The Queen's Path escrita por Diamond


Capítulo 34
Capítulo XXXIV - 27 de Novembro de 1872




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— Tem certeza de que quer participar a esse encontro? — Edgar questionou, compenetrado em fechar os botões de seu colete amarelo claro. — Você sabe que não precisa ir, se não quiser.

— Agradeço a sua preocupação, mas creio que não seja mais possível adiar essa reunião — respondeu a menina, sentada diante de sua penteadeira enquanto tentava desembaraçar os fios, que apesar de seus esforços teimavam em continuar presos em sua escova. — Agora que o período de luto acabou, já não tenho mais desculpas para não comparecer.  Além do mais, que tipo de rainha eu seria se passasse o resto da vida me escondendo das pessoas?

— Eu invejo a sua coragem — ele comentou, em meio a uma tímida risada.

Atravessando o quarto a passos lentos, ele aproximou-se da jovem, debruçando-se sobre ela enquanto apoiava as mãos no móvel à sua frente. Imediatamente, Sarah soltou a escova e passou a encará-lo através do reflexo do espelho. Podia sentir a respiração quente de seu consorte sobre o ombro direito, o que era estímulo suficiente para deixá-la ansiosa, ainda que intimamente soubesse que sua espera seria infrutífera.

— Eles podem ser muito inflexíveis e desagradáveis — o jovem Avelar alertou, sua voz soando baixa e grave dada a proximidade dos dois. — Tente não perder o controle, pois é exatamente isso que querem, provocá-la para provar que você não está capacitada para o cargo. Não dê esse prazer a eles.

Aquela seria uma situação difícil de evitar, principalmente quando ela mesma não tinha muita fé em suas habilidades de liderança e conhecimentos sobre economia ou gestão. Apesar de sua insegurança, a rainha meneou positivamente com a cabeça e suspirou ao perceber que o Duque se afastava, com os mesmos passos ritmados de antes, retirando-se do quarto logo em seguida. Sem beijos, sem abraços, sem um aperto de mãos encorajador. Os dias se passavam e o abismo entre ela e Edgar aumentava gradativamente, sem que soubesse como reverter a situação.

Erguendo-se de sua banqueta, ela caminhou em direção ao armário, em busca de um vestido com cores sóbrias e que fosse adequado para a situação. Acabou optando por uma peça verde esmeralda. Enquanto dispunha a vestimenta sobre a cama, seus olhos capturaram de relance o buquê de camélias que ganhara de Jacques no dia anterior.

O que você faria numa situação como essas?”, ela indagou mentalmente, imaginando como Katherine se sairia se estivesse em seu lugar. Depois de divagar por alguns minutos, chegou à conclusão de que sabia muito pouco sobre sua figura materna para tentar prever suas ações ou discursos. Desistindo da tarefa, a jovem ocupou sua mente em preparar-se para o inevitável encontro com as famílias mais tradicionais de Odarin.



Caminhando solitariamente pelos corredores, Edgar perdeu as contas de quantas vezes suspirou profundamente, na esperança de que isso aliviasse um pouco o peso que carregava em seu peito. Não passavam de tentativas frustradas, pois tratava-se de um fardo psíquico, e não físico. A insegurança e o medo de Sarah eram evidentes, e ele não poderia culpar a ninguém senão a si mesmo por tê-la colocado em tal situação. Com aquilo em mente, sentia-se agora responsável por compensá-la, de alguma maneira, por roubar toda a sua liberdade, arrastando-a para dentro daquela realidade tediosa e, por vezes, podre.

Apesar de desanimador, não conseguia vislumbrar outra maneira de atenuar a situação. Caberia a ele atuar integralmente pelas sombras, guiando os passos da jovem, de modo que ela se tornasse uma figura pública, mas sem realmente interferir nas questões políticas e econômicas. Seria exaustivo, sem dúvidas, mas com sorte não muito difícil, principalmente considerando sua inexperiência diante das peculiaridades da regência. Uma vida destinada a um cargo era o que o tinha reservado para si, tal como Allen havia previsto meses antes.

Àquela altura, já estava próximo do Hall Principal. Sabia que deveria ao menos despedir-se de Charlotte, caso não quisesse azedar ainda mais seu relacionamento com ela. Tinha certeza de que a ruiva jamais o perdoaria por endossar a decisão de Sarah, mas não havia como se portar de outra maneira diante de uma situação como aquela. Já tinha muitos problemas para resolver, e administrar a inimizade entre sua consorte e a irmã mais nova estava simplesmente fora de questão.

