The Queen's Path escrita por Diamond


Capítulo 39
Capítulo XXXIX - 06 de Janeiro de 1873


Notas iniciais do capítulo

Olá, meus amores, como vocês estão?

Sobreviver a esse final de período na faculdade foi mais tenso que em semestres anteriores, mas o que importa é que deu tudo certo, no final das contas. Afora isso, tive que fazer uma cirurgia, o que atrasou ainda mais a postagem do capítulo. Nem se preocupe, estou viva e bem, já no conforto da minha casinha :)

Sem mais delongas, desejo a todos uma ótima leitura!



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— Tem certeza de que precisa retornar agora? — inquiriu a ruiva pela décima vez, certa de que ainda conseguiria convencê-lo a mudar de ideia. — É muito mais prudente ficar aqui, até termos certeza de que esteja apto a fazer uma viagem tão longa. Uma semana a mais, o que me diz?

— Pela última vez, Charlotte, eu estou bem! Não vejo necessidade alguma para tamanha preocupação — retrucou o Duque, um tanto impaciente e surpreso com o excesso de zelo da mais nova. — Sinceramente, não me recordo de algum dia tê-la visto tão preocupada assim comigo.

— Jamais esteve tão próximo de morrer quanto agora, não pode me culpar por isso — rebateu, com uma expressão desgostosa estampada no rosto. — Afinal de contas, qual a razão para tamanha pressa?

— Sarah se ausentou muito mais do que havíamos planejado por minha causa. Sabemos que por ora tudo caminha bem, mas não queremos que as coisas em Odarin fujam do controle. Ademais, eu não me sentiria bem em vê-la retornando sozinha.

— Por céus, Edgar, quando vai deixar de pensar nos outros para pensar um pouco mais em si mesmo? Foi esse tipo de atitude ocasionou este acidente desastroso, e mesmo assim parece que ainda não aprendeu nada!

O jovem Avelar não pôde deixar de rir daquele comentário aborrecido, mas que em nada carecia de verdade. A própria Sarah já havia lhe apontado aquela falha dezenas de vezes, mas somente agora ele percebia o quão destrutivo aquele comportamento poderia ser. O nítido olhar de preocupação estampado no semblante das pessoas a quem ele mais amava era algo que não deseja rever tão cedo.

Àquela altura, a breve caminhada dos dois ao entorno da propriedade de seu pai chegava ao fim. Diante da entrada da extensa morada, uma carruagem oficial já estava pronta para levá-los de volta para casa. De início, a ideia lhe soava estranha, fazendo-o sentir-se até mesmo um tanto culpado de não considerar mais aquele ambiente rural e litorâneo como seu ideal de lar. Era a primeira vez que imaginava Odarin como sua casa, e o pensamento inédito lhe trouxe um sentimento morno ao peito, enquanto trazia consigo um sorriso discreto.

— Mas eu estou pensando em mim neste momento — concluiu, de maneira confiante, após segundos de divagação. — Sei que meu passado está aqui em Hallbridge, e agora percebo que nada que eu faça irá apagar isso. No entanto, meu futuro está em Odarin, e já não pretendo fugir ou adiar isso nem mais um dia sequer.

— Vejo que nada que eu diga o fará mudar de ideia — Charlotte suspirou de maneira cansada, dando-se por vencida naquele embate. Embora não estivesse certa de que o mais velho já se encontrava apto para partir, bem sabia que não poderia trancá-lo numa redoma de vidro, mesmo que sua intenção fosse tão somente protegê-lo. — Ao menos me escreva sempre que possível, sabe que meus dias aqui são insuportavelmente tediosos. Além disso, sinto sua falta também.

— Não fique triste, você pode nos visitar quando quiser.

— Posso mesmo? — Os olhos da ruiva brilharam de esperança, com a mera prospecção de voltar a residir junto à Corte. Afinal, qualquer coisa era melhor que aquele ambiente rural repleto de trabalhadores e carente de nobres interessantes a quem ela pudesse seduzir.

