Foi quando se recordou de sua mãe, que costumava lhe ensinar que certas dores só podiam ser curadas com gesto de carinho. Todas as pessoas precisavam de afeto, e não lhe restavam dúvidas de que essa era a maior necessidade do rapaz à sua frente.

Estavam em silêncio já há algum tempo, e sem romper o contato visual, Delia avançou um passo, colocando-se próxima o suficiente para o que pretendia fazer. Erguendo uma das mãos com timidez, a jovem alisou os lábios do rapaz com a ponta de seus dedos, explorando o local com a certeza de ele nunca havia beijado ninguém, julgando ser uma injustiça que a vida o tivesse privado até então de tamanha expressão de carinho.

Sua mão se deslocou até a bochecha de Phillip, abrindo espaço para que pudesse envolvê-lo com uma ternura que ele jamais pudera experimentar. Mesmo consciente da proximidade da moça, foi impossível antecipar aquele beijo, denunciando sua completa inaptidão naquela área. Considerava-se uma pessoa tão letrada, e ainda assim o mundo tinha tanto para lhe ensinar. À princípio, manteve-se inerte por não saber como reagir ao gesto, mas a carícia suave em seu rosto o instigou a fechar os olhos, enquanto buscava gravar em sua memória o delicado movimento de seus lábios, permitindo que ela o conduzisse.

O rapaz tinha a pele quente e úmida, além do gosto agradável em função do chá que bebera minutos antes. Ela podia sentir sua hesitação, e até mesmo achava um pouco de graça em tudo aquilo. Parecia tão vulnerável debaixo de seus toques que sequer se incomodou em continuar ali, investindo com um pouco mais de afinco. Foram necessários alguns instantes para que ele reunisse confiança o suficiente e se mostrasse mais ativo. Replicava aqueles movimentos, encaixando seus lábios nos dela, e só então percebendo como seu coração estava acelerado. Tencionou levar as mãos até seu rosto, buscando sentir mais daquela pele macia, quando um chamado impaciente vindo do outro lado da casa fez com que a jovem se afastasse com urgência.

— O vestido da Baronesa, eu esqueci — ela murmurou para si, levando uma das mãos à cabeça enquanto se amaldiçoava por tamanho deslize.

Outro chamado seguiu àquele, levando uma sensação pânico aos seus ossos. Ansiosa em resolver o problema que havia criado, Delia afastou-se dali apressadamente, sem nem ao menos proferir uma palavra de despedida, ou mesmo agraciá-lo com um olhar que significasse qualquer coisa. Abandonado ali de maneira displicente, Phillip se limitou a observá-la em silêncio e com um olhar saudoso, enquanto a distância entre os dois crescia novamente.



— Como posso ter esquecido de finalizar o acabamento desse vestido? — ela murmurou consigo mesma, enquanto curvava-se diante da elaborada peça, tentando finalizá-la às pressas. No entanto, seu nervosismo era tanto que seus dedos tremiam, fazendo-a demorar-se ainda mais na tarefa. — E justo no dia do baile! A Baronesa me mandará embora com certeza, caso não consiga finalizá-lo a tempo.

— Acho que temos problemas maiores aqui — Julie retrucou de maneira severa, enxugando as mãos em seu avental e cruzando os braços em seguida. Trazia uma azeda expressão de descontentamento em seu rosto. — Não pense que não vi o que fez agora há pouco! Está ficando louca? Ele é filho do Barão, a quem nós devemos obediência.

Delia levou um segundo para compreender do que a criada mais velha falava, e ao perceber do que se tratava, suas bochechas tornaram-se rubras. Havia compreendido tudo errado! Se já não bastasse sua corrida contra o relógio, desfazer aquele mal entendido lhe custaria minutos preciosos.

— Não a recrimine dessa maneira! — Exclamou Emma, que pela primeira vez parecia ter despertado de seu universo particular, assumindo uma postura mais firme e confiante. — Ele é sempre tão atencioso com você. Além disso, estamos falando do filho mais novo, não haverá de herdar muito de seus pais. Entretanto, possui um dos ofícios mais importantes do reino e já não depende desta família para viver. Pense em como poderiam ser felizes juntos!

— Estão enganadas! — Por mais que usasse um tom mais veemente em suas falas, nenhuma das duas parecia lhe dar ouvidos. — Isso tudo é um grande equívoco, eu não, digo, nós não...

— Você também perdeu o juízo? — Julie rebateu, seus olhos repousados na jovem sonhadora desta vez. — Está lendo muitos romances de folhetim, sim! Este tipo de coisa não existe, é inadmissível.

— Pense bem, Delia — a criada continuou, ignorando com efeito as imputações de sua companheira mais velha. — Se ele realmente a ama, ficará com você sem pestanejar. Vejo-o como um verdadeiro o cavalheiro, não concorda? Já conheceu alguém assim antes?

A pergunta inesperada a pegou de surpresa, e trouxe à tona algumas memórias já esquecidas em seu passado. Assim como havia dito mais cedo, Phillip era mais gentil do que deixava transparecer, mas estaria mentindo se dissesse que ele havia sido o único cavalheiro em sua vida a tratá-la com tanto cuidado e zelo.

— Uma vez, tive a oportunidade de conhecer um distinto rapaz, como nenhum outro no mundo — a ruiva mencionou em voz baixa e distante, enquanto seu olhar fixo sobre o chão recuperava algumas lembranças que já não lhe diziam mais respeito. — Mas isso foi há muito tempo.

— E o que houve com ele? — a mais nova questionou, depois das duas companheiras se entreolharem com um ar curioso.

