The Queen's Path escrita por Diamond


Capítulo 32
Capítulo XXXII- 02 de Setembro de 1872




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Parado diante do largo espelho, Edgar terminava de fechar os botões de seu colete com pressa, juntando as sobrancelhas com descontento todas as vezes que um deles escapava de seus dedos nervosos.

As manchas escurecidas no entorno de seus olhos denunciavam uma noite deveras mal dormida. Seus pensamentos inquietantes não o permitiram relaxar o suficiente para adormecer. Nos breves momentos em que o cansaço parecia estar prestes a vencê-lo, sua mente era preenchida por pesadelos angustiantes, obrigando-o a abrir os olhos novamente. A sensação era terrível, muito semelhante a uma espécie de tortura.

Nem bem o dia amanhecera e uma garrafa vazia de vinho já rolava livremente aos pés da cama. Embora sua consciência e senso moral o devorassem por dentro, estava bastante determinado em seguir com o plano. Havia muita responsabilidade em suas mãos, o que não deixava qualquer espaço remanescente para suas dúvidas infantis. Estava na hora de fazer a coisa certa.

Terminando de arrumar-se, ele rapidamente cruzou o quarto, em direção ao largo colchão disposto no centro. Embora mantivesse tal fato oculto, diariamente ele fazia questão de reservar um minuto de sua apertada agenda para contemplar a figura inerte de sua consorte. Enquanto desacordada, a princesa portava um ar pacífico, semelhante a um lago num dia sem vento. No entanto, quando as orbes castanhas despertavam, agia como tempestade em meio a um deserto árido. Edgar não desgostava da personalidade autêntica e intensa da jovem, mas, por vezes, desejava que Sarah fosse mais prudente com suas palavras e ações.

Abaixando o rosto, o jovem Avelar depositou um singelo beijo em sua testa. A menina se manteve imóvel, sua respiração discreta era praticamente imperceptível naquele momento. Parecia tão frágil que, ao menor sopro, seria capaz de apagar com a sua chama da vida. “Não vai durar muito mais”, ele pensou, enquanto erguia-se da cama e seguia em direção à porta do cômodo.

Tão logo o Duque fechou a porta de seus aposentos atrás de si, pôde vislumbrar, aos fundos do corredor, a figura austera de Evangeline aproximando-se com rapidez do local em que estava.

— Muito bom dia, Sir Edgar — a governanta desejou, em meio a uma ligeira reverência, tal como fazia todas as manhãs. — Se incomodaria de informar se a princesa já se encontra desperta?

— Sarah? Não, continua dormindo. — Enquanto ele falava, a senhora já esticava os dedos longos e ossudos em direção a maçaneta, no ímpeto de ingressar no quarto. Foi com agilidade que o rapaz pôs uma das mãos sobre seu pulso, impedindo-a de prosseguir. — Se me permite lhe pedir um pequeno favor, eu gostaria que não fosse acordá-la, está bem? Deixe-a dormir em paz.

— Bom, é certo que ela não possui nenhum compromisso hoje, mas… — Os olhos de Evangeline analisavam cada movimento do rapaz à sua frente. Era um pedido incomum, além de bastante suspeito. — Alguma razão específica para isso?

— Sarah está muito cansada, apenas isso — Edgar começava a sentir-se nervoso com as perguntas e o olhar inquisidor da governanta. Desejou, apenas por um instante, que ela não tivesse de ser tão zelosa. — Creio que não haveria mal algum deixá-la dormir até mais tarde apenas uma vez.

— E a que horas eu devo vir acordá-la, então?

— Acordá-la? Não, de modo algum, deixe-a dormir indefinidamente — o jovem Avelar apressou-se em responder. Estava correndo contra os ponteiros do relógio e não poderia se deter ali por muito mais tempo. — Levantará quando tiver fome, tenho certeza disso.

— Tem alguma coisa que gostaria de me dizer? Está agindo de maneira tão estranha e… — os olhos de águia de Evangeline se estreitaram, pois raramente deixavam o menor dos detalhes passar despercebidos. — Isso na sua testa é suor?

— Sim, acredito que seja. — retrucou involuntariamente, enquanto esfregava as costas da mão em sua testa. Estava tão nervoso com a mera prospecção de ter seu plano arruinado que suava freneticamente. Não poderia permitir que Sarah fosse encontrada antes de tudo estar concluído, seu êxito dependia daquilo. — O verão de Odarin se mostrou ainda mais intenso esse ano, não concorda? De todo modo, não se incomode comigo, apenas faça como lhe pedi, está bem?