— Pensando bem, talvez seja melhor não — ele reconsiderou, num tom jocoso que lhe caia muito bem. — Longe de mim querer ver vocês duas se matando novamente.

Ao terminar sua fala, ele apontou para a entrada da casa, onde Sarah se despedia do Conde Avelar. Charlotte não pôde evitar um revirar de olhos com a imagem, mas acabou se juntando a Edgar numa risada tímida e fraternal. Certas coisas simplesmente não mudavam nunca.

— Espero que saiba o que está fazendo — ela mencionou, com a voz baixa, enquanto seu semblante assumia novamente um ar de preocupação. — Odiaria vê-lo machucado novamente.

Na ocasião, o rapaz se sentiu estranhamente constrangido. Sarah poderia até ser desastrada e inconsequente em suas ações, mas estaria sendo injusto de culpá-la de modo exclusivo pelos acontecimentos recentes. Tinha uma parcela de culpa considerável para que a situação tivesse chegado naquele estágio crítico e reconhecia isso. No entanto, não estava propenso a prosseguir com aquela linha de pensamento. Tratava-se de uma armadilha de sua mente, uma refinada espécie de autossabotagem. Charlotte estava enganada em seu julgamento, pois ele havia aprendido muito e não estava disposto a cometer o mesmo erro novamente.

— Tudo pronto para partirmos? — a jovem rainha questionou, com um notável tom de empolgação presente em sua voz. Era evidente sua alegria em poder voltar para casa. No entanto, este sentimento sequer chegava perto do deleite em ver Edgar voltar a ser quem era antes. Se tivesse de fazer uma comparação, seria como retornar à um porto seguro, há muito esquecido em meio a tantas tribulações. — Devemos nos apressar se não quisermos chegar em Odarin após o anoitecer.

O Duque concordou com um meneio positivo, e após uma breve despedida com seus familiares, ambos se dirigiram até o veículo. Tinha o braço direito enfaixado e firmemente atado junto ao torso, o que não o impediu de estender a mão para a sua companheira, de modo a auxiliá-la na subida dos degraus de apoio da carruagem. O gesto foi recepcionado por um sorriso amável e não tardou muito para que o cocheiro desse o comando inicial, pondo os cavalos em movimento.

Charlotte observava a cena com um misto de pena e desprezo. Era lamentável ver tamanha dedicação ser desperdiçada com alguém que decididamente não merecia tamanha cortesia. O casal lhe parecia ser a figura perfeita para ilustrar o vocábulo “desperdício” no dicionário, ainda que os principais envolvidos não compartilhassem de sua opinião. Resignada, ela retornou para o interior de sua mansão, acompanhada pelo mais novo e seu pai.

— Não o vi a manhã inteira — Sarah comentou, com um ar distraído, logo que se afastaram da antiga morada de seu consorte. — O que estavam fazendo?

— Caminhando e conversando, nada além disso — Edgar respondeu, compartilhando o mesmo tom desatento da moça. Seus olhos estavam fixos na janela da cabine, posto que observando com certa ternura tudo que estava deixando para trás. — Charlotte estava apreensiva de que talvez eu não estivesse recuperado o suficiente para fazer esta viagem.

— Estranho vê-la preocupada com alguém além dela mesma — foi tudo que se limitou a dizer.

Diante da falta de retorno do Duque, a viagem prosseguiu por muito tempo em silêncio. Muito fora conversado nos últimos dias, pedidos de desculpas foram devidamente trocados, e ainda assim ela tinha dúvida se estava tudo efetivamente bem. O distanciamento impróprio que havia se estabelecido ali não era tão simples de ser desfeito, mas cada dia se encerrava com um notável avanço e isso servia para acalentar em parte suas incertezas.

O rapaz encontrava-se absorto em pensamentos, e não era por mal que deixara de dar continuidade àquele diálogo. A visão ia mudando aos poucos e não tardou para que os casarões e fazendas ficassem para trás, dando lugar à uma paisagem mais natural e despovoada. “Quando chegarmos a Odarin, tudo que veremos serão pilhas de neve acumulada e indigentes famintos”, concluiu com pesar, tendo ainda mais certeza da decisão que havia tomado. Era lá onde queria estar, pois sabia que, com algum esforço, poderia fazer a diferença na vida daquelas pessoas.

