The Queen's Path escrita por Diamond


Capítulo 29
Capítulo XXIX - 21 de Abril de 1872




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O salão externo, construído anos depois do próprio castelo de Odarin, serviu de palco para as mais importantes reuniões e celebrações religiosas nas últimas gerações. As paredes de pedra eram geladas e aparentemente impenetráveis, conferindo ao ambiente um certo ar de estoicidade. Sarah conhecia aquele espaço como ninguém. Quando pequena, costumava esconder-se nas brechas dos móveis no intuito de escapar das lições de Evangeline, ou mesmo apostar corridas com Elliot quando ambos estavam desocupados.

Também casara-se ali há poucas semanas, e tanta coisa já havia acontecido desde então. Ela se recordava de como aquele parecia ter sido o pior dia de sua vida. No entanto, a angústia de outrora sequer poderia ser comparada com o que sentia agora. Sentada num comprido banco de madeira, ela encarava o altar de modo desatento, sem o usual brilho jovial em seu olhar. Parecia ter sido destruída por dentro e de seu coração sofredor não restavam mais que pequenos estilhaços. “Eu gostaria de acordar e descobrir que tudo não passou de um terrível pesadelo”, ela pensou consigo mesma.

Embora soubesse que a lembranças somente lhe trariam mais dor, era difícil não reviver as fatídicas horas do dia anterior. Tudo acontecera tão rápido e mesmo assim ela se sentia tão distante. Diante do altar, exposta ao olhar vigilante das representações sagradas, o caixote de madeira encontrava-se aberto àqueles que desejassem realizar as últimas vênias.

Sarah o encarava com desconsolo, enquanto lágrimas silenciosas escorriam por seu rosto. Gostaria de se despedir, mas tinha tanto medo. O que ela iria dizer, afinal de contas? Ainda havia tanto para conversar e, mesmo assim, as palavras pareciam estar presas em sua garganta num bolo tão desconfortável que se tornava difícil respirar. Fechando os olhos, a princesa permitiu que as lágrimas rolassem com maior intensidade. Ela ainda conseguia ouvir as badaladas do relógio naquela madrugada, ecoando em seus ouvidos como marteladas impiedosas, indicando uma após a outra o distanciamento desde a última vez que a rainha de Odarin fora vista. Se recordava bem de ter ido até seu quarto e encontrar a porta entreaberta, novamente vazio. As lembranças invadiram sua mente na medida em que se recordava dos acontecimentos do dia anterior...



O grande relógio da sala de estar badalou pesadamente três vezes e as notas teriam ecoado por todo o castelo se, naquela madrugada específica, não fossem abafadas pelo som intermitente da chuva, que não havia cessado desde o pôr do sol do dia anterior. Sentada em um dos estofados presentes no local, Evangeline massageava as têmporas, aparentando estar visivelmente transtornada.

Maria surgiu timidamente através de uma das muitas portas, trazendo consigo uma xícara de chá fumegante. Aproximando-se da respeitável governanta, a cozinheira ofereceu a bebida, enquanto tentava formular em sua mente qualquer coisa que pudesse soar minimamente adequada. Diante de um momento tão delicado como aquele, sua falta de instrução não a ajudava em nada, fazendo com que se sentisse insignificante e insipiente.

— Aqui, minha querida. Soube que ainda não teve oportunidade de cear, então lhe trouxe isso para acalmar os nervos.

— Será que não vê que eu não quero me acalmar? — Usualmente, aquelas palavras teriam sido proferidas com rispidez e impaciência, mas a despeito do tratamento que a cozinha já estava habituada, a voz de Evangeline saiu com pouca intensidade e levemente chorosa, o que era bastante raro.

— Evangeline, está tudo bem com você?

— Óbvio que não está tudo bem! — explodindo de nervosismo, dessa vez o tom imperioso se fez presente. Enquanto tentava recuperar o fôlego, um pequeno grupo de guardas adentrou no cômodo, caminhando em sua direção. — É absolutamente inadmissível que uma pessoa desapareça sem deixar rastros dessa maneira, ainda mais num castelo abarrotado de serventes e sentinelas! Como podem ser tão cegos? Vocês pagarão caro pelo desaparecimento de nossa rainha, fiquem certos disso!

