The Queen's Path escrita por Diamond


Capítulo 1
Capítulo I - 03 de Maio de 1863




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O dia começava cedo para a maior parte dos moradores de Odarin. Tinham o costume de levantar-se logo após o nascer do sol, certificando-se de que conseguiriam terminar todos seus afazeres antes de vê-lo partir novamente. Para os serventes da Família Real, a realidade ocorria de modo distinto. Um grupo de empregados começavam suas atividades bem antes do amanhecer, com uma longa caminhada através do bosque que separava o seu pequeno vilarejo do castelo.

Era imperioso que toda a parte térrea do castelo estivesse limpa e devidamente arrumada antes do despertar de seus habitantes. O desjejum, servido numa extensa mesa de dez lugares, deveria ser posto à mesa quando  o Rei estivesse descendo as escadas. Já habituados àquela rotina, o trabalho era realizado em perfeita sincronia, garantindo o conforto do monarca que ali habitava.

Os serviçais pouco tinham do que se queixar, e por mais que a vida fosse dura e exaustiva, tratava-se de um preço pequeno a ser pago pela paz há pouco conquistada. Meio século havia se passado desde o último conflito armado em Odarin. Seu soberano, Henrique Miglidori, tinha uma personalidade naturalmente severa, mas tal característica não era suficiente para ofuscar suas virtudes. Como era comum entre as realezas de todo o mundo, poucos governantes colocam as necessidades de seu povo à frente dos interesses egoístas da nobreza, nem que isso custasse a paz de toda uma nação. Ele, por sua vez, não se curvava diante de determinadas exigências e, ainda assim, conseguia contornar seus problemas sem causar maiores prejuízos a si mesmo, aos seus planos políticos e nem aos demais habitantes daquela terra de geografia montanhosa e de clima frio.

O lustroso relógio de corda disposto no salão marcava nove horas e cinquenta minutos. Solitário à mesa, o monarca apreciava sua refeição num silêncio sepulcral. Allen fora mandado a Hallbridge para terminar seus estudos,  enquanto Sarah raramente se dignava a descer para o desjejum num horário razoável. Por sorte, já estava habituado àquela sensação de vazio. Nos momentos de quietude, ele se permitia alguns minutos de introspecção e, por um breve momento, fitou a cadeira situada à sua esquerda, antes ocupada por Katherine. Costumava se perguntar se sentia saudades de sua antiga consorte, já falecida há dez anos. Sempre que o fazia, suas memórias retornavam lentamente, recordando-se de sua risada infantil, o cabelo sedoso com fios ondulados e negros como a noite, a pele alva apesar do tempo que desperdiçava exposta ao sol, o olhar sedutor e ao mesmo tempo misterioso… à medida que divagava sobre tais aspectos, sua expressão até então impassível se deformava até transparecer o desgosto que lhe aflorava ao peito. “Ela não me faz falta alguma. Foi até melhor que tenha partido”, concluiu. 

Findo seu desjejum, Henrique seguiu na direção do enorme salão utilizado para as reuniões oficiais com os nobres que compunham seu Conselho. Compostos em sua maioria por proprietários de terras vastas, influência política inestimável e servos numerosos, estava ciente de que todos encontravam-se à sua espera. De igual modo, tinha consciência de que aquele seria um debate longo e desgastante, tal como os demais.

A saída de seu senhor, permitiu que um pequeno grupo de serventes recolhesse os utensílios já utilizados, trocando-os por novos. Uma das moças responsáveis pela cozinha aproximou-se de Evangeline, que estava a dar corda no relógio. Dentre todas as pessoas serviam a Família Real, aquela distinta senhora ocupava o mais alto cargo possível. A governanta gerenciava todas as necessidades daquela morada, mas seu verdadeiro desafio residia no trabalho de transformar Sarah Miglidori numa autêntica dama. E a pequena princesa, com não mais que dez anos de idade, fazia o possível para tornar sua tarefa um martírio, ainda que sem intenção. A menina comportava-se exatamente como qualquer outra criança de sua idade, lhe custando compreender que seu título de nobreza restringia sua liberdade de modo vertiginoso. Muitas infantilidades não lhe eram permitidas, sob pena de ter suas maneiras interpretadas como rudes, ou mesmo vulgares.

— Senhorita Evangeline — Maria se aproximou timidamente. — Podemos recolher a mesa do desjejum?

— Ainda não consegui arrancar Sarah de suas cobertas. Peço que se limite a renovar os pratos e talheres.