— Edgar? — a voz cheia de presença de Evangeline chamou-lhe a atenção, fazendo-o interromper sua caminhada. — Sei de seus afazeres, mas gostaria de requerer alguns instantes de sua atenção. Prometo que serei breve.

O jovem Avelar reteve-se por um momento, aproveitando a pausa para consultar as horas em seu relógio de bolso. Teria muito pouco tempo disponível para conceder à senhora, pois Charlotte logo partiria de volta para Hallbridge e, se bem a conhecia, a ruiva não esperaria por ninguém.

— Eu apenas gostaria de agradecer por tudo que tem feito por essa família. Desde que chegou tem sido tão prestativo e leal como ninguém jamais se dignou a ser — a governanta pontuou, reconhecendo nele uma espécie de dedicação com a qual muito se identificava, o que ensejou uma discreta risada. O Duque, por outro lado, não parecia compartilhar de seu bom humor.

— Estou apenas tentando ajudar a Sarah naquilo que posso. Meus esforços foram todos direcionados para ela, e mais ninguém — ele respondeu, com bastante objetividade, o que evidenciava sua pressa.

— É aí que se engana. — Nesse instante, sua voz tornou-se um sussurro e ela deu um passo à frente, de modo que somente o rapaz pudesse ouvi-la. — Fez muito mais do que ajudá-la. Você vingou a morte de todos os seus familiares. Pôs um fim a essa terrível maldição e eu sou eternamente grata por isso.

Os olhos de Edgar praticamente saltaram de seu rosto, incapaz de conter seu próprio espanto e nervosismo. Sua respiração tornou-se irregular e ele olhou para os lados, certificando-se que não havia mais ninguém por perto que pudesse escutá-los. Teria sido visto? Não, impossível, estavam sozinhos no Gabinete Real quando tudo aconteceu. Mas então, como a governanta poderia saber daquilo?

— Eu não sei do que está falando — limitou-se a responder, já fazendo menção de sair dali.

— Não precisa se preocupar comigo, eu apenas gostaria de expressar minha gratidão — proferiu Evangeline, em meio a uma rápida reverência. — Preciso ir agora. Com a sua licença.

Dito aquelas palavras, a senhora afastou-se com os passos energéticos que lhes eram característicos. O jovem Avelar não tinha muita certeza de como reagir diante da realização de que havia outra pessoa ciente de seu segredo. Por outro lado, era certo que jamais tivera razões para desconfiar da antiga servente e esperava que seu relacionamento com ela permanecesse inalterado em todos os aspectos. Duvidava piamente que ela fosse capaz de fazer qualquer coisa que pudesse prejudicar Sarah. De qualquer maneira, teria que manter-se ainda mais atento.

Verificando as horas novamente, recordou-se de sua irmã num estalo, que àquela altura já deveria estar partindo de volta para a sua terra natal. Enquanto esfregava nervosamente os cabelos, retomou sua caminhada, logo atingindo o pátio do castelo, onde a ruiva era auxiliada pelo cocheiro a entrar em sua carruagem.

— Eu vim para me despedir — ele anunciou em alto e bom tom, chamando a atenção de Charlotte, que parecia bastante contrariada com aquela partida inesperada.

— Não precisava se incomodar, assim como não o fez quando fui destratada ontem à noite — ela retrucou, indicando ao condutor que poderia assumir seu posto.

— Não tinha muito que eu pudesse argumentar em seu favor. Além do mais, você conhece a Sarah, não é uma tarefa fácil fazê-la mudar de ideia. — O comentário despretensioso foi recepcionado por um olhar feroz e nada amigável. — Vamos, não seja tão fatalista, em casa você terá os mesmos confortos que possuía aqui, talvez até mais.

— Eu iria ser a próxima rainha, e você sabe bem disso. É ultrajante ter de partir dessa maneira — a ruiva rebateu, visivelmente inconformada. Em seguida, minorando o tom de sua voz e assumindo uma postura mais ameaçadora, ela proferiu: — Você verá, meu irmão, ela o fará de bobo muito antes do que possa imaginar. E quando isso acontecer, não haverá ninguém nesse castelo apto a consolá-lo.

— Mande meus cumprimentos a Gilbert e ao papai — Edgar limitou-se a dizer, ignorando as palavras de advertência de Charlotte enquanto fechava a porta de sua cabine.