— Casou-se com outra pessoa, alguém que realmente digno de toda sua nobreza de espírito — respondeu de maneira seca, finalmente voltando sua atenção ao vestido que tinha pressa em terminar. Sentia uma pontada de revolta tomar conta de seu íntimo, mas não permitiria que aquele sentimento transparecesse em seu semblante. — É a ela a quem se dedica integralmente agora.



A sensação de tornar a movimentar seu braço livremente consistia num alívio difícil de descrever. Mesmo que alguns gestos ainda lhe fossem proibidos, o simples fato de poder vestir-se sem o auxílio de outra pessoa marcava o retorno da autonomia de Edgar. Eventuais fisgadas em seu ombro ocasionavam grunhidos baixos, às quais ele se esforçava para conter. Entretanto, não eram os lampejos de dor que o preocupavam no momento. Com os olhos repousados sobre a figura de sua consorte, ele podia afirmar com muita precisão que havia algo errado com ela.

O trajeto entre o castelo de Odarin e a mansão do Lorde Banville foi feito em silêncio, visto que suas tentativas de estabelecer um diálogo restaram frustradas. Sarah sustentava em seu semblante uma dureza incomum, que não condizia com as feições joviais e seu espírito alegre. Dentro da carruagem, seus olhos se mantiveram o tempo inteiro fixos na paisagem do lado de fora, trazendo consigo um ar taciturno. Intimamente, ele se questionava o que poderia ter acontecido para deixá-la tão séria e introspectiva, mas nada lhe vinha em mente.

Finalmente chegando ao destino almejado, a jovem apoiou o alto de sua cabeça contra o estofado por um instante. Sentia os ombros pesados, assim como o corpo ligeiramente dolorido. “Realmente, era tudo que eu precisava nesse momento”, ela ponderou com ironia, percebendo que estava prestes a pegar um resfriado. Ao sentir uma mão encobrindo seus dedos enluvados de maneira gentil, tornou seus olhos para o lado, espantada com o gesto.

— Você não me parece nada bem, aconteceu alguma coisa? — o rapaz questionou, com um ar temeroso estampado em seu rosto.

— Estou refletindo uma porção de coisas, e isso tem me deixado exausta — ela respondeu, sem qualquer emoção em sua voz. — Vamos, não queremos ser os últimos a entrar.

Sabia que estava fazendo a mesma coisa pela qual culpara Edgar pouco tempo atrás: escondia-lhe a verdade, guardava seus pensamentos para si de maneira egoísta. No entanto, como poderia abordá-lo sobre tal assunto naquela ocasião? Cada vez que olhava para ele, as palavras de Phillip tornavam a ressoar em sua consciência, fazendo com que tudo adquirisse um peso ainda maior e mais indícios surgissem. Seria aquela a razão pela qual se mostrava tão solícito, colocando-se à frente dela em todas as decisões? Usava a bebida como um meio de fugir da culpa por arquitetar tamanha traição? Sua inquietação com a nomeação de Phillip como meu Secretário Real era por temer que ele atrapalhasse seus planos sórdidos? A resposta para aquelas perguntas era óbvia, e essa realização a torturava por dentro, deixando-a desnorteada e lhe afastando cada vez mais do bom senso.



A recepção foi feita pela matriarca da família, mãe do anfitrião, que saudava a todos os recém-chegados de maneira polida e com um sorriso amável no rosto. Ainda assim, algo em seu semblante denunciava uma sensação de abatimento, o que não passou despercebido por parte dos convidados. Assim que a entrada da rainha, devidamente acompanhada de seu consorte foi anunciada, não só ela como todos os presentes manifestaram seu respeito através de uma exagerada reverência em sua direção.

À princípio, nunca sabia ao certo como se portar diante do gesto, mas meses de reinado lhe mostraram que aquele era o menor de seus problemas, trazendo ainda alguma naturalidade às suas reações. Por sorte, um segundo anúncio deu sequência ao de sua entrada, fazendo com que todos os presentes passassem a dar atenção ao idealizador daquele evento dispendioso.

— Meus caros convidados, que satisfação a minha em recebê-los em minha casa. Creio não ser capaz de exprimir em palavras o prazer que sinto em poder estar aqui, compartilhando com vocês o que talvez seja o maior privilégio dos homens: a vida — Robert Banville proferiu em alto, e bom tom, seguido de uma pausa proposital. Trazia em mãos uma taça de champagne e os empregados de sua casa foram ágeis em distribuir bebidas idênticas aos demais. — Como sabem, há pouco mais de um ano, fui obrigado a me ausentar de meus negócios por questões alheias à minha vontade. Todos nos encontramos acamados de tempos em tempos, faz parte dos obstáculos diários que devemos enfrentar, mas por vezes a natureza se mostra mais severa com uns em detrimento de outros. Foi o que me ocorreu.

— Que ele está dizendo? — Edgar sussurrou para sua consorte, que se limitou em dar com os ombros com descaso, atenta ao discurso peculiar do anfitrião.

— Imagino que ao receberem meu convite, muitos de vocês pensaram que este baile buscava comemorar o restabelecimento de minha saúde. Na verdade, mesmo após meses de tratamento intensivo e repouso, os médicos chegaram à conclusão de que não me restam mais que um ano ou dois de vida.

A revelação ocasionou um ar de assombro nos convidados, assim como um pequeno alvoroço. Sarah, tão estupefata quanto os demais, passou a compreender a razão por trás do olhar triste da matriarca que os recebera. Mas nem mesmo o ar atônito que havia se instalado no ambiente fora capaz de afetar a postura ou a expressão bem humorada do Lorde Banville.

— Ouçam com atenção: eu bem que poderia ter permanecido sob cuidados constantes, no intuito de dilatar esse período. Mas vejam, de que isso serviria, uma vida de privações? Portanto, na ausência de um futuro longínquo, eu decidi que retornaria para comemorar o presente e celebrar a vida. E é sob esse pensamento que nos reunimos aqui hoje. Desejo dar a cada um de meus convidados um momento especial de atenção. Mas não se apressem, teremos a noite inteira ao nosso dispor para isso. Aproveitem a festa e saúde todos!

