The Queen's Path escrita por Diamond


Capítulo 42
Capítulo XLII - 03 de Fevereiro de 1873




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/739237/chapter/42

Encontrar terrenos amplos e ligeiramente planos em Odarin não era uma tarefa fácil, dada a predominância das montanhas, cheias de relevos irregulares. Ainda assim, lá estavam eles diante, de uma extensa porção de terra, onde um vultuoso agrupamento de caprinos se ocupava em pastar, arrancando os tímidos tufos de grama sobressaída da neve que começava a derreter.

— É absolutamente perfeito! — Sarah observava ao espaço com admiração, apoiando-se contra o cercado que delimitava a propriedade, enquanto o avaliava. Era exatamente aquilo que viera imaginando desde o seu recente retorno de Hallbridge. Ver suas ideias tomando forma, mesmo que à passos vagarosos, lhe enchia de esperança. — Eu mal posso acreditar que você realmente conseguiu.

— Muito animador constatar que vinha apostando no meu fracasso — Phillip retrucou em voz baixa, com uma nota de descontentamento por sentir seus ossos tilintarem debaixo das vestes escuras.

— Eu apenas não esperava que pudesse fazê-lo com tanta celeridade — a jovem rainha mencionou, em meio a um sorriso afável e cheio de vida. Seu olhar repousava sobre as estacas de madeira a sua frente, constatando como eram novas e regulares. — Tem certeza de que o proprietário está disposto a se desfazer desse lugar? Vejo muito zelo em tudo isso, é certo que tem bastante apreço por esse terreno.

— Absoluta. Dentro de alguns dias os animais serão vendidos e então estaremos prontos para tomar posse efetivamente. Mas continuo intrigado com a destinação que dará a esse lugar. O que realmente pretende fazer aqui?

— Foi necessário muito estudo e reflexão para perceber onde se encontram nossas falhas. Veja bem: uma parte considerável da economia de Odarin se baseia na exploração de minérios, e nos vemos obrigados a vender o material bruto à reinos vizinhos, pela falta de companhias de fundição suficientes. — O rapaz a escutava atentamente, com a curiosidade estampada em seu semblante. As rugas de inquietação em sua testa não passaram despercebidas aos olhos da moça, mas ela manteve-se resoluta em seu discurso, continuando antes que lhes surgissem questionamentos. — Se tivéssemos autonomia para produzir nossos próprios utensílios e instrumentos, deixaríamos de comprar produtos refinados a preços exorbitantes. Estaríamos gerando mais empregos, barateando o custo de vida, afora a possibilidade de escoar o excedente da produção para os portos de Hallbridge, onde seriam vendidos no mercado aberto.

— Você pensou nisso tudo sozinha? É engenhoso, arriscado, e mal posso acreditar que foi capaz de articular algo assim — Phillip arguiu com incredulidade. Estava estupefato diante de tamanha ousadia vinda daquela menina supostamente inexperiente. — Uma companhia de fundição de minérios, não é?

Receosa de que talvez estivesse fantasiando demais, Sarah não conseguiu conter uma reação honesta, limitando-se a encolher os ombros e esboçar um meneio positivo. O rapaz, por outro lado, já direcionava um novo olhar ao terreno. Conseguia imaginar de antemão a edificação que ali seria construída, as caldeiras, assim como a movimentação ininterrupta de trabalhadores entrando e saindo do local.

— Não é uma ideia ruim, e podemos fazê-la dar certo. Mas precisaremos de alguém qualificado e que esteja disposto a administrar um negócio desse porte. Espero que não esteja pretendendo vir aqui negociar o preço do ferro e do cobre diretamente com os mineiros.

— Eu não pensei em todos os detalhes ainda — ela admitiu com um sorriso acanhado, enquanto tornava as costas e caminhava na direção de sua carruagem, onde era aguardada pelo cocheiro e mais dois soldados da guarda real. — Tinha esperanças de fosse me ajudar a fazê-lo.

— Não tenha dúvidas de que irei. Alguma vez eu já a desapontei? — Phillip questionou, lhe direcionando um meio sorriso e um olhar cheio de significado.



— Mamãe? Marco? Eu trouxe a comida de vocês.

