The Queen's Path escrita por Diamond


Capítulo 24
Capítulo XXIV - 27 de Março de 1872




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A brisa fresca invadiu o cômodo principal sem qualquer cerimônia, arrastando consigo folhas soltas de papel e balançando as cortinas de maneira bucólica. Em seguida, um passarinho pousou sobre a janela e delongou-se em uma cantoria repetitiva, que fora responsável por despertar Sarah de seu sono. Ela vasculhou o quarto com os olhos, mas não encontrou qualquer sinal de Edgar. A jovem surpreendeu-se ao descobrir que seu consorte levantava cedo todos os dias, independentemente de ter ou não obrigações a cumprir. Aquele hábito fazia com que a princesa despertasse pelas manhãs sempre desacompanhada, o que não a incomodava nenhum pouco. Ela ainda não havia se acostumado a trocar suas vestes diante de outra pessoa que não fosse Evangeline. Agora, ao recordar-se de sua governanta, a jovem sentiu-se obrigada a reconhecer mentalmente de que ela tinha razão em relação ao clima de sua casa de campo.

Newreen era uma cidade bastante pequena, localizada na divisa de Odarin com o reino de Greenwall, cuja proximidade acabou por influenciar o vilarejo. Diferentemente da capital, Newreen era tomada pela vegetação verde, tinha temperaturas mais amenas e a presença constante do Sol, o que permitia um vestuário mais livre aos seus habitantes. As casas possuíam uma arquitetura muito distinta, em que quase todas contavam com sebes e coretos. A comida ser notadamente mais picante, sendo a confeitaria a especialidade local, voltada principalmente para a produção de geléias e doces. De um modo geral, o local parecia ter sido retirado de um quadro ou um belíssimo livro de gravuras e Sarah se questionava se não poderia passar o resto de sua vida ali, degustando dos prazeres do campo, longe de todos os problemas inerentes a realeza.

Espreguiçando-se enquanto bocejava, ela fitou o relógio rosado disposto na parede, constatando que já passava das nove horas da manhã. Estava prestes a chamar alguma empregada para lhe preparar um banho quente quando seus ouvidos captaram um som diferente, ainda que muito agradável de se ouvir.

— Música? Aqui? — ela se questionou em voz alta enquanto saltava da cama, tão intrigada com aquelas notas animadas que esqueceu-se até mesmo de calçar seus sapatos.

Saindo de seu quarto ainda em suas vestes de dormir, Sarah seguiu a melodia que parecia preencher o interior da casa de campo com uma espécie de vida nova. Do corredor do segundo andar ela pôde visualizar Edgar sentado diante de um piano, permitindo que seus dedos corressem sobre as teclas de modo quase que instintivo, formando a música emotiva e envolvente.

A jovem observou-o a distância por alguns minutos com um misto de surpresa e curiosidade. Quando ainda residia em Hallbridge, ela costumava ver as pessoas comentarem como Edgar tinha um talento especial para o piano e que, caso praticasse, poderia chegar a fazer muito sucesso em todo o continente. Por diversas vezes ela pediu que rapaz tocasse algo no piano, no intuito de avaliar de perto a dimensão do talento que todos pareciam conhecer, menos ela. No entanto, para sua infelicidade, seus pedidos eram denegados reiteradamente. O jovem Avelar desculpava-se com pesar nos olhos, justificando que o ato lhe trazia à tona diversas memórias ruins, o que não era exatamente verdade. As memórias eram as melhores possíveis, mas relembrar que sua companhia artística já não estava mais lá e que muito provavelmente jamais retornaria lhe causava certa angústia no peito, fazendo-o errar diversas notas seguidas. Ele estava convicto de que seu talento havia desaparecido junto de Anya.

Me pergunto o motivo que o fez voltar a tocar justamente agora”, ela pensou enquanto descia as escadas lentamente na tentativa de evitar qualquer ruído que pudesse atrapalhar a melodia. Aproximando-se, Sarah sentou ao lado de seu consorte no sentido oposto com a maior delicadeza que conseguiu empregar. Edgar havia percebido sua aproximação, mas nada disse. Estava demasiadamente concentrado nas teclas pretas e brancas, assim como as notas que emanavam de cada uma delas. A última nota soou leve e se arrastou por alguns segundos, antes de finalmente se dissipar no ar. Seus olhos amendoados se ergueram e ele encarou a princesa com certa expectativa enquanto apoiava ambas as mãos na banqueta.