Com o término de seu discurso, ele verteu todo o conteúdo de sua taça, sendo mecanicamente seguido pelos demais. O som da orquestra foi eficiente em mascarar o clima tenso que havia se instaurado ali, e boa parte dos presentes buscou por uma segunda taça de bebida, como se o álcool fosse ajudá-los a compreender melhor aquela ideia fúnebre defendida pelo representante daquela família.

Edgar afastou-se por um instante, em busca de algo que pudesse comer, o que permitiu que Sarah tornasse a respirar com calma. Manter-se ao seu lado sem revelar o que tanto lhe atormentava era sufocante, chegando a exaurir suas forças. Ficaria ali tão somente o tempo necessário para cumprir as formalidades, e logo voltaria para a segurança de seu castelo.

— Majestade, é uma honra poder finalmente conhecê-la. — Percebendo a aproximação de seu anfitrião, a jovem rainha estendeu as costas de sua mão direita, que foi prontamente agraciada com um beijo cortês. — Peço que perdoe a minha ausência em sua coroação.

— Desculpas não serão necessárias, afinal, temos aqui um caso bastante singular — ela proferiu, um tanto incerta de suas palavras. Suas aulas de etiqueta não lhe ensinaram o que deveria dizer a um homem que acaba de antever as condições de sua morte. — Eu gostaria de manifestar aqui minhas condolências pelo seu atual estado…

— Permita-me interrompê-la, majestade, mas dispenso esse tipo de cortesia. Não me compreenda mal, mas rostos tristonhos e palavras lúgubres não são a espécie de memória que desejo em meus últimos dias. — Ele sorriu em sua direção, o que apenas serviu para deixá-la ainda mais desconcertada. — Acredito que as pessoas superestimam a morte, quando na realidade, ela não passa de um evento. Embora não saibamos como ou quando, temos consciência de que ela está lá, em algum ponto do futuro, esperando por nós. Damos exagerado valor às coisas erradas, além de poucas vezes termos a sabedoria de levantar pela manhã e agradecer por mais um dia, mais uma chance. Portanto, não perturbe sua mente formulando palavras de pesar. Mostre-me que compreendeu a minha mensagem, e então este dia já terá valido à pena.

Ainda que seu humor não estivesse dos melhores, Sarah não pôde evitar de agraciá-lo com um sorriso e um olhar de admiração. Mesmo que não o conhecesse bem, já tinha a certeza de que era detentor de uma personalidade fascinante. Ao menos naquilo Edgar estava certo, seria difícil não se apegar a ele. Sua eventual partida certamente deixaria um vazio no coração de muitas pessoas.

— São palavras cheias de sabedoria e significado — ela afirmou com polidez, ainda impressionada diante daquele discurso tão singular. — Eu as guardarei comigo para sempre, fique certo disso.

— Fico feliz que concorde comigo — ele afirmou, devolvendo-lhe um sorriso simpático. Afastando-se dois passos, ele abriu uma das janelas altas de vidro, que davam acesso à pequenas varandas suspensas. — Me concederia mais alguns minutos de sua companhia? Há muitas coisas que eu gostaria de conversar.

— Não se incomode comigo, vejo que ainda tem muitas pessoas a quem precisa cumprimentar.

— Você é a rainha, permita-se ser um pouco mais egoísta — ele respondeu, em meio a um sorriso galante, enquanto abria passagem até as varandas, onde poderiam conversar com mais privacidade.

Após ponderar o pedido por um instante, Sarah percebeu não ter motivos para recusar o convite. Se ele pudesse distraí-la, ainda que por um momento, de seus próprios problemas, tanto melhor.



Pedindo licença e esgueirando-se entre os demais convidados, Edgar custou a alcançar a larga mesa disposta do lado esquerdo do salão, que exibia doces dos mais variados formatos e cores. Em seu trajeto, cruzou pelo menos três vezes com empregados que lhe ofereciam taças de bebidas, às quais ele recusou com veemência. Esforçava-se para deixar aquele terrível vício para trás, mas a repentina indiferença de Sarah sem justificativa aparente desencadeou uma espécie de ansiedade que usualmente somente o álcool seria capaz de afastar. Entretanto, por mais que sentisse a garganta seca e os dedos trêmulos, continuava resistindo à necessidade urgente de se render, repetindo para si mesmo que havia deixado sua compulsão para trás.

— Que surpresa encontrá-lo sozinho aqui. — Erguendo o olhar na direção daquele chamado, o jovem Avelar encontrou ninguém menos que sua irmã mais nova, que lhe direcionava um sorriso complacente. — Fico feliz de vê-lo já restabelecido do ferimento em seu ombro.

— Charlotte, que está fazendo aqui? — questionou, com um ar incrédulo, buscando recobrar a calma.

— Papai apanhou um resfriado esses dias, e não se sentiu disposto o bastante para a viagem. Mas você me conhece, eu não perderia um baile desses por nada nessa vida — ela pontuou, enrolando um dos cachos avermelhados no dedo indicador. Olhando rapidamente em volta, percebeu estar sozinha. Dando um passo à frente, a ruiva abaixou o tom de voz antes de proferir: — Gostaria de aproveitar a oportunidade para conversar um assunto com você em particular...

— Edgar, há quanto tempo!

Tornando o rosto, o Duque de Odarin encontrou um pequeno grupo amigos de Hallbridge, que acenavam insistentemente para que se juntasse a eles. Era certo que uma conversa animada e despretensiosa o ajudaria a esquecer seus anseios sórdidos, assim como os problemas ainda desconhecidos de sua companheira. No entanto, tinha o pedido de sua irmã para ponderar, e algo em seu rosto denunciava que o objeto daquela conversa detinha uma importância singular.