— Como quiser — Evangeline afirmou, enquanto tornava a empregar uma breve reverência, antes de girar sobre os calcanhares e partir em busca de outros afazeres.

Edgar manteve-se imóvel, ainda parado diante da porta do quarto, protegendo-a tal como um cão de guarda faria. Não percebendo mais o sinal de qualquer empregada ou morador, seus passos apressaram-se em direção ao Gabinete Real.



Allen adentrou em seu ambiente de trabalho com uma postura ainda mais severa que o habitual. Os que conviviam com o rei sabiam que não era possível distinguir suas emoções, e alguns chegavam a cogitar que ele nem mesmo possuísse alguma. Tudo que se poderia identificar eram os momentos em que se encontrava de bom ou mal humor, e ainda assim sem nenhuma garantia de que tais manifestações fossem realmente verdadeiras.

De imediato, seus olhos negros recaíram sobre a figura de seu Secretário, que se encontrava sentado sobre a poltrona que lhe pertencia, aparentemente compenetrado na leitura de um ofício. Edgar, por sua vez, já havia empregado dezenas de tentativas em compreender o texto disposto sobre o papel, mas via-se obrigado a retornar ao princípio a todo instante, por não estar realmente concentrado na leitura.

— Já tomou sua decisão? — o monarca questionou, sem fazer rodeios. Jamais fora dado a conversa de amenidades e os anos de convivência com o jovem Avelar lhe permitiam uma abordagem mais direta.

— Mais do que uma decisão — o Duque respondeu, com certa frieza, finalmente repousando o ofício sobre a mesa, desistindo da tarefa temporariamente. — Aguarde até o fim do dia. Garanto que, após isso, não haverá mais nada com o que se preocupar.

Os olhos dos dois se cruzaram, um olhando firmemente em direção ao outro. Allen buscava quaisquer resquícios de hesitação ou trapaça no rosto de Edgar, sem encontrar nenhum. Este, por outro lado, esforçava-se em não piscar em excesso, deixando transparecer em seu semblante todo o seu equilíbrio e confiança. Os segundos arrastaram-se silenciosamente, até que um meio sorriso brotou no rosto do monarca.

— Excelente — ele murmurou, mais para si mesmo que para sua companhia. Dirigiu-se até sua cadeira, onde passou a segurar o encosto com força enquanto divagava sozinho. Por vezes, sussurrava frases incompreensíveis, que estavam muito além do entendimento de qualquer outra pessoa. — Eu sempre soube que poderia confiar em você. Não se preocupe, será devidamente recompensado por sua lealdade muito em breve.

O Duque não se incomodou em responder. Sentia os músculos tesos, custando a acreditar que realmente fora capaz de fazer aquilo. Tirar a vida de um ser humano… Ele nem mesmo conseguia assistir ao sacrifício de um cavalo acometido por uma doença incurável, e mesmo assim preparou tudo para que alguém abandonasse esse plano até o pôr do sol.

Recordou-se de Sarah, que passou longos minutos tentando reconfortá-lo em meio ao seu choro angustiado. Quando ambos finalmente cederam ao cansaço e se dirigiram até a cama, seus olhos se mantinham fixos na princesa, no momento exato em que ela bebia um longo gole de água disposto sobre sua cabeceira. “Ela não percebeu nada, bebeu até a última gota”, pensou com certa amargura.

Estaria deixando de ser quem sempre fora ou essa seria apenas uma oportunidade para revelar um lado seu que sempre se manteve oculto pelas circunstâncias? Ele não saberia precisar, apenas sentia as dúvidas lhe atormentando cada vez mais.

— Qual a sensação da liberdade?

As palavras de Allen despertaram-no de seus devaneios. O Duque precisou de alguns segundos para situar-se novamente onde estava e a que o outro se referia com sua pergunta. Quando finalmente compreendeu a dimensão desta, tornou a falar, tentando parecer o mais calmo possível em sua resposta:

— Não sei dizer ainda, mas estou certo de que irei descobrir em breve — respondeu vagamente, enquanto levantava-se de sua cadeira e seguia em direção a cristaleira. Ele tomou em mãos uma refinada garrafa de champanhe e com muita destreza sacou a rolha em instantes, despejando o conteúdo borbulhante numa das muitas taças de cristal. Caminhando de volta a escrivaninha, ele ergueu a bebida em direção ao rei. — Sirva-se.