Com um rápido sinal, a carruagem partiu, não tardando a desaparecer atrás dos muros do castelo. O jovem Avelar permaneceu mais alguns minutos parado, absorvendo o ar frio da manhã, na esperança de que isso o acalmasse um pouco. Raras eram as vezes em que ele não tinha pesadelos com a morte de Allen. Era demasiadamente cansativo e angustiante ter de reviver os momentos finais do antigo monarca todas as noites. Por vezes, ele tinha a impressão de que o rapaz tencionava dizer-lhe algo, mas os jorros de sangue que escapavam de sua boca o impediam de verbalizar seus pensamentos.

Balançando a cabeça, ele tentou afastar aquelas imagens de sua mente. Recordar-se daquelas cenas era a última coisa que precisava agora. Olhando para a entrada da propriedade ao longo, o Duque pôde distinguir alguns veículos se aproximando, indicando que as famílias fundadoras já chegavam para o encontro com a rainha.



Parada diante de uma das muitas salas de reuniões existentes no castelo, a menina tentava regular a respiração, evitando assim demonstrar o nervosismo que parecia consumi-la por dentro. Edgar a encarava com as sobrancelhas juntas, apreensivo de que ela não fosse capaz de lidar com toda a pressão. Para Allen, domar aquelas pessoas era fácil e até mesmo instintivo, como conduzir uma orquestra. Para Sarah, ele não poderia esperar nada menos do que uma batalha sangrenta com muitas perdas, ao menos no sentido figurativo.

— Tem certeza de que quer entrar aí? — o Duque questionou, pela enésima vez naquele dia. — Eu já disse que não precisa ir se não estiver se sentindo segura o suficiente. Posso falar com eles em seu nome, não há problema algum nisso.

— Está tudo bem — ela sussurrou em resposta, sua voz trêmula o suficiente para demonstrar que suas palavras não passavam de uma resposta educada e inverídica. — Vamos acabar com isso de uma vez.

Dito isso, ela encheu o peito de ar e reuniu toda sua coragem para abaixar o trinco da porta de uma vez, não dando margens para desistências. Dentro do salão havia um burburinho alto, proveniente das conversas paralelas entre os fidalgos convocados. Tinham taças de vinho e aperitivos em mãos, empenhados em compensar ali a falta do banquete no dia anterior. Ainda estavam todos bastante transtornados diante da ausência do baile de coroação, uma tradição já enraizada nos costumes da Família Real há muitos séculos.

Dentre os muitos assuntos que discutiam enquanto aguardavam sua majestade, constavam como tópico principal a insegurança que sentia em relação a rainha, que além de inexperiente, não parecia estar alinhada com os interesses da nobreza. Boatos se espalhavam como chamas sobre palha, e não tardou para que soubessem de algumas peculiaridades a respeito da jovem dama que assumira o mais alto cargo do reino, entre eles, o fato de que ela andara distribuindo casacos de pele e comida para os mendicantes nos meses de inverno, algo jamais visto antes. A caridade até então havia sido de inteira responsabilidade da Igreja e, em seu simplório entendimento, continuaria sendo assim para sempre. Velhos doentes e improdutivos não geravam lucro e, portanto, não mereciam sua atenção.

As conversas cessaram logo que perceberam as portas sendo abertas. Os presentes tornaram os rostos para ela, ensaiando uma sincronizada reverência em sua direção. Sarah paralisou diante do gesto, incerta se deveria retribuir o cumprimento ou se seus dias de abaixar a cabeça para alguém haviam chegado ao fim. Com um discreto toque em seu braço, Edgar indicou-lhe a larga mesa, fazendo-a recorda-se de precisar sentar primeiro e só então os demais nobres estariam autorizados a fazer o mesmo.

Todos a encaravam com um misto de expectativa e descrença, atributos que ela rapidamente percebeu estampados nos rostos dos nobres. Diante de seu espelho ou mesmo na companhia de Evangeline, ela havia ensaiado seu primeiro discurso centenas de vezes. No entanto, ali diante de tantos homens importantes, as palavras simplesmente fugiram de sua mente e ela lutava para formular algo que não soasse extremamente óbvio ou estúpido. Seus olhos instintivamente buscaram os de Edgar, sentado logo à sua direita. Com um suave meneio, ele a instigou a continuar.