— Espere apenas um instante, está bem? — ele indagou, já se afastando da mais nova com passos largos. — Irei cumprimentá-los rapidamente, e logo estarei de volta para falar com você.

Charlotte se limitou a torcer os lábios carnudos em desaprovação, enquanto girava o conteúdo de sua taça. Ela não podia esperar muito, estava sob constante vigilância e se por acaso fosse descoberta repassando aquelas informações, já poderia esperar pelo pior.

Tomando um gole de sua champagne, ela assustou-se ao sentir uma mão ossuda deslizando sobre seu ombro desnudo. Ainda que tenha conseguido conter um grito chamativo, foi impossível não mostrar-se ofegante diante daquela ameaça indireta e silenciosa.

— Que está tentando fazer? — Gilbert inquiriu, aproximando-se da ruiva com sua usual impassividade. Por vezes, se questionava se o rapaz detinha algum sentimento, visto que sua voz e semblante raramente manifestavam qualquer coisa. — Não pense que não estou de olho em você, e nem mesmo sonhe em revelar o conteúdo de nosso acordo ao parvo do Edgar.

— Fique longe de mim — ela sibilou num tom baixo, ainda que nele estivesse contida uma nota ameaçadora e feroz que certamente o deixa fora de seu caminho num primeiro momento. — Tenho nojo de saber que fazemos parte da mesma família. Você é desprezível.

Enquanto afastava-se com passos apressados, Charlotte podia sentir os olhos ferinos de Gilbert acompanhando seus movimentos. No intuito de despistá-lo, a jovem se meteu entre grupos que conversavam animadamente, sem se preocupar se o gesto seria tomado como rude por aqueles que a reconhecessem. Caminhando com urgência, sabia que agora precisaria encontrar seu irmão mais velho no meio daquela multidão de nobres por conta própria, ciente de que demoraria muito até que tivesse em mãos outra chance como aquela.

Seus pés se apaziguaram somente depois de alcançar o centro do salão, onde ela fez uma pausa momentânea para avaliar o ambiente. A orquestra empenhava-se para entreter os convidados, e a música agitada fazia com que uma quantidade absurda de casais se ocupasse dançando. Atravessar aquela área seria difícil, e não tardou a perceber que a passagem só estaria livre quando os músicos fizessem uma pausa. “Andem logo com isso, não tenho um minuto a perder aqui”, pensou com ansiedade, buscando uma maneira alternativa de chegar do outro lado. Ao fazê-lo, seus olhos capturaram a imagem de uma distinta figura, que talvez se dispusesse a ajudá-la.

A poucos metros dali, os membros da Família Chevalier conferenciavam entre si, possivelmente analisando em que nichos deveriam se incluir para que obtivessem as melhores vantagens num futuro próximo. O Barão Friederich foi o primeiro a se afastar, seguindo na direção de um grupo influente de negociantes e bancários, ao passo que Florence se ocupava em traçar instruções aos dois filhos mais velhos.

— Todos estão espantados com o propósito mórbido dessa festa, mas eu lhes digo que isso pode ser muito vantajoso para nós — ela pontuou, tratando de arrumar as roupas amarrotadas de Julian e Martin. — Ora, se Lorde Banville está com os dias contados, sua fortuna precisará ser administrada por alguém. E sendo o único homem desta família, a função passará a ser exercida pelo marido de uma de suas irmãs. Quatro adoráveis moças, todas sentadas ali, naquela mesa. Agora vão, sabem o que fazer.

Os dois rapazes trocaram olhares perversos, enquanto se afastavam na direção indicada pela mãe. Phillip não conteve um suspiro cansado, nem mesmo um revirar de olhos por ser obrigado a presenciar tamanha baixeza. Se ao menos os golpes de sua mãe já não fossem conhecidos por toda a sociedade, poderia até mesmo saudá-la pelo seu empenho inabalável.

Em instantes, a Baronesa foi se juntar a um grupo de damas, que certamente ocupariam o restante da noite em especulações e difamações gratuitas. Não poderia se dizer surpreso, pois comemorações daquela estirpe somente serviam para dar continuidade às práticas vergonhosas como aquela. Além disso, quanto mais vazia a vida de alguém, maior seria a necessidade de preencher-lhe os dias com os feitos de outrem.

O afastamento de seus familiares apenas lhe dava o sossego necessário para refletir. Ele percebeu a chegada da jovem rainha, mas não ousou se aproximar, temeroso de que aquilo pudesse lhe causar algum descontentamento. Além disso, mesmo ao longe, podia perceber que sua espontaneidade natural servia apenas para evidenciar o quanto sentia-se perturbada pelas revelações daquela manhã. A visão o fez sentir-se culpado, ainda que assegurasse a si mesmo que Edgar era o verdadeiro responsável por aquele olhar dolorido, o que o levava à uma segunda conclusão: quanto mais Sarah se aproximava da figura ideal de uma governante, mais se afastava de sua própria essência.

— O que faz um jovem cavalheiro vir a um baile apenas para se isolar de tudo e de todos com tanto empenho?

A voz manhosa da ruiva se fez presente, mas Phillip não lhe conferiu mais que um olhar torto. Desconfiava de qualquer aproximação repentina como àquela, e se a memória não lhe pregava peças, a moça à sua frente deveria ser a filha do Conde Avelar. A situação quase o fez rir, ao perceber como estava cercado de abutres sem que se desse conta disso.

— Talvez esse jovem cavalheiro esteja aqui contra sua vontade — ele retrucou sem humor, na esperança de que a resposta seca a fizesse ir embora.