Esboçando uma ligeira reverência, a criada se apressou em juntar-se aos demais empregados. A governanta, por sua vez, dirigia-se ao lance de escadas que conduzia ao quarto da infanta com rapidez. As horas avançavam rapidamente, e a pequena ainda não dera sinais de estar viva. Chegando ao segundo andar, buscou a segunda porta à esquerda, mas por mais que chamasse, não obtinha resposta alguma. Sem outras opções, Evangeline adentrou no cômodo e abriu as cortinas com brusquidão, permitindo que toda a claridade da primavera invadisse o ambiente, conseguindo assim um protesto da parte de Sarah.

— Já passa da hora do desjejum, e você continua dormindo — a governanta arguiu, enquanto buscava uma vestimenta adequada no enorme armário ali situado.

— Está frio demais para sair da cama — ela resmungou, escondendo-se debaixo das grossas cobertas.

— Está usando a desculpa da estação errada — pontuou a mais velha, já bastante habituada àquelas desculpas estapafúrdias. — Estamos na primavera.

— Ah! — A garota forçou a memória, no intuito de se lembrar que escusa utilizava quando não desejava sair da cama nos dias de primavera. — O jardim está cheio de abelhas e o desabrochar das flores deixam meu nariz irritado. Não posso sair da cama.

Sua fala esdruxula não passava de uma mentira sem fundamento. A menina nutria um verdadeiro fascínio não só pelo jardim, mas também pelo pequeno bosque que se estendia à leste do castelo. O mesmo poderia ser dito do pomar e dos estábulos, sendo este último seu favorito. Na realidade, qualquer ambiente que pudesse preencher-lhe os dias e a distraísse de suas tarefas diárias parecia um bom lugar para se estar em detrimento da antiga biblioteca. Para sua infelicidade, Evangeline tinha muito mais vigor do que aparentava, não desistindo tão facilmente.

— Muito engraçado. Agora levante-se.

Com aquela afirmação, a governanta puxou-lhe as cobertas para longe, passando a dobrá-las com destreza e agilidade, uma consequência natural de sua personalidade ansiosa. A pequena direcionou-lhe um olhar reprovador antes de se levantar para trocar de roupa. Propositalmente, levou alguns minutos a mais que o normal, deixando evidente sua falta de disposição ao pensar na quantidade infindável de tarefas entediantes que foram preparadas para aquele dia nada especial.

Ambas desceram para a sala de jantar, onde a mesa encontrava-se novamente impecável. Sentaram-se ao mesmo tempo, e ainda que Evangeline já tivesse realizado sua refeição matinal, serviu-se de uma xícara de chá, apenas para que a mais nova não tivesse que comer sozinha.

— Quando terminar, vamos até a biblioteca. Precisa treinar sua caligrafia.

— Ainda não entendo porque tenho que ter aulas de caligrafia. Desde que se entenda o que está escrito, não faz diferença se minha letra é bonita ou não — ela retrucou, enquanto degustava de um fruto fresco, produzido ali mesmo nas dependências de sua morada.

— Eis o problema, minha cara. Seus cadernos são absolutamente indecifráveis.

A princesa permitiu que um resmungo baixo escapasse de seus lábios, limitando-se a comer em silêncio. Muito antes do que gostaria, encontravam-se na biblioteca, ocasião em que Evangeline perambulava de um lado ao outro com um envelhecido dicionário em mãos, buscando palavras aleatórias para que a menina não só as transcrevesse, mas indicasse seu significado correspondente. Por vezes, a menina dispersava-se de seu exercício e encarava a janela com um olhar saudosista. Por trás daquelas proteções de vidro, o jardim se estendia até onde a vista alcançava e as possibilidades de diversão eram incontáveis. Tinham flores das mais variadas espécies, cores e aromas que cumpriam com o papel de roubar sua atenção, tornando ainda mais evidente como seu exercício de caligrafia era entediante e demorado.

Precisava pensar num modo de escapar dali, e até tinha algo em mente, porém precisaria de muita agilidade para que funcionasse. Caso contrário, Evangeline dobraria não só a lição, mas também suas desconfianças com qualquer artimanha que pudesse empregar.

— Evangeline, estou com tanta sede. Me faria a gentileza de buscar um chá de hortelã para mim na cozinha, por favor? — ela requisitou, com a voz mais doce e meiga que pôde reproduzir.

— Maria pode trazê-lo aqui num instante.