— Então, o que achou? — ele questionou de modo ansioso. Estava bastante enferrujado, era impossível negar, mas havia algo além da prática naquela melodia suave. Muito de sua alma contida nela.

— Foi muito bonito. — ela respondeu em voz baixa, de modo que só pudera ser ouvida dada a proximidade dos dois. — Me faz pensar a razão de você ter abandonado essa prática. Vocês claramente foram feitos um para o outro.

— Tudo começou muito cedo, acho que eu não estava pronto naquela época. — Edgar respondeu enquanto desviava do olhar da menina ao seu lado, passando a encarar as teclas cheias de significados novamente. Por um instante Sarah se questionou se ele estava falando do piano ou de sua antiga noiva.

— E agora você está? — ela perguntou com uma nota extra de curiosidade em sua voz.

— Não. — o Duque riu discretamente com a imediatez de sua resposta e logo tratou de morder os lábios de modo a evitar um sorriso que insistia em surgir com a mera perspectiva de dias melhores. — Talvez eu nunca esteja. Mas não quero que essa incerteza me impeça de viver.

Sarah não pode conter um sorriso alegre com aquela resposta. Novamente, ela não tinha certeza se seu consorte se referia ao instrumento ou a Anya, o que não fazia muita diferença no final das contas. Sua forma de enxergar a vida havia mudado de maneira expressiva e ela se sentia genuinamente feliz por ele. O tormento de Edgar sempre a comoveu e ver que aquele casamento forçado não lhes havia causado somente sofrimento lhe servia de consolo.

Um som abafado pôde ser ouvido por ambos e Sarah esticou o pescoço para a esquerda no intuito de ver do que se tratava. Vinha diretamente do corredor que separava a sala de estar da cozinha. Aparentemente a passagem estava vazia, mas duas sombras esguias no chão denunciavam a presença das empregadas detrás da parede. A princesa juntou as sobrancelhas ao tentar imaginar a razão para um ato vulgar como aquele. Se Evangeline visse algo do tipo, certamente teria um de seus acessos de fúria.

— Não tinha reparado antes? — Edgar questionou com um meio sorriso zombeteiro no rosto. A expressão de Sarah deixava evidente sua ignorância completa acerca daquele fato. — Elas estão fazendo isso desde que chegamos. Quer uma prova disso?

Inclinando-se levemente para o lado, o Duque depositou um beijo singelo na bochecha da jovem, deixando-a embaraçada com o gesto gratuito. No entanto, ela logo compreendeu a intenção por trás daquela inesperada carícia. Novas risadas abafadas surgiram do corredor e era possível ver a sombras convulsionando animadamente enquanto riam como crianças travessas.

— Isso é simplesmente inacreditável. — Sarah comentou com certo espanto, sem saber ao certo como deveria se comportar diante daquela situação. Não era muito agradável saber que estava sendo vigiada como se fizesse parte de algum livro de romance. Ao mesmo tempo, não achava que se tratasse de uma atitude tão reprovável ao ponto de repreender a dupla de empregadas. Tornando o rosto para o jovem Avelar, ela capturou o exato momento em que ele tentava disfarçar um sorriso infantil. — Você está se divertindo com isso, não está?

— É claro que não, que tipo de pessoa você julga que eu sou? — Edgar respondeu de modo sério, tentando soar ofendido com aquela imputação, mas bastou um olhar prolongado da princesa para que ele tornasse a rir novamente. — Certo, talvez um pouco.

Sarah não teve outra opção senão rir também. “Eu achava que quando nos casássemos nossa amizade acabaria perdendo toda a espontaneidade de antes, mas vejo que me enganei”, ela pensou ao constatar que cumplicidade entre eles permanecia inalterada, trazendo-lhe uma boa dose de alívio. Seria demais ter de lidar com a perda do amor de Elliot e da amizade de Edgar ao mesmo tempo.

Elliot. Quantas vezes havia flagrado a si mesma pensando nele na última semana? Ela não saberia precisar. A companhia do mais recente Duque de Odarin sempre era agradável, mas ela estaria mentindo se dissesse que não sentia falta das longas cavalgadas, das conversas compartilhadas em seu balanço ou mesmo dos beijos que ele costumava distribuir em seu pescoço de maneira possessiva. Até mesmo as brigas e as mãos ásperas entravam no rol de suas lembranças saudosas. Infelizmente, agora era o sentimento de perda acompanhava cada uma daquelas memórias. Aquela realidade já não lhe pertencia mais.