— Mas já que estamos aqui, não seria muito mais adequado aproveitar aquilo que nos é oferecido? — Charlotte arriscou, com um ar presunçoso. — Por que não usufrui melhor seu tempo aqui, e me acompanha numa dança?

— Sinto muito desapontá-la, senhorita, mas eu não danço.

Quem ele pensa que é?”, foi o primeiro pensamento que lhe veio em mente. Seria possível que ele estivesse realmente cogitando que ela possuía algum interesse a mais naquele pedido? Talvez estivesse enganada em seu julgamento prévio, pois o Secretário aparentava estar pouco inclinado a ajudá-la. No entanto, não desistiria facilmente. Tudo que precisava era de um empurrãozinho.

— Ah, mas eu insisto! — Dito isto, Charlotte segurou o braço do jovem Chevalier com força, enquanto o empurrava na direção do salão mesmo contra sua vontade.

— Por acaso desconhece o significado da palavra “respeito”? — arguiu, com um ar estupefato. Não podia acreditar que estava realmente sendo compelido a fazer uma das coisas que mais detestava em sua vida, e ainda por cima por uma moça desconhecida.

— E você desconhece o significado da palavra “discrição”? — ela retrucou, num sussurro para que somente ele pudesse ouvi-la. A imputação levou um olhar curioso ao rosto do rapaz, que continuava a encará-la com desconfiança, mas desta vez trazendo consigo algum interesse em sua interlocutora. — Acha mesmo que tenho algum interesse em você? Poupe-me dos seus devaneios.

— E o que quer, então? — Falava agora de maneira discreta, buscando não chamar a atenção, já se encontrando enfileirado junto aos demais senhores que se ocupavam com aqueles passos ensaios. Com alguma sorte, conseguiria lembrar das lições de sua mãe para ocasiões como aquela.

— Preciso dizer-lhe algo da maior importância para o reino de Odarin. No entanto, estou sendo vigiada e essa foi a melhor forma que encontrei de fazê-lo sem ser notada — ela mencionou ainda em murmúrios. As pessoas à sua volta estavam entretidas demais com seus parceiros para reparar no diálogo que ocorria ali. Em sincronia com as demais damas, ela agraciou seu parceiro com uma vênia, e então a música soou animadamente

— Por que não se reporta diretamente à rainha, já que possuem laços familiares?

— Você realmente desconhece os termos de nossa relação, não é mesmo? Sarah não me daria a devida atenção, a despeito da seriedade que essa questão requer. E, também, não faço isso por ela. Existem interesses muito maiores em jogo.

Embora não quisesse admitir, aquele rodeio estava deixando-o curioso, mas jamais deixaria seu real estado de espírito transparecer em seu semblante. A jovem parecia resoluta em suas palavras, e ele já poderia se considerar o homem mais sortudo do mundo se seu depoimento tivesse alguma relação com tudo que fora discutido naquela manhã.

— Muito bem, então — afirmou, intimamente satisfeito que aquele martírio tivesse chegado ao fim. Não tinha dúvidas de que seus dotes artísticos eram praticamente nulos, e colocar tais habilidades à prova demonstrava o quanto levava a sério seu ofício. — Eu ouvirei tudo que tem a me dizer.

— É uma longa história — a ruiva pontuou, mantendo-se inerte na fileira de damas prontas para a próxima rodada, que causou imediata estranheza no rapaz. — Precisará me conceder mais uma dança.



Delia sabia muito bem que não deveria estar ali. Seu lugar era sentada na sala de sua casa, tocando sua flauta enquanto a empolgação das crianças brincando invadia seu coração de paz e alegria. No entanto, foi impossível deixar o vestido da Baronesa pronto a tempo do baile. Sua punição pela maneira relapsa como havia agido diante de suas obrigações seria acompanhá-los até a mansão da Família Banville, onde terminaria suas costuras enquanto os demais se preparavam para a festa. Por sorte, conseguiu recuperar o tempo perdido, de modo que agora não lhe restava outra opção senão aguardar o fim das comemorações para rever seus pequenos.

A família anfitriã foi compreensiva com a situação dos Chevalier, e providenciou uma cama de campanha aos fundos da casa para sua copeira passar o restante da noite. E era exatamente o que teria feito, se a energia contagiante da orquestra não tivesse invadido seus ouvidos e a arrastado para fora do quarto.

Todos os convidados estavam concentrados no piso inferior, ocupando o largo salão, os anexos adjacentes, varandas, e alguns até mesmo se aventurando pelos jardins. Assim, a jovem empregada encontrou o caminho livre para explorar o andar superior, buscando um local onde a música pudesse ser apreciada em todo o seu esplendor. Embora não tivesse certeza de como faria para retornar aos seus aposentos, pouco se importava com isso naquele momento. Parcialmente escondida atrás de uma coluna, ela conseguia ver o ponto exato onde a orquestra se encontrava posicionada. Todos trajando roupas escuras e discretas, diminuindo a atenção para si enquanto deixavam que seu talento musical falasse mais alto. Flautistas, violinistas, clarinetistas e sopranos, todos guiados pelas mãos imperiosas do regente. Desde a primeira vez que seu pai a levara para assistir um concerto, a música se tornara sua maior paixão. “Eu poderia estar ali, no meio daquelas pessoas, transformando sentimentos em notas musicais”, ela pensou de modo sonhador, antes de ser atingida pela dura realidade. “Mas não foi isso que o destino reservou para mim”, concluiu com pesar.

Estava tão entretida com o trabalho dos músicos, que se esqueceu por um instante de manter a discrição. Afastando-se de sua coluna, ela apoiou os braços contra o peitoril, permitindo-se até mesmo fechar os olhos enquanto sua mente vagava longe dali e de seus problemas. Ela merecia um descanso daquela vida de provações e mentiras, nem que fosse por uma única noite. Além disso, todos ali estavam se divertindo e tinham suas mentes focadas noutros assuntos. Sequer iriam perceber sua presença.