Enquanto isso, a menina o observava com um olhar atento e curioso. Daria a vida para saber o que se passava em sua mente, mas estava certa de que verbalizar seu anseio seria uma atitude indelicada de sua parte. Diante da impossibilidade, ela se conteve em acomodar o rosto sobre o ombro sadio de sua companhia, recebendo um sorriso de canto e um afago em resposta. Como podia ter ignorado o quão confortável e seguro aquele apertado espaço era até então? A realização só lhe ocorreu no dia em que Edgar despertou, e desde então parecia ter adquirido certa dependência do aroma amadeirado existente ali.

Logo um bocejo escapou por seus lábios sem que conseguisse contê-lo a tempo, denotando o quanto estava cansada. Não tinha mais lembranças de uma noite de sono tranquila, não sendo raro despertar de modo sobressaltado tantas vezes durante as horas de descanso. O resultado era evidente nas manhãs seguintes, em que se mostrava sonolenta durante quase todo o dia. Apoiada ali, estava quase adormecendo de vez, quando algo do lado de fora lhe chamou a atenção.

— Que construção é aquela, acima da colina? — questionou, de maneira súbita, enquanto apontava para algo além da janela. — Ali, com paredes de pedra.

— Uma cooperativa de fundição de minérios — Edgar respondeu, mas logo percebeu uma sombra de confusão em seu rosto, de modo que não tardou a esclarecer. — É uma instituição de trabalho colaborativo, em que seus membros investem um mesmo valor na sociedade e, posteriormente, repartem de maneira igualitária os lucros arrecadados.

— Nunca vi nada assim antes. E isso funciona?

— Nem sempre, é bem comum que os trabalhadores se desestimulem com essa forma de repartição de lucros, trabalhando cada vez menos, o que acaba prejudicando toda a sociedade. — O rapaz aclarou, recordando-se de já ter visitado a cooperativa em questão muitos anos antes, na companhia de seu pai. Era um negócio estável e bastante rentável, até onde conseguia se recordar. — É preciso muita responsabilidade de cada um para fazer um negócio dessa estirpe funcionar. Mas com o devido esforço de todos os envolvidos, os rendimentos são consideravelmente superiores aos de outras espécies de trabalho. Por que o repentino interesse no assunto?

— Acho que acabo de ter uma ideia — ela concluiu, com um brilho singular em seu olhar e um sorriso confiante estampado no rosto.



Mesmo fechado, o bule fumegava fortemente pela biqueira, espalhando um aroma doce por onde passava. Evangeline trazia a porcelana em mãos e caminhava com certa urgência, como se executasse uma tarefa de demasiada relevância. Sua pressa era de todo injustificada, mas seus dias haviam se tornado tão vazios que qualquer ocupação boba lhe inspirava uma importância muito maior que o necessário. Ativa como era, o trabalho não só era sua fonte de renda, como também lhe servia como estilo de vida. Seus pensamentos e valores se adequaram àquela realidade e a moldaram de modo bastante singular. A rotina intensa lhe enchia de vitalidade e, no entanto, estava cada vez mais difícil preencher as horas de modo a continuar sentindo-se viva.

Sarah não só havia crescido, mas também amadurecido, e de uma maneira que superou todas as suas expectativas iniciais. O reflexo disso não poderia ser outro, e a senhora que há tanto servia a Família Real observou suas funções serem reduzida de modo gradativo, conferindo-lhe algo que antes não passava de conceito distante de sua realidade: tempo livre. O ócio a incomodava profundamente e qualquer coisa que desse significado à sua presença naquele castelo lhe era satisfatório.