Mesmo sem receber qualquer resposta, Maria adentrou no humilde casebre situado na vila dos serventes. Os cômodos escuros a obrigavam a caminhar com passos vagarosos, receosa de esbarrar em alguma mobília. Alcançando a pequena sala onde a lareira estalava e aquecia o ambiente com sofreguidão, ela aproximou-se cuidadosamente da cadeira de balanço onde a matriarca repousava. Os olhos cansados e apáticos da velha senhora se afastaram da janela repousaram sobre a jovem diante de si, a quem tinha dificuldades de reconhecer. “Quem deixou essa moça entrar aqui?”.

Instintivamente, Martha agitou-se em sua cadeira enquanto olhava com nervosismo para os lados, incapaz de distinguir o mundo que a circundava. “Onde estou?” e “Como vim parar aqui?” eram perguntas que lhe atormentavam a mente, ao passo que se esforçava para levantar da cadeira, mas infelizmente lhe faltavam forças para concluir tal ação.

— Acalme-se, ou vai acabar se machucando sem precisão — a cozinheira mais nova alertou, enquanto afagava-lhe os fios ralos e brancos. — Eu trouxe algo para você.

Esforçando-se para esboçar um sorriso, ainda que este não condissesse com seu real estado de espírito, ela exibiu para a mãe uma pequena variedade de frutas, assim como um pão caseiro e nozes que trazia numa pequena cesta. A imagem trouxe alguma brandura aos olhos da idosa, que aparentava ter se recordado de algo, o que levou uma expressão de constrangimento em seu rosto.

— Eu não a vi passar — Marco anunciou, logo que cruzou a porta de entrada. — Estava consertando uns móveis do lado de fora. Como ela está?

— Confusa e assustada, como sempre — comentou a jovem, sem tentar mascarar seu semblante abatido desta vez. O silêncio desolador dominou o ambiente, enquanto ela se ocupava em fatiar uma maçã. — Me pergunto se realmente é uma dádiva chegar a essa idade, quando pouco pode ser aproveitado. Não acha que seria melhor se…

— Nem pense em terminar essa frase! — ele retrucou com veemência, tomando seu posto com brusquidão e assumindo a tarefa de alimentar sua genitora. — Se acha que está ocupada demais para cuidar de nossa mãe, então não se incomode em vir do castelo até aqui apenas para dizer essas atrocidades.

— Você não compreende! — Maria retrucou, com angústia marcando seu rosto e voz. Ficava nervosa sempre que não conseguia expressar seus pensamentos da maneira correta. — Não imagina como parte meu coração vê-la nesse estado.

— Pode ir agora, Maria — o rapaz devolveu, de modo seco. Evitava encará-la, pois ainda que proferir palavras duras e maldosas não estivesse de acordo com sua personalidade, sentia-se temeroso de não conseguir conter sua própria revolta naquele momento. — Eu tomo conta dela.

Inconformada, a cozinheira permaneceu inerte, observando com pesar o rosto aborrecido do mais novo. Também lhe doía vê-lo doar todo seu tempo e dedicação à mãe debilitada, desperdiçando assim os anos mais importantes de sua vida. Marco era agitado e falante por natureza, além de ser detentor de um espírito livre. A carpintaria fora um ofício que, embora suprimisse suas necessidades básicas, estava longe de levá-lo a realização ou felicidade. Era um bom garoto, e certamente merecia mais da vida do que somente aquilo.

— Mamãe teve muita dificuldade de criar a nós dois sozinha, e sei que essa é sua forma de retribuí-la pelos sacrifícios de uma vida inteira — ela arriscou, enquanto apertava as mãos de maneira nervosa. — No entanto, eu não quero vê-lo usar essa circunstância como uma distração para os reais obstáculos que você precisa enfrentar.

Assim como antes, ele não proferiu uma única palavra nem lhe deu atenção. No entanto, via através de seu cenho franzido que apesar da falta de reação, o rapaz ponderava aquelas palavras à contragosto.

O silêncio se perpetuou mais alguns instantes e a cozinheira logo desistiu de esperar, decidindo retornar ao castelo para adiantar os preparativos da próxima refeição. Afinal de contas, Evangeline não tolerava atrasos.



— Tem certeza de que deseja ficar aqui? — Sarah questionou pela terceira vez, debruçada sobre a pequenina janela de sua carruagem. — Eu gostaria de começar a redigir os atos que foram deliberados em nosso último encontro. Além disso, uma associação de comerciantes enviou-nos hoje pela manhã um documento repleto de contraprestações mercantis.