No entanto, seu raciocínio tinha uma pequena falha. Havia uma pessoa com os olhos voltados para si. Alguém que a procurava, chegando até mesmo a ver características suas nos cantos mais improváveis. E para ele, a dúvida e a incerteza eram as piores formas de sofrimento que poderiam se abater sobre alguém. Por essa razão, cansado de ser enganado por sua própria mente, afastou-se daqueles que o acompanhavam, sem se incomodar em pedir-lhes licença. Tentou agir com naturalidade à princípio, mas havia uma urgência crescente em seu coração que o fazia subir os lances de escada saltando os degraus pares. Não tardou a alcançar o segundo andar e encontrá-la de olhos fechados, com um tímido sorriso de satisfação estampado no rosto, absorvendo as emoções contidas naquela melodia. Seu cabelo agora exibia uma coloração diferente, mais vibrante, mas suas feições eram as mesmas de antes. Aquele era um rosto que ele jamais poderia esquecer.

— Anya? — A voz de Edgar vacilou, denunciando todo o seu nervosismo. Estava farto de ter fantasmas à sua volta, mas àquela diante de si lhe parecia bastante real desta vez. — É você mesmo?

A ruiva abriu os olhos em pânico. Seu coração pulsava num ritmo frenético, e se não fosse a orquestra, ela teria a certeza de que seus batimentos podiam ser ouvidos por qualquer pessoa próxima. Por anos evitou aquele confronto, escondendo-se ali, longe de suas terras e de sua família no intuito exclusivo de lhes garantir segurança.

Recusando-se a responder aquela pergunta, a jovem deu um passo para trás, seguido de outro, e antes que pudesse perceber, estava correndo pelos corredores desconhecidos daquela mansão. Embora soubesse que estava sendo seguida, e que de nada adiantava fugir agora, sua mente não era mais capaz de raciocinar com clareza. Adiante, vislumbrou uma porta entreaberta e seus pés a levaram até ela, sem que tivesse tempo hábil para refletir no que estava fazendo.

Logo ficou claro que aquela não fora sua decisão mais sábia, mas já era tarde demais. Atrás de si, o Duque de Odarin adentrava no cômodo e fechava a porta cuidadosamente, mas mantendo uma distância considerável. Estavam numa espécie de sala de estudos, com muitas estantes cheias de livros, alguns estofados e pequenas mesas redondas. O cômodo era fracamente iluminado por duas velas próximas do fim, estando envolto de sombras escuras e esparsas luzes alaranjadas que oscilavam de tempos em tempos.

— Vá embora… — ela murmurou, sentindo-se exausta não só da corrida, mas de sua própria existência. O ar parecia escasso, sua mente estava uma verdadeira bagunça, e desejava ardentemente nunca ter saído de seu quarto. — Eu não tenho nada para lhe dizer, apenas me deixe em paz.

Embora tivesse almejado aquele reencontro por tantos anos, a realidade se mostrou mais confusa e menos sentimental do que havia imaginado. O rapaz não tinha certeza se sentia-se disposto a rir, ou mais inclinado a chorar. Tencionava dizer algo que valesse à pena ser ouvido e lembrado, mas sua mente não colaborava com os anseios de seu coração. A situação o deixou num estado catatônico, fazendo engolir seco repetidas vezes, enquanto observava sua antiga noiva a apenas alguns passos de distância, que após tanto tempo, finalmente estava ao alcance de suas mãos novamente.



Visto de perto, Robert Banville aparentava ser mais jovem do que Sarah havia imaginado. Suas roupas, ainda que elegantes, não eram extravagantes. Sua imagem corroborava perfeitamente com seu discurso, de que o dinheiro estava à serviço dos homens, e nunca o contrário. Tinha confiança ao falar, e parecia ser um homem cheio de ideias.

Sua personalidade cativou quase que imediatamente o apreço da jovem rainha, fazendo-a até mesmo esquecer seu próprio cansaço. Além disso, escutava-o atentamente, algumas vezes até mesmo se permitindo discutir suas teses.

— Quer dizer que pretende esbanjar tudo que têm, até o dia de seu último suspiro? — ela questionou, enquanto sugestivamente erguia uma das sobrancelhas na direção de sua companhia. — Já posso declará-lo como pródigo e determinar que seja impedido de praticar os atos da vida civil?

— Não seja tão severa em seu julgamento — ele respondeu com bom humor, em meio a uma risada tímida. — Deixarei mais que o suficiente para que minhas irmãs levem uma vida confortável e possam cuidar de nossa mãe com as regalias às quais já está acostumada. Entretanto, como lhe disse antes, não pretendo me privar de nenhum dos prazeres da vida até lá.

Sarah se limitou em assentir positivamente, sem saber ao certo se concordava ou não com aquele pensamento. Não se sentia capaz de julgá-lo como faria com qualquer outra pessoa que lhe dissesse o mesmo.

— Mas diga-me — ele interpelou, não permitindo que o silêncio se prolongasse e tornasse o ambiente constrangedor. — Qual a sensação de ser a primeira rainha governante de Odarin?

— Creio não ser capaz de responder — ela confessou, quase perdendo a compostura ao encolher os ombros. — Tudo aconteceu muito rápido, e ainda estou me habituando. É algo ao qual me dedico integralmente, mas por vezes penso não ser o suficiente. Todos desejam que eu execute grandes feitos, ao mesmo tempo que apostam no meu fracasso.

— Concentre-se em seu trabalho e deixe que especulem — afirmou, com um ar decidido. — É da natureza do homem nunca estar satisfeito com aquilo que possui. Cheguei à essa conclusão durante meu tratamento em Greenwall.

