The Queen's Path escrita por Diamond


Capítulo 31
Capítulo XXXI - 01 de Setembro de 1872




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/739237/chapter/31

Sentada sobre um caixote de madeira emborcado, Delia permitiu a si mesma cinco minutos de descanso de suas inúmeras atribuições diárias. De olhos fechados, não havia nada melhor do que se deleitar com a brisa fresca contrastando com o sol intenso. Estava tão habituada ao clima morno que foi impossível não estranhar a necessidade imperiosa de usar duas camadas de roupas a mais, bem como adquirir uma grossa capa para os dias de ventania.

Desde sua mudança para as terras montanhosas, o verão passou a ser sua estação favorita, sendo realmente uma pena que não houvesse tempo para relaxar ou mesmo uma praia que complementasse a paisagem. “Eu daria a vida por um mergulho no mar agora”, pensou de maneira nostálgica.

Abrindo os olhos, a ruiva dirigiu sua atenção para as três crianças que brincavam em meio aos lençóis estendidos. O outono logo daria as caras e sua pequena reserva financeira estava perto de acabar. Os dias avançavam rapidamente e ela ainda não tinha ideia do que iria fazer quando o próximo inverno chegasse. Tinha se acomodado um pouco desde que os dois rapazes passaram a trazer as sobras do castelo e agora tentava a todo custo diminuir o prejuízo. “Foi ótimo enquanto durou, mas chegou a hora de cada um seguir seus caminhos sozinhos”, pensou com pesar, enquanto levantava-se de seu assento improvisado e rumava de volta ao trabalho.

— Hora de entregar mais uma remessa de cobertores — disse a si mesma, em tom de encorajamento, enquanto erguia em suas mãos a cesta de palha tão cheia quanto possível. — Eu volto logo, vocês se comportem.

— Tudo bem! — os três responderam em uníssono, sem dar-lhes a menor atenção.

A camponesa apenas riu e seguiu caminhando, enquanto agradecia mentalmente pelos três pequenos anjos que tornavam sua vida muito mais colorida e alegre. Apesar das muitas dificuldades, ela os amava incondicionalmente, como se seus irmãos fossem.

Estava prestes a cruzar a pequena cerca de madeira que dividia sua propriedade das demais e alcançar a rua quando encontrou ali, parado diante da pequena mureta, a última pessoa a quem gostaria de ver.

— Fora da minha casa! — esbravejou de imediato, enquanto apontava para a via de pedra atrás do rapaz.

— Mas eu não estou na sua casa — Phillip retrucou com calma, fingindo estar um tanto ofendido com a falta de receptividade. — Se bem me lembro, a denominação correta para isso seria rua, ou seja, via pública e urbana, de inteira propriedade do Estado, há mais de dois séculos administrado pela Família Miglidori. A razão para toda essa explicação era mostrar que você não pode me expulsar daqui.

Delia capturou o exato momento em que um sorriso vitorioso e cheio de arrogância cruzou o rosto do rapaz de cabelos negros.

— Escute aqui, qual é o seu problema? Diga de uma vez o que quer e pare de me seguir como um urubu em busca de carne.

— Tudo que quero é a verdade.

— Sarah provavelmente sequer se lembra que eu existo! Além disso, tenho certeza de que nesse momento ela tem assuntos muito mais importantes para tratar — a tragédia da rainha de Odarin ainda não havia deixado de ser notícia nas ruas do centro. A ruiva gostaria de encontrar sua amiga para poder consolá-la, mas havia jurado a si mesma de que não tornaria a pisar no castelo. — Por que isso é tão importante para você?

— Porque se você for quem eu acho que é, então os próximos dias serão muito interessantes.

Delia empalideceu ao ouvir aquelas palavras. Seu rosto corado do sol logo se tornou amarelado e ela sentia-se prestes a passar mal. A cabeça da jovem dava voltas e ela teria se apoiado em uma cadeira, caso houvesse uma por perto.