— Não se preocupe, estarei de volta antes do fim da tarde — Phillip retrucou, enquanto arrumava as dobras de seu casaco. Estavam próximos ao centro da cidade quando o Secretário deu ordem de parada, informando que tinha assuntos a resolver ali. — Concentre-se e irá se surpreender com a quantidade de assuntos que é capaz de administrar sem o meu auxílio.

A jovem rainha esboçou uma tímida risada, retornando ao seu assento. Imediatamente, a carruagem disparou na direção do castelo, deixando o rapaz de aparência pálida para trás. Com um suspiro cansado ele pôs-se a andar, não conseguindo exprimir em palavras seu descontentamento ao perceber que muito em breve seria incapaz de continuar exercendo suas funções oficiais.

Nas últimas semanas, fortes dores de cabeça o acompanhavam e por vezes fora obrigado a interromper suas leituras quando o desconforto ficava insustentável. Mais recentemente, percebeu que havia adquirido o estranho hábito de afastar os livros e papéis de seus olhos, pois caso contrário, as letras tornavam-se apenas um borrão ilegível, constantemente misturando-se umas com as outras. Ele lutou contra a realidade por muitos dias, até que a aflição diante do desconhecido tornou-se insuportável e ele precisou partir em busca de respostas.

Naquele momento, retornava a um clínico de confiança apenas para confirmar sua teoria, pois ele próprio já estava convicto do mal que lhe afligia: estava a ficar cego.

Não precisou caminhar muito para chegar onde pretendia. Em instantes, a porta fora aberta por um empregado que o recebeu com todas as vênias antes de retirar-se para chamar o proprietário.

— Senhor Chevalier, que surpresa vê-lo aqui — afirmou com surpresa o médico, descendo as escadarias de sua casa com pressa e o usual bom humor. — Depois de sua última visita, achei que tivesse deixado claro a desnecessidade em se deslocar até aqui. Eu poderia muito bem atendê-lo no castelo.

— E tornar pública a minha condição? — o rapaz retrucou de imediato, portando um ar estupefato, como se tivesse acabo de ouvir uma terrível ofensa. — Ainda tenho resquícios de dignidade para preservar.

— E que condição seria essa, meu caro? — o clínico arguiu, após uma longa risada jocosa que ecoou pelo cômodo. Phillip franziu o cenho, aborrecido de vê-lo se divertir às custas de sua enfermidade, ao passo que recusava-se a responder tal afronta. — Esqueça, já posso até imaginar o que tinha em mente. De todo modo, a realidade é bem menos trágica, como verá a seguir.

Com uma confiança ímpar, o senhor de suíças brancas retirou de dentro de seu colete uma receita cuidadosamente dobrada, colocando-a nas mãos de seu paciente contrariado. Com certa pressa, buscou com avidez o diagnóstico ali transcrito. Apesar dos termos científicos que foram empregados, a mensagem se fez clara ao seu interlocutor. Phillip, no entanto, custava a acreditar que aquilo fosse verdade. Percebendo aquele breve momento de hesitação, o médico tomou a dianteira.

— Com que frequência dedica suas horas a leitura?

— Todos os dias, desde que fui alfabetizado — balbuciou o jovem Chevalier, ainda sem tirar os olhos do receituário.

— E costuma fazê-lo em locais parcialmente escuros? — A pergunta fez com que as informações começassem a se encaixar, mas seu semblante ainda externava seu ar de descrença. — O que temos aqui não passa de um caso de “vista cansada”. À princípio, estivesse receoso de chegar a essa conclusão, já que a doença é uma consequência natural do processo de envelhecimento, mas sua rotina intensa de estudos pode ter adiantado a manifestação.

— Significa que não estou ficando cego? — Parecia estúpido pedir por mais uma confirmação quando tudo já havia sido esclarecido, mas a notícia lhe soava boa demais para ser verdade.

— Apazigue seu coração, meu bom rapaz, ainda vai ler muitos livros em sua vida — o clínico pontuou, após outra longa risada divertida. — Leve essa receita a um joalheiro de sua preferência, um óculos será mais do que suficiente para resolver o seu problema.