Naquela manhã, ao ver uma tímida criada levar o chá do Secretário Real com passos tão vagarosos que fariam a bebida esfriar, apressou-se em mandá-la de volta para a cozinha, ocupando-se ela mesma em servi-lo. Sempre julgara aquela morada grandiosa demais para uma família tão pequena e que, depois dos acontecimentos recentes, havia se tornado ainda menor. “Essa quietude está me matando! Adoraria ter uma criança ou duas para que pudesse ministrar lições, mas enquanto Sarah e Edgar não se acertarem o que quer os atormentam, a última coisa que teremos aqui é um infante para encher esta casa de energia”, refletiu com desalento, enquanto batia à porta do gabinete e aguardava autorização para entrar, o que não demorou para acontecer.

— Um chá de camomila com baunilha, para aquecê-lo nesta manhã tão fria — ela anunciou, logo que pôs os pés dentro do cômodo.

O rapaz de fios escuros, estes cuidadosamente penteados para trás, assentiu de modo tão discreto que somente alguém de olhos atentos como Evangeline poderia perceber. Era absurda a quantidade de papéis dispostos sobre sua mesa, mas ele parecia pouco incomodado com aquele detalhe, diferentemente da governanta que tentava à custo refrear o ímpeto de pôr tudo aquilo em ordem.

Como Secretário Real, era esperado que ele estivesse respondendo cartas, relendo decretos antigos ou mesmo preparando minutas que seriam analisadas pela Rainha quando retornasse. Ao invés disso, Phillip debruçava-se sobre uma infinidade de listas contábeis, que não passavam de descrições pormenorizadas das movimentações financeiras da Coroa. Seus olhos iam de um lado para o outro num ritmo quase frenético, o que lhe levantou suspeitas. Aqueles registros tinham pouquíssima utilidade prática, levando-a a se questionar a quanto tempo ele vinha dedicando àquela tarefa e o que pretendia com ela.

Se passaram longos segundos até que o jovem Chevalier percebesse o olhar contemplativo da antiga servente sobre si. Ao vê-la tentar decifrar sua minuciosa análise sobre as listas contábeis, ele imediatamente cobriu os documentos com o antebraço, de modo discreto e sem alarde, mas deixando claro que aquela era uma tarefa particular.

— Agradeço pela gentileza em trazer o chá até aqui — afirmou de maneira mecânica, ansioso em ver-se sozinho novamente.  — Está dispensada.

Ainda que seu semblante deixasse transparecer uma nota de desconfiança, a governanta limitou-se em empregar uma polida reverência, retirando-se logo em seguida de modo silencioso.

Sua saída fez com que Phillip respirasse com alívio, logo deixando seu rosto pender sobre os escritos novamente. Os números se avultavam e nem sempre as descrições contidas ali eram tão elucidativas quanto ele gostaria. Ainda assim, uma ou outra movimentação destoavam das demais e ele tomava nota das discrepâncias num pequenino caderno que trazia consigo. “Sarah há de chegar a qualquer momento, preciso me apressar”, ele pensou com certa angústia, sacando seu relógio de bolso no intuito de estimar quanto tempo de busca ainda lhe restava. Muito menos que o esperado, foi o que constatou.

Guardando a peça dourada em seu bolso, o rapaz prosseguiu com sua perigosa empreitada, determinado a ir tão longe naquilo quanto pudesse. Nenhuma farsa dura para sempre e aquela estava bem próxima do fim. “Eu não tenho ideia do que você tanto esconde, Edgar Avelar, mas pode ter certeza de que estou muito perto de descobrir”.



— Você concluiu aquilo que lhe requisitei dias atrás? — Gilbert questionou, caminhando apressadamente no encalço da ruiva. — Por céus, Charlotte, quanto tempo precisa para transcrever uma lauda? Já faz dez dias desde que pedi isso.

— Acha que sou iletrada ao ponto de precisar de dias para redigir uma simples carta? — A mais velha retrucou com irritação. Já não tinha mais desculpas que servissem para despistá-lo, não lhe restando outra opção senão evitar ocupar o mesmo ambiente que seu inquisidor. Suas fugas chegaram ao ponto de esconder-se até mesmo no quarto ocupado por Edgar, onde sabia que Gilbert não iria procurá-la. Agora já não tinha sequer esconderijos e se encontrava encurralada na sala de estar de sua casa. — É óbvio que a finalizei há dias. No entanto, não pretendo entregá-la enquanto não me disser o que pretende com isto. Que valores são esses que você requer a liberação junto ao reino de Greenwall? Até onde eu saiba, não mantemos relação alguma com eles.

