The Queen's Path escrita por Diamond


Capítulo 12
Capítulo XII - 25 de Abril de 1871




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Sarah abaixou sua cabeça por uns instantes, repousando a testa sobre a mão direita enquanto suspirava fundo. Ao seu lado, uma pilha de cartas crescia paulatinamente com o passar do dia, o que não queria dizer que sua tarefa estivesse sequer próxima do fim. Com a aproximação do dia da coroação, cabia a ela redigir um convite para cada nobre de cada um dos quatro reinos que compunham aquele continente. Ao chegar na quinquagésima carta-convite, ela concedeu a si mesma alguns muitos de descanso, os quais ela usufruía naquele momento. Para sua sorte, Evangeline encontrava-se no castelo de Odarin, fiscalizando cada preparativo para o retorno da Família Miglidori, de modo que a sala de estar encontrava-se no mais absoluto silêncio, o que fez a princesa cochilar sobre a mesa de carvalho.

Após um tempo indeterminado ela despertou diante do som de papel se rasgando. Erguendo o rosto ela vislumbrou Phillip, filho mais novo da Baronesa Chevalier, sentado em uma poltrona no mesmo ambiente, rasgando um pequeno embrulho de papel amarronzado, revelando um grosseiro livro de capa escura.

— Perdoe-me, Bela Adormecida, não era minha intenção acordá-la de seu sono de beleza. — ele caçoou sem sequer dirigir-lhe os olhos, ainda compenetrado em rasgar a embalagem que o separava de sua mais nova aquisição literária.

— Engraçadinho. — ela respondeu enquanto bocejava, levando a mão até a testa, tendo certeza de que havia uma grande marca vermelha lá, o que serviria de combustível para mais piadinhas vindas de Phillip. — Você não se cansa de ler nunca?

— Não mesmo. — ele respondeu de imediato, finalmente libertando seu livro do papel que o cobria. Seus olhos brilhavam só de encarar o título e Sarah não pôde deixar de achar fofa, quase infantil, a reação do caçula daquela família. — Além do mais, estava procurando esse exemplar há anos, é muito raro e tive que pagar uma nota alta para adquiri-lo.

— Do que se trata? — a princesa perguntou. Embora não estivesse muito interessada, qualquer coisa parecia melhor que voltar a escrever aqueles convites odiosos.

— “Fundamentos da Monarquia Absolutista”. — o rapaz leu o título em voz alta, arrancando uma risadinha debochada em resposta. — Do que você está rindo?

— Esse parece ser o livro mais chato da face da Terra! Eu jamais leria algo assim. — ela respondeu ainda em meio a risada.

Phillip não se deu ao trabalho de responder, já estava habituado ao desprezo por seu objeto de estudo constante. Ignorando as risadinhas da jovem, ele abriu o livro e iniciou sua leitura em silêncio. Logo a animação de Sarah se esvaiu e ela o observou por alguns instantes. Estava longe de ser simpático como Edgar ou divertido como Elliot. Não fazia questão de participar dos encontros do pai ou de agradar as visitas da mãe. Sua personalidade era bastante introspecta, passando boa parte dos dias em silêncio, acompanhado de seus livros aonde quer que fosse. Nas poucas vezes em que dirigia a palavra à princesa era para fazer-lhe alguma gracinha, mas nunca forçando-a a um diálogo.  Seu modo discreto e autêntico acabou por cativar a amizade da jovem, que considerava sua companhia infinitamente mais tolerável que de seus irmãos mais velhos.

Somente quando o relógio soou, indicando o início da tarde é que Sarah recordou-se de seu compromisso. Recolhendo os papéis de carta não utilizados e os convites prontos, ela praticamente correu até seu quarto para guardá-los, retornando logo em seguida.

— Se a Baronesa perguntar por mim, você não me viu o dia inteiro. — ela comentou ao passar ao lado da poltrona em que Phillip estava.

— O que te faz acreditar que sou mais fiel à você que a minha própria genitora? — ele questionou sem erguer os olhos dos livros. Quando percebeu de relance que a princesa o encarava com um olhar de súplica, ele bordou um meio sorriso debochado. — Pode ir, seu segredo está à salvo comigo.