Phillip agradeceu, ainda um tanto incrédulo em saber que seus hábitos e seu estilo de vida permaneceriam inalterados. A mera possibilidade de abandonar o maior prazer de sua vida era algo assustador, que fizera seu humor piorar sensivelmente nos últimos dias. Agora, era invadido por uma sensação de mais puro alívio. Enquanto alcançava as ruas da cidade, ele poderia até mesmo gritar e saltar de alegria, se sua personalidade e posição lhe permitissem esse tipo de manifestação.



Escorado contra o peitoril do segundo andar, Edgar havia perdido as contas de quanto tempo estava ali, com seus olhos fixos no quadro da antiga rainha de maneira contemplativa. Desde de seu retorno de Hallbridge, passava parte de seus momentos ociosos ali, em pé, tentando desvendar aquele mistério. Não se recordava de tê-la visto em sua casa quando ainda era uma criança, assim como não tinha quaisquer memórias daquele quadro antes de sua viagem de Natal. O que poderia justificar a maneira vívida como ela apareceu em seus devaneios após o acidente?

"Pense em mim como uma amiga. Você pode até não me ver, mas saiba que estou sempre por perto". O Duque de Odarin já havia superado a fase em que julgava estar ficando louco e era relutante em acreditar que vinha sendo acompanhado pelo espírito da antiga senhora daquele castelo. Tinha ouvido todo tipo de histórias, do período em que o Rei Henrique já padecia de sua doença. Diziam que em seus últimos dias o monarca queixava-se a todo momento de ser importunado pelo fantasma de sua antiga consorte, que lhe direcionava olhares de desprezo enquanto perambulava pelo quarto, à espera de sua morte. Queria acreditar que tudo não passava de uma grande falácia, crendo que as pessoas de pouca instrução nutriam um apreço quase religioso por ocorrências envoltas de misticismos simplesmente para justificar aquilo que não podiam responder.

Gostava de ver a si mesmo como uma pessoa cética. Entretanto, já tendo sido perturbado tantas vezes pelas vozes de Anya e de Allen, talvez o mais correto fosse assumir que pessoas vivas e espíritos de um falecido compartilhavam um mesmo plano.

E quanto as semelhanças físicas? Depois de gastar horas encarando o antigo quadro, a última memória da Rainha Katherine, havia mais um fator capaz de intrigá-lo. Os traços de seu rosto assemelhavam-se muito mais aos de sua antiga noiva que aos de Sarah. Não havia de ser uma mera coincidência, disso podia ter certeza. No entanto, ambas tinham realidades distintas demais para terem qualquer relação de parentesco. Todas aquelas questões lhe enchiam de uma curiosidade quase infantil e ele adoraria poder desvendar o segredo por trás de todas aquelas evidências, se é que existia algum.

— Tenho plena consciência de que minha mãe é muito mais bonita do que eu, mas infelizmente terá de se contentar comigo.

Sarah havia proferido aquelas palavras num tom brincalhão, enquanto subia a larga escadaria na direção de seu consorte. Edgar não pôde deixar de rir, direcionando o olhar para seus sapatos, mostrando-se ligeiramente envergonhado. Seu rosto se ergueu somente quando a menina já se encontrava diante de si, trazendo consigo um sorriso radiante.

— Acabo de voltar da cidade e trago muito boas notícias comigo — ela confidenciou, num tom de voz baixo ao mesmo tempo que eufórico.

Com um sorriso afável, o jovem Avelar utilizou-se de seu braço saudável para envolvê-la num abraço, que fora prontamente retribuído com a mesma delicadeza. Apoiando a bochecha sobre o topo da cabeça da menina, ele fechou os olhos por um instante, apreciando a leveza daquele momento.

— Eu gostaria que essa paz durasse para sempre — ele murmurou, num tom confidente.

— E quem lhe disse que não irá? — ela retrucou de imediato, enquanto lhe direcionava um olhar zeloso.

Edgar limitou-se em esboçar uma expressão incrédula. Esperava ao menos que a visão de Katherine estivesse certa, e que o segredo da vida residia em buscar a felicidade mesmo nos momentos mais conflituosos.



Consultando seu relógio de bolso, Phillip constatou que ainda teria algum tempo livre antes de retornar ao castelo no horário acordado. Visitar sua antiga morada estava fora de cogitação, pois não desejava enfrentar nenhum aborrecimento desnecessário, coisa que invariavelmente ocorria quando estava na companhia de seus familiares. Ademais, tinha a ligeira impressão de que vinha frequentando o local bem mais vezes que o previsto quando abandonou o seio familiar.