— Não foi isso que acordamos! — Protestou o mais novo, transtornado com aquela inusitada mudança de planos. Seu trato era simples, ela deveria transcrever-lhe uma carta com a caligrafia de Allen e como pagamento poderia levantar alguns penhores que tinha consigo, frutos de noites de jogatina. Não compreendia o que poderia tê-la feito mudar de ideia repentinamente, mas não gostava do rumo que as coisas haviam tomado.

— Pois bem, o acordo mudou — Charlotte retrucou, sem qualquer constrangimento. Com o queixo erguido e o olhar desafiador marcando seu rosto jovial, estava certa de logo conseguir o que queria. — Dá-me os fatos e eu te darei a bendita carta. Silencia sobre eles e morreremos os dois, eu de curiosidade e você de pobreza.

— Eu disse “sem perguntas” e você concordou! Deixe de asneiras e me entregue esta carta de uma vez!

— Resposta errada. — Enquanto falava, a ruiva sacou a carta delicadamente dobrada e lacrada de seu bolso, inclinando o papel na direção da lareira acesa. — A que se deve tamanha graça vinda de um reino tão pouco amistoso? E por que Allen é o único legitimado a autorizar este repasse? Odarin cortou relações comerciais com Greenwall há anos, o que torna sua mensagem ainda mais singular e curiosa. Diga, ou serei obrigada a destruí-la.

O silêncio imperou por longos segundos. A despeito de se encontrarem na estação mais amena do ano, Gilbert suava frio, dado o seu nervosismo. Não revelar o que pretendia lhe custaria uma fortuna inestimável, mas algo lhe dizia que sua irmã não iria suportar a verdade e destruiria a carta de igual modo. Em todos os cenários, ele sairia derrotado e se havia algo que não sabia lidar era com a sensação de fracasso.

Era difícil raciocinar naquelas condições, e sem saber o que poderia responder para contornar a situação, acabou por impacientar sua irmã, que aproximou ameaçadoramente a correspondência das labaredas vermelhas, que aparentavam estar ansiosas em consumir as extremidades do papel. Um grito desesperado escapou de sua garganta, ecoando pelo cômodo de modo estridente e involuntário. Sabia que agora não tardaria até que o local estivesse abarrotado de serventes atraídos pelo barulho excessivo e, mesmo assim, não tinha ideia do que iria dizer para ela.

— Por que está fazendo isso comigo? — Diante da falta de um bom discurso que pudessem convencê-la, Gilbert tentou apelar para o lado sentimental de Charlotte, mesmo ciente da baixa probabilidade de lograr êxito com aquele tipo de abordagem. — Sou seu irmão, não sou? Você deveria estar me apoiando, e não se colocando contra mim!

— Pode até ser, mas sinto que algo não se encaixa — a jovem pontuou, tentando conter o riso diante da pífia tentativa do mais novo de comovê-la. — Se você é realmente digno deste tesouro, porque precisa da chancela de Allen? E por que ele mesmo não lhe conferiu essa permissão antes?

— Houveram contratempos! — sua voz soou esganiçada e ele se sentiu patético ao perceber isso. — Simplesmente não houve tempo para isso. Confie em mim, mereço este pagamento mais que qualquer outra pessoa no mundo.

— Isso você terá que comprovar. A menos que me dê subsídios para acreditar no que diz, nenhum dos dois sairá daqui realmente satisfeito.

Charlotte transbordava ceticismo. Tinha consciência de que Gilbert estava longe de ser uma pessoa virtuosa, mas isso até então não havia sido um impedimento para ser conivente com seus atos. No entanto, aquela situação era diferente das demais. Um passo em falso e ela estaria traindo a memória de Allen, algo que ela guardava em seu íntimo como uma joia rara. Estando resoluta em seu posicionamento, não restou ao rapaz outra alternativa senão se render aos seus caprichos. Para ele, era difícil manter a postura altiva enquanto sua boca amargava com o sabor da derrota. Tentava convencer a si mesmo de precisaria caminhar devagar para chegar mais longe naquela trilha. “O que é uma pequena concessão diante da fortuna que me aguarda?”, pensou enquanto tentava engolir aquele discurso otimista e perdedor, tudo muito a contragosto.