— Que acha de uma caminhada ao longo do rio hoje pela manhã? — o jovem Avelar sugeriu logo que percebeu um ar sombrio tomar conta de sua companhia. A mera menção de sair ao ar livre pareceu animar um pouco a princesa. — Vá tomar um banho e trocar suas vestes, eu a esperarei aqui.

Sarah recebeu um sorriso afetuoso e tentou retribuí-lo na medida que as tristes lembranças de seu tratador de cavalos favorito permitiam. “O que ele estará fazendo agora?”, ela pensou enquanto deixava a sala de estar para trás e seguia de volta para seu cômodo.



A chegada da primavera coincidia com o aquecimento do comércio, sendo responsável por encher as vias de transeuntes e caixotes recheados de mercadorias. Há algumas semanas um rumor circulava entre os pedestres e sua confirmação dias depois trouxe uma empolgação ímpar nos negociantes do reino.  A mera prospecção de ter os portos de Hallbridge abertos e livres de impostos os fazia sorrirem largamente enquanto esfregavam as mãos de modo ganancioso.

— Quando terminarem de levar os baús da loja para o pátio podem começar a trabalhar nas caixas que estão nos fundos. — gritou o mercador enquanto se afastava de sua própria loja, rumando em direção ao centro para resolver outras pendências.

Os dois rapazes assentiram e continuaram a trabalhar sem descanso. Elliot não retornou ao castelo desde o dia do casamento e aproveitou o furor da primavera para afundar-se em trabalho. Ele tinha a esperança de que quanto mais suas mãos estivessem ocupadas, menos tempo sua mente teria para pensar em Sarah. Foi com pesar que ele descobriu que conseguia trabalhar enquanto remoía os últimos acontecimentos em sua vida. Não tardou muito para que a tristeza de perdê-la fosse transformada em revolta por não ter tido seus sentimentos levados em conta em momento algum. Apesar de relutar em aceitar aquilo, sentia como se tudo que viveram não tivesse para Sarah o peso que havia para ele.

— Você imaginou que isso poderia acontecer algum dia? — Marco questionou com certa empolgação, despertando-o de seus devaneios aborrecidos. — Quero dizer, o verão ainda está longe de começar e olhe quantas propostas de emprego já recebemos. Jamais imaginei que a abertura dos portos de Hallbridge fosse ser tão benéfica para Odarin.

O tratador de cavalos lhe dirigiu um olhar mortal. Era inacreditável que seu melhor amigo estivesse vendo alguma vantagem naquela situação.

— Vamos Elliot, encare os fatos: Sarah fez o que poucos governantes fariam e optou por aquilo que julgou ser o melhor para a população. Não que ela tenha tido muitas opções, é claro. Quero dizer, ela teria de se casar com alguém em algum momento.

— Você está enganado. — ele respondeu com a voz banhada em rispidez e mal humor. — Nós que não temos sequer onde cair mortos é que não dispomos de quaisquer escolhas. Sarah faz parte da realeza, ela tem todas as alternativas que desejar e optou por uma na qual eu não estou incluso.

— Você repete isso todas as manhãs para se convencer de que é verdade? — o rapaz questionou com a sobrancelhas erguidas, visivelmente surpreso com aquela resposta severa. — Porque esse é o maior absurdo que eu já ouvi na minha vida.

— Você fecha os próprios ouvidos na hora de falar? — o tratador respondeu de modo irritadiço enquanto caminhava para os fundos da loja, numa vã tentativa de ver-se livre de seu companheiro irritante e seus comentários inconvenientes.

Marco se limitou a grunhir para si mesmo enquanto revirava os olhos. Ele possivelmente tinha o amigo mais inflexível de todo o reino e tentar convencê-lo a mudar de ideia acerca de qualquer assunto era um trabalho que exigia tempo e paciência. Muita paciência. Ele não se recordava de Jacques ser tão teimoso e irredutível daquela maneira, ao passo que aquele tipo de atitude era bastante característica do velho Earnshaw. “Eu sempre achei que o sangue se sobrepunha a convivência, mas parece que me enganei”, pensou o moreno enquanto caminhava em direção aos fundos da loja.

— Você deveria aproveitar que Sarah está viajando para visitar seu pai. — o garoto arriscou um assunto novo, dessa vez visivelmente mais sério e menos alegre.