Phillip, embora não tivesse a menor ideia de quem a ruiva pudesse ser, sabia bem quão bom era em blefar. Se tivesse dito alguma asneira, a camponesa se limitaria a rir ou talvez xingá-lo, uma vez que não poderia odiá-lo agora ainda mais do que antes. No entanto, lá estava a reação que ele tanto procurava. O medo e a hesitação se fizeram presentes, deixando o ambiente entre eles denso como se houvesse névoa.

— Pela última vez, deixe-me em paz — ela sibilou, entre os dentes, enquanto fazia um esforço tremendo para não chorar.

— Vamos lá, eu sei que você não tão reclusa quanto gosta de aparentar. Seja um pouco mais sociável com seus vizinhos, para variar um pouco. — Apesar de estar consciente de que não conseguiria arrancar mais nada naquele dia, não perderia a oportunidade de alfineta-la um pouco mais.

— Você não é meu vizinho. — Delia retrucou, desta vez com a voz mais audível e muito mais decidida. — Além do mais, eu o odeio.

Sem dar margem para mais conversa, ela cruzou a cerca que o separava e seguiu viela abaixo, em direção à hospedaria onde precisava entregar os cobertores limpos. Phillip observou os fios ruivos e ondulados esvoaçarem de um lado para o outro. Eles eram muito bonitos, mas por alguma razão, não lhe pareciam tão naturais assim.



Jacques não costumava ter razões para desgostar do verão de Odarin, mas trabalhar exposto ao sol incandescente o fazia cansar-se muito mais rapidamente que nas demais estações. Além disso, sentia que já não tinha a mesma força ou destreza para empunhar certas ferramentas inerentes ao seu ofício, razão pela qual passou a necessitar do constante auxílio de Elliot. “Eu estou envelhecendo rápido demais, pensou com aborrecimento, enquanto caminhava em direção ao armazém do castelo.

O filho havia se dirigido até os estábulos, no intuito de trocar o suprimento de água dos cavalos, que deveriam estar tão aborrecidos com o calor quanto ele. Aquele princípio de tarde estava especialmente quente, sendo responsável por ensopar suas vestes de suor, causando-lhe a sensação de esgotamento prematuro. Sentando-se no chão, no apertado espaço entre um armário de ferramentas e outro, o jardineiro permitiu-se beber um longo gole de seu cantil de água.

Como ocorria todas as vezes em que se encontrava sozinho, seus pensamentos viajaram longe, buscando as memórias dos anos vividos no auge de sua juventude. Do bolso traseiro de sua calça, o antigo servente sacou uma pequena caderneta, revestida por uma surrada capa de couro amarronzada. Distraidamente, ele alisou o objeto com toda a delicadeza possível. Folheando as páginas, Jacques apreciou a letra elegante e desenhada que adornava as páginas já amareladas pelo decurso do tempo. Não fazia sentido se ater em qualquer uma da folhas; tinha todas aquelas palavras decoradas em sua mente.

O som de passos tornou-se cada vez mais audível e foi com rapidez que ele guardou o caderno no bolso. Elliot entrava no armazém com um ar de alívio, graças ao balde de água fresca que jogou contra o próprio rosto ao sair dos estábulos, para amenizar o desconforto causado pela temperatura alta.

Há anos o menino tinha ultrapassado sua altura e tinha a postura bastante ereta. Os fios originalmente loiros, num tom similar ao de ramos de trigo, escureceram e mudaram para um castanho claro. Todas essas características, aliadas ao orgulho excessivo e devoção ao trabalho faziam com que o rapaz muito se assemelhasse a sua mãe, a quem nunca teve a oportunidade de conviver. Na opinião de Jacques, não havia injustiça maior a ser cometida contra uma criança do que privá-la do convívio dos pais. Infelizmente, não havia nada que pudesse fazer naquele sentido. “Fiz por você aquilo que não pude fazer por mim mesmo. Ao menos nesse aspecto, tenho minha consciência tranquila”, refletiu enquanto erguia-se do chão com o auxílio do mais novo.

Um caminhar apressado logo se fez presente e Evangeline aparceu na entrada do ambiente, aparentando estar tão afobada quanto sempre. Trazia um leque consigo, objeto que lhe era indispensável para sobreviver aos dias de verão.