A frase foi dita de maneira casual, seguindo a entonação da conversa que travavam. Entretanto, Sarah não podia ignorar o modo como aquilo soou estranho em seus ouvidos. “Greenwall”, ecoava em sua mente. “Deve haver um mandante, que disponha de tempo e livre entrada em nossos territórios”, podia ouvir a voz de Phillip repetindo aquelas palavras com muita clareza. Se tais indícios já não fossem bastantes, relembrou da estranha empolgação de Edgar ao saber do retorno do Lorde Banville.

Novamente, passou a sentir o ar faltar em seus pulmões, enquanto seus movimentos pareciam pesados e lentos. Precisava sair dali. Tinha de chegar ao seu quarto o mais rápido possível, pois iria desabar a qualquer momento. Mas não sem antes confrontar seu consorte. Ele lhe devia muitas explicações.

— Perdoe-me pela interrupção, mas devo me retirar imediatamente — ela pontuou, sua mão já sobre o trinco da pequena varanda. — Nos veremos novamente num outro momento. Agora, com a sua licença.

Sem aguardar por uma resposta, Sarah se retirou com a certeza de que seu anfitrião deveria tomá-la por uma pessoa desvairada. Mas a realidade se apresentava de um modo distinto. Sabia exatamente o que estava acontecendo, e a conspiração que lhe fora apresentada horas antes soava-lhe muito mais verossímil agora que juntara todas as peças daquele quebra cabeças.

Seus pés se moviam com pressa, e por vezes tropeçavam nas dobras dos tapetes. Sentia as pernas fracas e vacilantes, mas isso não a faria parar. Não era a força física que a movia, mas sim uma convicção interna.

Enquanto caminhava, proferia escusas rápidas direcionadas aos nobres que se aproximavam no intuito de bajulá-la. Não poderia se deter com esse tipo de conduta, sem um único segundo a perder.

Alcançando os corredores secundários, tentou recobrar as instruções da matriarca que a recepcionara, sem sucesso. Tinha lhe dado as coordenadas exatas para chegar à suíte destinada para a noite, mas sua mente estava distante demais para guardar informações ínfimas como aquela. Caminhando por alguns minutos sem rumo, ela logo escutou vozes familiares vindas de um dos cômodos, cuja a porta não fora devidamente fechada. Aproximando-se com cuidado, pôs o rosto junto da fresta estreita, para que pudesse ouvir com clareza.

— Você está aqui — Edgar afirmou de maneira vaga, e a menina sentiu em sua entonação que ele estava perdido em algum ponto entre a ansiedade e a excitação. — Esteve aqui esse tempo todo? Por Deus, Anya, você desapareceu do dia para a noite, sem ao menos deixar uma carta que…

Anya? Sua noiva desaparecida de anos atrás? Não é possível”, ela refletiu, acurando os ouvidos e torcendo para que a orquestra se mantivesse silente por mais alguns minutos.

— Sem deixar uma carta?! — exclamou uma voz feminina, igualmente familiar, que há muito não escutava. Percebia-se que estava tomada pela ira, podendo até mesmo sentir os tremores nervosos atingindo-lhe a fala. — Essa foi a sua maior preocupação? Aqui está sua carta, já que é a única coisa que perturba sua consciência.

Com a ponta de seu sapato, empurrou a porta para que pudesse observar o que ocorria do lado de dentro. O quarto era escuro, e os feixes de luz eram inconstantes. Ainda assim, conseguiu visualizar o momento em que seu consorte recebeu em mãos um pedaço de papel, já muito amassado e puído pela passagem do tempo. Lia atentamente o texto ali disposto, e logo sua face se contorceu numa expressão confusa.

— Eu não escrevi isso — ele pontuou com calma, assemelhando-se a uma criança ingênua que é incapaz de compreender uma piada inapropriada para sua idade. Sua confusão com a situação era tamanha que as palavras contidas ali em nada o ajudaram a aclarar os fatos.

— Esta carta foi lacrada com o símbolo da Família Avelar — Anya indicou, externando uma raiva contida enquanto apontava para o verso do papel, onde não restavam mais que alguns resquícios de cera que resistiram à passagem do tempo.

— Ainda assim, não fui eu o responsável por ela — ele prosseguiu, genuinamente perdido entre os acontecimentos. — Achou mesmo que poderia...

— Que diferença isso faz? — a jovem gritou com fervor, em completo desespero. Forçando um pouco mais a entrada, mal pôde acreditar em seus olhos quando o rosto enfurecido de Delia entrou em seu campo de visão. A camponesa que um dia fora sua amiga era, na realidade, a noiva desaparecida de seu consorte. Mais uma das peças empregadas pelo destino, não tinha dúvidas disso. — Meus pais foram jurados de morte pela sua família! De que me importa saber se você foi ou não o responsável por essa maldita carta? Havia uma ameaça real e iminente, cuja a única maneira de evitar seria desaparecer de Hallbridge para sempre.

Algo em seu olhar denotava ódio, um sentimento que definitivamente não combinava com ela. Ao menos não com a Delia que Sarah conhecia, e muito menos com a Anya que um dia fora o grande amor da vida de Edgar. No entanto, mesmo que não houvesse comunicação entre eles, ambos chegaram à uma conclusão comum: quem estava diante deles era uma pessoa completamente distinta.

— Mas isso é um completo absurdo! Por que obedeceu a este comando, sem nem mesmo me procurar antes? — A realização, entretanto, surgiu vagarosamente e ele precisou de segundos de reflexão antes de compartilhar a sensação de revolta que acometia sua antiga noiva. — Espere um pouco… A única explicação para que tenha dado tanto crédito a essas palavras é porque julgou se tratar de uma ameaça possível. Sua fuga imediata e desesperada demonstra que julgou ser possível que eu fosse capaz de cometer uma atrocidade dessas.