— Que fique claro que a Guarda Real não teve qualquer envolvimento com o desaparecimento de Nossa Majestade — proferiu o mais alto e distinto deles, não parecendo contente em ser vítima das acusações falaciosas proferidas pela governanta. — Verificamos todos os cômodos, sem exceção. E permanecemos trabalhando para localizar nossa rainha o quanto antes.

— E o que pretende agora, ficar em pé aqui, olhando para mim sem respostas e sem resultados? —Evangeline pouco se importou com a boa educação e deixou que o desespero tomasse a forma de palavras. Precisava descarregar em alguém ou seu velho coração não aguentaria tamanha pressão.

Maria afagava-lhe as costas, tentando acalmá-la a todo custo. Não poderia dizer que julgava suas ações, afinal, já havia sido um susto tremendo quando a senhora do castelo esgueirou-se pelos corredores até uma capela vazia para realizar suas preces. Agora, estava desaparecida há horas, sendo procurada durante toda a madrugada e até então sem a menor pista de seu paradeiro. Qualquer pessoa em sã consciência estaria desesperada também.

Apesar do momento angustiante que vivia, os olhos de Evangeline não estavam menos atentos que o de costume. Ao fundo do cômodo, ela vislumbrou o exato momento em que uma figura encapuzada tentava se dirigir até os portões do Hall Principal.

— Espere um pouco! — erguendo-se subitamente do estofado em que se encontrava, ela caminhou apressadamente em direção a figura oculta. Não precisava nem mesmo ver-lhe a face para saber de quem se tratava. —Sarah, aonde pensa que está indo?

— Fazer o que todas as outras pessoas deveriam estar fazendo. Vou procurar a Beatrice — a princesa respondeu, de imediato. Estava bastante certa de sua decisão, ciente de que nada nem ninguém iria impedi-la. — Se ela não está dentro do castelo, então certamente há de estar em algum lugar lá fora!

— Eu não posso lidar com o desaparecimento de duas pessoas ao mesmo tempo. Que está tentando fazer? Me matar? Além do mais, está um verdadeiro temporal lá fora. Tudo que vai conseguir com essa asnice é pegar um resfriado, se não coisa pior! Estou certa de que, à essa altura, você não quer ficar doente.

— Muito pior do que qualquer resfriado é o estado em que Beatrice se encontra! Ela sim, não tem a menor chance de sobreviver lá fora — Sarah respondeu, sua voz banhada em apreensão. Não conseguia parar de pensar em sua amiga, de mão enfaixadas e corpo desnutrido.

Evangeline sabia bem o que a princesa queria dizer com aquilo, mas sua preocupação com a rainha não a eximia de seus cuidados para com sua eterna criança. Para seu desespero, antes mesmo que pudesse dizer qualquer coisa, Sarah disparou em direção ao Hall Principal, tomando uma lanterna a óleo em mãos no meio do caminho. “Teimosa como sempre”, pensou com certo aborrecimento

— O que estão fazendo aí parados? — a governanta questionou, com vigor e muito subitamente, dirigindo-se aos guardas que permaneciam parados no aguardo de novas instruções. — Ninguém neste castelo irá repousar enquanto a rainha não for encontrada. Vamos, mexam-se e não percam a princesa Sarah de vista!

Mesmo não estando nem um pouco felizes em receber ordens de uma mera empregada, sem qualquer título oficial, o pequeno grupo de homens marchou em direção à saída do castelo, ainda que estivessem convictos de que não poderiam localizar nem mesmo um elefante nas condições climáticas daquele momento.

Finalmente vendo-se livre dos sentinelas, a mais velha tornou sua atenção para a xícara de chá trazida por Maria, que agora já não fumegava como antes. Duvidava muito que o líquido de sabor adocicado e suave fosse lhe acalmar, mas não faria uma desfeita daquelas com a gentileza da jovem cozinheira.

— Obrigada pela atenção — mencionou, enquanto bebericava do chá com certa pressa. — Parece-me que herdou o lado zeloso de sua mãe, não é mesmo?

