The Queen's Path escrita por Diamond


Capítulo 27
Capítulo XXVII - 11 de Abril de 1872




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Nem bem os primeiros raios de sol iluminaram os campos esverdeados de Odarin e a princesa já se esgueirava furtivamente para dentro do Gabinete Real. “Se acha que pode se esconder de mim, está bastante enganado, Allen”, ela pensou com determinação, dirigindo-se ao estofado disposto no centro do cômodo. Sentando-se confortavelmente, agora só lhe restava esperar.

Com os olhos fixos no ponteiro do relógio, de braços cruzados e os pés tamborilando insistentemente contra o assoalho, a imagem de Sarah era perfeita representação da impaciência e da ansiedade. Enquanto aguardava a chegada do mais velho, recordava-se dos acontecimentos da tarde anterior. Parecia ironia do destino que ela não conseguisse localizá-lo no castelo, principalmente depois de encontrar Beatrice em um estado tão deplorável. Finalmente, acabou sendo informada pelo mordomo pessoal de Allen que ele e Edgar haviam deixado o castelo pouco depois de sua chegada. Tinham um importante encontro na Sociedade Mercantil e o monarca não estava disposto a ficar mais nenhum minuto sem o auxílio de seu Secretário. A jovem esperou pacientemente pelo retorno dos dois, mas o avançar das horas fez com que já não conseguisse suportar a própria fadiga, rendendo-se a um sono conturbado e nada revigorante.

Ao acordar naquela manhã, ela precisou se desculpar mentalmente com Edgar por sua ausência repentina. O rapaz, que chegara demasiadamente tarde na noite anterior, ainda se encontrava desacordado no lado oposto da cama. De todo modo, não era com seu consorte que Sarah pretendia abordar aquele assunto. Deixando um pequenino bilhete manuscrito em sua cabeceira, ela saiu de seu quarto da forma mais silenciosa possível.

Continuava esperando pelo mais velho, em seu próprio ambiente de trabalho. “Demore o tempo que precisar em seu desjejum, pois eu não pretendo ir a lugar algum”, a princesa pensou com certa amargura, enquanto ensaiava as palavras que diria assim que o encontrasse.

Uma hora. Duas horas. Três horas. Seu estômago começava a resmungar baixinho, exigindo um pouco de alimento. As pálpebras pareciam pesadas e faziam um esforço sobre-humano para se manterem abertas. Quase vencida pelo cansaço de uma noite mal dormida, a princesa estava prestes a cochilar quando ouviu os sons característico de um trinco sendo girado e um rangido discreto da porta que se abria lentamente.

Allen adentrava no gabinete com a típica expressão impassível no rosto, tornando assim ainda mais visível sua surpresa em encontrar a mais nova sentada diante de si, com os lábios crispados e as sobrancelhas juntas, resultando numa fisionomia de poucos amigos. Sarah o analisou por alguns instantes, sem proferir uma única palavra. Os olhos azuis, aliados ao semblante sério e a barba fina — ainda que sem falhas — faziam com que ele parecesse uma versão mais jovem de Henrique. Sua face estava da mesma forma como ela se lembrava e, no entanto, a princesa já não conseguia vê-lo com os mesmos olhos.

— Que surpresa encontrá-la aqui — ele comentou, de maneira bastante casual, tentando mascarar seu espanto enquanto se dirigia até sua escrivaninha. — Perdoe-me por não recepcioná-la ontem no momento de sua chegada, mas haviam compromissos inadiáveis que necessitavam da minha presença. Diga-me, como foi de viagem?

— Minha viagem foi bastante proveitosa, obrigada por perguntar — sua voz soou ríspida, o que aumentou a tensão no ar e fez com que Allen acomodar-se melhor em sua cadeira. — Mas não foi para conversar sobre minhas semanas em Newreen a razão que vim até aqui. Vim na esperança de que você pudesse me elucidar os fatos por trás do lamentável estado de Beatrice.