— Qual a razão para isso? — Allen questionou, enquanto observava o Secretário com certa confusão.

— Um brinde, ao fim de todos os nossos problemas — Edgar justificou, em meio a um sorriso cativante. O monarca retribuiu o sorriso e tomou o cálice em mãos, vertendo rapidamente todo o seu conteúdo. Enquanto observava cada gota do líquido amarelado desaparecer entre os lábios pálidos, ele proferiu com bastante entusiasmo: — Vida longa ao rei!



O salão encontrava-se abarrotado de homens nobres, pertencentes às mais variadas patentes. Estavam ali para tratar de negócios, o que evidentemente não os impedia de o fazerem em meio a muita comida e bebida. Entre os muitos assuntos a serem tratados, estava a repercussão da taxa sobre produtos embarcados.

Os comerciantes não ficaram nenhum pouco animados com a prospecção de dever à Coroa vinte e dois por cento de todos os produtos destinados à exportação. Entretanto, instituir a taxa já ao final do verão foi uma decisão perspicaz, que partiu do representante de uma importante família de fidalgos. Receosos com a chegada as estações mais frias e menos rentáveis, os negociantes expressaram seu descontento de maneira moderada, sem maiores alardes. Por ora, seria mais prudente aceitar a alta tributação que padecer de frio e fome nos meses mais rigorosos do ano.

Todos conversavam animadamente, enquanto aguardavam a chegada de sua majestade. Eram unânimes em concluir que Allen seria um rei muito superior ao seu predecessor, em função de sua personalidade mais comedida e maior rigidez na aplicação das leis. Henrique fora muito respeitado em sua época, mas criticado por várias famílias aliadas que não concordavam com sua política equilibrada entre os interesses da nobreza, burguesia e plebe.

O monarca chegou pouco depois, devidamente acompanhado de seu Secretário Real. Os presentes empregaram respeitosas reverências para recepcionar sua chegada e rapidamente tomaram seus assentos na larga mesa de reuniões, prontos para dar início a mais uma conferência.

Todos sentiam-se muitíssimo prestigiados pelo jovem governante, que fazia questão de consultá-los antes da tomada de quaisquer decisões de peso. Levava em consideração o impacto que cada medida teria sobre os proventos de seus apoiadores. Foram anos de estudo e preparação para que o seu reinado fosse o mais memorável de todos. “Ficará para sempre marcado em minha mente o dia em que definitivamente eliminei todos os meus opositores”, Allen pensou em meio a um sorriso triunfante, enquanto sentava-se à cabeceira da mesa.

— Cavalheiros, bem vindos. Convoquei-os aqui para que pudéssemos finalizar as questões pendentes desde nosso último encontro, ocorrido em 13 de agosto do ano em curso, realizado no salão de nosso ilustríssimo Barão Chevalier.

Houve uma rápida pausa e Friederich ensaiou um demorado menear positivo, sentindo-se lisonjeado pela menção honrosa. Edgar engoliu uma risada zombeteira naquele momento, impressionado com a dimensão da vaidade das pessoas à sua volta. Havia pouco mais de vinte presentes, mas tal número poderia ser facilmente triplicado, caso levassem em consideração o espaço ocupado pelo ego de cada um.

— Os próximos meses prometem rendimentos promissores, mesmo com a aproximação do inverno. Isso, é claro, graças à implementação das taxas de despacho.

Houve outra pausa, dessa vez mais longe que a primeira. Todos encaravam a figura do rei cheios de expectativa pelo que viria a seguir, mas o intervalo durou muito mais que o esperado.

— Está tudo bem? — Edgar questionou, em um sussurro enquanto repousava a mão sobre o ombro de Allen. Este, por outro lado, tinha o olhar vidrado sobre a mesa e respirava pesadamente, como se fizesse um esforço sobre-humano apenas para estar ali.

— Tire-me daqui, imediatamente — ele sibilou em resposta, praticamente sem mover os lábios ao fazê-lo. Parecia ter os dentes trincados e suas mãos encontravam-se fechadas em punhos.

Alarmado por aquelas palavras e pelo comportamento anormal do monarca, o Duque levantou-se praticamente num salto, assustando os demais membros da mesa, que o observavam de maneira atenta e confusa.

— Peço desculpas pelo inconveniente, cavalheiros, mas temo que nosso rei não esteja em condições de dar continuidade a essa reunião neste momento.