A governanta e caminhou até a porta da biblioteca e tocou um pequeno sino que carregava consigo. A servente não custou a surgir em seu campo de visão, e com a mesma velocidade que veio, desapareceu no intuito de atender aquele pedido. Fechando a porta atrás de si, ela tornou o rosto de volta ao local inspecionava as lições de Sarah, mas percebeu a dimensão de seu erro enquanto praguejava consigo mesma por tamanha ingenuidade. A janela da biblioteca estava entreaberta e a menina já não se encontrava mais no recinto.



Não havia sido difícil para Sarah puxar o ferrolho da janela e pular o parapeito em direção ao jardim. Seu único obstáculo era evitar que as ferragens envelhecidas soassem como uma alarme, denunciando sua fuga. Com um pequeno auxílio das ferramentas de Anthony, o servente encarregado da manutenção do castelo, aquela era uma tarefa fácil e a menina achou que em um futuro próximo, valeria a pena perder uma de suas tardes livres lubrificando boa parte das fechaduras e ferrolhos. O servente, é claro, não tinha noção que seus utensílios eram utilizados nas brincadeiras da menina. Ora, quem poderia imaginar uma princesa mexendo com itens de marceneiro? Simplesmente inconcebível.

No gramado que encobria todo o entorno do castelo haviam diversos caminhos de pedra e Sarah conhecia o destino final de cada um deles. Escolheu o primeiro, rente aos canteiros que circundava sua morada e não tardou a encontrar quem procurava. Jacques encontrava-se agachado próximo as roseiras, concentrado em limpar a área. Haviam ali todo tipo de espécies, totalizando mais de cem flores diferentes que encontravam-se no auge de sua beleza, graças ao sopro de vida trazido pela primavera.

A menina aproximou-se do jardineiro em silêncio, ainda que este já houvesse percebido sua presença e lhe agraciado com um cumprimento entusiasmado. Como já era de costume, ela respondeu timidamente enquanto o observava trabalhar com um ar curioso. Estava sempre a fazer perguntas e poucas pessoas tinham paciência de responder seus questionamentos, mas o homem a sua frente era uma exceção. Detinha uma personalidade pacífica, nunca se indispondo com nada nem ninguém. Enquanto o via trabalhar, um fato singular lhe chamou a atenção e ela apressou-se em indagar:

— Jacques, qual a razão para arrancar as ervas daninhas do solo, mas sem nunca retirá-las dentro do canteiro?

— Porque quando estão enraizadas, elas roubam a comida e a água das flores. Mas quando estão apenas dispostas sobre o solo, servem de adubo  e ajudam as demais a crescerem fortes e bonitas.

— Ah, agora compreendo.

Jardineiro daquele castelo há quase vinte anos, ele conhecia tudo aquilo que circundava a antiga construção como a palma de sua mão. Aquele jardim suntuoso nada mais era do que o trabalho de uma vida, ao qual se dedicava integralmente desde que chegara. Via naquilo tudo um legado a ser deixado quando partisse deste mundo, e o pensamento o motivava a levantar-se da cama todos os dias, para cuidar daquelas plantas como se seus filhos fossem.

Sarah nutria um interesse incomum por aquele ofício, bem como uma afeição singular ao servente responsável por ele. Jacques sabia que ela estava ali fugindo de suas lições, mas de igual modo, tinha consciência do quão intransigente sua governanta poderia ser. Ainda que fosse uma princesa e muito se esperasse dela, julgava que aproveitar a infância era essencial na construção de sua personalidade e caráter. A menina era a segunda filha do rei, e sendo seu irmão Allen o primeiro na linha sucessória de Odarin, imaginava o porquê de não ver a importância em melhorar sua caligrafia ou aprender história antiga. Em seu raciocínio simplificado como só uma garota de dez anos poderia ter, desde que mantivesse os bons modos à mesa, seria livre para fazer o que bem entendesse.

— Jacques, por que não ensinou Elliot a cuidar das flores do castelo?

— Porque para ser um bom jardineiro é necessário delicadeza e paciência — ele respondeu, soltando uma discreta risada, indicando que seriam desnecessárias quaisquer outras explicações.

— Definitivamente, duas qualidades que ele não detém. — A menina riu de igual modo, acompanhando-o. — Mas então por que ele passa o dia inteiro com o velho Earnshaw?

— Earnshaw não é tão jovem como um dia foi. Cuidar dos cavalos se tornou um trabalho muito pesado para que ele o fizesse sozinho. Quando soube que estava procurando um ajudante, Elliot foi o primeiro a se oferecer para a tarefa.