— Você sabe onde o Anthony está? — ela questionou, abanando-se de maneira quase violenta, na tentativa frustrada de espantar o calor. — Tem uma janela emperrada no quarto da princesa, preciso que ele a conserte o quanto antes.

— Hoje pela manhã ele disse que iria ao centro da cidade — o jardineiro informou, acrescentando após ponderar por alguns instantes: — Você quer ajuda com isso?

— Eu precisaria estar muito desesperada para recorrer a sua ajuda. — a governanta retrucou, de maneira ríspida. Seria preferível ela mesma a lidar com a vidraça defeituosa. — Não se incomode conosco, irei aguardar o retorno do Tony.

— Evangeline — Jacques chamou-lhe, antes que a senhora desaparecesse com a mesma pressa com a qual havia surgido. Ela tornou o rosto em sua direção, deixando visível em sua expressão que não tinha disposição ou tempo para gastar com conversas inúteis. Ainda assim, ele prosseguiu, com certa hesitação. — Como a Sarah está?

— Devastada — ela respondeu, após refletir o quanto seria sábio informar, considerando a presença do tratador de cavalos aos fundos do armazém. — Ainda não consegue se conformar com a morte de Beatrice. Eram muito próximas, vai demorar algum tempo até que supere essa tragédia. Agora preciso ir andando, não quero deixá-la sozinha por muito tempo.

— Mande meus cumprimentos a ela.

A governanta quase permitiu que outra resposta indelicada escapasse de seus lábios, mas conseguiu conter-se a tempo dessa vez. Com um rápido menear positivo, ela abandonou os dois serventes no local, caminhando com os mesmos passos largos e ligeiros como de costume.

— Eu odeio essa mulher — Elliot proferiu, tão logo percebeu que estavam sozinhos novamente. Então, tornando o rosto na direção de seu pai, ele desabafou com indignação. — Esse tom de voz é simplesmente insuportável. Por que você permite que ela o trate como lixo?

— A vida foi muito dura com Evangeline, não há como esperar outro tipo de comportamento dela senão este — Jacques respondeu, com sua paciência habitual. Já tiveram aquela conversa, mas não se incomodava de repetir quantas vezes fosse necessário. — Eu não já lhe ensinei que devemos agir com gentileza sempre, independentemente de quem seja?

— Evangeline simplesmente não merece a sua gentileza — o rapaz retrucou, com veemência. Por fim, deixou escapar um suspiro cansado. — Mas se você não se incomoda com isso, que posso fazer?

— Poderia desculpar-se com a princesa, algo que deveria ter feito meses atrás. — O revide de seu pai fez com que o tratador o encarasse de maneira intensa, ainda que confusa. Seu olhar perdido fez com que o jardineiro se aborrecesse, um feito não muito fácil de conquistar. — Não finja ignorância, sabe muito bem que deveria ter sido você a revelar a localização de Beatrice naquela noite.

— Como espera que eu dissesse aquilo? Simplesmente não soube como fazê-lo!

— Elliot, você não é mais uma criança, então pare de agir como uma — o velho servente proferiu, sua voz um tom acima do usual. O garoto escancarou os olhos, muito surpreso com a reação do mais velho. Foram raras as vezes em que recebeu qualquer sermão de seu pai, que costumava ter um comportamento mais compreensivo que repreensivo. — Eu criei você para ser um homem, e não um covarde, mas foi assim que você agiu naquela ocasião. O melhor que pode fazer para se redimir agora pedir perdão a ela o quanto antes.

Elliot pensou em contestar aquela fala, mas ao sentir o peso do olhar do jardineiro, julgou ser mais prudente manter-se em silêncio. Respeitava-o acima de todas as coisas, mas sentia-se confuso de ser repreendido de maneira tão repentina. Ele não mentira quando dissera não saber como informar a Sarah sobre o falecimento de Beatrice. Ainda assim, mesmo sentindo que não havia nada de errado com a forma com a qual se portara, era impossível dizer que não se sentia profundamente envergonhado de receber aquele tipo de advertência de seu pai.