— Irei esclarecer as circunstâncias que me obrigaram a recorrer de sua ajuda, mas prometa-me que, gostando ou não da resposta, irá me entregar esta carta. — A ruiva se limitou em erguer uma das sobrancelhas de maneira expressiva, o que não lhe inspirou qualquer confiança. — Há tempos recebo uma generosa quantia de Greenwall, por serviços prestados no passado. Allen me fez uma proposta bastante vantajosa e os pagamentos vinham sendo realizados pelo outro reino em função de uma dívida previamente contraída. Tudo não passava de uma compensação financeira que beneficia todas as partes e sua autorização era necessária de modo a evitar fraudes.

— Você fala de serviços prestados de maneira muito vaga — ela pontuou, enquanto afastava-se das chamas com passos cautelosos. — Ao que exatamente estamos nos referindo?

— Veja como são as coisas, é realmente uma enorme coincidência. Assim como você, tudo que tive que fazer foi escrever uma carta...



A carroça balançava e rangia com mais intensidade na medida em que o rapaz guiava os cavalos colina acima, na direção do castelo de Odarin. Petruchio e Pipo avançavam com passos lentos, quase preguiçosos, em função do frio e da pesada carga que arrastavam. A paisagem havia sido tomada pelo branco proveniente da neve e apenas a estrada principal estava livre daquele pálido manto natural.

Ainda que trouxesse o chicote em mãos, lhe faltavam motivos para instigar os animais a irem mais depressa. Ele mesmo se encontrava num estado de latência, com o rosto afundado em seu grosseiro cachecol e os pensamentos levando-o para longe dali. Era um tanto inacreditável como sua vida mudara dentro do período de um ano. Em sua maioria foram dias conturbados e, estranhamente, Elliot se sentia mais perturbado com sua própria consciência que qualquer outra coisa que estivesse em seu redor.

Por muitos meses foi difícil lidar com a sensação de ter seus sentimentos menosprezados. Em seu íntimo, havia a consciência de que aquele relacionamento jamais poderia prosperar. Ainda que não houvesse intolerância da parte de Sarah, seria impossível convencer o restante de sua classe social a fechar os olhos para o fato de que ele não passava de um simples servente, sem instrução alguma e que sequer sabia ler. Embora não fosse tão ingênuo quanto a menina nesse aspecto, lhe custava aceitar a voz da razão em detrimento da emoção. Involuntariamente, ele se permitiu viver aquela alegria sem dar a devida atenção às consequências, que eram óbvias e previsíveis.

Por conta disso, quando o tratador de cavalos se viu trocado de modo tão displicente, uma semente de ira e revolta foi plantada em seu coração e encontrou solo fértil para desabrochar seus frutos amargos. O pequeno broto resistia contra seu próprio discernimento, seguindo desta forma até que a voz de Jacques ressoasse de maneira intensa em sua mente. Há muito ele vinha refletindo sobre o sermão de seu pai, ciente de que ele estava coberto de razão.

Vagarosamente, a paisagem natural dava lugar ao vasto jardim pertencente à Família Real. Trazia consigo muitos produtos a pedido de Maria, que estava ansiosa em abastecer as despensas do castelo de especiarias antes que o inverno se encarregasse de esvaziar todos os armazéns. Seus inseparáveis companheiros equinos apressaram o passo por vontade própria, sem que ele nada fizesse, no intuito de encerrar aquela tarefa o mais rápido possível, pois somente assim poderiam retornar ao conforto de suas baias livres de vento e cobertas de feno. Seus devaneios se dissiparam somente quando uma suntuosa carruagem o ultrapassou na estrada de terra. Ao que tudo indicava, a jovem rainha estava de volta.