Levemente envergonhada pelo elogio – ao qual definitivamente não estava habituada –, Maria limitou-se a menear positivamente, aceitando aquelas palavras sem maiores questionamentos.

— Há algo mais que eu possa fazer para ajudá-la?

— No momento, não — Evangeline pontuou, enquanto devolvia-lhe a xícara vazia. — Já passou há muito da hora de se recolher. Vá e aproveite seu merecido descanso.

A cozinheira afastou-se com pressa em direção à cozinha. Estava bastante cansada e desejava mais do que tudo algumas horas de sono. Já a governanta não podia gozar da mesma regalia. O relógio apontava precisamente às 03h15min, um horário nada adequado para que Sarah estivesse vagando pelos jardins, em meio a uma fortíssima chuva. Não que pudesse fazer algo para impedi-la, pois criara a menina com tanto rigor que agora já não era mais autorizada a intrometer-se em suas decisões. “Se eu tivesse sido um pouco mais flexível, talvez ainda hoje ela me desse ouvidos em situações como esta”, pensou de modo desgostoso. Inesperadamente, uma ideia lhe ocorreu e ela pôs-se a andar apressadamente, subindo alguns lances de escadas em instantes.

Afora a própria Beatrice, havia ainda um habitante naquele castelo capaz de incutir-lhe algum juízo na princesa. Ou ao menos assim Evangeline esperava.



Sentado sobre o parapeito da janela de seu quarto, o jovem Avelar brincava distraidamente com a pequena e gorducha taça de conhaque em mãos. A chuva tornou a noite bastante gélida e a bebida cumpria bem com seu papel, aquecendo-lhe com eficiência. Desde seu casamento, o rapaz tentava evitar o álcool, e as semanas gastas em Newreen foram aproveitadas em sua totalidade sem a presença daquele terceiro elemento. No entanto, desde seu retorno, suas preocupações apenas aumentavam e logo tornou-se impossível manter-se distante do velho hábito.

O ardor proporcionado pelas bebidas conseguia distraí-lo de suas próprias angústias, que pareciam tornar-se ainda maiores a cada dia vivido. Já tinha convivido anos suficientes com Allen para saber que seus momentos de introspecção eram um terrível sinal de mal presságio. Já vira aquilo acontecer ao menos uma dúzia de vezes e, em algumas delas, suas desconfianças eram confirmadas com notas de falecimento e discursos de pesar. Não gostaria sequer de imaginar quem seria a próxima vítima de seus pensamentos sórdidos, embora seu palpite o fizesse sentir arrepios na espinha. Talvez estivesse sendo um tanto extremista, mas não apostaria nem mesmo uma moeda de bronze na bondade do monarca.

Duas batidas firmes junto a porta foram responsáveis por tirar seus pensamentos de foco. Autorizando a entrada, não tardou para ele visse a imagem de Evangeline aproximando-se de maneira afobada.

— Perdoe-me pela intromissão, mas gostaria de informar que talvez seja do seu interesse saber onde se encontra a princesa neste momento. — Da forma como havia pontuado, estava certa de que conseguiria captar a atenção e o interesse do Duque.

— A última vez que a vi, estávamos na sala de jantar — ele respondeu, de modo vago. Sacando seu relógio de bolso foi que Edgar pôde constatar que já faziam muitas horas desde o ocorrido. Não se dera conta do tempo que passou, muito provavelmente por conta dos efeitos do conhaque. — Onde ela está?

— Em algum lugar nos jardins, procurando por Beatrice — Evangeline respondeu, visivelmente impaciente. Sentia que os minutos avançavam rapidamente, fazendo com que ela se preocupasse cada vez mais com a menina inconsequente. — Compreendo que esteja preocupada com ela, mas concorde comigo que sair no meio dessa tempestade é um verdadeiro absurdo. Por favor, Edgar, precisa trazê-la de volta.

A governanta não precisou pedir duas vezes, pois nem bem havia finalizado sua fala e o rapaz já se pusera de pé, dirigindo-se com rapidez até o largo armário reservado para si. Tomando em mãos um pesado casaco, ele cruzou a porta sem proferir uma única palavra.

