Filhos da Noite escrita por Rick Batista


Capítulo 22
A Criança e o Padre


Notas iniciais do capítulo

Capítulo focado no Andy e no Paul. Espero que curtam, pois eu curti escrever esse rio de sangue.



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Ele caminhava com imponência. Seu porte físico, pistolas e sorriso cínico mantendo afastados quaisquer dos jovens delinquentes. Sanguessugas e seus escravos... como ele gostaria de matar um por um. Mas o dinheiro falava alto, um uivo difícil de ignorar. 

Havia uma boa quantidade de gente vigiando cada perímetro. Até Boris rondava, mas se havia uma coisa que a experiência ensinara ao lobo, foi nunca ignorar seus instintos. E eles lhe diziam que alguma coisa estava errada.  O primeiro sinal foi o silêncio sepulcral. Logo seguido do cheiro de sangue, próximo de entulhos e sucata. Ele sacou as armas e avançou temeroso... hesitante daquilo que o cheiro poderia significar. E para sua tristeza, deparou-se com uma cena que jamais desejou ver: um corpo grande e nu, com a parte de cima da mandíbula faltando, caída um metro a direita. Para além da decapitação parcial, outros ferimentos impressionantes. Boris. Um dos membros fundadores, o segundo mais poderoso do bando e o único com mais força física que ele próprio. 

— Quem foi o filho da puta que fez isso contigo, hein, parceiro? — Malcon perguntou, fechando os olhos do que restou da cabeça do velho companheiro. 

Não pôde evitar se perder na visão do amigo morto, respirando fundo para controlar a raiva e não sucumbir a selvageria. Não, ele não poderia perder o controle! Seu bando e família precisavam dele. Não era hora de lembrar dos lobos que morreram nessa mesma igreja, há anos atrás e pelas mãos do Padre. Ser o alfa cobrava seu preço, e ele tinha que mostrar que tinha com o que pagar. E após encontrar outros cadáveres humanos, decidiu agir.  

— Peg, tudo ok ai? — Ligou para a mulher que daria à luz seu filho e herdeiro. 

— Tudo um saco — resmungou ela. 

— Bota no viva-voz pra o Rickon  ouvir. — Após alguns instantes. — Temos companhia. O grandão tá morto e alguém está fazendo a festa aqui dentro, usando facas de prata e arma com silenciador. O vampirão foi lá pra baixo... sinal de que trouxe amigos. Quem sabe seja a sanguessuga que estava com ele naquela noite. Vocês dois, fiquem preparados. Eu vou a caça, mas logo passo aí. 

—... o Boris, morto? — Peg questionou. — Puta merda, Mal! Já perdemos o Jeff, e caso a vadia esteja viva, tá na mão dos tiras. E agora você diz que deitaram o Boris!? 

— Nada de choro. Todo mundo sabia dos riscos, não sabia? Então, papo encerrado. Com a grana que o Padre vai pagar a gente mete o pé daquela cidade e faz vida nova na América, princesa. A gente dá um jeito, isso é certo. E quanto a você, Rickon, cuida da minha mulher e do meu filho até eu voltar, ouviu bem? 

— Pode confiar, Malcom. O futuro mascote da matilha está seguro — o garoto afirmou, voz tensa.  

— Assumam forma de lobo por precaução. Qualquer coisa uivem pra mim e se escondam. Nada de risco desnecessário. 

Encerrada a ligação, o líder do bando se livrou daquelas roupas, armas e equipamentos humanos, abraçando sua animalidade e se transformando novamente em um monstro de pesadelos infantis. E uivou, alto o bastante para alertar os vampiros dentro da igreja. Alto o bastante para encher de confiança uma mulher grávida e seu jovem amigo. Alto o bastante para afastar a tristeza por aqueles que morreram sob seu comando. O esquentadinho, Jeff. O leal e comilão, Boris. E quem sabe até mesmo a deliciosa e divertida Evelyn. Seus lobos, amigos e irmãos de alcateia. 

Malcom começou a farejar o assassino. Um cheiro que seguia rumo ao velho e blasfemo templo católico-vampírico. Mas para sorte de seu alvo, teve que parar. Pois foi justamente naquele momento que um caminhão destruiu os portões, se chocando contra as portas da igreja. Com isso, exigindo a atenção do alfa.

Aquele trabalho realmente estava cobrando um preço cada vez mais alto. 

***

A vida era cheia de surpresas. De fato, após serem poupadas por um vampiro que tinha todo motivo do mundo para matá-las, as jovens se sentiam realmente abençoadas enquanto corriam por dentro da igreja. E pouco importava que o templo estivesse profanado por cadáveres em posições blasfemas. Naquele momento, elas tinham toda a certeza de que Deus olhava por elas e teve piedade de suas pobres almas perdidas. Algumas com ferimentos leves, outras apenas assustadas, somente elas conseguiram sair do covil. Nove ao todo.  

E foi com lágrimas nos olhos que a primeira abriu as portas do templo, disparando em direção a um portão de ferro, ainda fechado. Não foram mortas pelo vampiro, não foram mortas pelo Padre, nem mesmo pelos lobos. Abençoadas, sem dúvida. Ou ao menos foi isso que pensaram.

Quem poderia prever que assim que se aglomerassem diante do portão, um caminhão desgovernado arrombaria as portas de ferro? E que das quatro que escaparam de serem atropeladas pelo gigante de carga, nenhuma escaparia dos tiros que os capangas restantes dispararam contra o veículo? É, realmente a vida era cheia de surpresas. 