A ruiva manteve-se silente, ao passo que o sangue do jovem Avelar borbulhava naquele momento. Não podia precisar o que sentia, mas encontrava-se num estado de nervos ideal para esmurrar uma parede. Perceber que por anos deixara de viver adequadamente, enquanto nutria uma paixão cega por alguém que o tomava pelo pior dos homens, era algo difícil de aceitar.

— Não está em posição de me julgar — ela sentenciou, de maneira sombria e resoluta. — Se tivesse vivido essa mesma situação, estou certa de que teria feito o mesmo.

— Está enganada! — Edgar esbravejou, perdendo a compostura enquanto avançava com passos ameaçadores. — E sabe por quê? Eu confiava na sua índole mais do que qualquer outra coisa. Não havia ninguém no mundo a quem eu estimasse mais, e foi assim que me retribuiu.

— Afaste-se de mim! — Sua voz soou ainda mais esganiçada, enquanto a jovem continuava recuando com passos vacilantes. No entanto, suas costas logo atingiram o parapeito da janela, evidenciando que a já havia chegado à extremidade oposta do quarto. Não havia mais para onde fugir.

Sarah aproveitou aquele momento de distração para adentrar na sala de estudos. As dobradiças se moveram sem fazer barulho, e o tapete que forrava o cômodo abafou o som de seus sapatos, de modo que sua presença passou despercebida. Uma das velas havia acabado de se apagar, tornando o ambiente ainda mais sombrio. Ainda assim, optou por permanecer atrás de uma larga estante de livros, como as que mantinha em seu gabinete. Seu coração palpitava, enquanto sua mente dava voltas. Estava zonza e sentia um calor repentino tomar conta de seu corpo.

— Anya, como teve a coragem de agir dessa forma, não só comigo, mas também com a sua família? — ele arguiu com incredulidade, sem sequer dar ouvidos aos seus gritos e súplicas, nem mesmo atentando para o que ocorria atrás de si. — Tem alguma noção do sofrimento que causou a eles? Que causou a mim?

— Não venha me falar de sofrimento, quando desconhece tudo que fui obrigada a enfrentar por conta dessa maldição! Os bons momentos que passamos juntos e as falsas promessas de um matrimônio feliz não compensaram meus anos de isolamento, em que fui obrigada a abandonar minha família. Neguei minha própria existência, troquei de nome e mudei de aparência, tudo para garantir a segurança de meus pais. E quer me convencer que você, do topo de sua montanha de privilégios, sofreu com essa situação? Não me faça rir!

Sarah fechou os olhos, sentindo o peso daquelas palavras. Sabia das condições em que a camponesa vivia, e agora consciente do quão sofrido seu passado fora, não pôde evitar de amaldiçoar mentalmente seu consorte. Afinal de contas, seu palpite estava certo. O vício na bebida, assim como os pesadelos constantes e o isolamento proposital, tudo não passava de meios escusos para aliviar sua culpa.

Suspirando profundamente, ela tornou a abrir os olhos, incerta de como deveria proceder agora. O calor de antes tornara-se ainda pior, deixando-a num estado débil. Sequer sabia como conseguia manter-se de pé.

A poucos passos de distância, a discussão seguia tão acalorada quanto antes, mas ela já não lhe dava atenção. Sua mente tornou-se enevoada, e mal conseguia distinguir a voz de Edgar da de Delia. No entanto, repousado sobre uma pequena mesa redonda à sua frente, algo lhe chamou a atenção. Não o item em si, mas o formato que fora dado a ele.

Abridores de cartas no formato de pequenos punhais eram uma moda recente, e estavam presentes em quase todas as casas do reino. A despeito da escuridão, Sarah percebeu como a luz da única vela acesa permitia que a lâmina reluzisse de modo convidativo. Sem pensar muito a respeito, tomou o objeto em mãos. Via a si mesma no reflexo do metal, só então percebendo que havia uma única lágrima teimosa escorrendo pelo lado esquerdo de sua face.

Quando nos casamos, mesmo contra nossa vontade, eu prometi perante Deus honrá-lo e respeitá-lo”, pensou, enquanto limpava aquela gotícula com as costas de sua mão enluvada. Olhando de relance sobre seu ombro, pôde ver que Edgar permanecia de costas, alterado demais para se dar conta de sua presença.

No entanto, ao ser coroada Rainha de Odarin, jurei fazer o mesmo pelo meu povo e minha nação”, ponderou, sua mão ensaiando o movimento necessário para segurar o pequeno punhal com força. Seus pés vacilantes deixaram as sombras, com os sons inerentes às passadas sendo novamente abafados pelo tapete que revestia o assoalho. Nenhum dos dois se deu conta de sua presença, pois a figura altiva de seu consorte a ocultava.

Você era tudo que me restava, mas ainda assim optou por perpetuar essa traição. Peço que me perdoe, Edgar, mas isso tem que acabar, aqui e agora”, concluiu, erguendo o objeto pontiagudo alto o suficiente para que sua sombra se projetasse no chão.

O movimento ganhou velocidade e o grito de Delia ecoou pelo cômodo. A jovem rainha não soube precisar o que havia acontecido. Sua vista tornou-se subitamente turva e o peso de seu corpo cedeu sobre as pernas fracas.

E então, tudo ficou escuro.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Se eu estou ansiosa para saber a impressão de vocês depois de tanto tiro, porrada e bomba? Imagina, hahaha~
Não deixem de compartilhar comigo tudo que sentiram e pensaram ao longo desse capítulo. Teorias? Quero saber todas também! Rumo a reta final!



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "The Queen's Path" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.