Não era como se o Edgar estivesse totalmente alheio a situação da rainha de Odarin. Na verdade, ele sentia muito pelo infortúnio da jovem de cachos loiros, que fora obrigada a casar-se com Allen, sendo este talvez o pior castigo já inventado naquele século. A personalidade azeda e o autoritarismo desmedido, aliados à natureza agressiva do primogênito da Família Miglidori tornava aquele matrimônio um verdadeiro inferno ou algo muito próximo a isso. No entanto, suas preocupações não estavam voltadas ao seu sofrimento. Naquele momento, havia alguém muito mais importante com quem ele deveria se preocupar.



Não bastasse a pesada chuva que parecia a todo instante tentar jogar a princesa contra o chão enlameado, os ventos fortes dificultavam — e muito — sua locomoção. Seu corpo protestava já havia algum tempo, cansado de suportar o peso das roupas molhadas, ao passo de que seus pés latejavam de dor. “Isso não é nada comparado ao sofrimento e a dor de Beatrice”, dizia para si mesma, forçando-se a continuar ali, procurando-a.

A iluminação proveniente do castelo era muito fraca para iluminar mais do que um metro de distância das vidraças. Espalhados por toda a extensão da propriedade, diversos pontos luminosos indicavam que os guardas faziam o mesmo que ela. Se ao menos não estivesse chovendo tanto…

Sarah tentava avançar na direção dos estábulos, a despeito de toda a dificuldade que enfrentava. Esperava sinceramente que a rainha estivesse lá, abrigada da chuva. Seu palpite se baseava no fato de que, sempre que precisava de um refúgio, era para a companhia dos cavalos que se dirigia. Quem sabe, por uma sorte do destino, sua amiga tivesse seguido a mesma linha de pensamento.

Os jardins, até então envoltos pela escuridão, foram subitamente iluminados, retornando logo em seguida para o véu negro de antes. Segundos depois, um estrondoso som preencheu os ouvidos da princesa, fazendo com que ela olhasse apreensivamente para o céu. “Ainda mais isso, uma tempestade com relâmpagos”. Embora soubesse que ficar num espaço aberto, rodeado por árvores não fosse nada recomendado para noites como aquela, não poderia simplesmente deixar Beatrice para trás.

Estava prestes a contornar o castelo, já muito próxima dos estábulos, quando um novo clarão a cegou momentaneamente, fazendo com que se chocasse contra alguém. Já estando enfraquecida pelo cansaço, não tinha a menor dúvida de que iria diretamente ao encontro do chão. Para sua surpresa isso não ocorreu, graças às ásperas mãos que a seguraram pelo braço. Apesar do susto, foi impossível não reconhecer aquele toque ligeiramente grosseiro.

— Elliot? — questionou, logo após retomar o equilíbrio. Erguendo a lanterna que trazia consigo, foi possível iluminar a face do rapaz a sua frente. Estava tão encharcado quanto ela e a expressão em seu rosto não era nenhum pouco amigável.

— Se quiser prevenir outra tragédia, é melhor voltar para o conforto da sua redoma de vidro —ele proferiu, de modo ríspido e impessoal. De todas as pessoas do mundo, Sarah era a última a quem ele gostaria de encontrar naquele momento. Tanto sentinelas espalhados e ele tinha de esbarrar justamente na princesa.

— Espere! — ela gritou ao vê-lo se distanciar. — Volte aqui, eu preciso da sua ajuda! Beatrice está desaparecida há horas e não está em lugar algum do castelo. Ela tem de estar aqui fora, preciso do maior número de pessoas revistando a propriedade.

— Por que não pede ao seu consorte para procurá-la com você? Se eu me lembro bem, você o considera uma pessoa bastante gentil e agradável, não é mesmo? — As palavras praticamente pularam de sua boca, como se aquela fala viesse há muito sendo ensaiada pelo tratador de cavalos. Havia se esquecido completamente do que fora fazer ali.

— Como disse? — ela questionou, estupefata com aquelas palavras.