— Caso não saiba, Jacques pode tomar conta de si mesmo muito bem. — Elliot respondeu sem tornar o rosto para ele, concentrado em erguer um caixote e apoiá-lo sobre seu ombro.  — Além do mais, ele gosta de passar longos períodos sozinho e eu respeito isso, diferentemente de você que age como uma mosca irritante.

— Não se trata disso, Elliot. — Marco respondeu enquanto o encarava com seriedade. Momentos como aquele eram raros e o tratador achou que talvez devesse lhe conceder um instante de sua atenção. — Seu pai não tem mais trinta anos de idade. Você deveria aproveitar a companhia dele enquanto pode. Estou certo de que não preciso lhe lembrar o que aconteceu com o velho Earnshaw.

A mera prospecção de perder seu pai de modo tão súbito quanto perdera o antigo mentor lhe trouxe um pânico imediato. Seu amigo nada mais disse, deixando à sós com sua consciência para decidir aquilo que julgasse ser o certo. No entanto, Elliot não se sentia nenhum pouco habilitado naquele momento para fazer qualquer julgamento de valor minimamente sensato.



Newreen era uma cidade repleta de poços e fontes, todas abastecidas pelas águas límpidas do principal rio que cortava o continente. Sua nascente encontrava-se no extremo norte do reino de Mivre de onde seguia para o sul, serpenteando até chegar as vastas planícies de Greenwall. Lá, o rio curvava-se discretamente para o oeste e passava pela montanhosa Odarin, até finalmente desaguar no mar que banhava as praias de Hallbridge.

Depois de uma caminhada uma hora, o Duque optou por repousar debaixo de um salgueiro centenário, que retorcia seus galhos cheios de folhas sobre o espelho d’água. Ambos estavam em silêncio e contemplativos, cada um perdido em seus próprios pensamentos enquanto mergulhavam na sensação de paz que parecia reger o local. O único som audível no ambiente vinha da água que viajava rapidamente em direção ao sul e dos poucos pássaros que se aproximavam alegremente do local. Sarah julgou em algum momento ter visto uma lebre saltitante, mas quando piscou o pequeno roedor já não podia mais ser localizado.

— Será que conseguimos dar um jeito de ficar aqui para sempre? — Edgar rompeu o silêncio com seu genuíno questionamento, enquanto tentava absorver para a si a calmaria que emanava daquele local. — Essa é a vida que pedi a Deus.

— Eu adoraria, mas suponho que este seja um sonho de difícil execução. — a princesa respondeu com calma, tornando o rosto para sua companhia. — A essa altura Allen deve estar enlouquecido com tantos papéis para assinar sem a sua ajuda.

— Não quero nem imaginar. — o jovem Avelar cobriu o rosto, tentando afastar a todo custo a imagem do Gabinete Real abarrotado de papéis e cartas, todos pendentes de leitura. Naquele momento, a último coisa em que ele gostaria de pensar era em seu trabalho tedioso e massante.

O silêncio novamente instaurou-se entre eles. Sarah encarava os nós dos próprios dedos de modo pensativo. Era difícil aproveitar aquela viagem como gostaria, uma vez que seu pensamento retornava a todo instante para os estábulos do castelo. Quantos bons momentos não foram vivenciados naquele lugar? Quantas risadas e confidências não tiveram como palco o ambiente fechado e cheio de baias? Era impossível retomar aquelas lembranças e não se questionar se algum dia ela tornaria a ser feliz como um dia fora. Se ao menos Allen não a tivesse arrastado para dentro de seu jogo político…

A imagem de seu irmão, que até pouco tempo atrás ela dedicava uma devoção quase religiosa, agora não passava de um borrão indefinido. Há alguns meses ela já não era mais capaz de reconhecer o último integrante de sua família. A pessoa bondosa e compreensiva parecia ter se perdido em algum ponto de sua jornada e tudo que restou não passava de resquícios de austeridade e ambição. Aquilo lhe magoava de uma forma que ela não imaginava ser possível. Onde estava a pessoa carinhosa que sempre esteve disposta a lhe proteger? Sarah gostaria de obter a resposta para aquela pergunta, mas nenhuma justificativa lhe parecia plausível o suficiente.