Sarah se calou por um momento, pensando no que havia ouvido. Fisicamente, o velho Earnshaw aparentava beirar os cinquenta anos. Desde que o conheceu conseguia se lembrar de seu rosto duro, assim como das mãos grandes e fortes. Mas se parasse para refletir, ele já era conhecido como "velho" antes mesmo do nascimento de seu irmão, então talvez tivesse mais anos do que imaginava. Intrigada, a menina já se preparava para formular mais uma pergunta, demonstrando quão insaciável era sua curiosidade, mas não ousou proferir um único som ao ouviu seu nome sendo chamado à distância.

— Sarah, apareça! Não pense que pode fugir para sempre!

Há alguns metros de distância, as portas do Hall Principal se abriram, revelando uma Evangeline furiosa em sua busca. Com passos ágeis e ritmados, ela enveredou pelo caminho de pedra de cobria toda a área do jardim, e era certo que rapidamente a alcançaria se continuasse naquela direção.

— Parece que Evangeline encontrou você — Jacques afirmou sem interromper seu trabalho, rindo consigo mesmo daquela situação. 

— Eu preciso ir. Mas não esqueça, se ela perguntar, você não me viu aqui.

Dito aquilo, a garota correu o mais rápido que conseguia. Mesmo que o vestido lhe limitasse os movimentos, suas escapadas periódicas fizeram com que se acostumasse àquele incômodo amontoado de panos. Em poucos minutos, havia deixado o jardim lateral para trás e atravessado a pequena campina, não tardando a chegar nos estábulos. Adentrou na extensa construção, mas mesmo checando todas as baias, não encontrou quem procurava.

Do lado de fora, algo lhe chamou a atenção e ela percebeu que Barão a encarava com bastante interesse. Os grandes olhos negros quase se misturavam com a pelagem do animal, tão escura quanto. O cavalo teria uma coloração uniforme, se não fosse o pequeno losango branco que havia entre seus olhos. Na ocasião, tinha em volta de seu pescoço apenas uma corda comum que lhe servia de guia, estando presa a uma estaca de madeira.

A menina se aproximou do belo animal, e ao contorná-lo finalmente encontrou aquele que buscava. De pé sobre um cavalete, Elliot ocupava-se em escovar o pelo macio e brilhante do animal. Barão era conhecido por ser o cavalo mais arisco do castelo, mas mesmo ele se assemelhava a um cachorro manso quando estava perto do menino. Tinha uma habilidade incomum, sendo capaz de transmitir aos animais uma sensação de paz, mostrando-se extremamente útil ao velho Earnshaw.

Sarah se aproximou à passos lentos, mas mesmo com toda sua delicadeza o animal bateu o casco no chão algumas vezes, enquanto chacoalhava o pescoço para frente e para trás, demonstrando seu desagrado com sua presença. Por sorte, bastou um breve sussurro próximo a sua orelha para que o cavalo voltasse ao estado de calmaria anterior. O menino sorriu consigo mesmo, orgulhoso da façanha que acabara de realizar.

— O que está fazendo, Elliot? — ela questionou, tornando a afastar dos dois, apenas para garantir que Barão não se incomodasse tanto.

— O velho Earnshaw pediu que eu retirasse os cavalos das baias e lhes desse um banho para ajudá-los a suportar a temperatura. Também é uma das últimas oportunidades para que eles fiquem um pouco expostos ao sol, e disse qualquer coisa sobre “fazer bem aos pelos”.

A jovem princesa assentiu com a cabeça. Apesar de estarem em plena primavera, haviam dias bem quentes como aquele, fazendo com que os animais sofressem com as repentinas ondas de calor. Terminado o serviço, Elliot desceu do cavalete e levou o cavalo de volta para sua baia, lembrando-se de trocar a água e repor o feno.

— O Barão é bem alto, não é? — a menina observou, enquanto se pendurava no portão de ferro que separava o espaço destinado ao do corredor.

— Mais ou menos. Ele é bem alto para um Quarto de Milha, mas Ourives é bem maior por conta de sua raça Árabe.

— Pode até ser, mas Ourives mais parece uma criança pequena que um cavalo — protestou a menina.