— Exatamente o que ouviu. — respondeu ferozmente. Aquela era a primeira vez que se falavam desde a cerimônia de casamento e embora não fosse o local nem a hora adequada para discutir aquilo, o rapaz simplesmente não conseguiu refrear sua própria raiva. — É cômodo para você procurar as pessoas quando precisa delas, não é mesmo? Também é igualmente fácil se livrar delas quando já não lhes são mais úteis.

— Mas do que é que você está falando? — a princesa mal podia crer naquilo que ouvia, principalmente diante da situação em que se encontrava. Haviam assuntos muito mais urgentes para resolver do que as mágoas infundadas de Elliot. Por que se importava tanto com aquilo, se mais do que rapidamente ele encontrou consolo nos braços da costureira ruiva? — Escute aqui, eu não tenho tempo no momento para lidar com as suas frustrações. Não quer me ajudar? Ótimo! Eu não preciso de você, no final das contas.

Não era bem verdade. Sarah precisava de toda a ajuda e apoio do mundo naquele momento. Mas seu orgulho jamais a permitiria dizer isso em voz alta. Tornando o rosto, ela afastou-se dali tão rapidamente quanto conseguiu, já sentindo as lágrimas repletas de mágoas se camuflarem em meio as grossas gotas de chuva.

— Ela não está nos estábulos, se é para lá que está indo. — Elliot gritou aquelas palavras enquanto a observava se afastar, mas não teve certeza de que pôde ser ouvido.

Sabia bem que ela jamais seria capaz de encontrar Beatrice naquelas condições. Não quando ele mesmo já a havia encontrado, momentos antes. Tinha consciência de que deveria ter revelado sua descoberta, sabia o quanto a menina adorava e admirava a jovem rainha. No entanto, o inesperado encontro serviu para mostrá-lo como nada fora superado e que a imagem de Sarah ainda era plenamente capaz de mexer com seus sentimentos.

Seu estúpido, você deveria ter dito a ela”, ele pensou com amargura, sentindo uma súbita vontade de esmurrar a si mesmo. A imagem de Jacques lhe veio a mente e, de imediato, o rapaz sentiu que seu pai ficaria extremamente desapontado com o seu comportamento recente. Por um instante, tentou buscar alguma escusa que justificasse seu ato tão baixo. Era certo que ele não saberia como informar o que vira no Vilarejo dos Serventes, ao menos não diretamente para ela.

A imagem pavorosa permanecia bem vívida em sua mente, causando-lhe calafrios que não tinham nenhuma relação com o vento forte e gélido. O sorriso no rosto de Beatrice tornava a cena ainda mais pavorosa e intimamente o tratador gostaria de não ter sido ele a encontrá-la. Balançando a cabeça, o rapaz tentou concentrar-se na tarefa de achar um sentinela o mais rápido possível.



Limpando as lágrimas do rosto sem nenhuma delicadeza, Sarah ergueu-se do local onde estava e caminhou, com passos incertos e temerosos, até o altar. Ainda se sentia exausta da noite anterior, pois somente deixou os jardins depois que suas pernas se recusaram a avançar um único passo que fosse. Não queria parar, mas também já não havia motivos para prosseguir. Encontrava-se em estado de choque e foi guiada para dentro por Edgar, que lhe informou em meio a voz embargada que o corpo de Beatrice já havia sido encontrado.

Tudo aquilo que vinha da terra havia de retornar para ela, era uma das coisas que Jacques costumava lhe dizer quando era mais nova. Deitada confortavelmente entre as paredes de madeira acolchoadas, a jovem rainha parecia estar adormecida de modo bastante pacífico, sem quaisquer angústias ou preocupações estampadas em sua fronte.

Fora encontrada muito longe do castelo, próximo ao Vilarejo dos Serventes, jogada dentro do poço profundo que abastecia toda a vila. Não puderam constatar ao certo se morrera em decorrência da queda ou afogada pela água da chuva. Tudo que se sabia era que, ao ser retirada de lá, a moça portava um estranho sorriso de contentamento.