Ela compreendia a necessidade de cuidar de seu povo, sendo este inclusive um dos maiores anseios de sua vida. No entanto, Allen fora categórico em dizer que a plebe estava muito distante na sua lista de prioridades. E então, do dia para a noite, ele surge com uma proposta de casamento no intuito de gerar mais emprego para os aldeões e garantir-lhes uma vida mais digna. Os discursos eram muito distintos e não pareciam fazer qualquer sentido. “As sequência dos fatos não se encaixa de modo algum… Existe algo muito errado nisso tudo e eu faria tudo para descobrir o que é”, ela pensou de modo tristonho.

— Ainda não consigo acreditar no último discurso de Allen. — ela confessou subitamente e a frase solta cumpriu com seu papel de capturar a atenção de Edgar, que a encarava com curiosidade. — Este casamento. Tudo aconteceu tão rápido. Posso estar enganada, mas tudo me dá a impressão de que ele está tentando esconder algo de mim.

O jovem Avelar a encarou por uns instantes, ponderando sua resposta. Ele conhecia Allen há muitos anos e estava ciente de que o monarca estava longe de ostentar as melhores qualidades, apesar de ser obrigado a admitir de que o rapaz era demasiadamente inteligente e perspicaz. No entanto, a princesa estava certa. Algo não se encaixava e Edgar já havia percebido isso desde que iniciou seu trabalhos como Secretário Real.

O reino sempre fora demasiadamente próspero quando levado em conta a pequena área geográfica que o comportava, além do clima rigoroso e pouco propício para plantações. Após a parcial ruptura dos tratados entre Greenwall e Odarin, instaurou-se no local uma pequena crise econômica, é verdade, mas que poderia ser facilmente contornada em poucos anos. No entanto, as dívidas pareciam se multiplicar a cada dia e ele custava a acreditar que o agravamento da situação se dera exclusivamente em função da restauração do castelo. As contas não fechavam não importava quantas vezes as refizesse e por mais que fossem confidentes em muitas coisas, o rei não parecia nenhum pouco inclinado a compartilhar com ele o destino de todo o dinheiro arrecadado que parecia desaparecer entre seus dedos.

Apesar de cada uma dessas conclusões serem muito verdadeiras, ele jamais poderia compartilhá-las  com a princesa. Todas aquelas questões econômicas estavam muito além do seu nível de compreensão e de sua competência para agir. O melhor a fazer era fingir ignorância, ao menos enquanto não tivesse nada concreto em mãos.

— Certamente Allen fez o que julgou ser o melhor para você e para o reino. — ele respondeu após alguns minutos de introspecção e sentiu vontade de rir debochadamente de suas próprias palavras. — Além disso, o que mais você pretendia? Ficar sozinha para o resto da vida?

— Acontece que eu não estava sozinha. — Sarah respondeu com melancolia, enquanto deitava-se ao pé do salgueiro, encarando o fluxo das águas.

A resposta dela atingiu-o como um tapa forte e ele sentiu como se tivesse acabado de acordar de um sonho muito fantasioso. Todo esse tempo achando que a infelicidade da jovem se devia ao baque do casamento arranjado às pressas, quando na verdade a menina sofria por ter sido obrigada a abandonar alguém a quem ela genuinamente amava na ilusão de estar cuidando de seu povo. “Meus parabéns Edgar, você conseguiu fazer tudo errado novamente”, ele pensou vergonha de si mesmo. “Eu deveria ter me oposto ao casamento dela e não ter me oferecido para tomar o lugar de Gilbert. Se eu ao menos soubesse disto antes…”.

Sentindo-se culpado e ao mesmo tempo responsável pelo atual sofrimento de Sarah, ele escorregou pelo local onde estava sentado e deitou-se ao lado da princesa, seus ombros estando apenas a um palmo de distância. Ele agarrou uma das pequeninas mãos da garota, segurando-a com força.

— Me desculpe… — ele sussurrou enquanto a encarava com uma visível expressão de dor, a qual ela não compreendeu.

— Pelo quê? — Sarah sussurrou de volta, incrédula quanto ao que poderia ter ocasionado tamanho pesar ao seu consorte.

— Pela minha impulsividade. — ele respondeu de modo direto e mesmo que aquela assertiva não explicasse muito, ele não parecia inclinado a fornecer maiores justificativas.

Aceitando em silêncio aquele pedido de desculpas misterioso, a princesa ocupou-se em empregar uma carícia na mão de Edgar com o polegar de sua mão. Gostaria de poder dizer algo que fosse capaz de melhorar o ânimo de ambos, mas nada lhe veio a mente. Na falta de uma opção melhor, ela fechou os olhos e esperou que o tempo se encarregasse de curar aquelas feridas.