Enquanto proferia aquelas palavras, o Secretário esforçava-se em tentar colocar Allen de pé para retirá-lo do recinto. No entanto, suas juntas estavam enrijecidas demais para empregar os movimentos necessários. Colocando um pouco mais de força, conseguiu fazer com que ele levantasse de sua cadeira, só então percebendo o quanto seu corpo tremia.

— Tem certeza de que ele está bem o suficiente para sair andando assim? — foi o questionamento de um dos fidalgos presentes. Ele olhava para a figura usualmente imponente com descrença, não conseguindo imaginar o que poderia estar afetando-o daquela maneira.

Edgar estava pronto para responder que tinha tudo sob controle, no intuito de não gerar qualquer alarde, mas sua fala foi interrompida por um jorro de sangue que escapou da boca do rei. Assustado com a reação inesperada, o jovem Avelar afrouxou suas mãos, fazendo com que o corpo de Allen se chocasse contra o chão, que se contorcia em espasmos violentos e irregulares.

O espanto de todos era palpável. Os nobres ergueram-se rapidamente da mesa, uns se aproximando no ímpeto de ajudá-lo, ao passo que a maioria se afastava para o outro lado do cômodo, imediatamente sacando lenços de linho dos bolsos e prendendo a respiração com eles, temerosos de que pudesse se tratar de alguma doença contagiosa. Houve gritos e alguns copos acidentalmente se quebraram em meio ao tumulto que ali se formara.

— Não fiquem aí parados, tragam um médico aqui, agora mesmo! — o Duque gritou autoritariamente, enquanto suas mãos dirigiam-se ao lenço branco atado ao seu pescoço. Quando finalmente conseguiu desfazer o nó, levou o tecido até o rosto do enfermo e tornou-lhe o rosto para o lado. O movimento fez que o que o pano logo adquirisse um tom escarlate, impedindo que o monarca se afogasse no próprio sangue.

Outros dois homens tentavam segurar seu corpo com força, impedindo que o rei se chocasse contra os demais móveis. Um deles tentou segurar sua língua, impedindo assim que ele sufocasse a si mesmo com o músculo flácido. A intenção se mostrou frustrada, pois dada a intensidade das convulsões, a mandíbula de Allen se fechou com firmeza sobre os dedos do nobre, que urrou de dor no momento em que sentiu a carne ser perfurada pelos dentes do outro.

A situação fez com que Edgar lhe dirigisse um olhar impaciente, sendo ainda obrigado a proferir mais uma ordem antes que algum dos demais presentes se movesse para fazer algo realmente útil.

Friederich tomou a iniciativa e correu em direção à porta, no intuito de buscar ajuda. Ao alcançar o corredor, quase se chocou com a velha governanta da princesa, que caminhava pelos corredores trazendo um bule de chá quente consigo.

— Que alvoroço é esse? — Evangeline questionou, tentando compreender o motivo por trás de tamanha gritaria.

— O rei! Está convulsionando ali dentro, preciso encontrar um médico imediatamente — proferiu o Barão, quase sem fôlego, enquanto saia correndo em direção ao Hall Principal.

Evangeline sentiu o coração saltar uma batida, deixando-a sem ar por instantes. Em meio ao seu nervosismo, a governanta soltou o caríssimo bule de chá no chão. Alheia aos cacos de porcelana e a bebida quente espalhados pelo piso, ela se aproximou da porta entreaberta. “Isso não pode estar acontecendo novamente”, pensou enquanto espiava pela fresta no intuito de descobrir o que se passava dentro do salão.

Os nobres dividiam-se em dois grupos, um que o observava a cena a muitos passos de distância, horrorizados com a intensidade das convulsões, enquanto o outro esforçava-se em tentar conter os violentos espasmos, sem muito sucesso. Entre eles, Edgar estava ajoelhado junto ao chão, tentando inutilmente conter os jorros de sangue que escapavam da boca do monarca.

Afastou-se imediatamente da porta, sentindo o próprio estômago começar a dar voltas. O cheiro desagradável começava a atingir os corredores, fazendo-a se afastar à passos apressados.

Tremores, enjôos, hemorragias e convulsões. Como não se recordar dos sintomas que levaram à misteriosa morte do antigo rei? Queria crer que tratavam-se de causas completamente distintas, mas as duas situações eram semelhantes demais para deixar qualquer dúvida. O que quer que tivesse causado a morte de Henrique — e ela nutria fortes desconfianças em relação àquela tragédia —, certamente se abatia agora sobre Allen.