As mãos já não estavam mais enfaixadas e foram delicadamente ocultas por luvas de renda, um de acessórios preferidos. “Me perdoe, Beatrice, por não ter me dado conta antes da realidade a qual você estava presa”, a princesa pensou com remorso, enquanto a admirava em seu leito de morte. Mesmo numa situação como aquela, seu rosto parecia lívido e elegante.

Sentindo uma pesada mão sobre seu ombro, Sarah assustou-se e tornou o rosto rapidamente, receosa de quem pudesse ser. De pé atrás de si, seu consorte a encarava silenciosamente. A despeito da usual aparência impecável do Duque, naquele momento seus cabelos aparentavam estar um tanto oleosos e desgrenhados. Seu rosto demonstrava algum cansaço acumulado e finas marcas escuras sob os olhos amendoados. Era evidente que buscava palavras para confortar a dor da princesa, mas diante daquela situação, nem mesmo toda a instrução e vivência que adquirira ao longo da vida foram capazes de ajudá-lo.

As lágrimas de antes retornaram novamente e desta vez a princesa apoiou a testa no ombro de sua companhia, que a abraçou no mesmo instante, de maneira protetora. O cheiro de bebida alcoólica praticamente emanava de seu consorte, mas naquele momento ela optou por não tecer comentários.

Edgar gostaria de protegê-la de todos os males e tristezas, mas sabia bem que tais desejos estavam muito além de sua capacidade. Sentia-se impotente por isso. Sarah era uma pessoa autêntica e espontânea, o que a tornava uma pessoa encantadoramente única, ainda que muito vulnerável. Sem máscaras para sustentar, não havia nada que protegesse seus autênticos sentimentos de impactos como aquele. Sua dor era palpável e, se pudesse, tomaria uma parte delas para si. Ele conhecia e já estava bastante habituado ao sentimento de perda.

— Vamos, já está na hora — o jovem Avelar disse, num tom muito baixo. Não estava sequer incomodado com as lágrimas que molhavam sua camisa.

— Não posso — Sarah proferiu, em meio a um soluço. — Eu não estou pronta para deixá-la partir.

— Essa decisão não cabe a nós e você sabe disso. Foi uma escolha da própria Beatrice, só nos resta aceitar agora — ele respondeu, enquanto tirava um lenço do bolso de seu casaco e o utilizava para enxugar o rosto da mais nova. Com um sussurro muito próximo ao seu ouvido, prosseguiu. — Tente guarde suas lágrimas apenas por um momento. Tenho certeza de que ela não gostaria de vê-la fraquejar diante dos outros.

Embora não quisesse admitir, Sarah sabia que ele tinha razão. Beatrice sempre a instruiu a nunca permitir que os outros percebessem suas fraquezas. Queixo erguido, esquadro alinhado e um sorriso no rosto. Era dessa maneira que a falecida rainha gostava de travar suas batalhas pessoais.

Assentindo sem muito entusiasmo e fungando o nariz uma última vez, ela segurou o braço de Edgar e ambos caminharam juntos para fora do grande salão. Logo que cruzaram as portas, um pequeno grupo de guardas estava a postos e ingressou no ambiente em fila. Era chegada a hora de selar o caixão e levá-lo até o local do sepultamento.

Apesar de não haver mais a chuva, o dia estava tão cinzento que nem se assemelhava a uma tarde de primavera. Caminharam longos minutos em silêncio, até atingir uma colina alta e reservada, que há muito vinha sendo utilizada para enterrar os membros da Família Real. Os olhos de Sarah instintivamente correram até o local exato onde sua própria mãe fora enterrada. Repousadas diante da lápide de Katherine, havia um buquê de camélias recém colhidas. Por um instante, a menina se questionou quem as teria colocado ali, mas logo assumiu que o mimo deveria ter partido das mãos de Evangeline.

Há poucos metros dali, encontrava-se um grupo de pessoas dispostas em torno da terra nua num semicírculo, apenas aguardando o fim da discreta cerimônia de sepultamento. Tratava-se de uma pequena seleção de nobres, apenas aqueles das patentes mais altas se faziam presentes. Ao longe, a princesa pôde reconhecer o rosto dos Chevalier, ainda que ali representados exclusivamente por Friederich e Florence. Agradeceu mentalmente o fato de não terem se aproximado para falar consigo e lamentou que Phillip não estivesse ali. O que ela não daria para encontrar um rosto amigo, em meio à tanta melancolia.