— Um acidente, obviamente — respondeu o monarca, de forma natural. — Caiu desastrosamente da escada…

— Uma queda não a deixaria naquele estado mesmo que tivesse sido da montanha mais alta de Odarin! — Sarah explodiu, visivelmente enraivecida pela ridícula desculpa que acabara de ouvir. Não esperava ouvir a verdade de imediato, mas também não imaginou que ele a tomasse por uma pessoa tão estúpida daquela maneira.

— …bem em cima de um castiçal aceso — ele finalizou pausadamente, como se não tivesse sido interrompido em sua fala. Sua expressão habitualmente séria permaneceu inalterada. A situação era desagradável e rapaz sabidamente não gostava de ser afrontado daquela forma. — O que está insinuando com isso, Sarah?

— Eu não faço insinuações, e sim acusações diretas — a princesa disse de imediato, enquanto colocava-se de pé e o encarava com fúria. — O que quero dizer é que isto está longe ter sido provocado por um acidente e, se já não bastasse, acho bastante improvável que algum servente ou guarda se atreveria a erguer um dedo sequer contra a sua rainha.

— Então está me acusando diretamente de ter ofendido fisicamente minha própria consorte? — Allen pontuou enquanto cruzava os braços e erguia o olhar, lhe direcionando sua melhor expressão autoritária. —  Esclareça-me, então, qual razão eu teria para fazer algo assim.

— Estou acusando-o diretamente de não cuidar da forma como deveria daqueles que estão, ao menos em tese, sob a sua proteção! — Sarah exclamou com indignação, chegando até mesmo a bater o pé contra o chão.

— Se você está tão preocupada assim com o estado de Beatrice, vá lhe fazer companhia e deixe-me em paz. Tenho muito o que fazer, a despeito de você, que parece ter tempo livre o suficiente para confabular asneiras desse tipo — ele respondeu, em tom definitivo, demonstrando o quão farto estava daquela conversa.

— Allen, o que está acontecendo com você? — ela questionou, visivelmente atingida pela resposta severa, já sentindo os olhos se encherem de lágrimas. — Desde que voltamos para Odarin tem agido de maneira tão estranha. Eu mal o reconheço mais.

— Você, por outro lado, continua a mesma criança mimada e inconveniente de anos atrás — o rapaz proferiu, de modo feroz e estranhamente ameaçador. — Saia da frente agora mesmo e veja se consegue amadurecer de uma vez por todas. Não existe espaço neste mundo para sua ingenuidade ou mesmo seu senso de justiça infantilizado.

Ela teria respondido àquela afronta, mas as lágrimas já escorriam por seu rosto e a princesa já não se sentia apta a proferir qualquer resposta à altura. Visivelmente magoada, Sarah correu para fora do Gabinete Real, com a vista tão embaçada que sequer reparou na presença de Edgar, que estava prestes a ingressar no cômodo.

O Duque observou a menina se afastar aos prantos por alguns segundos, antes de adentrar no ambiente e encontrar Allen de muito mal humor. Não foi difícil para ele ligar aos pontos, chegando rapidamente à conclusão lógica do que acabara de acontecer.

— Está cada dia mais difícil de controlá-la. — Foi o murmúrio que o jovem Avelar escutou enquanto sentava-se diante do monarca. Escondendo parcialmente o rosto detrás dos dedos entrelaçados, ele esperou pacientemente pelo que viria a seguir. — Você deveria tomar as rédeas da situação, afinal, está casado com ela agora.

— Acha mesmo que tenho algum poder de gerência sobre isso? — Edgar questionou retoricamente, em meio a uma risada irônica. — Ao menos uma vez na vida seja honesto com você mesmo, Allen. Já está na hora de entender que Sarah não é tão manipulável e estúpida como vinha imaginando.

— Ela costumava fazer exatamente tudo que eu mandasse — o rei constatou, aparentando estar irritado ao mesmo tempo que frustrado com aquela situação. — Quando foi que as coisas mudaram e eu perdi a autoridade?