Em silêncio, os dois caminharam para fora do armazém. Havia muito serviço a ser feito e quanto antes retornassem ao trabalho, mais cedo poderiam dar-se por vencidos pelo cansaço. Por ora, seria necessário enfrentá-lo um pouco mais.

A grama em torno dos muros que rodeavam o castelo necessitava ser aparada, mas tão logo abandonou o velho galpão, Jacques congelou sobre os pés, olhando fixamente em direção a entrada do castelo.

— O que houve? — questionou o tratador, não compreendendo a pausa repentina.

— Aquela é a carruagem do boticário — o servente respondeu, sua voz soando vaga. Repentinamente, sua mente pôs-se a trabalhar com muita velocidade, fazendo-o sentir-se um tanto zonzo. — Se não há nenhum enfermo, que ele estará fazendo aqui?

Elliot simplesmente deu os ombros, não se incomodando em refletir sobre a visita inesperada. Jacques, por outro lado, fechou o semblante de imediato, enquanto sentia sua consciência afundar-se em pensamentos tumultuosos e nublados. Algo naquela visita inesperada simplesmente não parecia certo, mas ele não sabia precisar o quê.



Jogado sobre uma poltrona, o jovem Avelar aguardava de maneira bastante inquieta o momento em que seria convidado a retornar ao Gabinete Real.

Não foram poucas as vezes em que Allen lhe requisitava um pouco de privacidade, para conversar livremente com nobres e negociantes, sem interrupções. Antigamente, Edgar não se incomodava com aqueles pedidos, pois eram eles que lhe proporcionavam alguns minutos de descanso de suas atividades incessantes. No entanto, desde a última declaração ameaçadora e suspeita, cada vez que era convidado a se retirar do cômodo, sentia um peso ser acrescido aos seus ombros, aliado ao sentimento de insegurança e impotência. Ainda que o assunto não houvesse sido mencionado novamente, ele sabia que continuava ancorado na mente do monarca.

Seus olhos recaíram sobre as mãos levemente trêmulas, repousadas sobre as pernas. Gostaria de dizer a si mesmo que os tremores se deviam ao medo crescente em seu peito, mas tinha consciência de que não passava de uma reação natural à abstinência do álcool. Embora ele muito apreciasse o tempo atual, assim como a possibilidade de usar roupas mais leves, o calor sempre o inibia de buscar conforto na bebida. “Eu daria tudo por uma taça de vinho agora”, pensou enquanto esfregava os olhos cansados.

As portas da antessala onde estava se abriram, revelando a imagem altiva de um guarda, informando que seu retorno ao ambiente de trabalho fora autorizado. Com o semblante resignado, ele abandonou a poltrona e seguiu pelos corredores, acompanhado tão somente pelo eco de seus próprios passos.

Ao adentrar no Gabinete Real, Allen sequer deu-se ao trabalho de erguer o olhar do que parecia ser um pedaço de pergaminho enrolado. Seu olhar parecia ávido em absorver todas as palavras escritas ali, enquanto a mão esquerda se fechava num punho frouxo, indicando a presença de algo entre os dedos pálidos e delgados do monarca.

Nenhum detalhe escapava dos olhos atentos de Edgar, e somente quando se sentou ruidosamente em sua cadeira foi que sua companhia lhe direcionou a atenção.

— Está vendo aquela caixa de bombons ali em cima, próximo as garrafas de vinho e licor? — Allen questionou, enquanto apontava para um móvel destinado exclusivamente ao armazenamento das bebidas. Numa das prateleiras, a caixa de madeira e vidro exibia os doces de modo convidativo. — Feitos com o chocolate de Greenwall, creio que sejam os mais famosos do continente.

O olhar do jovem Avelar dirigiu-se até o local indicado, num misto de desconfiança e confusão. Não era a primeira vez que via as qualidades excepcionais dos bombons serem exaltadas. Em Newreen, o doce era muito comum e ele mesmo tivera a oportunidade de experimentá-los durante sua viagem.