Beatrice olhava de um lado para o outro diante de sua penteadeira, verificando se nenhum de seus cachos saltava para fora do penteado. Uma série de batidas leves na porta fez com que ela se sobressaltasse, bastante temerosa. De modo involuntário, ela abraçou-se com ambas as mãos como se tentasse se proteger de algo, ao passo que seu coração batia rapidamente contra o próprio peito. “Acalme-se Beatrice… Allen jamais bate na porta antes de entrar. Certamente deve ser uma empregada”, ela pensou consigo mesma mentalmente ao menos três vezes enquanto respirava profundamente, concedendo permissão para que o interveniente pudesse entrar.

A porta se abriu lentamente, revelando Evangeline em suas usuais vestes em um tom violeta escuro. Requisitando permissão para entrar, a governanta caminhou em direção a jovem rainha com passos decididos.

— Disseram-me na cozinha que você não desceu para desjejuar. Aconteceu alguma coisa? — Evangeline questionou com um ar fechado, visivelmente preocupada com o bem estar de sua senhora.

— Eu estava descendo nesse instante. — Beatrice retrucou de modo ameno, aliviada de ver não se tratava de seu consorte.

— Um pouco tarde para desjejuar, não? — a governanta questionou enquanto espiava as horas em seu relógio de bolso, sem se dar por vencida com aquela resposta evasiva. Conhecia bem a rotina na atual rainha e sabia que ela levantava-se sempre muito cedo. Algo não parecia certo e ela podia farejar isso no ar.

— Estava cansada e isso me fez levantar mais tarde que o habitual. — a jovem rainha respondeu com delicadeza, desejando que Evangeline não lhe questionasse a razão para que ela estivesse tão cansada, ao ponto de pular uma refeição. Definitivamente, ela não gostaria de relembrar as cenas da noite anterior, já lhe bastava que a dor se fizesse bastante presente naquela manhã. — Talvez seja melhor esperar pelo almoço, não é mesmo? Neste caso, tomarei uma xícara de chá com biscoitos. Enquanto isso, gostaria que me fizesse um favor.

Beatrice requisitou-lhe uma tarefa doméstica qualquer, a qual nem mesmo conseguia recordar-se qual era após alguns minutos. Desconfiada do pedido, mas sem subsídios para denegar a tarefa, Evangeline acatou com um aceno e partiu para cumprir aquilo que lhe fora ordenado. A rainha aproveitou a oportunidade e seguiu em direção a sala de jantar. Ela apreciava bastante a companhia da governanta de Sarah, porém não se sentia confortável para responder nenhuma daquelas perguntas. Não sentia a menor necessidade em ter que compartilhar seus dramas pessoais.

Uma pequena brecha na porta fora aberta, apenas o suficiente para que ela se esgueirasse para dentro do ambiente. O corpo esguio não teve nenhuma dificuldade de passar pela fenda, o que lhe alertou para o fato de que cada dia estava se alimentando menos. Por vezes ela sequer sentia necessidade de colocar seu espartilho, fazendo-o apenas para sustentar o hábito.

No exato momento em que ergueu os olhos em direção a larga mesa, quando buscava por uma empregada a quem pudesse requisitar um chá, todo seu corpo se imobilizou e ela parou de caminhar subitamente, como se tivesse batido o rosto em uma parede imaginária, ainda que muito sólida. Aquilo só podia ser um pesadelo e ela sentiu seu corpo todo estremecer com a imagem que havia diante de si.

— O que você está fazendo aqui? — Beatrice questionou com a voz trêmula, visivelmente surpresa com a presença da ruiva em sua sala de refeições. Assim como seu irmão mais novo, ela deveria estar a quilômetros de distância há vários dias. Não se recordava de ter cruzado com ela em nenhum momento até então. “Pensando bem, eu mal pus os pés fora de meu quarto nos últimos dias”, a jovem pensou com certo desespero estampado em seus olhos.

— Tomando café da manhã, não está vendo? — Charlotte respondeu com uma paz inigualável, enquanto bebericava de seu chá.