Não tardou muito para que o soar dos trompetes sinalizasse o início da rápida cerimônia. O corpo já velado de Beatrice se aproximava pelas mãos do grupo de guardas, cada um apoiando uma extremidade do caixão sobre os ombros. Allen discursava brevemente sobre o trágico acontecimento que se sucedeu com a Família Real no dia anterior. Sarah não prestava atenção a nada, limitando-se a encarar o escuro buraco próximo aos seus pés. Sabia que o discurso fora escrito por Edgar e que a bonita escolha de palavras não tinha valor algum quando proferidas pela boca de seu irmão mais velho.

Findo o momento solene, o caixão foi atirado dentro da cova, fazendo com que a princesa deixasse escapar uma única lágrima, que rapidamente foi retirada do rosto por seus dedos enluvados. Afastando-se de seu consorte por um momento, Sarah atirou um único lírio branco em direção a sua adorada amiga. Edgar foi o próximo e, depois dele, cada um dos nobres presentes copiou os movimentos, atirando a singela flor como forma de despedida.

Allen observava a cena de modo surpreso, não compreendendo a razão para aquele procedimento fora do padrão. Tendo muita certeza de que a mais nova tinha um apreço todo especial pela quebra dos padrões, o monarca tornou seus olhos para ela, passando a inquiri-la com a voz baixa e nenhum pouco simpática.

— Posso perguntar o que está acontecendo?

— Instruí Evangeline para que desse um lírio a cada um dos convidados, para que assim pudessem se despedir — Sarah comentou, sua voz soando profunda e muito séria. Recusava-se a encará-lo nos olhos, mantendo o olhar fixo no branco das flores que preenchia aquele escuro espaço. — Eram as flores favoritas de Beatrice, mas não me admira que você não saiba disso.

Sem nada para dizer e pouco disposto a iniciar uma discussão ali, no meio de tantas pessoas importantes, o rei limitou-se a observar o estúpido ato planejado por sua irmã. Quando já não havia mais ninguém para atirar-lhe lírios, dois guardas puseram-se a preencher o espaço com terra, sedimentando assim a partida de Beatrice daquele mundo.

— Vamos embora — Edgar sussurrou para a princesa, logo que a cerimônia se encerrou, ao reparar que ela tornaria a chorar a qualquer momento. Estava claro que a menina não tinha condições de aceitar as falsas condolências dos convidados.

Ambos tornaram a caminhar de volta para o castelo. Sarah apertava o braço de seu consorte com força, tentando assim diluir um pouco da dor que sentia. Atrás deles, a governanta caminhava com os mesmos passos apressados e firmes de sempre.

— Obrigada por tudo, Evangeline — a menina agradeceu, tornando o rosto para a senhora que os seguia.

A mais velha dispensou o gracejo com a mão, não se sentindo merecedora de nenhum elogio àquela altura. Se tivesse permanecido ao lado de Beatrice o tempo inteiro, era bem provável que conseguisse impedir a terrível tragédia. Pela segunda vez em sua vida, sentia como se tivesse falhado em suas funções. Quantas pessoas precisaria perder até finalmente aprender a lição?

— Obrigada pelas camélias também, eram muito bonitas — a jovem pontuou, tentando dissuadir a governanta da ideia de que era de algum modo responsável pela morte da loira.

— Não sei do que você está falando, Sarah — ela respondeu, visivelmente aborrecida e desapontada consigo mesma. — Não trouxe nenhuma camélia, apenas os lírios que me pediu.

A princesa parou de caminhar subitamente, o que gerou imediato estranhamento por parte de Edgar. Ela tornou o rosto e, embora já estivessem a uma distância considerável, as cores vivas das camélias ainda eram visíveis aos seus olhos. Elas estavam lá, bem diante do túmulo de Katherine.

Se não foi Evangeline, quem pôs aquelas flores ali?


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