— Provavelmente quando ela cresceu e começou a pensar com a própria cabeça. Quando vai entender que não pode subjugá-la e nem impor suas vontades sobre ela para sempre?

Não houve resposta para aquela pergunta. Allen limitou-se a dirigir um olhar severo ao seu Secretário, que voltou a encostar-se na cadeira, dando-se por vencido ao menos naquele momento. Apaziguar a ira do monarca não era uma tarefa fácil e requisitava, acima de tudo, tempo e paciência. Edgar tinha perdido as contas de quantas vezes havia intercedido em favor da princesa, na intenção de evitar ainda mais o desgaste daquela família.

Ambos permaneceram longos momentos em silêncio, cada um bastante compenetrado em suas atividades habituais. Não fazia nem um dia desde o seu retorno e o jovem Avelar já sentia saudades da calmaria e dos doces apimentados de Newreen. Inesperadamente, Allen ergueu a cabeça de sua pilha de papéis e indagou, com o olhar distante, como se divagasse em voz alta:

 — O que devemos fazer quando existe um obstáculo em nosso caminho que, não importa quantas vezes você o ultrapasse, ele sempre torna a nos importunar?

— Não faço ideia — respondeu o Duque, intimamente preocupado com a resposta. Os anos o ensinaram que nenhuma boa conclusão costumava sair da cabeça de seu companheiro quando este começava a divagar daquela maneira. — Mas tenho a ligeira impressão de que estou prestes a descobrir.

— O melhor a se fazer é eliminar o obstáculo — o monarca mencionou, não tardando para um sinistro sorriso de empolgação brotar em seus lábios. — E assim, enterramos o problema, de uma vez por todas.

Como uma criança prestes a visitar um parque pela primeira vez, a excitação de Allen era quase palpável e, depois de alguns instantes de euforia, ele retornou ao trabalho decididamente mais satisfeito do que antes. Edgar, por outro lado, o encarava com um misto de terror e apreensão. O Duque sentiu as mãos gelarem, ao passo de seu coração que pulsava freneticamente, dando-lhe a impressão de que as batidas poderiam ser ouvidas por qualquer pessoa que ali estivesse.

Eu sempre soube que Allen jamais esteve totalmente em sintonia com as suas faculdades mentais”, ele pensou enquanto tentava retornar ao trabalho, embora tenha sido obrigado a largar a pena sobre a mesa novamente, ao constatar que suas mãos tremiam. “Mas isso está ficando fora de controle”.

A mente do jovem Avelar martelava insistentemente, em busca de uma alternativa viável para as ideias insanas que pareciam tomar forma na mente do rei de Odarin. Entretanto, talvez em virtude do pânico ou da gravidade da situação, ele não conseguiu pensar em absolutamente nada.



O vento frio característico do clima de Odarin se fazia presente em todos os meses do ano, em maior ou menor intensidade a depender da estação. Durante a primavera, a brisa fresca e a temperatura amena faziam com que os habitantes se permitissem usar agasalhos mais leves. Já o sol forte os obrigava retirar os chapéus de suas velhas caixas, quase sempre alojadas no fundo dos armários.

Delia, por sua vez, jamais se incomodou em adquirir qualquer coisa que lhe protegesse os olhos da claridade excessiva. O calor trazido pela estação mais alegre do ano muito lhe agradava e não havia nenhuma razão para tentar fugir disso. Caminhando despreocupadamente pela rua, ela tornou a contar, já pela terceira vez, a quantidade de moedas de prata que havia acabado de receber. Tinha realizado a entrega de uma encomenda, que consistia em dois vestidos floridos para uma dama que habitava numa enorme casa próxima à campina. Com alguma sorte, o pagamento seria suficiente para custear a comida até o final da semana.