Não foram necessários mais que alguns minutos para obtivesse sua confirmação. Parando diante da escadaria principal do castelo, o cocheiro adiantou-se em abrir a porta da cabine e auxiliar a menina a descer do veículo. Trajava um vestido em tons escuros, adornado exclusivamente por um xale e um chapéu discreto. Nenhuma joia reluzia de maneira visível, levando-o a concluir que ao menos sua simplicidade havia sido preservada mesmo após a repentina mudança de cargos.

Seu consorte se fez presente logo em seguida, o que ocasionou uma imediata reação de desagrado no semblante do rapaz. Vislumbrando as bandagens que sustentavam o braço ferido, foi impossível para ele não imaginar como aquele castigo havia sido merecido, ainda que não soubesse que circunstâncias levaram àquele acidente. Os detalhes não o importavam, no final das contas, pois desconhecia alguém que merece mais das penas divinas que o Duque de Odarin.

A menina, por outro lado, não dava indicativos de compartilhar daquele duro julgamento. Ao invés disso, suas ações inspiravam um cuidado excessivo e mesmo à distância era possível perceber seu olhar tenro. Vê-los subirem juntos a larga escadaria lhe causou um repentino nó na garganta, e junto da incômoda sensação, veio a instantânea realização.

Ele fora demasiadamente injusto. A despeito das imputações que fizera em seus encontros anteriores, Sarah não havia mudado. Ela continuava a mesma, manifestando afeto e zelo sempre que possível, conferindo ao jovem Avelar a mesma dedicação que tivera um ano antes, quando caíra enfermo nos estábulos. Estavam reunidas ali todas as evidências que precisava para finalmente se convencer disto. Na realidade, o único que havia transformado numa pessoa diferente havia sido ele.

Eu fui um tolo durante todo esse tempo. Tratá-la com indiferença e hostilidade não trará de volta. Na realidade, agora vejo que nada trará. Sarah se foi para sempre”, pensou, com um misto de tristeza e alívio. Aquela convicção, embora não muito animadora, ao menos o permitiria voltar a ser quem era antes.

Resignado, ele instigou os cavalos a acelerarem o passo, seguindo de imediato na direção dos fundos do castelo, onde ficava localizada a cozinha e a despensa. Não se sentia apto naquele momento a dirigir-se diretamente a ela, no intuito de se retratar por todos os erros cometidos. Talvez nunca estivesse, para ser sincero. Mas pela primeira vez em muito tempo, Elliot se sentia em paz com sua própria consciência, pois sabia que não havia ninguém a quem pudesse culpar, senão a si mesmo.



— Você tem estado tão introspectivo desde que partimos de Hallbridge — Sarah comentou, logo que se encontraram no interior de sua morada. Não desejava transparecer desconfianças, longe disso, mas o ar pesado que o Duque portava muito lhe preocupava. — Não me diga que está sentindo dores e que não quis me dizer até agora.

— Não sinto agora mais desconforto do que sentiria se estivesse deitado numa cama — Edgar lhe assegurou, em meio a uma discreta risada. Seria muito infantil de sua parte desejar que aquele ar de zelo perdurasse para sempre? — Estou apenas pondo algumas ideias no lugar, nada que mereça sua atenção.

— Não é incômodo para mim saber o que pensa. Me aflige muito mais a ideia de que algo lhe perturba sem que eu possa fazer algo para ajudar.

Tais palavras foram proferidas com delicadeza e ternura, em meio a um sorriso tímido, de tal modo que foi difícil para o rapaz simplesmente não lhe retribuir o gesto com a mesma intensidade. Seria precipitado e ingênuo acreditar que a partir de agora tudo aconteceria de uma forma diferente e que os problemas do passado se encontravam totalmente superados. No entanto, saber que não estava sozinho era mais que só um conforto; servia como um lampejo de esperança, conferindo-lhe forças quando ele próprio já não possuía nenhuma. Além disso, perceber que Sarah estava longe de ser a pessoa vulnerável e incapaz que ele ousara imaginar o aliviava de uma carga que existia exclusivamente em sua mente superprotetora.