Enquanto meditava sobre aquelas questões, sua distraída caminhada o distanciava cada vez mais da área comercial, até que o rapaz teve sua linha raciocínio interrompida ao avistar uma acalorada discussão poucos metros adiante. Normalmente, ele teria ignorado a desavença e seguido sem ao menos pestanejar, mas antes que pudesse fazê-lo, alvo vindo no meio do alvoroço lhe chamou a atenção.

— Você não pode fazer isso conosco, estamos vivendo aqui há anos! — rogou uma voz feminina, que lhe soava estranhamente familiar.

— Exatamente, vá embora da nossa casa! — bradou uma outra pessoa, que deixava transparecer sua revolta a despeito do tom infantil.

Um pequeno conglomerado de curiosos começava a se formar entre os conflitantes e, na medida em que se aproximava, suas desconfianças apenas aumentavam acerca de a quem pertenciam aquelas vozes esganiçadas. A suspeita fez com que ele acelerasse o passo, esgueirando-se entre os intrometidos com certo aborrecimento. Presenciar a confirmação de seu pensamento fez com que seu semblante indiferente se distorcesse numa expressão severa e pouco amistosa.

Com uma postura que muito se assemelhava a um animal selvagem defendendo seu território, Delia fazia força para conter a ira de garoto, que não deveria ter mais do que doze ou treze anos e se debatia para avançar no senhor desconhecido com ar estrangeiro que os confrontava.

— Essa casa compunha o patrimônio de meu pai e, portanto, pertence à minha família agora. Veja, eu fui nomeado o inventariante de seus bens — exclamou um homem de estatura mediana e aparência grosseira, enquanto suas feições eram roliças e avermelhadas. Balançava de um lado para o outro uma sentença judicial que haveria de comprovar aquilo que dizia. — Estou apenas reclamando meu direito sobre esses bens. Você deveria estar agradecida por não estarmos lhe cobrando o aluguel por todos os anos que se aproveitou de nosso distanciamento.

— Como ousa dizer esse tipo de absurdo? — a camponesa esbravejou, tomada pela indignação. — Em seus últimos anos de vida, quando todos os seus filhos o tinham abandonado, permaneci ao lado do Senhor Abbot, cuidando de todas as suas necessidades. Ele prezava tanto este imóvel que decidi permanecer aqui em respeito à sua memória. Odiaria ver esta casa simplesmente abandonada, sem qualquer destinação.

— Pois muito bem, como herdeiro legítimo estou aqui para dar a esse lugar a sua devida destinação — retrucou, com uma postura e sorriso triunfantes que denunciavam seu completo descaso em relação às pessoas que ali habitavam. — A partir de hoje está dispensada de seus serviços.

— Mas eu não tenho outro lugar para morar! — Sua voz rapidamente passou da raiva para o desespero. O prospecto de perder seu lar, que tivera tanto trabalho em manter ao longo de todos esses anos, era simplesmente assustador. — E com três crianças pequenas, para onde espera que eu vá?

— Isso, senhorita, já não é problema meu — rebateu o forasteiro, sentindo que aquela questão estava, por fim, encerrada. — Agora faça-me o favor de tirar os seus pertences daqui, ou eu mesmo os atirarei pela janela.

— Você não pode falar com ela assim!

Os olhares curiosos todos se voltaram para a figura de Phillip, que àquela altura já não conseguia conter sua repulsa por aquele homem desprezivelmente grosseiro. O rosto de Delia tornou-se lívido ao perceber sua presença ali, em meio aos transeuntes, levando-o a crer por um instante que ela estivesse prestes a desmaiar. Avançando alguns passos, o suficiente para se colocar entre os dois, ele sentiu que estava na hora de utilizar seus conhecimentos para fazer justiça.

— Ela pode não ser proprietária deste imóvel, mas tem sido possuidora de boa fé nos últimos anos e, por conta disso, tem sim direitos a serem resguardados. — Podia ver que o senhor à sua frente não esperava por esse tipo de intervenção, evidenciando que realmente estava se aproveitando do desconhecimento da jovem. — Não pode despejá-la com tamanha descortesia. Suas atitudes denotam apenas ignorância e uma falta de cavalheirismo sem precedentes.

— Mais um aproveitador, será possível que essa terra gelada esteja cheia deles? Tem alguma ideia com quem está falando?