— O casamento foi há uma semana atrás. — a loira mencionou cheia de incertezas, tentando ser o mais delicada possível. Ela bem sabia que Charlotte tinha meios para garantir que qualquer palavra inadvertidamente proferida tivesse a punição devida. — Achei que já tivesse retornado para Hallbridge junto de Gilbert.

— Para ser sincera, estou pensando em ficar. Gosto daqui, o castelo é espaçoso, não tem aquele ar de museu velho graças a restauração e tem exatamente tudo que preciso. — a ruiva respondeu com um sorriso vitorioso estampado nos lábios carnudos.

— Ficar aqui?! — a jovem rainha exaltou-se por um segundo, mas logo se arrependeu. Havia uma ameaça visível no brilho presente nos olhos de Charlotte. Retrucar contra qualquer decisão sua era arriscado demais.

— Surpresa?  Não deveria, afinal de contas, não há muito que você possa fazer para me impedir. — a provocação veio acompanhada de uma risada estridente, fazendo com que a loira fechasse ainda mais a expressão. Charlotte ergueu-se de seu assento e passou a encarar a senhora daquele castelo na mesma altura. — Como sou muito generosa, lhe darei um bom conselho: silenciosamente e sem alarde, como qualquer coisa que você faz, sugiro que parta deste castelo. Não faz nenhum sentido permanecer aqui, vivendo uma grande mentira, principalmente agora que perdeu completamente seu espaço para mim.  Volte para o reino dos seus pais ou simplesmente tente a vida no campo, mas trate de desaparecer. Ninguém sequer perceberá sua falta, isso eu lhe garanto.

A jovem rainha deixou seu queixo cair por um instante com aquela palavras. Era demorou alguns instantes para assimilar tudo e quando finalmente pareceu compreender a dimensão daquelas palavras, a ruiva já se encontrava do outro lado do salão, caminhando para longe sem demonstrar nenhuma hesitação. No entanto, antes de cruzar as portas que dividiam a sala de jantar dos demais cômodos do castelo, ela tornou o rosto na direção de Beatrice.

— Ah, eu quase me esqueci. Uma carta de Gilbert chegou nesta manhã. Ela não estava endereçada a ninguém e os empregados acreditavam que seria para mim. Imagine a minha surpresa ao abri-la e descobrir que na verdade era para você. — o sorriso provocante alargou-se ainda mais assim que ela se recordou dos detalhes sórdidos contidos na correspondência. — Não seu preocupe, eu pedi que deixassem a carta no seu quarto. Sou mesmo um amor de pessoa, não concorda?

— Não é possível… — a loira murmurou aquelas palavras, visivelmente perturbada com a informação que havia acabado de receber. — Como você pôde fazer isso?

— Do que está falando? — o questionamento deixou transparecer uma falsa ignorância acerca das consequências óbvias advindas daquele ato. — Querida, você não tem com o que se preocupar. Afinal de contas, estamos todos em família.

Uma nova risada estridente, desta vez mais alta que a anterior ecoou por todo o salão, até se afastar com os mesmos passos decididos de antes. Beatrice estava em choque e, apesar disso, seus pés movimentaram-se o mais rápido que ela conseguia em direção ao seu dormitório. Ela não gostaria sequer de imaginar o que aconteceria consigo se Allen tomasse conhecimento do conteúdo daquela carta.

Esquecendo-se completamente de seu desjejum, ela correu de volta para seu quarto, tão quanto seu corpo dolorido permitia. A distância lhe pareceu infinitamente maior que o normal e quando finalmente alcançou a porta, adentrou-a sem qualquer cerimônia. Suas coisas pareciam estar exatamente no local onde ela havia deixado. Não havia nada na cama, muito menos em sua cabeceira. No entanto, sentado na banqueta de sua penteadeira, Allen parecia distraído em ler uma carta aberta. Ao perceber a presença de Beatrice, o papel escorreu por seus dedos e flutuou no ar por um instante antes de atingir o chão.

— Achava que você não era tão esperta assim, mas confesso que estou surpreso. — sua voz fez-se presente enquanto aproximava-se a passos lentos. Um par de olhos selvagens estavam fixos em sua presa, que estava trêmula e paralisada pelo medo. — Entre uma gama de possibilidades, você optou justamente pelo membro de uma família com a qual tenho dívidas de gratidão. Escolheu alguém que está além do meu alcance, alguém a quem não posso punir. Admito, foi muito sagaz da sua parte.