— Primeiramente, eu gostaria de agradecer a presença de todos que se dignificaram a comparecer aqui. Eu imagino que devam estar aflitos com todos esses acontecimentos recentes. Tivemos um ano conturbado, com perdas econômicas e familiares. Até bem pouco tempo, meu nome certamente não era mencionado no meio político, por muitas razões. Mas o que venho declarar aqui é que, apesar de minha inexperiência e pouca idade, coloco-me a inteira disposição para servir ao reino de Odarin e ao meu povo da melhor maneira possível. Ademais, é importante salientar que...

— Majestade, o que nos diz da tributação sobre a circulação de produtos internos? — questionou um dos nobres, que portava uma expressão desafiadora no rosto e aparentava estar pouco incomodado em interromper a fala da rainha.

— Desculpe, acho que não compreendi — ela respondeu com incerteza, já sentindo o nervosismo aflorar novamente.

— Estávamos discutindo esse com assunto com o Rei Allen, pouco antes dele falecer. Por isso, gostaríamos de saber qual a sua opinião sobre o assunto — ele complementou, já rindo pelo mero vislumbre do quão despreparada para aquele encontro ela estava.

— Também estávamos prestes a estabelecer o período de revisão das taxas aplicadas sobre os produtos embarcados em Hallbridge — relembrou um outro aristocrata.

— Eu não tenho nenhum conhecimento sobre… — antes mesmo que pudesse completar sua fala, ela sentiu a mão pesada de seu consorte repousar sobre seu ombro, impedindo-a de prosseguir.

— Senhores, nenhum desses assuntos estavam pautados para serem discutidos hoje — Edgar interveio, ao perceber o estratagema ardiloso que havia preparado. Estavam empenhados em soterrá-la com perguntas que não saberia responder, apenas para apavorá-la ainda mais. E alguns ainda ousavam questionar o motivo pelo qual ele abominava tanto sua própria classe.

— Todos sabemos disso, meu jovem — afirmou um dos homens, que falhava em conter uma risada debochada, ocasionada pelo pânico estampado na face de sua governante. — Mas como a nossa distinta rainha não parece ter muito apreço aos procedimentos, tomamos a liberdade de questioná-la sobre algumas questões de nosso interesse.

— Posso perguntar o que os faz pensar assim? — Foi a única coisa que a rainha conseguiu articular. Suas sobrancelhas estavam juntas e ela começava a aborrecer-se com o conluio que parecia se formar diante de si.

— Ora Majestade, se nos permite devolver-lhe o questionamento, tem alguma noção do que a palavra “tradição” significa? — um dos fidalgos indagou, inclinando-se sobre a mesa enquanto entrelaçava os dedos, lançando um olhar crítico sobre a menina sentada à cabeceira da mesa. — O baile de coroação é um evento que tem sido realizado por todas as gerações de monarcas, durante muito séculos. Consegue imaginar o nosso espanto quando fomos informados de que se recusava veementemente a executá-lo?

— Se me permite rebatê-lo, tem alguma noção do que a expressão “corte de gastos” significa? — Sarah alfinetou, de modo instintivamente autoritário. Havia um turbilhão de ideias conflitantes em sua mente e ela imaginou que quanto menos pensasse e mais agisse, conseguiria mascarar toda a sua insegurança. Sua fala gerou um silêncio constrangedor, mas ela tentou não se intimidar com a falta de resposta e prosseguiu com seu discurso. — Odarin está enfrentando a pior crise econômica de sua história e estão preocupados com o maldito baile de coroação? Existem assuntos muito mais importantes a serem tratados aqui!

— Acha mesmo que temos alguma responsabilidade na situação econômica do reino? — retrucou um dos velhos, de sobrancelhas cheias e pestanas caídas. — Estamos fazendo o nosso melhor, mas o mercado é imprevisível e não está respondendo da maneira como imaginávamos.

— Desculpas como essa não serão toleradas. Em tempos difíceis como esse, devemos fazer economias e apertar os cintos. Talvez essa medida faça até bem a alguns de vocês — a rainha afirmou, enquanto dirigia um olhar de pura reprovação para alguns dos presentes, cujas as roupas mal eram capazes de abarcar o diâmetro de seus corpos.