Satisfeita com aquela resposta, Sarah deixou a morada da Família Chevalier em direção à casa de sua mais nova amiga. A residência de Delia não era muito distante dali, o que a fez optar pela caminhada ao ar livre ao invés de recorrer à luxuosa carruagem que estava sempre à sua disposição. O tempo fez com que se acostumasse a andar pelas ruas agitadas do centro de Odarin. Também já não tinha mais receio de qualquer retaliação, embora ainda tivesse bastante cautela em revelar à qual família pertencia.

Sentindo a brisa fresca bater em seu rosto, enquanto pedia licença para passar no meio da multidão, Sarah sentia-se momentaneamente distante da realidade sufocante da realeza. Ela gostava da sensação de liberdade, da ausência de pressões sociais e julgamentos hipócritas. “Olhe para mim, estou até parecendo o Edgar com esses pensamentos libertários”, ela pensou em meio a um riso discreto. Ao longe, ela já podia avistar uma simpática casa pintada de tijolos vermelhos e telhado esverdeado, exatamente como Delia havia descrito.

Já estava bem próxima da porta de entrada quando escutou alguém chamando-lhe pelo nome. De imediato, ela fechou os olhos e torceu o rosto em uma careta, reconhecendo a voz no mesmo instante. Aquilo só poderia ser uma brincadeira do destino, daquelas de péssimo gosto. Ao virar o rosto, sua expressão havia mudado completamente, já assumindo sua “personalidade socialmente aceita”.

— Que bons ventos a trazem aqui, minha cara Florence? — ela questionou em meio a um sorriso tenro, porém obviamente falso.

— Eu que lhe pergunto, Alteza. — a baronesa lhe respondeu do mesmo modo afetado de sempre. — O que a trouxe até aqui, ainda por cima desacompanhada?

— Nada demais. Conheci uma moça que confecciona vestidos de baile, então decidi ver alguns já que o dia da coroação está tão próximo. — Sarah comentou com certa pressa, pois não via a hora de ver-se livre daquela mulher insuportável.

— Ah, é mesmo? Eu adoro comprar vestidos de baile! Irei lhe acompanhar pois, como sabe, tenho um gosto muitíssimo refinado para peças de qualidade. — a baronesa comentou, em uma animação ímpar, já se dirigindo até a porta da casa de Delia, batendo nela com insistência.

Sarah nada pôde fazer a não ser soltar um suspiro cansado, sequer acreditando na situação em que havia se metido. Logo após responder um desanimado “Será um prazer”, a porta foi aberta, revelando a camponesa ruiva muito sorridente ao recepcioná-las.

Primeiramente, ela estranhou um pouco o fato de sua amiga estar acompanhada de uma senhora desconhecida, mas só de reparar no modo caricato que a Baronesa Chevalier agia e falava, ela logo a reconheceu dos relatos da princesa. Guiando-as até a sala de estar, Delia serviu-lhes chá com biscoitos de laranja antes de trazer as peças que havia prometido.

A princesa se deslumbrava mais a cada vestido que lhe era mostrado. A jovem camponesa, apesar de humilde, tinha um senso estético único e cada peça parecia uma obra de arte aos seus olhos. A Baronesa já não partilhava das impressões de sua hóspede, todas as vestimentas lhe pareciam demasiadamente simplórias, sem o brilho exagerado e as pedrarias pesadas que tomavam de conta de seu guarda roupa.

— Acho que vou ficar com este, Delia. É simplesmente perfeito! — Sarah comentou enquanto admirava um vestido num tom de azul bastante profundo, com um tule brilhante no mesmo tom cobrindo a saia de verniz.

— Tem certeza disso, Alteza? — Florence questionou enquanto torcia o nariz para o vestido escolhido. — Ele não me parece estar à altura de uma pessoa da sua hierarquia. Não acha que seria adequado algo mais semelhante aos meus vestidos? Conheço uma costureira com mais… experiência que poderá lhe mostrar algo mais adequado.

Dito isto, as duas jovens se entreolharam de modo significativo e a vontade de rir foi imediata, mas ambas se contiveram naquele momento. As roupas da baronesa eram sempre chamativas demais, beirando sempre o exagero e o ridículo.