Já certa do quanto trazia consigo, a camponesa devolveu as moedas para dentro de um saco pequeno e surrado. Estava prestes a guardá-lo em suas vestes, para então seguir em direção ao mercado, quando fora repentinamente surpreendida por um encontrão. Naquela época o comércio costumava ficar abarrotado de transeuntes e acidentes deste tipo eram recorrentes.

— Mil perdões, senhor — a ruiva proferiu, no mesmo instante em que tentava recuperar o equilíbrio. No entanto, ao erguer o rosto, sua visão não foi das melhores. — Ah, é só você.

— “Só você?” — a voz soou incrédula, quase como se estivesse ofendida. A expressão em seu rosto, por outro lado, demonstrava um prazer incomum em poder esbarrar com aquela moça específica. — Sabe, eu esperava um tratamento melhor do que esse, principalmente depois de ajudá-la a esconder seu segredinho sujo.

— Para a sua informação, eu não tenho nenhum segredinho sujo — ela retrucou, rispidamente. Ansiosa em despistar o inconveniente rapaz que havia conhecido no Baile de Coroação, Delia estava prestes a virar as costas e seguir seu caminho, quando sentiu seu punho preso pelas mãos enluvadas dele. — O que pensa que está fazendo? Solte-me agora!

— Tem certeza disso? — Phillip questionou, sentindo-se vitorioso de vê-la cair em sua armadilha. — Então porque mentiu para a princesa, alegando não ter ido ao baile quando, na realidade, você estava lá.

— Isso não é da sua conta, agora deixe-me em paz! — a camponesa exclamou em voz baixa, visto que os mercadores começavam a lhes direcionar olhares tortos, já que o casal que interrompia a passagem dos eventuais clientes.

O altivo rapaz de cabelos negros tinha assuntos importantes para resolver, mas ele faria com que os cinco minutos de atraso que acabara de planejar valessem a pena. Enquanto a jovem tentava, da forma mais discreta possível, desvencilhar-se de sua mão, ele deu um passo à frente, estreitando a distância que os separava.

— Eu fiquei bastante intrigado com essa situação toda — Phillip sussurrou, de modo presunçoso, com um sorriso confiante bordado nos lábios. — Se você tinha o convite da princesa para participar do baile de coroação, fato este que eu pude constatar em nosso último encontro, qual a razão para ter omitido essa informação dela? Alguma coisa não se encaixa, compreende o que quero dizer?

— A única coisa que não se encaixa aqui é o seu nariz, que está se metendo onde não foi chamado!

— Você estava muito bonita naquela noite — o filho do Barão comentou, de modo casual. O súbito elogio fez com que Delia juntasse as sobrancelhas, deixando clara sua confusão naquele momento. — Com aquele vestido, ninguém ousaria dizer que você não era filha de algum fidalgo. Era uma oportunidade e tanto, do tipo que certamente não se repetirá tão cedo, permitindo que caminhe entre os nobres livremente.

— Eu não tenho nenhum interesse na nobreza, se quer saber. — A ruiva praticamente cuspiu as palavras, enquanto o encarava com certa fúria e atrevimento. — Na verdade, o que tenho são fortes motivos para acreditar que os nobres tentam a todo custo mascarar sua infelicidade com propriedades, joias e roupas de gala. Para mim, vocês são todos repugnantes e medíocres. Agora, veja se me dá licença!

Com um puxão mais brusco que os anteriores, Delia finalmente conseguiu se ver livre das mãos de Phillip. Se distanciando do local o mais rápido que pôde, a camponesa logo desapareceu no meio da multidão, transpirando irritação e desconforto.

O filho do Barão Chevalier permaneceu inerte, observando o caminho que a camponesa peculiar havia percorrido até sumir de sua vista. Seu cérebro funcionava a mil por hora, tentando imaginar as várias razões que poderiam levar alguém a se comportar de maneira tão evasiva em relação ao mundo em seu redor. Tamborilando os dedos sobre os lábios, ele formulava diversas teorias em sua mente, passando então a analisá-las minuciosamente. “Meu universo de possibilidades ainda é muito extenso”, ele pensou com um misto de curiosidade e excitação. “Nada que mais um ou dois esbarrões não resolvam”.