Edgar parecia empenhado em evitar que a falta de escrúpulos daqueles homens se abatesse sobre a jovem, tentando retomar a ordem do encontro, embora tivesse sua fala constantemente interrompida, assim como a de Sarah. No entanto, depois de vê-la perder o controle e começar a dizer o que parecia ser a primeira coisa que lhe vinha em mente, ele limitou em enterrar o rosto em uma das mãos. Desejava tão somente poder transformar-se numa formiga, pois só assim conseguiria escapar discretamente do vexame que ela estava causando. Para alguém que estava tão insegura até pouco tempo atrás, lhe custava a acreditar que todo aquele atrevimento estava vindo da mesma pessoa de antes.

— Não pensem que não sei o que estão fazendo. Não sou tão estúpida quanto imaginam!

— Tem certeza disso? — sussurrou Friederich, aos senhores que estavam sentados ao seu lado. Uma zombeteira risada ecoou pela sala, fazendo com que o rosto dela se tornasse vermelho, enquanto fechava ainda mais a expressão.

— Sim, Barão Chevalier, eu tenho certeza — ela afirmou firmemente, fazendo com que alguns deles fingissem limpar a garganta para disfarçar o riso. — O que percebo é que isso se assemelha muito mais a um circo que uma reunião oficial. Não perderei mais um segundo aqui e me recuso a participar de qualquer encontro que não siga os protocolos mínimos de etiqueta. Agora, com a licença dos senhores.

Antes mesmo que qualquer dos presentes pudesse dizer algo, a jovem rainha apenas ergueu-se de sua cadeira num sobressalto, cruzando a porta com rapidez e fechando-a com força. Havia um pesado silêncio pairando sobre o cômodo, em que nenhum deles ousava ser o primeiro a falar. Friederich, por outro lado, levantou-se em seguida, ainda rindo consigo mesmo, o que chamou a atenção de todos os outros.

— Escrevam o que digo, ela levará todos nós à falência se não fizermos alguma coisa — sentenciou o nobre, que se dirigia a porta com bastante calma, tencionava retornar para casa, deixando que a ideia ecoasse na mente dos demais.

Àquela altura, Sarah já se encontrava trancada em seu Gabinete Real. Suas mãos estavam trêmulas e lágrimas frustradas tomavam conta de seu rosto. Jamais, em toda sua vida, ela imaginava que seria humilhada daquela maneira. Odiava aqueles homens, assim como sua função e o fato de nunca ter tido qualquer gerência sobre seu destino.

Puxando um papel de carta timbrado com o brasão da Família Miglidori, ela pôs-se a escrever, fazendo força para evitar que seu tremor se tornasse evidente em sua caligrafia desenhada. Mergulhava sua pena no pequeno vidro de tinta com rapidez, pois sabia que não tinha um minuto a perder. Precisava de ajuda urgentemente e não ousaria sobrecarregar ainda mais seu consorte. Terminando de escrever a carta, ela leu o texto com rapidez. Embora sucinto, continha tudo aquilo que precisava ser dito, sem maiores delongas.

Aquele era seu grito de socorro.



— Uma desgraça e uma vergonha, é isso que vocês são para essa família!

A voz estridente de Florence ecoou por toda a sala de estar. Os dois filhos mais velhos, Julian e Martin, encaravam suas próprias botas, sem proferir uma única palavra. Quando a mãe se encontrava em tal estado de nervos, era simplesmente impossível fazê-la parar de reclamar. O silêncio e a falta de respostas costumava entediá-la rapidamente, deixando os dois rapazes livres para se afastar dali sem maiores problemas.

— Gostaria de ver qual de vocês terá coragem suficiente para dizer agora que ela não é muito interessante ou muito bonita! — exclamava tão furiosamente quanto gesticulava, fazendo com que muitos dos artigos de decoração ali dispostos cambalearem após quase serem golpeados. — Se tivessem feito como lhes instruí, estariam lá, sentados ao lado dela, portando o título de rei! Mal posso acreditar que isso está acontecendo conosco. Nunca esperei muito de Phillip, mas estou profundamente desapontada com os dois!

— Obrigada pela parte que me toca — o filho mais novo respondeu, finalmente revelando-se atrás de um grosseiro livro de capa rústica. Desde que retornaram da cerimônia de coroação no dia anterior, a Baronesa estivera descarregando todas as suas frustrações nas três crias.

— Não comece, está bem? Eu jamais deveria ter tido um terceiro filho. Uma mula de carga seria mais produtiva, com toda certeza. Me traria muito mais orgulho também — ela pontuou com severidade.