Ambos desataram a rir, afinal, havendo um fundo de verdade naquela afirmação. Ourives era o maior cavalo que havia naquele castelo, talvez até mesmo do reino, embora não pudesse ser considerado o melhor em nada além de sua beleza. Não servia para o trabalho com as ovelhas, pois ao invés de guiá-las, punha-se a correr entre elas, dispersando o grupo e causando problemas ao velho Earnshaw. Não servia para as pequenas plantações que havia nos fundos do castelo por não dispôr de força suficiente para puxar o arado, causando novamente problemas ao velho Earnshaw. Também não servia para transporte, pois quase sempre que lhe colocavam uma sela nas costas, Ourives rolava pelo gramado como um gato manhoso, causando, mais uma vez, problemas ao velho Earnshaw. Decidiram então que ele não serviria para os trabalhos habituais, sendo mais prudente reservá-lo exclusivamente para cruzamento. Apesar de todos esses empecilhos, não deixava de ser um belo animal.

Ambos acabaram por sair de dentro da construção, sentando-se sobre os blocos de feno empilhados do lado de fora. Sarah muito apreciava a companhia do rapaz, que era apenas dois anos mais velho. Gostava de conversar com Jacques, mas Elliot era a única criança que conhecia dentro do castelo. Não eram poucas as vezes que a menina se via farta dos adultos.

Eles conversaram trivialidades sempre que se encontravam, e daquela vez não seria diferente. Costumava desabafar sobre o quanto suas tarefas estavam cada dia mais chatas e entediantes, enquanto Elliot protestava que Earnshaw nunca lhe dava sossego para nada. Como se soubesse o exato conteúdo daquele diálogo, o antigo servente passou pela campina e ao ver o garoto sentado sem fazer absolutamente nada, não tardou para começar a assobiar com força, chamando-o de volta para o serviço. O comando já era conhecido, fazendo-o levantar-se com rapidez, já se preparando para caminhar na direção do velho tratador, quando fora impedido pela menina, que subitamente segurava o punho de sua camisa.

— Você bem que podia me ajudar a escapar das garras de Evangeline de vez em quando. É muito difícil fazer tudo sozinha.

— E o que você espera que eu faça, jogue pedras na janela da biblioteca? — ele arguiu num tom irônico, enquanto encarava a pequenina mão que o segurava ali.

— Não é lá uma má ideia — a menina respondeu com franqueza, surpreendendo-o com sua resposta.

O garoto apenas balançou a cabeça em negativa e pôs-se a correr até atravessar a campina. Earnshaw andava rapidamente, saraivando o rapaz com reclamações e determinando que havia ainda mais trabalho a ser feito. Inesperadamente, virou-se certificar que Elliot havia compreendido tudo, ficando bastante aborrecido com o que viu.

— Não acredito que está prestes a ficar doente bem no meio da primavera. Não me diga que é alérgico às flores, porque se for, Jacques já pode mandá-lo embora. Quem já se viu, o filho de um jardineiro com alergia a flores!

— Não sou alérgico, e tampouco ficarei doente — o menino retrucou com irritação, um tanto farto daquelas imputações.

— Espero mesmo. Mas vou logo avisando, se você começar a espirrar, trate de ficar bem longe dos meus cavalos! — proferiu o velho Earnshaw, erguendo um dos dedos enquanto assumia uma postura autoritária e ameaçadora.

— Já disse que não vou ficar doente! De onde tirou essa ideia estúpida? — questionou o menino, que amuava-se cada vez mais.

— Já se viu no espelho hoje? Seu rosto está mais vermelho que uma maçã.



Sarah permaneceu mais algum tempo sentada sobre o feno. Evangeline deveria estar enlouquecida atrás de si, procurando-lhe por todo o jardim. Seu próximo destino certamente seriam os estábulos, pois era sabido o quanto apreciava o local. Precisaria pensar em algum outro esconderijo, e rápido. Refletindo por instantes, concluiu que a cozinha seria ideal, e até mesmo tinha um pouco de fome. Certamente Evangeline tardaria a sequer cogitar em lhe procurar lá.

Erguendo-se-se, prestes a seguir entusiasmadamente na direção a grande cozinha do castelo, muito satisfeita consigo mesma e suas ideias perfeitas. No entanto, quando já estava na metade do caminho, alguém lhe segurou a cintura por trás, o que fez com que soltasse um grito de susto ao ser subitamente erguida no ar.

— Aonde pensa que vai agora, sua danada? — inquiriu uma irritadíssima Evangeline, que ainda a segurava no ar para que não saísse correndo novamente.

— Me ponha no chão agora! — A menina ordenou enquanto se debatia na esperança de conseguir se libertar. — Como foi que me encontrou?

— Jacques acha que pode me fazer de tonta quando disse não ter lhe visto, mas aquele ordinário não me engana. Diferentemente dele, Earnshaw foi muito gentil em me dizer exatamente onde você estava, então foi fácil prever qual seria seu próximo destino.