— Enviei uma dessas de presente para meu pai, pouco antes dele falecer — o rei prosseguiu, não parecendo se incomodar com a falta de resposta por parte de seu Secretário. — O velho tinha uma queda terrível por doces. Você sabe, a maioria das pessoas come apenas um ou dois, mas ele não se sentiu satisfeito enquanto não devorou a caixa inteira. Esses detalhes, obviamente, eu só tive conhecimento muito tempo depois. Foi uma morte realmente desastrosa, alavancada pelo pecado da gula.

— Eu não compreendo — Edgar interrompeu-o, visivelmente perturbado com o rumo daquela conversa. — Se me lembro bem, os médicos foram taxativos em determinar que causa de morte do rei Henrique foi falência do fígado, e não uma infeção alimentar.

— Médicos não sabem de nada — o monarca retrucou, com um sorriso enigmático pintado nos lábios. Escorregando levemente sobre a cadeira, seus dedos anteriormente fechados se abriram e revelaram um pequeno frasco de vidro, armazenando ali um pó fino e esbranquiçado. — Muitos deles ainda confundem envenenamento por arsênico com surtos de cólera. Patético, não é mesmo?

O Duque rapidamente empalideceu, enquanto sua temperatura caía drasticamente. Sentia um suor gelado tomar conta de seu rosto, enquanto as mãos pareciam tremer de modo ainda mais violento do que antes.

— Você não vai fazer isso com ela — ainda que sua voz tenha saído num tom baixo, tais palavras foram proferidas sem hesitação.

— Eu admiro sua sagacidade — Allen respondeu, seus olhos brilhando de expectativa e antecipação. — Tem razão, meu caro amigo, jamais poderia executar algo dessa magnitude. Sinto que à essa altura ela já não confia mais em mim e eu odiaria levantar qualquer suspeita. É por isso que você será responsável por se livrar desse obstáculo para mim.

— Você perdeu a cabeça, só pode ser isso! — de maneira nervosa, Edgar ergueu-se num salto, passando a caminhar de um lado para o outro, com inquietação. Subitamente, ele parou atrás de sua cadeira e passou a apertar o alto do móvel com força, até deixar os dedos brancos pelo esforço. — Allen, não pode estar falando sério. Sei que houveram sua série de desentendimentos, reconheço que Sarah não é uma pessoa fácil de lidar, mas ouça a voz da razão! Por céus, ela é sua irmã!

— E qual o problema nisso? — o monarca indagou, sem esboçar qualquer emoção. — Eu não tenho nenhum apelo sentimental pelos membros da minha família que sempre me rejeitaram.

— Rejeitar? Ela o idolatrava até muito pouco tempo atrás! — ele exclamou, exasperado com o rumo que as coisas estavam tomando.

— Ela idolatrava a imagem de uma pessoa que não existia! Não hesitei em me livrar de meus próprios pais, por que razão eu a trataria de maneira diferente? — Allen pontuou, autoritário não só em sua voz, como também em sua postura. Levantando-se de seu lugar, ele apoiou o frasco que eu tinha mãos diante do Duque, de modo ameaçador. — Não gaste seu vocabulário com isso, minha decisão já foi tomada.

— Eu não farei isso — Edgar disse com convicção, enquanto balançava a cabeça negativamente. — Não sou como você, não carregarei em minha consciência o fardo de tirar a vida de alguém. Ela é minha consorte, como pode propor algo assim?

— Deixe de ser hipócrita, ao menos uma vez na vida. Você não a ama e seu casamento é uma farsa, assim como todo que lhe diz respeito. Além disso, é uma ordem, e não um pedido. Estou certo de que conhece todas as vantagens de ser meu aliado, assim como as desvantagens de não sê-lo. — Enquanto proferia seu discurso energético, o rei dirigiu-se até a porta de seu Gabinete. Tinha um importante encontro com os banqueiros de Odarin e definitivamente não gostaria de se atrasar. — Não seja tolo de escolher o lado errado. Quando tudo isso estiver acabado, você será livre para ficar com quem quiser. Não que isso signifique muito, afinal de contas, nenhuma delas jamais o farão tão feliz quanto a antiga Anya, não é mesmo?