Então, como uma forte bofetada no estômago, Evangeline lembrou-se de um detalhe inusitado. Com Beatrice falecida e diante da possibilidade de que o rapaz não sobrevivesse às reiteradas convulsões, só havia uma pessoa habilitada para governar Odarin… Mas ela não tivera a oportunidade de ver a princesa nenhuma única vez desde a noite anterior.

Tomada pelo pânico, a antiga serva pôs-se a correr o mais rápido que os pulmões e as pernas envelhecidas permitiam. Enquanto percorria os largos corredores, recordava-se do incomum pedido de Edgar, assim como seu estranho comportamento naquela manhã. Não gostaria de acreditar que o Duque fora capaz de impetrar tamanho golpe. “Não, você não seria capaz de algo assim, Edgar. Ou estarei enganada?”. Depois de tantos anos servindo a realeza, a governanta não poderia dizer que esse tipo de intervenção era inédita na Família Real.

A porta do quarto da princesa se abriu com um grande estrondo. Estavam praticamente no início da tarde e mesmo assim a menina permanecia deitada sobre a cama, desacordada. Evangeline atirou-se na beirada da cama, passando a sacudir-lhe os braços em busca de qualquer reação que fosse.

— Acorde, vamos! — ela ordenou, mas não houve qualquer resposta. Inconformada, passou a desferir diversos tapinhas contra seu rosto. — Sarah, por tudo que é mais sagrado, abra os olhos! Fale comigo, ande logo!

A despeito de todas as suas tentativas, a jovem não se mexeu. Os olhos da velha senhora já se encontravam cheios de lágrimas àquela altura. Continuava balançando os ombros da menina, seus soluços incapacitando-a de proferir qualquer outra coisa. Em um lampejo, uma ideia surgiu em sua mente, e ela ralhou mentalmente consigo mesma por não ter pensado nisso antes.

Pondo uma das mãos sobre o nariz da princesa, ela pode sentir a respiração fraca e ritmada da jovem. Pressionando dois dedos contra seu pescoço, ela sentiu a pulsação discreta, indicando que apesar das aparências, Sarah encontrava-se tão viva como sempre estivera. Após essa constatação, a governanta suspirou aliviada, ainda que seu rosto continuasse sendo banhado pelas lágrimas, dada a dimensão do susto.

— Como isso é possível? — questionou, em voz alta ainda que para si mesma.

Seus olhos de águia capturaram a imagem de um copo vazio sobre a cabeceira. Todas as noites, antes de retirar-se para seus aposentos, ela deixava ali um copo d’água caso a menina sentisse sede durante a noite. Tomando-o em mãos, a senhora levou o objeto até bem próximo do nariz, sentindo um cheiro levemente adocicado, quase imperceptível ali. Sonífero.

Devolvendo o copo para a cabeceira, ela tornou seu olhar para a jovem inerte. Parecia tão tranquila, alheia a todos os problemas e tristezas do mundo. Carinhosamente, a governanta alisou as bochechas rosadas, enquanto rezava para que nada de mal acontecesse a ela.



Evangeline havia acabado de arrumar o quarto — o que incluía levar diversas garrafas de bebidas vazias para fora —, quando a princesa finalmente despertou de seu sono profundo. Seus olhos custaram a focalizar o quarto, dado o longo período que permaneceram fechados. Quando finalmente se acostumaram com a luz do ambiente, ela ergueu a cabeça dos fofos travesseiros. Tal movimentação causou-lhe um vigoroso protesto advindo de seu estômago.

— Por céus, como estou faminta! — ela exclamou, enquanto abraçava a barriga com os dois braços. Não se recordava de ter sentido tanta fome assim em toda sua vida. Com rapidez, ela tornou o rosto para a sua governanta, que se encontrava de pé ao lado da cama. — Que horas são?

— Quase quatro da tarde.

— O quê?! Impossível, eu jamais dormiria tanto assim! — Sua confusão e aborrecimento com o apetite protestante eram visíveis, quase palpáveis. A senhora optou por não aborrecer-se com isso. Por um instante, ela sentiu-se infinitamente grata por estar ali, ouvindo lamentos e reclamações de sua eterna menina. — Bom, isso não importa agora, desde que traga qualquer coisa para que eu possa comer. E seja rápida, acho que vou desmaiar a qualquer momento.