Com aquele objetivo em mente, ele girou sobre os calcanhares e seguiu seu caminho. Por uma mera questão de curiosidade, Phillip sacou o relógio de bolso e sorriu consigo mesmo ao constatar que haviam se passado precisos cinco minutos. Pontualidade e organização eram qualidades suas, das quais mais se orgulhava.

Para a ruiva, no entanto, não havia nenhum motivo para sorrir. Em toda sua vida, jamais conhecera ninguém tão prepotente, egoísta ou mesmo inconveniente daquela maneira. Ela bem que gostaria de saber a razão pela qual ele parecia tão interessado em sua vida simplória. “Não, para ser sincera, eu prefiro não saber. Tudo que gostaria é que ele se esquecesse da minha existência”, pensou, enquanto balançava a cabeça, afastando a imagem do rapaz de sua mente. Já estava há poucos metros da praça principal quando sentiu seu pulso ser agarrado novamente. Sua raiva, que naquela hora dava indícios de se dissipar, retornou com o dobro da intensidade de antes.

— Se você fizer isso mais uma vez, eu juro que eu vou... — Delia não teve a oportunidade de completar sua ameaça, pois as palavras morreram em sua boca. À sua frente, ao invés do presunçoso rosto de Phillip, encontrava-se Marco, com uma expressão de espanto. Imediatamente, o garoto soltou o braço da jovem e ergueu a palma de ambas as mãos, demonstrando que não pretendia lhe fazer mal algum. — Marco? Me desculpe, eu jurava que fosse outra pessoa.

— Que outra pessoa faria você agir dessa maneira? — ele questionou, sua face expondo um misto de confusão e curiosidade. Desde que conhecera a ruiva, pudera constatar que se tratava de uma pessoa doce e amável, jamais esperando dela qualquer reação grosseira, como acabara de presenciar. Foi com pesar que concluiu conhecê-la muito menos do que ousava imaginar.

— Isso não importa, de verdade. — Um suspiro cansado, os ombros caídos e lá estava novamente, a mesma expressão de infelicidade que Marco teve o desprazer de contemplar nos últimos meses. Para a camponesa, a resposta para aquela pergunta requeria uma longa conversa e diversas revelações desagradáveis, que definitivamente não valeriam o tempo investido. — De todo modo, em que posso ajudá-lo?

— Na verdade, eu que ia perguntar se poderia ajudar você em algo — o rapaz respondeu, visivelmente constrangido. Se sentia um tanto estúpido de ter aquele tipo de recaída já que, quando deixou a casa da ruiva semanas atrás, estava decidido a não tornar a procurá-la. A despeito de sua intenção, foi impossível vê-la caminhando ali e não tentar, mais uma vez, iniciar um diálogo, na esperança de que ela já tivesse retornado ao seu comportamento normal. Ledo engano.

— Ninguém pode me ajudar. Mas eu sou grata por você ter tentado, de verdade — ela reconheceu, com um sorriso amargo nos lábios. Sem mais nada para dizer, tornou-lhe as costas e seguiu em busca de terminar seus afazeres. No entanto, antes que pudesse se afastar muito, Delia voltou seu rosto em direção a ele e tentou soar minimamente empolgada desta vez. — Venha ver as crianças quando puder. Eles sentem muito a sua falta.

As palavras flutuaram soltas no ar por um instante e logo ela havia desaparecido entre a multidão novamente. Marco as ouviu com uma centelha de esperança em seu coração, que rapidamente se apagou, como a chama de uma vela gasta. Tivera o ímpeto de questionar se, intimamente, ela também sentia sua falta. No entanto, ele nada pôde proferir. “Talvez tenha sido melhor assim”, pensou enquanto tornava a caminhar distraidamente, ainda muito pensativo. “Se realmente tivesse saudades minhas, ela teria dito”, concluiu com tristeza nos olhos.