— Não faço ideia de quem seja, e isso pouco me importa. Delia passou anos mantendo esta casa com recursos próprios, impedindo que o abandono desvalorizasse a propriedade. — O jovem Chevalier mostrava-se bastante convicto em sua fala, afinal, era única maneira de fazê-lo acreditar na pequena mentira que acabara de forjar. — Se deseja mesmo removê-la daqui, terá de aguardar o prazo legal para despejá-la compulsoriamente. No caso, noventa dias contados a partir da primeira solicitação de saída.

— Quem você pensa que é para me dar ordens dessa maneira? — arguiu o desconhecido, que começava a mostrar sinais de aborrecimento.

— Lhe dar ordens? — Uma discreta risada petulante acabou por escapar de seus lábios. — Longe disso, essas são as leis de nosso reino e qualquer cidadão que se preza teria respeito por elas. Quanto a mim, apenas trabalho diretamente para aquela que as edita, a Rainha Sarah de Odarin. Se é tão importante quanto alega, deve conhecer a ela e, principalmente, seu apreço pelos mais fracos e desfavorecidos.

A imputação gerou um ar surpreso não só no forasteiro desaforado, mas também em todos os desocupados que permaneciam atentos a discussão. Em seu rosto, era perceptível o descontentamento por ter cruzado com aquele nobre intrometido, mas não arriscaria se indispor com a Família Real, principalmente quando vinha de um reino com relações pouco amigáveis.

— Noventa dias, não é? — Ainda tentava manter o ar triunfante, apesar do orgulho e a vaidade abalados depois da afronta do Secretário. — Neste caso, é melhor se apressar, pois não terá nem um dia a mais para usufruir da boa vontade alheia.

O homem corpulento esboçou um afrontoso menear, como se o gesto de alguma maneira pudesse melhorar seu estado de derrota, antes de se retirar a passos largos. Os bisbilhoteiros logo começaram a se dissipar, e só então Phillip pôde tornar o rosto na direção da camponesa. Estava apoiada contra a cerca que delimitava o espaço de sua morada, o rosto enterrado entre os dedos delgados, enquanto o garoto puxava insistentemente a saia de seu vestido, buscando uma explicação para o que havia acabado de acontecer. Depois de dizê-lo para esperar do lado de dentro, o menino adentrou em sua casa com um ar resignado, finalmente deixando-os à sós.

— Céus, o que farei agora? — ela questionou em voz alta, ainda que a pergunta se destinasse muito mais a si que ao seu interlocutor.

— Desculpe-me, era tudo que podia fazer para ajudá-la — o rapaz balbuciou, colocando-se ao seu lado, incerto do que poderia dizer para tornar a situação menos penosa. — Se ao menos estivesse sozinha, as coisas seriam mais fáceis. Três crianças demandam muito de uma única pessoa.

— Está enganado — a camponesa o interrompeu, finalmente retirando as mãos que lhe cobriam a face. Tinha as bochechas vermelhas, demonstrando assim o nível que sua ansiedade havia atingido. — Não os vejo como fardos pesados demais para suportar, mas como minha maior alegria. Viver sem eles seria demasiadamente deprimente, algo que eu não poderia suportar.

Dito isso, o silêncio prolongou-se por alguns instantes. Foram raras as ocasiões em que se apiedou de alguém, pois a sensação de impotência lhe era demasiadamente desconcertante. Além disso, havia um incontestável incômodo em perceber o quão vulneráveis as pessoas eram e em como os seus problemas pareciam insignificantes se comparados com os da criada.

— Você deveria falar com a Sarah — Phillip afirmou, após alguns instantes de reflexão. Aquelas palavras chamaram a atenção de sua companhia, que parecia não compreender a intenção contida nelas. — Tenho certeza de que haverá um lugar para você naquele imenso castelo.

— Por céus, isso nunca! — A simples menção do castelo levavam arrepios à sua espinha, e retornar àquele local era uma ideia com a qual jamais poderia pactuar. — Não posso simplesmente me atirar aos pés da Rainha e implorar para que me conceda abrigo. Afora isso, certamente existem assuntos de maior importância para serem tratados.

Phillip sabia que tais palavras careciam de verdade, e que havia um outro motivo para que a jovem se recusasse a buscar ajuda da Família Real de maneira tão veemente. No entanto, aquele não lhe parecia ser o momento mais adequado para realizar alguma de suas perguntas indiscretas, o que o fez manter-se em silente novamente. Empatia e compaixão estavam longe de ser suas melhores virtudes, mas o rapaz percebeu que tomaria as dores da camponesa para si, se pudesse fazê-lo.