Phillip não se incomodou em responder aquela afronta. Desde que podia se recordar, os gracejos maternos continham aquele nível de afeto ou até menos. Nada ao qual ele já não estivesse habituado. Tornando a afundar em sua poltrona, o rapaz reergueu a brochura, na vã tentativa de retomar sua leitura. Infelizmente, era impossível gravar o menor e mais simples dos pensamentos enquanto Florence estivesse praguejando com toda a força de seus pulmões.

Batidas vigorosas contra a porta puderam ser ouvidas entre uma lamúria e outra da Baronesa Chevalier. No entanto, apesar dos esforços do inesperado visitante em se fazer ouvir, nenhum dos três rapazes parecia inclinado a mover um músculo, ao menos não enquanto a cólera de sua mãe não se apaziguasse um pouco.

— Maria, atenda essa porta, pelo amor de Deus! — ela esbravejou, seu rosto já vermelho pelo esforço.

— Ela não trabalha mais aqui, lembra? — Phillip cantarolou, recebendo olhares zangados dos dois mais velhos. Quanto mais provocava sua genitora, mais tempo levaria para que eles pudessem se ver livres dela e de seus protestos.

— Então seja útil uma vez na vida e abra essa porta você mesmo!

Com um suspiro cansado, o rapaz ergueu-se de seu assento, abandonando o livro sobre o estofado enquanto se dirigia até a porta de entrada. Surpreendeu-se ao reparar que o visitante, na realidade, era um dos mensageiros do castelo.

— Um ofício, endereçado ao senhor Phillip Chevalier.

Tomando o envelope em mãos, o filho mais novo olhava para o papel com certa desconfiança. Não conseguia imaginar o motivo para ter um Ofício Real endereçado a ele. Teriam confundido-o com seu pai, o Barão Chevalier? “Improvável, ainda mais considerando que ele deve ter saído de lá há muito pouco tempo”, refletiu, enquanto rompia o lacre talhado com o selo da Família Real, desembrulhando o papel com evidente curiosidade estampada em seu rosto. Seus olhos ágeis percorreram o papel, enquanto sua expressão confusa se transmutava num sorriso largo e incrédulo.

Parecia bom demais para ser verdade, de modo que o rapaz se viu devorando o texto novamente aos menos meia dúzia de vezes, até ter certeza de que não estava sonhando e que, pela primeira vez na vida, a realidade lhe sorria um pouco e a sorte se punha ao seu lado.

— Está bem. Pode enviar minha confirmação até a Rainha — ele respondeu polidamente. O mensageiro meneou positivamente e tornou a montar em seu cavalo, partindo sem demora, desaparecendo entre a fina névoa que começava a apossar-se da cidade.

Phillip sempre tivera uma postura elegante e concisa, sem jamais esboçar qualquer reação senão tédio, salvo quando encontrava algo novo para ler. No entanto, naquela ocasião, seus pés involuntariamente saltitavam ao caminhar, fazendo-o se esforçar para tentar conter sua própria excitação. Ainda tentava absorver o conteúdo da mensagem em suas mãos quando fechou a porta distraidamente, retornando à sala de estar com passos vagarosos.

— Por que demorou tanto? — questionou a Baronesa, que ainda transpirava descontentamento. Seus olhos vigilantes vislumbraram o delicado papel nas mãos do filho mais novo, bem como o sorriso excitado em seu rosto. — O que é isso na sua mão?

— Isso, minha cara, é minha carta de alforria — respondeu, enquanto balançava o envelope no ar, seu sorriso se engrandecendo cada vez mais. Levando o ofício diante de seus olhos, ele leu o sucinto texto, desta vez em alto e bom tom para que todos os presentes pudessem ouvi-lo. — “Eu, Sarah Miglidori, rainha de Odarin, no uso de minhas atribuições conferidas por Deus, nomeio o Senhor Phillip Chevalier, integrante de uma das famílias fundadoras deste reino, como meu mais novo Secretário Real, para exercer as funções de conselheiro e representante legal, por tempo indeterminado. Solicito que envie o aceite desta nomeação através do mensageiro e que compareça ao castelo na data mais breve possível, para iniciar o exercício de suas atividades”.

Encerrada sua fala, imperava na sala o mais absoluto silêncio. Os dois irmãos mais velhos encaravam-se mutuamente, com um olhar confuso estampado em seus rostos. Era evidente que não haviam compreendido o teor do documento. Sua mãe, por outro lado, tinha o rosto pálido e esbranquiçado, num claro contraste ao vermelho da cólera de minutos atrás. Sua expressão era de espanto e o queixo encontrava-se levemente caído diante de sua surpresa.