— Eu fiz esse vestido que está usando. — Delia comentou com simplicidade, enquanto bebericava de seu chá, dirigindo um olhar curioso para a senhora à sua frente.

No mesmo instante, a baronesa enrubesceu, demasiadamente constrangida com seu comentário. Após uma tentativa falha de apresentar uma justificativa plausível, ela mencionou algum compromisso imediato para o qual estava atrasada. Despedindo-se com rapidez, Florence Chevalier desapareceu da casa da ruiva do mesmo modo repentino como havia surgido. Logo que a porta se fechou, as duas jovens caíram na gargalhada, como duas crianças travessas.

— É verdade o que você disse? Confeccionou mesmo aquele vestido? — Sarah questionou em meio a uma risada, quase engasgando com seu próprio chá no processo.

— É claro que não! Eu não poderia criar algo tão feio mesmo que passasse semanas tentando. — Delia respondeu rindo de modo infantil. — Apenas gostaria de ver a cara que ela iria fazer.

Logo a graça da situação passou e elas puderam conversar com a intimidade de antes. Haviam se encontrado diversas vezes e a cada uma delas Sarah gostava mais de sua nova amizade. Ainda se questionava como era possível que fossem tão parecidas, em temperamento, em gostos.

Silenciando por um breve momento, ela passou a reparar no interior da morada. A casa era simples, porém espaçosa e muito limpa. O térreo era composto pela sala de estar, cozinha e um quarto que servia como o estoque dos materiais de trabalho da ruiva. Já o segundo andar comportava dois quartos, um provavelmente destinado à dona da casa e outro para as crianças. Ela conseguia ouvir a vozinha baixa deles, mas até aquele momento nenhum dos três havia descido, provavelmente para não incomodá-las.

— Você tem uma casa linda… Desculpe-me a pergunta, mas como conseguiu um imóvel deste porte?

— Eu cuidava desta para um senhor idoso que morava sozinho. Ele era meio rabugento, mas ainda assim uma boa pessoa. Precisava de alguém para cuidar dele durante a velhice e assim o fiz. — ela comentou com certa nostalgia. — Acabou falecendo há um ano de pneumonia. Não tinha esposa ou filhos e seus irmãos moram em uma cidade em Mivre, muito distante daqui. Nenhum apareceu para reclamar os bens, então acabei ficando aqui mesmo.

— E de onde veio a ideia de adotar tantas crianças? Eles devem dar um trabalho terrível. — Sarah comentou, bastante admirada com a história que ouvia. “Que senhor mais benevolente”, ela pensou enquanto beliscava dos biscoitos servidos na pequena mesa de centro.

— Eu não suportava vê-los passando necessidade, sem poder contar com ninguém. E nem dão tanto trabalho assim, eles são tão prestativos que às vezes parece que eles que me adotaram, e não o contrário. — ela comentou enquanto partilhava de uma risadinha com a princesa. — Sabe Sarah, a minha mãe costuma dizer que todo o bem que empregamos no mundo retorna para nós em algum momento. É um mantra que repito para mim mesma todos os dias e até então tem funcionado muito bem.

— Muito sábias essas palavras da sua mãe. — a princesa comentou, levemente invejosa daquela situação. Que sábias palavras Katherine teria lhe dito se tivessem tido a oportunidade de se conhecerem? — Mas se sua família ainda vive por que está aqui e não junto deles?

— Aconteceram muitas coisas que mudaram completamente o rumo das nossas vidas. Pelo bem deles, tive de me afastar. Estarão seguros enquanto eu estiver aqui. — a ruiva comentou com pesar nos olhos, fazendo a princesa se arrepender da pergunta que havia feito.

— Onde quer que estejam, estou certa de que estão orgulhosos da pessoa que você é. — Sarah comentou, enquanto colocava a mão sobre a de Delia, tentando encorajá-la e amenizar o efeito de sua pergunta infeliz. Recebeu um sorriso em resposta ao incentivo e logo partiram para o assunto seguinte.

Inesperadamente, a porta de um dos quartos do segundo andar se chocou contra a parede com força, assustando as duas jovens que se encontravam no piso inferior. Bastou um rápido olhar para vislumbrar três crianças (dois meninos e uma menina) de diferentes idades descendo as escadas de modo ligeiro, enquanto gritavam de animação.