— Minha mãe costumava dizer que o bem que fazemos ao mundo um dia retorna para nós — Delia recomeçou, revelando uma voz embargada e demonstrando que estava próxima de seu limite. — Entretanto, tudo que este lugar tem me proporcionado foram problemas infindáveis.

— E onde está sua mãe agora?

— Longe demais para ser uma alternativa válida — ela rebateu de imediato, desta vez num tom seco e sem emoção. — Eu preciso entrar e explicar para eles o que está acontecendo.

Por um instante, julgou que aquele pudesse ser o momento adequado para agradecer toda atenção que o rapaz vinha desprendendo consigo. No entanto, as palavras pareciam estar presas em sua garganta e a demora em verbalizar seus pensamentos a fez desistir de seu intento. Arrastando-se para dentro de sua casa, Delia o deixou para trás enquanto sentia uma angústia crescente tomar conta de si. Viver nunca fora uma tarefa fácil, mas jamais poderia prever que seria tão difícil tampouco.



Pela primeira vez desde que havia começado a servir a jovem rainha como Secretário Real, Phillip sentia-se deslocado no amistoso debate que Sarah travava com seu consorte. Falavam qualquer coisa sobre o último encontro que tiveram com as famílias fundadoras e, estranhamente, ele não se importava com o assunto em questão. A cena presenciada naquela tarde ainda ocupava seus pensamentos, fazendo-o questionar-se se realmente não poderia ter feito algo mais pela ruiva que tanto o intrigava. Não era a primeira vez que via pessoas sendo despejadas de suas moradas, num completo estado de desamparo. Por quê, então, estava tão incomodado com aquela situação específica?

Seu nível de desatenção era tamanho que sequer reparou no momento em que um servente adentrou no gabinete, trazendo uma distinta carta que fora diretamente entregue para a menina à sua frente. Quando finalmente voltou a si, percebeu que ela encarava o teor daquela correspondência com uma expressão confusa.

— Algo errado?

— Eu não tenho certeza. É um convite para um baile, que ocorrerá dentro de alguns dias para celebrar o retorno do Lorde Robert Banville — Sarah proferiu num tom incerto, como se duvidasse das próprias palavras. — Serei muito negligente por não ter ideia de quem se trata?

— Você disse Lorde Banville? — Edgar questionou, enquanto erguia-se de seu assento com exaltação. — Ele representa uma importante família aqui em Odarin, além de administrar grandes negócios em todos os quatro reinos. Esteve recluso por muitos meses para se recuperar de uma doença que lhe afligia os pulmões. Seu retorno, assim como a realização deste baile certamente indicam seu restabelecimento físico.

— Parece muito contente com a notícia — ela pontuou, de maneira amigável. — É um amigo seu?

— Não tivemos um longo convívio, mas conversamos algumas vezes antes de seu retiro — o Duque respondeu, demonstrando uma visível empolgação com a notícia. — Robert Banville detém uma personalidade singular, ainda que seja uma pessoa bastante agradável de se conviver. Nutre um verdadeiro apreço por debates envolvendo as mais variadas ideias, de modo que acaba sendo um tanto improvável não se afeiçoar a ele.

— Neste caso, não vejo razões para não confirmar nossa presença em seu evento — a menina replicou, passando a compartilhar da mesma empolgação de seu consorte.

Phillip, que encontrava-se alheio à conversa a princípio, passou a ouvir tudo que dizia respeito àquele baile e seu idealizador com bastante atenção. “Lorde Robert Banville. Importantes negócios nos quatro reinos. Recluso por muitos meses”, repetiu mentalmente diversas vezes, assegurando-se de que não iria esquecer daquelas informações.

Afinal, talvez aquela fosse a última peça para completar o quebra cabeça que havia se disposto a desvendar.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Olá, meus amores! Espero que esteja tudo bem com vocês. Alguém aqui curioso para saber o que tanto o Phillip investiga? No próximo capítulo vocês vão ter a resposta para esse, e mais alguns outros mistérios! Vejo vocês lá, e não se esqueçam de dizer o que acharam, a opinião de todos é muito importante para mim ;)



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "The Queen's Path" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.