Seus esforços em tentar alcançar a parte mais profunda do coração e dos pensamentos da jovem pareciam em vão, atingindo-o direta e profundamente, enquanto retornava à passos lentos para o castelo.

 

Sentada junto a uma vidraça, Sarah recapitulava mentalmente a conversa que tivera com seu irmão naquela manhã. Já estava acostumada a ser tratada com dureza pelas outras pessoas, mas ver palavras tão ríspidas deixarem a boca da única pessoa que ela conhecia como família, proferidas com a exclusiva intenção de lhe magoar, vinha sendo algo difícil de processar.

Àquela altura, as lágrimas estavam secas sobre sua bochecha. A despeito da fome que sentia antes, ela perdeu completamente o apetite depois da desagradável conversa com Allen. Ainda tentava compreender o que poderia ter ocorrido para ocasionar mudanças tão drásticas na personalidade do rapaz. Eles tinham suas diferenças, como não poderia deixar de ser, mas o tom zeloso fora displicentemente substituído pela intolerância e pelo descaso. Nos meses que se passaram o primogênito estava cada vez mais parecido com seu pai. Embora jamais tenha dito nada, nem mesmo para sua governanta, ela odiava o tratamento debochado que recebia de Henrique quando criança. Sentia-se tão insignificante quanto uma formiga e a desagradável sensação, que parecia ter sido esquecida no passado, retornava com muito mais intensidade.

O som de passos vindos em sua direção chamou a atenção da princesa. Possivelmente viriam de alguma empregada, ou mesmo de Evangeline, que deveria estar enlouquecida atrás dela. Afinal de contas, já passava do meio dia e Sarah não havia desjejuado ou sequer trocado suas vestes de dormir. Tornando o rosto em direção ao corredor, a jovem teve suas expectativas frustradas, ao passo que não poderia ter ficado mais surpresa com a figura que surgiu no ambiente em que estava.

— Ora ora, de volta ao lar tão cedo? — a voz presunçosa invadiu o ambiente, revelando a figura da odiosa Charlotte. — Por que a pressa? Não acha que teria sido muito melhor passar mais dias desfrutando das belezas naturais de Newreen? Digo isso porque, bem, ninguém estava sentindo sua falta mesmo.

— O que eu faço ou deixo de fazer definitivamente não é da sua conta! —Sarah exclamou, em meio ao espanto de encontrar sua maior inimizade ali, bem diante de seus olhos. — Você é que já deveria estar em Hallbridge, onde é o seu lugar.

— Para sua informação, o meu lugar é onde eu quiser que ele seja — a ruiva respondeu, de modo desafiador. Muitos a consideravam indelicada em suas respostas, o que era absolutamente proposital. Não havia muitas pessoas a quem Charlotte tivesse interesse em agradar. — Além do mais, eu apenas cumpro ordens. Se o rei ordena que eu fique, que seja feita a sua vontade.

— Allen jamais ordenaria algo desse tipo. Não existe nenhuma razão que justifique sua presença aqui — a princesa retrucou, mas nem mesmo ela estava certa de suas palavras. Dado os últimos acontecimentos, não havia como precisar o tipo de coisa que poderia ou não vir de seu irmão.

— Eu não teria tanta certeza se fosse você — pontuou a única dama pertencente à Família Avelar. Com um sorriso triunfante, ela afastou-se do ambiente em que Sarah estava enquanto proferia, em alto e bom tom: — Nem mesmo sua querida Beatrice, nossa respeitável rainha, se opôs a isso. Sugiro apenas que faça o mesmo.

Sarah se espantou em ouvir tal coisa. Conhecia a natureza diplomática de Beatrice, mas mesmo assim era difícil de acreditar ela que não tivesse se oposto à presença de Charlotte ali. Aquilo não parecia lhe fazer o menor sentido. “De nada adiantará tentar discutir isso com essa ruiva odiosa”, ela pensou com certo desgosto, só de imaginar a ideia. “Mas talvez a própria Beatrice possa me esclarecer isso”.