— Mas o que foi que deu em vocês? — Delia questionou sem entender o que se passava. Não era comum vê-los exaltados daquela maneira e ela gostaria de saber a razão de toda aquela agitação.

— Eles estão aqui, eles estão aqui! — comentou o mais velho, dirigindo-se até a porta, saindo em direção à rua com uma velocidade inigualável.

— E os cavalos também vieram, vamos lá fora ver! — apontou o garoto do meio, correndo logo atrás do mais velho enquanto segurava a aba de seus óculos para que o mesmo não viesse ao chão.

Uma menina pequena e franzina, com cachos ruivos muito volumosos sobre a cabeça surgiu entre as duas jovens. Ela segurava um coelho de pelúcia nos braços e com a mão livre, ela passou a puxar a costureira para fora de casa em silêncio, mas não menos agitada que os demais.

— Já sei, você quer ir lá fora recepcioná-los também, mas está com vergonha de ir sozinha, não é mesmo? Vamos, eu te acompanho. — Delia comentou em tom compreensivo, tomando a pequena nos braços logo que se levantou de sua poltrona. — Perdoe-me pela interrupção, eles ficam incontroláveis quando os rapazes chegam.

— Por favor, não se preocupe com isso. — a princesa abanou a mão indicando não estar incomodada com aquela situação. — Eu já fui criança um dia, era exatamente como eles. Agitada, impaciente e incontrolável também.

— Eu era igual a eles também. Engraçado, não? — a ruiva comentou enquanto se dirigia para fora de casa. — Eu volto num instante.

Sarah permaneceu sentada no sofá de visitas, admirando o vestido que havia adquirido. Ocupou-se em dobrá-lo com a maior delicadeza que conseguiu empregar, guardando-o dentro de uma caixa que usaria para transportar a peça até a casa dos Chevalier. Enquanto o fazia, ela escutava risadas alegres e gritinhos eufóricos, muito provavelmente vindo das crianças. Levemente curiosa, ela levantou-se de onde estava e seguiu até a janela para ver o que se passava.

Do lado de fora, ela reconheceu os dois rapazes de imediato.  Tratava-se de ninguém menos que Elliot e Marco. Mas não era o fato de ver os dois brincando com as crianças que a espantava. Ao ver Delia entregar a pequena menina nos braços de Elliot foi que ela percebeu como era desatenta. No dia do acidente do poço, era ela quem andava ao lado dele. “Serei burra a esse ponto?”, ela se perguntou enquanto observava os dois conversando animadamente, com uma intimidade ímpar.

Julgando já ter visto o suficiente, Sarah apanhou a caixa com seu vestido de baile e rumou em direção a porta, pronta para voltar para casa. Ao sair, optou por passar entre o pequeno espaço que havia entre Delia e Elliot, afastando-os no processo. No fundo de seu coração ela se sentiu mal em fazer aquilo, estava agindo tal qual a odiosa Charlotte, mas no calor do momento não houve espaço para delicadezas.

— Obrigada pelo vestido Delia, mas tenho de ir agora. — ela comentou com pressa, sem sequer olhar para trás ou esperar para ouvir a resposta.

— Oh, tudo bem. Nos vemos depois. — a ruiva comentou sem compreender aquela atitude repentina.

Elliot estranhou o comportamento de Sarah, que sequer o cumprimentou ou dirigiu-lhe o olhar. Ainda arriscou perguntar o que havia ido fazer ali, mas a princesa não se incomodou em responder, seguindo pela rua à passos largos, no intuito de deixar aquele ambiente o mais rápido possível. O que ela não esperava era que o rapaz fosse seguí-la diante da ausência de resposta.

— Espere aí, aonde pensa que vai com essa pressa toda? Não vai falar comigo? — ele questionou após alcançá-la em poucos segundos. Tentou segurar-lhe o braço como no dia em que se reencontraram, porém Sarah o sacudiu com força, afastando-o rapidamente.

— Agora sei porque você não quer voltar ao castelo. — ela respondeu de modo irritado. Não sabia explicar ao certo de onde vinha aquele sentimento amargo. Sua mente borbulhava com pensamentos nada agradáveis e ela se encontrava prestes a perder o controle de suas palavras.