Sorrindo de maneira triunfante, Phillip cruzou o cômodo e seguiu escadaria acima, em direção ao seu quarto. Não perderia mais um minuto sequer na companhia daquele bando de ignorantes que jamais o apoiaram em suas aspirações. Vasculhando um de seus armários, ele não demorou a encontrar uma envelhecida mala de couro, que por ora seria mais do que suficiente para levar seus pertences de primeira ordem para o castelo. Voltaria num outro dia com calma para buscar o restante de suas coisas, que basicamente consistiam em pilhas e mais pilhas de livros.

— Partindo tão cedo, meu querido?

A voz de Florence havia suavizado de forma considerável, soando até mesmo gentil e amorosa em suas palavras. O caçula limitou a rir com certo deboche enquanto dobrava com rapidez algumas mudas de roupas. Em seus vinte e quatro anos de vida, era a primeira vez que a ouvia chamando-o de querido.

— Pensei que poderíamos esperar o retorno de seu pai e então preparar um jantar, para comemorarmos essa honraria de acaba de receber — a mulher arriscou, mordendo o lábio inferior. O filho, a quem ela sempre havia renegado e humilhado acabara de se tornar o braço direito da Rainha, o que era quase tão bom quanto ser seu consorte.

— Não se incomode comigo, eu seria a última pessoa no mundo a querer causar-lhe algum transtorno — o rapaz respondeu de maneira irônica, finalmente sentindo-se vingado por tantos anos escutando zombarias em silêncio.

Fechando os arreios de sua bagagem simplória, ele tomou dois dos livros dispostos em sua cabeceira, colocando-os debaixo do braço e seguindo em direção a porta. Sua mãe fez menção de tocá-lo, mas o rapaz rapidamente se esquivou, sem nem ao menos destinar-lhe um segundo olhar. Já na sala, os dois irmãos haviam desaparecido de vista, provavelmente aproveitando a deixa para escapar quando a Baronesa subiu em busca do mais novo.

— Espere um pouco! — Florence exclamou, enquanto descia as escadas, tentando inutilmente acompanhar seu ritmo. — Você ainda virá nos visitar, não é mesmo?

Com a mão disposta sobre o trinco da porta, Phillip não conseguiu conter mais uma risada debochada. Ele já sabia que seu pequeno núcleo familiar prezava o dinheiro e o status de poder em detrimento de todas as outras coisas, mas aquela cena estava beirando o ridículo. Achava mesmo que poderia conquistá-lo com meia dúzia de palavras amorosas, quando passara a vida tratando-o como o pior dos estorvos? “Vejo aqui que não existem limites para a ambição e a ganância”, concluiu com um misto de amargura e alívio. Ao menos estava livre, de uma vez por todas, de todo aquele falso sentimento de apoio familiar.

— Adeus, mãe. — Foi tudo que disse, antes de cruzar a porta e deixar sua antiga e medíocre vida para trás.



A carruagem atravessou os portões do castelo já próximo do final da tarde. Descendo do veículo, o filho do Barão foi recepcionado no pátio por duas empregadas e um servente jovem, de tez morena. Uma das moças informou-lhe que a rainha estava à sua espera e ocupou-se em guiá-lo pelos largos e complexos corredores do castelo, a qual ele seguiu de maneira obediente. Imagina que os outros dois serviçais estavam ali para cuidar de sua bagagem.

— Aqui está — ela disse enquanto apontava para um par de portas adornadas com os brasões da Família Miglidori. — Irei preparar o seu quarto agora. Alguma preferência quanto ao seu banho, senhor?

— Acho que prefiro manter esse tipo de informação para mim mesmo — Phillip retrucou de maneira incerta, um tanto desconcertado com a pergunta. Não estava habituado a esse tipo de regalias em sua casa e duvidava que algum dia fosse acostumar-se com o assédio dos empregados, ávidos em agradar seus superiores.

Com mais uma reverência exagerada, a empregada retirou-se, rapidamente desaparecendo de sua vista. O silêncio imperava dentro do cômodo e sem maiores pistas, o rapaz limitou-se em bater educadamente três vezes na porta, antes de girar o trinco e invadir o ambiente. Sarah estava sentada de modo desleixado sobre uma das poltronas existentes no local. Em seu colo, jazia um recipiente de vidro cheio de trufas recheadas, agora parcialmente vazio.