Abandonando seu Secretário, Allen sequer olhou para trás antes de fechar a porta do cômodo. Paralisado em função da ameaça e da provocação que acabara de ouvir, o Duque sentia-se fraco enquanto a cabeça dava voltas, estando certo de que estava prestes a passar mal. Caminhando lentamente até o móvel das bebidas, ele tomou em mãos a primeira garrafa que conseguiu focalizar. Tratava-se de um vinho branco dos mais requintados e apesar desse detalhe, o rapaz não se incomodou sequer em despejar o líquido dentro de uma das muitas taças de cristal. A rolha fora retirada com rapidez e ele sentiu seu íntimo queimar enquanto recebia altas doses de álcool.

De modo cambaleante, ele se dirigiu a um dos sofás e praticamente jogou-se ali. Suava agora mais do que nunca. Sua consciência mais se assemelhava a um quarto escuro e bagunçado. Com as costas arqueadas, ele observou com atenção o espetáculo que ocorria diante de si. Quanto mais vinho, menor a intensidade de seus tremores. Quanto mais vinho, menos dúvidas pairavam sobre sua mente. Quanto mais vinho, mais corajoso ele se sentia.

De soslaio, ele encarava o pequeno frasco transparente, contendo o pó esbranquiçado. Em contrapartida, o recipiente parecia encará-lo de volta, como se fosse detentor de um olhar penetrante, exercendo sobre ele uma atração irresistível.

Já sabia o que tinha que fazer. “Minha decisão também já foi tomada”.



Já era tarde da noite quando o Duque finalmente retornou ao seu quarto. Naquela ocasião, ele não soube precisar o que pesava mais: seu corpo ou sua consciência. O eco das palavras imperiosas de Allen martelavam em sua mente de maneira incessante, impedindo-o de pensar em qualquer outra coisa, apesar dos seus esforços. Muito embora já estivesse certo quanto aquilo que deveria fazer, pensar nas consequências de seus atos lhe tomou o restante da tarde e boa parte de sua sanidade mental. Sentia-se esgotado, e muito perturbado.

Seus passos arrastaram-se ruidosamente contra o assoalho de madeira e num determinado momento ele até mesmo tropeçou na dobra de um tapete. Estava tão transtornado que sequer conseguia caminhar adequadamente. Sarah adormecera há pouco tempo, mas logo o barulho responsabilizou-se por despertá-la num sobressalto.

— Edgar, é você? — questionou, enquanto coçava os olhos no intuito de apurar a visão. Em instantes, a imagem de seu consorte se fez visível e ela pôde perceber de imediato como ele estava longe de seu melhor estado. — Está tudo bem?

Não houve nenhuma resposta. O rapaz encontrava-se do outro lado do quarto, curvado sobre um vasilhame, onde teria mergulhado, se pudesse. Na falta de uma banheira para afogar a si mesmo, jogava água insistentemente contra o rosto, de maneira nervosa. A princesa já o vira fazer aquilo algumas vezes no meio da madrugada, ainda que somente quando acordava inesperadamente por conta de algum pesadelo.

Deixando a cama para trás, Sarah caminhou rapidamente até o local onde o jovem Avelar estava. Àquela altura, todo seu rosto, cabelos e partes de sua blusa encontravam-se encharcados, enquanto ele ofegava como se tivesse corrido dezenas de quilômetros. Seu coração palpitava com tanta força que era acometido por uma súbita falta de ar, deixando sua companheira ainda mais nervosa diante da visão desgastada de seu consorte.

— Por céus, o que preciso fazer para que me diga o que está acontecendo? — Apesar do tom impaciente, a princesa não estava chateada, mas sim profundamente preocupada com o comportamento dele. Tomando-o pela mão, a menina o guiou até uma cadeira próxima, determinando que se sentasse com um gesto rápido. — Você sabe que pode confiar em mim, tenho certeza disso. Vamos, compartilhe comigo aquilo que vem te perturbando tanto.

A despeito de sua ansiedade, ela usou toda sua delicadeza para secar o rosto de Edgar com a felpuda toalha que trazia em  mãos. O cheiro forte de álcool parecia estar impregnado nele, mas absteve-se de tecer comentários na ocasião. O silêncio imperava no cômodo e, ao terminar de enxugá-lo, Sarah concentrou-se em acariciar seus ombros, enquanto lhe dirigia um genuíno olhar de preocupação. Não queria forçá-lo a nada, mas também não conseguiria dormir sem saber o que tanto o afligia.