— Do que é que você está falando? — Elliot retrucou, sem entender o motivo daquele tratamento áspero. — Você sabe a razão pela qual eu não quero ir.

— Bobagem! Não use a morte de outras pessoas para justificar as suas escolhas erradas. — ela exclamou já sem escrúpulos em seu tom de voz. A acusação fez o rosto do rapaz fechar-se de imediato, não gostando do rumo que aquela conversa estava tomando. — Vá, volte para eles, devem precisar de você mais do que eu.

— Se quer saber eles precisam mesmo. — incapaz de ouvir aqueles disparates em silêncio, ele respondeu com a mesma aspereza com a qual havia sido recepcionado. Não era de escutar desaforos, independentemente de quem viessem. Seu rosto tornou-se vermelho de irritação e o ímpeto de responder à altura era mais forte que qualquer senso de educação. — Você não têm nem ideia do que significa dormir dias seguidos com frio e com fome. Faz a sua vida de princesinha parecer algo terrível, mas desconhece o que é sofrimento de verdade!

— Agora o sofrimento alheio é minha culpa também? — ela argumentou de modo retórico, os olhos já marejados tamanha era sua raiva e frustração naquele momento. — Escute aqui, a minha intenção era de ajudar, você que resolveu complicar as coisas quando se recusou a voltar para o castelo. Agora faça o que bem entender, fique com seus trabalhos esporádicos, um punhado de órfãos e sua costureira ruiva se isso o faz tão feliz!

— As pessoas não existem exclusivamente para satisfazer seus caprichos! — Elliot praticamente cuspiu as palavras, mas Sarah já não o escutava mais.

Incapaz de segurar as lágrimas frustradas, ela apenas tornou o rosto e correu de volta à casa dos Chevalier. Naquele momento tudo que desejava era que não aparecesse mais ninguém em seu caminho até enterrar o rosto nos lençóis de sua cama. Apenas queria afogar suas mágoas em silêncio, sem perturbações ou julgamentos.

Nem mesmo Elliot sabia o que havia acontecido ali. A discussão iniciou-se antes mesmo dele entender a razão daquelas acusações e pessoalmente ele se sentia magoado com aquele nível de indiferença. Ele sentiu o coração apertado novamente, enquanto a sensação de angústia tomava conta dele enquanto a via se afastar a passos largos.

Suspirando com profundidade e cansaço, ele vislumbrou Marco logo atrás de si,  balançando a cabeça de modo negativo além de portar uma expressão reprovatória.

— Não faça essa cara, foi ela que começou. — Elliot alertou, ainda com a expressão fechada.

— Pouco importa quem começou. Aliás, por que vocês estavam discutindo mesmo? — Marco questionou enquanto aproximava-se do amigo, que estava visivelmente abatido por conta da confusão.

— Não faço a menor ideia. Sarah começou a falar umas coisas sem sentido, disse que eu estava usando a morte de Earnshaw como desculpa para não retornar ao castelo. — ele revirou os olhos enquanto comentava. A hipótese parecia ridícula, não era uma desculpa e sim uma razão real. Ele sentia-se muito culpado todas as vezes em que olhava para aquela lápide.

— Mas isso é verdade. Não existe nenhuma razão que o impeça de voltar a não ser o seu medo bobo. — Marco respondeu, recebendo um olhar pesado de seu interlocutor.  No entanto, já não ligava mais para aquele tipo de represália. — Você fez tudo que estava ao seu alcance, só resta aceitar que o tempo do velho Earnshaw já havia acabado. Precisa aceitar as coisas como elas são.

— De todas as pessoas do mundo, você é a última de quem eu gostaria de ouvir conselhos. — Elliot respondeu de modo emburrado. Seu amigo não se incomodava com aquele tratamento. Após passar toda a sua infância e adolescência ao lado do rabugento tratador de cavalos, o filho do jardineiro acabou incorporando alguns trejeitos do velho.

— Anda, vamos voltar. Delia foi preparar o jantar das crianças. Se tivermos sorte, poderemos raspar o fundo da panela com uma colher. — Marco comentou de modo animado enquanto passava o braço sobre os ombros do amigo, dando-lhe diversos tapinhas nas costas de modo encorajador.