— Eu arruinei tudo — ela sentenciou, finalmente erguendo o rosto, exibindo os olhos vermelhos e levemente inchados. — Eles estariam melhor sem mim.

— Você realmente acredita nisso? — o rapaz retrucou, enquanto caminhava vagarosamente, terminando por sentar-se sobre o braço da poltrona ocupada por ela. Sua fala e postura esbanjavam confiança, algo que não passava despercebido aos olhos da menina, que não pôde deixar de invejar aquelas características. — Onde está a garota que se achava capaz de mudar o mundo com as próprias mãos? Aquela que ficou horas caminhando na neve, encharcando as barras do vestido enquanto distribuía cobertores aos pobres? Finalmente você tem ao alcance das suas mãos todas as ferramentas para mudar aquilo que sempre questionou. O que está te impedindo agora?

— Ora Phillip, eu estava sendo idealista — Sarah rebateu, desta vez não conseguindo conter uma lágrima que teimosamente rolou por sua face, evidenciando assim toda a sua frustração. — Todas essas regras e procedimentos não farão de mim uma rainha. No fundo, não passo que uma menina incompetente e fraca, que está brincando de usar uma coroa e não é capaz de fazer outra coisa senão chorar.

— Chorar não te torna fraca — respondeu o filho do Barão, limpando a lágrima com o dedo indicador. — Só não pode deixar que eles vejam esse seu lado. São como bestas, estão à postos para pisar em cima de você assim que a oportunidade surgir. Tudo que precisa fazer é mostrar que é tão capaz de governar esse país como qualquer outra pessoa.

— Será que sou mesmo? — a jovem indagou, sua voz banhada em descrença.

— Muito em breve, vai ser. Não foi para isso que me chamou até aqui?

Àquela altura, Phillip exibia um meio sorriso presunçoso e sua última fala fora capaz de arrancar uma tímida risada da jovem. Ensiná-la a atuar no meio político não seria algo fácil de se fazer, mas ele já tivera provas mais do que suficientes de sua força e determinação.

— Com alguma sorte, eu consegui acalmá-los. Será que pode me dizer o que foi que… — Ainda que tencionasse questionar o que havia acontecido na sala de reuniões, as palavras morreram na boca do Duque, logo que percebeu a presença de um terceiro no gabinete, somente após ter invadido o espaço reservado.  — Perdoe-me a interrupção, eu não sabia que estava com visitas.

Saltando de sua poltrona, Sarah dirigiu-se rapidamente até a porta, onde seu consorte estava parado, encarando fixamente a figura de Phillip. Com rapidez, a menina segurou um de seus braços, esboçando uma discreta carícia com os polegares, que acabou passando completamente despercebida por seu consorte.

— Você me alertou sobre impertinência dos representantes e como eu deveria reagir diante dessa situação, por isso peço perdão pelo meu excesso de antes — ela apressou-se em se desculpar, imaginando que o jovem Avelar deveria estar bastante irritado com o seu comportamento na primeira reunião oficial, o que não era de todo infundado. — Eu vejo o quanto tem estado sobrecarregado de funções e confesso que não tenho feito muito para aliviá-lo desse fardo. Por essa razão, tomei a liberdade de convocar Phillip para nos ajudar com a contornar essa terrível crise. Ele tem um vasto conhecimento sobre questões legais, certamente nos será útil. Além do mais, três cabeças pensam melhor do que duas, não concorda?

Pela primeira vez em semanas, a rainha parecia minimamente confiante das palavras que proferia. Tinha plena convicção de que o ultimogênito da Família Chevalier seria uma adição bastante positiva em seu pequeno rol de aliados. Edgar, por outro lado, não compartilhava da mesma ideia. Domar o instinto selvagem e alheio às regras de Sarah era uma tarefa bastante difícil, mesmo sem intervenções externas. Trazer uma pessoa a quem ele pouco conhecia para dentro de sua rotina o deixava pouco confortável.

Os últimos eventos o deixaram cético em relação a terceiros, principalmente aqueles em que não tinha certeza se poderia depositar ou não votos de confiança. Por essa razão, naquele instante, o Duque decidiu que não iria depositar sua escassa reserva fé no rapaz de cabelos escuros e sorriso irônico.


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