Contendo uma discreta risada com tamanho drama, Evangeline abandonou o cômodo, focando-se apenas em chegar à cozinha o quanto antes. No entanto, logo que iniciou sua caminhada, acabou por encontrar a figura desolada de Edgar aproximando-se à passos lentos do local. Ela estancou no mesmo instante, extremamente receosa com o que viria a seguir.

— Como ele está? — Evangeline questionou, deixando transparecer toda a sua ansiedade com a resposta. O rosto abatido do Duque apenas ensaiou um menear negativo. — Você não pode estar falando sério!

— Hora do óbito: duas horas e cinquenta e sete minutos da tarde — Edgar respondeu, sua voz soando pesada e arrastada ao mesmo tempo. Parecia exausto e prestes a cair desacordado a qualquer momento. — Onde está Sarah?

— Acabou de acordar — a governanta respondeu, timidamente indicando a porta fechada atrás de si. Não conseguia se concentrar em mais nada, senão a imensa sensação de alívio que recaia sobre si. “Acabou. Finalmente este pesadelo acabou”, pensou enquanto era tomada por uma estranha leveza em seu coração. Não se incomodaria de morrer naquele mesmo instante, pois finalmente tinha a certeza de que sua pequena estava a salvo.

Presa em seus próprios pensamentos, ela sequer percebeu o momento em que fora deixada para trás. Quando finalmente tornou o rosto é que pôde vislumbrar o jovem Avelar se arrastando para dentro do cômodo. Sabia que a princesa estava mais do que faminta, mas não podia deixar de se fazer presente naquela ocasião. Ela iria precisar de todo o apoio quando recebesse a notícia.

Com passos firmes, Evangeline caminhou de volta para o quarto, mas manteve-se do lado de fora. Precisaria aguardar o momento certo para entrar. Afinal de contas, não gostaria de ser ela a ter que dar-lhe tal notícia. Seria indelicada demais com sua dor quando não pudesse disfarçar seu alívio em função da morte de Allen.

Sentada diante de sua penteadeira, Sarah estava compenetrada em tentar desfazer os muitos nós de seu cabelo. Jamais tivera muita paciência para a tarefa, de modo que quase sempre acabava arrancando volumosos tufos castanhos no processo. Em meio aos baixos gemidos que proferia sempre que alguns fios eram violentamente arrancados da raiz, ela assustou-se quando viu a imagem de seu consorte invadir o reflexo do espelho naquelas condições.

— Edgar! — Após atirar a escova sobre o móvel, ela ergueu-se um salto, correndo até o ponto em que o jovem Avelar encontrava-se parado. — Que houve com você? Está com uma aparência terrível!

— Tem uma coisa que preciso lhe contar — respondeu, com um sussurro baixo, ainda sem conseguir encará-la diretamente nos olhos. Como poderia fazê-lo, depois de ter finalizado com perfeição o plano ardiloso que lhe consumira a consciência na noite anterior? Sentia-se como a menor e pior das criaturas a habitar a Terra, não desejando nada mais naquele momento senão desaparecer para sempre.

Sentindo o olhar de Sarah pesar sobre ele, o rapaz arrastou-se até o largo colchão, mas não ousou se sentar sobre ele. Apesar de todo seu esgotamento mental, ainda estava consciente da situação abominável de suas vestes. Ao invés disso, ele optou por jogar-se ao chão, causando ainda mais estranheza na princesa.

— Você está me deixando nervosa — ela alertou-o, sentando-se ao seu lado, enquanto tomava as mãos trêmulas e sujas entre as suas. — Por céus, isso nos seus dedos é sangue?

— Estávamos numa reunião de negócios — o Duque explanou, ainda sem dirigir seu olhar para a mais nova. Ao invés disso, encarava fixamente seus pés, totalmente envergonhado de si mesmo. Havia um espaço especial no inferno aguardando por ele, tinha certeza disso. — Eu e o seu irmão. Logo no início ele sentiu-se indisposto demais para prosseguir. Tentamos interromper o encontro para que ele pudesse repousar, mas a situação se agravou rapidamente.