Apoiando a testa sobre a mesa, Elliot suspirou profundamente pela milésima vez naquela noite. As crianças já haviam jantado e Marco havia se encarregado de colocá-las na cama. Apesar de saber que ele gostaria de ficar em silêncio para colocar os pensamentos em ordem, Delia já estava se sentindo agoniada com aquele silêncio mórbido, seguido por suspiros cansados. Tomando um prato fundo em mãos, ela o preencheu até a borda com uma sopa de tomate e colocou à frente do rapaz frustrado.

Ele ergueu o rosto ao sentir o cheiro da sopa quente diante de si. Não estava com fome, a discussão havia detonado seu apetite, mas ele entendeu o significado daquele gesto. Delia não queria intrometer-se em seus problemas, então aquela era a sua maneira de mostrar que estava ali, apoiando-o. Ainda pensou em declinar a refeição, mas logo recordou como um prato de comida era algo precioso numa casa com tantas crianças em fase de crescimento e mesmo sem muita vontade, ele apanhou uma colher e pôs-se a comer.

— Tente não pensar nisso agora. Tenho certeza de que as coisas vão se resolver em breve. — ela comentou enquanto tirava o avental que estava preso em sua cintura. — Eu vou falar com ela, tudo bem? Mas agora preciso terminar um vestido. Coma tudo, não deixe nada no prato.

Ainda em silêncio, Elliot apenas assentiu a cabeça positivamente, sem ânimo algum para rebater o que quer que fosse. Seu peito continuava apertado e se havia algo que ele detestava era a sensação de angústia. Nunca entendia como o sentimento se instalava sobre ele em momentos aleatórios, tudo que sabia é que era algo que demorava muito a abandoná-lo.

Deixando à sós na cozinha, a ruiva seguiu até outro cômodo do andar térreo, apenas para pegar seus utensílios de trabalho. Colocando a caixa de costura debaixo do braço, Delia dirigiu-se até a escadaria e sentou-se no meio dos degraus, entre um andar e outro. Abrindo um tecido amarelado sobre os joelhos, ela passou a costurar a barra com atenção e delicadeza. Aquele pedaço de pano disforme logo serviria como saia para um elegante vestido.

No segundo andar, a porta do quarto das crianças foi fechada com calma por Marco, de modo que os pequenos não viessem mais a acordar. Desceu alguns degraus e sentou-se ao lado da ruiva, em silêncio. Sendo a escadaria estreita, o braço esquerdo do rapaz roçou levemente no braço direito dela, chamando-lhe a atenção.

— Você tem um quarto enorme para trabalhar nessas peças e mesmo assim sempre vem costurar na escada. Por que faz isso? — ele questionou com a voz baixa dada a hora avançada, enquanto apoiava os cotovelos sobre os joelhos flexionados.

— Não sei explicar, eu gosto de costurar aqui. Acho que, por ser um espaço mais apertado, eu me sinto mais confortável. É mais quentinho também. — ela comentou em meio a uma risada tímida, sem tirar os olhos do caminho elaborado pela linha sobre o tecido.

— Você acha o clima de Odarin péssimo, não é? — Marco questionou enquanto observava os movimentos precisos da moça sobre o tecido caro e refinado. Por mais que estivessem sentados debaixo de uma lamparina à óleo, ele não conseguia sequer enxergar a linha numa escuridão daquelas. Não imaginava como a outra fazia para costurar naquelas condições.

— Eu não diria péssimo. — ela respondeu, pendendo a cabeça para a esquerda enquanto analisava a barra que vinha alinhavando. — Mas se comparado à minha terra natal, onde temos verão quase o ano todo, é bem frio realmente. Eu sinto falta do calor às vezes.

Com o braço que estava próximo à ela, Marco contornou suas costas, trazendo-a para perto. A ideia original resumia-se a partilhar de seu calor corporal enquanto ela trabalhava noite adentro, mas após receber um olhar de soslaio bastante significativo da ruiva, seria impossível restringir-se àquilo. Levando a mão livre até a bochecha rosada de sua companheira, enquanto ela tornava o rosto ligeiramente na direção dele, não levou mais que alguns segundos até que os lábios dos dois se encontrassem em uma tenra demonstração de afeto.