— Eu continuo aborrecido comigo mesmo. Ainda não consigo compreender o que me fez agir de modo tão intragável — o Duque confessou, com certo constrangimento, finalmente expressando aquilo que vinha tirando-lhe o sossego desde a manhã. — Quanto mais eu penso nisso, mais irritado fico.

— Então pare de pensar nisso — a jovem afirmou com veemência, fazendo questão de colocar-se um passo à frente para encará-lo diretamente em seus olhos. — Eu não tenho dúvidas do homem que é. Além disso, tenho muito orgulho de ter me casado com você.

Na ocasião, ele não soube explicar o que era aquele brilho intenso presente nos olhos de sua companheira. Tudo que sabia é que isso lhe transmitia uma energia contagiante, fazendo-o sentir ligeiramente aquecido por dentro.

Em um gesto mudo de retribuição, Edgar inclinou o rosto, no intuito de depositar um afetuoso beijo sobre a testa de Sarah. No entanto, os planos da menina eram um tanto diferentes. Na tentativa de superar as limitações da baixa estatura, ela equilibrou-se na ponta dos pés e recepcionou os lábios de seu consorte com os seus. Aquele ato, singelo e espontâneo, acabou por encaixar-se perfeitamente na situação em que se encontravam. Não havia clima para volúpia, ou mesmo uma necessidade urgente a ser atendida. Tudo que precisavam era da confirmação de que ambos estavam ali, em sintonia, certos de que iriam cuidar um do outro.

Se delongaram ali mais que o habitual, envoltos pela quietude do ambiente em que estavam. Num entendimento mútuo, a tímida carícia encerrou-se com um sorriso confidente por parte de ambos. Sem que palavras fossem necessárias para estabelecer entre eles um ar de compreensão recíproca, tornaram a subir mais um longo lance de escadas, desta vez em direção aos seus aposentos.

— Espere um pouco — disse o Duque, retendo-se bem no meio da escadaria. Por sorte, coincidência ou destino, seus olhos se fixaram num ornamento peculiar, ao qual jamais havia reparado antes. Estivera ali esse tempo todo ou havia sido uma adição recente? — Ali, naquele quadro. Quem é a moça de cabelos escuros e vestido vermelho?

— A que se deve o questionamento tão repentino? — Sarah inquiriu, enquanto erguia uma das sobrancelhas, adquirindo um ar surpreso.

— Tenho a ligeira impressão de que a conheço — Edgar respondeu, ainda bastante inquieto. Não só a face lhe era familiar, mas seu sorriso contido, ao mesmo tempo que sedutor o intrigava ao ponto deixá-lo desconcertado.

— É a minha mãe, mas ela morreu vinte anos atrás — a menina respondeu,  desta vez sentindo-se um tanto assustada com aquela afirmação. Embora estivesse evidente a confusão de seu consorte, algo ali fazia com que seu coração batesse mais rápido. — Afora este quadro, já não restou mais nada em sua memória. Portanto, é bastante improvável que você a conheça.

Com aquela resposta, o jovem Avelar retornou ao estado introspectivo de antes e passou a concentrar-se exclusivamente em chegar ao seu quarto. De repente, ele se sentia muito cansado.

Durante a caminhada, lhe voltou a mente uma risada infantil e despretensiosa, que logo identificou como pertencente à falecida rainha. Algo em sua imagem o fazia recordar-se de Anya, o que por si só lhe causou arrepios.

Edgar havia prometido a si mesmo que não tornaria a pensar em sua antiga noiva de modo tão saudoso. No entanto, diante daquele novo fato, um questionamento seria inevitável: a que se devia tamanha semelhança, coincidência ou destino?


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Notas finais do capítulo

Me parte o coração dizer que esta trama está chegando ao fim. Mas, como puderam notar, ainda tem algumas tretas pendentes de resolução e eu mal posso esperar para ver seus palpites acerca desses momentos finais. Não deixem de comentar e nem de compartilhar suas teorias comigo, todos sabem o quanto eu amo respondê-los :D



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