— Você está enganado, eu não pensei em nenhuma dessas coisas. — ela se defendeu em um sussurro, receosa de que a escolha errada das palavras pudesse piorar ainda mais sua situação. — Eu juro.

— Ah, não? E em que estava pensando, Beatrice? — ele questionou com a voz ainda calma, dando a falsa ideia de que aquele seria um diálogo pacífico. Subitamente, a mão direita que repousava ao lado de seu corpo capturou o pescoço da jovem rainha e toda sua força era canalizada no intuito de comprimir a passagem de ar. — Que poderia fazer o que bem entendesse, sem ter de se preocupar com as consequências de seus atos? Acho que esqueceu-se de que não está mais vivendo na sua antiga redoma de vidro em Mivre.

— Eu não consigo… respirar. — ela engasgou-se com aquelas palavras, enquanto suas mãos frágeis tentavam agarrá-lo pelo braço, no intuito de se ver livre daquela agressão. Em pouco tempo ela sentiu suas forças se esvairem e a vista ficar turva. Já estava quase desmaiando quando sentiu o indescritível alívio de ter os pulmões alimentados por oxigênio novamente.

Antes que ela pudesse recobrar completamente os sentidos e reaver o controle sobre o próprio corpo, a jovem foi empurrada com violência e suas costas foram recebidas pelo extenso colchão de sua cama. Em questão de segundos ela pôde sentir um considerável peso sobre si, impedindo-a de afastar-se dali e a sensação de alívio rapidamente se transformou terror. Beatrice jamais se habituaria aquele ato tão selvagem e desprovido de sentimentos, ainda que tivesse de reconhecer que a prática estava se tornando rotineira.

Em instantes seu vestido se transformou em retalhos irregulares. A medida que o tecido era arremessado para o lado de fora da cama era como se fragmentos de sua dignidade fossem arrancados juntos, escapando contra sua vontade por seus poros. Ela suava frio em função do terror que tomava de conta de seus pensamentos, fazendo com que cobrisse os olhos com um dos braços, enquanto mordia as costas da outra mão de modo a disfarçar os inevitáveis gritos de dor. Resistir era inútil. Depois de tentar escapar do ato tantas vezes nos últimos anos, já não lhe restava mais forças físicas ou psicológicas. Se tinha uma única certeza era de que quanto menos ela se movesse, mais rápido aquela tortura acabaria e ela poderia descansar em paz.

Paz. A palavra quase lhe fazia rir, a despeito da situação em que se encontrava. O conceito de “paz” lhe soava tão distante e utópico, era quase um conto de fadas: muito bonito no papel, mas inexistente na prática. Em um lampejo de memória ela se recordou dos acontecimentos do dia do casamento de Sarah. A noite com Gilbert terminou de modo mágico e pelas mãos do rapaz ela conheceu sensações inéditas, que pareciam lhe encher a alma enquanto relaxava todos os músculos simultaneamente. Sem dúvidas, algo bom demais para ser traduzido em palavras. Mas paz? Aquela a qual tanto almejava? Não, estava tudo muito distante daquele conceito amplamente difundido.

Seus pensamentos foram interrompidos um gemido baixo, fazendo-a fechar os olhos com força, aguardando alguma represália que não veio. Certamente Allen não havia escutado, pois ele detestava ouvir a voz de Beatrice. Desde a primeira noite do casal lhe fora imposta a regra do silêncio absoluto, a qual a jovem fazia um esforço desumano para acatar. O descumprimento resultava numa punição severa a qual ela estava disposta a evitar a todo custo, ainda que tenha sido traída por seus próprios lábios algumas vezes.

— É de se admirar que você não seja capaz de perceber a dimensão de sua própria fraqueza. — Allen mencionou em um sussurro ameaçador. Por mais que mantivesse seus olhos fechados, tentando inutilmente afastar-se daquele ato, a jovem ouvia atentamente cada uma de sua palavras. Em seguida, ela se sentiu invadida por uma onda de dor mais gritante e expressiva que as demais, fazendo com que uma lágrima escorresse silenciosamente por seu rosto. Um suspiro de satisfação e uma risada baixa escaparam da boca do monarca e ecoaram pelo quarto. — Francamente, Beatrice, você é patética.

Mordendo o músculo interno de sua mão, ela tentou distanciar seus pensamentos daquele quarto mais uma vez. Ela flagrou o momento em que sua mente vagava novamente sobre o conceito de paz. “Me pergunto se algum dia chegarei a conhecê-la”.


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