Desde a primeira vez que a vira no meio do mercado tocando flauta para os transeuntes, ele sabia que tratava-se de um caminho sem volta. Mesmo sem ter grandes ganhos com o seu trabalho, ele fazia questão de agraciá-la com uma moeda e um sorriso largo sempre que se encontravam. Como não podia parar no meio de uma melodia, ela praticamente lhe sorria com os olhos em forma de agradecimento. Demorou meses até que tivesse coragem de fazer algo mais que atirar moedas de bronze e ainda assim só após uma longa insistência da parte de Elliot. Ele seria eternamente grato ao amigo por aquilo, pois sem seu incentivo (que consistia em ameaças de espancamento caso não tomasse uma atitude em breve), ele jamais teria conhecido a mulher que preenchia sua vida com cores e sentimentos que até então lhe era desconhecido.

Apesar de reconhecer a infantilidade contida naquilo, por vezes ele sentia-se enciumado diante da amizade entre Delia e Elliot. Não que ele duvidasse do amigo, era apenas uma reação natural. Seu próprio modo de combater aquele incômodo era troçar dos dois, insinuando que um poderia estar apaixonado pelo outro. Geralmente tais brincadeiras eram acompanhadas de retaliações físicas por parte dos dois, o que  costumava afastar quaisquer dúvidas que pudessem pairar sobre o seu coração.

Finda a carícia, Delia abaixou levemente os olhos, encostando a testa no ombro do rapaz moreno. Eles dificilmente conseguiam se ver por conta dos diversos ofícios que ocupavam o tempo de cada um e, quando o improvável ocorria, quase sempre havia três crianças pequenas cheias de energia praticamente implorando por atenção. Em razão disto, momentos como aquele eram raros mesmo que já estivessem naquele relacionamento há um ano. Apesar da saudade, principalmente por parte de Marco, nenhum dos dois se incomodava com aquilo. Haveria muito tempo pela frente para que pudessem desfrutar da companhia um do outro.

— Já está bem tarde, você deveria ir descansar. — ele comentou quase num sussurro.

— Eu bem que gostaria, mas preciso terminar essa encomenda até o final da semana. — ela respondeu em um tom de voz igualmente baixo, enquanto bocejava levemente.

Marco então passou a acariciar os fios acobreados e mesmo contra sua vontade, Delia fechou os olhos por um breve momento, aconchegando-se melhor naquele apertado espaço, sentindo todo o cansaço fazer efeito. Em questão de segundos, ela já não ouvia mais nada, além de ressonar baixinho apoiada no ombro de sua companhia.

Pouco depois Elliot finalmente terminou de comer, saindo da cozinha em direção à sala, onde ele pretendia dormir naquela noite. Estava tarde demais para voltar para casa e como Jacques já não estava mais lá, era prudente retornar somente quando o dia amanhecesse. Assim que saiu de um cômodo para o outro, ele vislumbrou Delia já adormecida na escada, ainda recebendo carícias suaves em seu cabelo.

— Ela vai matar você amanhã de manhã. — ele comentou em um sussurro, aproximando-se dos dois. — Sabe que ela precisar trabalhar de noite para conseguir atender a todos os pedidos.

— Também sei que as únicas noites em que ela dorme por um período razoável são aquelas em que estamos aqui. — Marco respondeu, entregando o tecido amarelo, juntamente da caixa de costura para o amigo.

Já livre de quaisquer objetos, ele passou a mão livre por debaixo dos joelhos da jovem, erguendo-a com certa dificuldade, que só piorou ao ter que subir o restante da escada com Delia nos braços. Elliot riu fracamente da cena ao recordar do trabalho que o amigo havia lhe dado até finalmente reunir coragem para falar com ela.

Ele se questionava se algum dia haveria uma pessoa em sua vida para partilhar das dificuldades do dia a dia, bem como as pequenas alegrias da rotina. A imagem de Sarah brotou em sua mente como um lampejo, o que o intrigou profundamente. Afinal, o que uma coisa teria em relação à outra?


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