Por favor, não me olhe dessa maneira... Isso só faz com que o peso dessa decisão se torne ainda maior”, ele pensou com angústia, tentando formular uma maneira de expressá-las propriamente. Após alguns segundos de conflito mental, acabou desistindo de verbalizar tais palavras, pois serviriam apenas para ensejar mais perguntas, as quais ele não teria a menor condição de responder. Havia muito em jogo e, se pudesse desejar uma única coisa em toda sua vida, direcionaria seus esforços para que não fosse responsável pelos acontecimentos que iriam ocorrer em breve.

— Tenho uma coisa muito importante para fazer e isso está me deixando louco — afirmou, em meio a um sussurro, sentindo sua voz hesitar muito mais do que ele poderia se dar ao luxo. Seu olhar vagueou para longe da figura da princesa, não se surpreendendo ao constatar que não conseguia encará-la diretamente.

— Tem alguma coisa que eu possa fazer para ajudá-lo? — a menina sugeriu, seu semblante banhado em angústia. Ela avançou de maneira tímida, ainda que decidida, os dois passos necessários para acabar a distância que havia entre eles. Mesmo sem autorização, tomou a iniciativa de sentar em seu colo, enquanto lhe afagava os cabelos e distribuía esparsos beijos em seu rosto, na tentativa de acalmá-lo no processo.

A proximidade de seus corpos permitiu que Edgar fosse envolvido pelo calor que emanava dela, trazendo à tona algo que há muito ele vinha reprimindo: a vontade quase incontrolável de expelir suas mágoas através do choro, tanto em função dos acontecimentos passados, como por aqueles que ainda estavam para ocorrer. Incapaz de coibir aquele ímpeto, o rapaz abraçou o frágil corpo a sua frente com força, comprimindo-a dentro de seus braços enquanto deixava o rosto afundar na curva de seu pescoço. O gesto a surpreendeu e roubou quaisquer palavras que ela pudesse proferir.

Mesmo sentindo-se levemente sufocada, ela nada disse. Pensava que finalmente havia conseguido compreender o que se passava ali. Para Sarah, estava claro que seu consorte vinha sofrendo tanto quanto ela os impactos dos últimos acontecimentos. No entanto, seu cargo não lhe permitia fraquejar e ele suportou tudo em silêncio, dando a ela todo o apoio que sequer possuía. Enquanto retribuía o abraço, a jovem se concentrou em afagar-lhe os fios loiros, ainda levemente úmidos.

De maneira silenciosa, Edgar permitiu que seu coração aliviasse algumas das muitas dores que carregava consigo. Dentro do quarto escuro, sentados à beira de uma janela iluminada tão somente pela lua cheia, ele deixou que suas frustrações adquirissem forma física e escorressem por seu rosto no formato de lágrimas.

Eu gostaria que você me perdoasse, antes mesmo do que estou prestes a fazer”, ele pensou, sentindo-se mais desesperado agora que em qualquer outro momento de sua vida. Em sua mente, o Duque ensaiou proferir aquelas palavras dezenas de vezes seguidas, mas todas as tentativas foram interrompidas por soluços involuntários.

— Me perdoe. — Após algum tempo, foi tudo que conseguiu proferir, em meio ao choro angustiado. Ainda assim, sua voz saiu tão embargada que a princesa não conseguiu compreender o que lhe fora dito.

Estou fazendo isso por você, e não por mim”, ele pensou em dizer, mas novamente as palavras não saíram. Edgar já havia realizado diversos feitos impensados em sua vida e até se sentia um tanto honroso em relação a maioria deles. No entanto, tirar a vida de uma pessoa, principalmente alguém a quem era tão próximo, certamente não lhe traria nenhum prazer ou orgulho. Sabia que sua consciência seria devastada depois daquilo.

Infelizmente, algumas coisas simplesmente precisavam ser feitas.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "The Queen's Path" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.