Decidida, ela afastou-se da vidraça e seguiu em direção aos aposentos reais, que não ficavam muito distantes dali. Já estava no mesmo corredor quando observou Evangeline sair nervosamente de dentro do cômodo.

— Aí está você, ao menos isto! — a governanta exclamou, caminhando rapidamente em direção a princesa, apalpando-lhe os ombros apenas para ter certeza de que não se tratava de um sonho. — Graças a Deus você está bem, eu não poderia suportar dois desaparecimentos de uma vez só.

— O que quer dizer com dois desaparecimentos? — Sarah questionou, de imediato, sentindo o coração acelerar à medida que sua ansiedade crescia. Colocando-se na ponta dos pés, ela espiou a porta do quarto aberta atrás da figura esguia de Evangeline. Não havia ninguém no interior do cômodo. — Onde está Beatrice?

— Eu bem que gostaria de saber — pontuou a senhora, visivelmente apreensiva.



Dentre os muito compartimentos e cômodos que havia no castelo de Odarin, três deles eram reservados a luxuosas capelas, repletas de imagens, velas parcialmente queimadas e crucifixos,  destinadas aos monarcas e demais membros da Família Real que quisessem ter um momento íntimo para a prática dos atos religiosos. No entanto, desde a coroação de Henrique e a redução drástica do número de pessoas residindo ali, tais ambientes passaram a ser pouco utilizados. Praticamente esquecidos pelos atuais moradores, salvo as visitas excepcionais e furtivas de um ou outro servente, suas portas permaneciam fechadas, como se escondessem ali alguma espécie de tesouro.

Foi justamente em busca dessa preciosidade que Beatrice abandonou a segurança e o conforto de seus aposentos. A jovem rainha sofreu para conseguir arrastar a pesada porta de madeira talhada, dado o estado crítico de suas mãos. Uma brecha foi mais do que suficiente para que seu corpo emagrecido invadisse o ambiente sagrado. Por um instante, ela observou a riqueza de detalhes presentes em cada uma das esculturas contidas ali. No entanto, seus olhos rapidamente seguiram de encontro ao chão. Ela não deveria olhar para nenhuma daquelas imagens, pois definitivamente não era digna para tanto.

Ajoelhando-se de modo sôfrego diante do pequeno e meramente representativo altar, ela encolheu-se até que sua testa encostasse no piso de madeira. As mãos enfaixadas ardiam como se tivessem novamente sido colocadas em contato com as chamas, indicando-lhe que já passava da hora de aplicar-lhes a medicação devida. Fechando os olhos com força, ela tentou ignorar a dor enquanto formulava a melhor maneira de dizer aquilo.

Eu sei que não deveria estar aqui. Tenho consciência de que cometi um pecado terrível e que não estou em condições de rogar por nenhum tipo de graça”, ela pensou com firmeza, desejando do fundo do coração que a voz de sua mente pudesse ser ouvida por alguma daquelas imagens santas. Sentia-se cada vez mais pequena diante os olhares fixos e julgadores daquelas esculturas sobre as suas costas. No entanto, não poderia voltar atrás. “Compreendo as condições de minha punição e a aceito como devida. Mas existe algo de que muito necessito e somente a intervenção divina é capaz de me ajudar”.

Àquela altura, tanto os seus joelhos como sua testa protestavam pela pressão que ela empregava neles. Beatrice se sentia tão pesada, como se carregasse uma legítima cruz sob suas costas. O mero pensamento fez com que quisesse estapear a si mesma. Logo ela, uma indigna pecadora, se comparando com à imagem de um salvador. Suspirando fundo, tornou em se concentrar naquilo que havia se disposto a fazer, ela pensou com o mesmo fervor de antes: “Eu imploro, por tudo que há de mais sagrado nesta terra, para que eu não esteja grávida”.


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