Finalmente decidindo pôr a menina no chão, que já havia se conformado em ver que seu momento de descanso chegara ao fim. Evangeline estendeu-lhe a mão, para que a segurasse e pudessem voltar juntas ao castelo.

— Não pense que essa sua brincadeirinha de hoje passará despercebida. Falarei ao seu pai sobre isso quando voltarmos. Não entendo o que a motiva a fazer essas coisas. Para desperdiçar seu precioso tempo com o filho do jardineiro? Uma vergonha! Princesas devem andar com pessoas que tenham algo a lhe acrescentar, e não com aprendizes de serviçais iletrados. O menino sequer tem mãe, uma verdadeira vergonha!

— E qual o problema nisso? Eu também não tenho mãe — Sarah rebateu de imediato, aborrecida com reprimendas que recebia. Muito lhe desagradava ver como a mais velha tratava os demais serventes, principalmente àqueles por quem nutria o maior apreço, sempre ocasionava discussões acaloradas.

Daquela vez, no entanto, um silêncio súbito se instaurou, levando-a a crer que pela primeira vez tinha vencido uma argumentação contra a sua governanta. Mas ao direcionar seu olhar à mais velha, percebeu em seu semblante uma expressão horrorizada, assim como no esforço que fazia para conter suas lágrimas. Incerta do que poderia ter ocasionado aquela reação, a menina se desesperou enquanto um sentimento de culpa parecia se apossar de seu coração.

— Nunca mais diga isso… — a governanta sibilou em voz baixa, de forma quase inaudível. — Você não foi uma criança indesejada, e também não foi abandonada. Saiba que tem uma mãe sim, apenas não teve a conhecê-la... Prometa que nunca mais repetirá isso!

—  Eu prometo, eu prometo! Evangeline, me desculpe! —  Sarah respondeu com a voz coberta de angústia, ainda sem compreender a razão para que ela reagisse daquela maneira. No entanto, a justificativa pouco lhe importava, pois tudo que desejava era ser perdoada.

Passado o momento de tensão, Evangeline recompôs-se e saiu caminhando apressadamente enquanto arrastava a pequena pelo braço. Passaram o restante do dia focadas em suas lições, esforçando-se para atender a cada uma daquelas tarefas assiduamente, ainda sentindo-se culpada pelo que ocorrido. Sua fuga fora devidamente reportada ao Rei Henrique na hora da ceia, mas o monarca não se preocupou em proferir mais que uns sermões não muito entusiasmados. Sarah mantinha-se silenciosa, apenas aceitando as palavras ríspidas que ouvia. "Não é como se ele se importasse de verdade", pensou enquanto encarava sua tigela de sopa sem apetite.

Após o banho, a governanta penteava os cabelos úmidos da menina antes de colocá-la na cama. O clima permanecia tenso e pesado. Havia gasto o restante do dia refletindo sobre o desentendimento que tiveram. Mas além disso, pensava sobre sua mãe. Sabia tão pouco a respeito dela. Seu pai era absolutamente silente sobre o assunto e Allen raramente estava no castelo para que pudesse enchê-lo de perguntas.

— Evangeline, você já me desculpou pelo que eu disse mais cedo? — a menina questionou, sua voz encoberta de incerteza.

— Já, Sarah, apenas esqueça o que aconteceu.

— Mas eu gostaria de saber mais sobre a minha mãe… Eu não a conheci, mas você sim! Jacques disse uma vez que vocês andavam juntas o tempo inteiro. Me diga algo sobre ela, por favor — proferiu em tom de súplica, até mesmo juntando as duas mãos para dar mais veracidade ao pedido.

“Jardineiro mentiroso!”, foi a única coisa que Evangeline conseguiu pensar, sentindo-se grata pela menina estar de costas, pois somente assim não repararia em sua expressão aborrecida. ”Era você quem monopolizava a atenção de nossa rainha. Enquanto a pobre de mim...”.

— Não sei bem o que você espera que eu fale. Katherine era uma pessoa muito enigmática. Seria impossível tentar imaginar o que se passava em sua cabeça. Além disso, se pudesse reunir todas as pessoas que a conheceram, cada uma teria uma impressão completamente distinta das demais.

— E qual a sua impressão dela? — Sarah questionou de modo ansioso, deixando sua voz transbordar de curiosidade.

— A minha impressão… é que milady era um verdadeiro anjo.


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