— Você não está tentando me dizer que…

— Ele não resistiu. Fizemos o possível, mas ainda que eventualmente tenhamos conseguido conter as convulsões, não houve como parar a hemorragia a tempo. — Finalmente munido de alguma coragem, Edgar ergueu os olhos para encarar diretamente sua consorte. Ela tinha os olhos úmidos e uma expressão atônita no rosto, como se não tivesse compreendido ainda o que realmente havia acontecido. — Me desculpe, Sarah. Tenho certeza de que, apesar de todas as recentes decepções, você o amava e admirava muito.

A princesa meneou positivamente, concordando com aquela última frase. Gostaria de acreditar que Allen fora obrigado a enfrentar um terrível trauma, que pudesse justificar o fato de ter se tornando uma pessoa tão severa e inflexível. Mesmo com todas as discussões que tiveram, ainda assim ela guardaria para sempre as lembranças de quando eram crianças, do tempo em que não havia ninguém mais importante no mundo para ela do que seu irmão mais velho.

Suspirando profundamente, ela finalmente permitiu que as lágrimas rolassem por seu rosto, de maneira silenciosa. Lidar com tantas tragédias em tão pouco tempo não era uma tarefa fácil, e ela se questionava se algum dia deixaria de se sentir tão devastada ao receber a notícia de um falecimento. Elevando o corpo sobre os joelhos, a jovem inclinou-se na direção, abraçando com força o corpo trêmulo de seu consorte.

— Não faça isso, minhas roupas estão nojentas e eu preciso urgentemente de um banho — o rapaz alertou-a, enquanto tentava delicadamente empurrar o pequenino corpo para longe. Suas mãos deixaram de se mover quando a voz baixa de Sarah preencheu seus ouvidos.

— Obrigada — ela murmurou, enquanto enterrava o rosto em seu pescoço, no intuito de ocultar suas lágrimas. — “Fizemos o possível”, não foi isso que acabou de dizer? Apesar de tudo que aconteceu nos últimos meses, mesmo assim você tentou salvá-lo. É por isso que estou agradecendo. Por ter feito algo que nem mesmo eu sei se seria capaz de fazer. Por ser uma pessoa melhor que eu sou.

Edgar poderia ter suportado tudo, menos aquele comovente conjunto de palavras, as quais ele definitivamente não merecia. Os sentimentos da jovem apenas fizeram com que ele se sentisse ainda mais culpado por tudo que aconteceu. E perder um importante familiar nem mesmo era o maior impacto que aquele homicídio iria causar.

— Se me permitem, eu irei preparar tudo para o velório — a voz de Evangeline finalmente se fez presente. Já estava ali há algum tempo, mas não ousou interromper aquele momento dos dois. Observava sua menina com pesar, imaginando como ela faria para lidar com tantas responsabilidades agora. Olhava para ela, tão pequenina dentro dos braços do Duque, que não parecia ter mais que os mesmos dez anos de idade. — Sinto muito por isso, minha querida. Só posso desejar que se recupere o mais breve possível, pois logo teremos muito o que fazer.

— Que quer dizer com isso? — Sarah questionou, finalmente desenterrando o rosto do pescoço de seu consorte. Estava visivelmente confusa quanto a dimensão daquelas palavras.

— Depois de tantas tragédias, você é o último membro da Família Miglidori — a governanta não sabia como pôr aquilo em palavras. Estava simplesmente admirada de que a própria princesa não tivesse chegado àquela conclusão ainda. — O que quero dizer é que, a partir de agora, você é a mais nova rainha de Odarin.


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Notas finais do capítulo

Enfim, o momento que muitos estavam esperando, não é mesmo? Acho que agora ficou mais claro para todos a razão pela qual essa história é chamada de "The Queen's Path". Todos esses 32 Capítulos apresentaram problemáticas, introduziram personagens e mistérios, alguns deles já solucionados, outros ainda pendentes de respostas, tudo caminhou em função de transformar a Sarah na Rainha de Odarin.

Mas não fiquem tristes achando que a história acabou! Conforme veremos nos Capítulos seguintes, o problemas da nossa adorada protagonista não serão solucionados simplesmente pela morte do antagonista. Se fosse assim, seria fácil demais, hahaha ~ Ansiosos para verem como ela vai se sair nos seus primeiros anos de reinado? É só continuar acompanhando!

Espero, de coração, que todos estejam se sentido envolvidos por essa trama. Assim como me empolgo escrevendo, me animo ao responder os comentários de vocês. Criar um enredo dessa dimensão e com essa frequência de postagens não tem sido fácil, mas vocês me dão forças para continuar, sempre! Um beijo a todos, espero vocês nos comentários ;)



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