— Tem ninguém no volante, não! — gritou Harry, um rapaz de cabelos longos e cacheados, surpreso pela ausência do cadáver de um motorista. 

Os jovens circulavam o veículo, desviando dos corpos e sangue deixados pelo caminho. Harry e outros dois, recarregando as armas a procura do invasor. O quarto se apoiou no caminhão, tremendo de medo e vomitando de nojo. Justamente o primeiro a sumir. 

— Isso só pode ser gozação! — resmungou ele, após perceber que seu amigo passando mal não estava mais respondendo. 

Um barulho de passos se fez ouvir perto do caminhão, fazendo o rapaz disparar feito louco na direção do suposto invasor. E esboçar uma careta quando ouviu o grito do outro colega que estava justamente naquela direção sendo baleado por sua culpa. Não que ele se importasse, realmente. A promessa do Padre de transformá-los nunca foi para todos, então quanto menos gente na competição, melhor. E enquanto recuava para mais perto do último colega armado e vivo, não percebeu a aproximação silenciosa de um vulto branco. Ao menos não antes de ser tarde demais... para seu parceiro. 

Um grito, e sangue espirrando em sua roupa. Harry apenas balançava a arma nervosamente na direção do lobisomem, enquanto se afastava rumo ao portão arrombado. Rumo à sobrevivência. Ele via os olhos vermelhos do lobo branco o observando lutar por sua vida, na esperança de que ele estivesse saciado. O que não parecia ser o caso.

O lobo estava pronto para o abate... mas então parou. Pareceu farejar algo mais interessante que ele. O jovem sorriu, aliviado. Poderia viver mais um dia... e que se dane a promessa de imortalidade!  

***

O terreno era grande, com o portão arrebentado e o caminhão bloqueando a entrada da igreja. O lobo branco com focinho tingido de vermelho decidiu caçar. Mandy era sua prioridade, resgatar a garota com vida e provar que não falhou com ela. Que não deixou alguém que se tornou tão importante em tão pouco tempo morrer. Mas a matilha era a chave, ele sabia. Através deles o lobo descobriria como salvar a garota. Voltar a olhar naqueles olhos, a ver aquele sorriso. 

Em pouco tempo ele encontrou o que procurava: cinco barracas montadas no vasto terreno, rodeadas de garrafas de cerveja vazias por toda parte. Andy Valentine avançou lenta e silenciosamente, como um predador rodeando a presa. O garoto queria respostas. E algo mais.

***

O Golem estava no templo. Atrás de si, o corpo de um jovem com o pescoço torcido. Paul foi bem claro com ele: ou contava tudo, ou morria. Face a face com a morte, o jovem até que foi rápido em abrir a boca. Infelizmente para o rapaz, o mascarado não pretendia deixar sobreviventes.  

Foram três vítimas antes que ele ouvisse o uivo. Antes que chegasse até seu alvo. Do alto da parte superior da velha igreja, em uma área interligada por colunas e sacadas ornamentadas, o mascarado os encontrou. A adolescente estava nua, grossos braceletes de prata ligados por correntes prendendo seus pulsos, tornozelos e pescoço. De joelhos e cabeça baixa, era iluminada apenas pela luz de velas, enquanto um menino a banhava. O ato consistia em um jarro cheio de sangue sendo lenta e cerimonialmente derramado sobre a cabeça dela, em um ritual profano. 

Diante deles, um velho de cabelos alvos e pele muito branca. Trajava uma batina preta, sobre ela um manto vermelho com adereços dourados formando desenhos intrincados. Ele estava de joelhos, os olhos fechados enquanto recitava palavras em outra língua. Caída ao seu lado, uma bengala de madeira belamente esculpida. "O Padre", com certeza. Próximas a eles, quatro garotas portando armas, metade com lâminas, metade com fuzis, formando um círculo em volta do ritual. 

O Golem não perderia mais tempo. Saltando em direção a refém, parou a meio metro do chão (seguro por um cabo com arpão) — em seu movimento de descida, atingindo a cabeça da criança vampira —, para em seguida ser puxado de volta pelo cabo, pegando a loba pela cintura. Tudo muito rápido, para espanto dos presentes.  

Uma vez de volta ao alto e com seu prêmio, Paul observou o velho vampiro cessando a reza e abrindo os olhos. Isso enquanto a dupla de fuzil disparava contra si e uma das jovens de faca corria em auxílio da criança. Os tiros cessaram conforme se fizeram ouvir as sucessivas batidas da bengala contra o chão, o Padre exigindo isso para preservar a loba, deduziu o mascarado.

Paul, que utilizava as colunas e paredes como defesa, aproveitou do momento de distração para disparar contra as jovens de fuzil, as eliminando sem dificuldade. Então percebeu que não via mais o padre, apenas uma garota largando a faca e correndo para longe da carnificina enquanto a amiga tinha o sangue drenado pelo pequeno vampiro ferido.  

A igreja logo foi tomada por morcegos. Dezenas deles, vindos de todos os lados, empurrando o mascarado e sua protegida. Paul buscava se manter firme diante daquele vendaval sinistro, equilibrando-se enquanto mantinha o corpo da garota em segurança. 

— Você está atrapalhando — palavras da loba, empurrando seu salvador do alto da sacada. 

O Golem foi pego de surpresa, caindo de costas no chão. Ao se dar conta das dores e sangue na boca, só por puro reflexo conseguiu desviar do bote da criança vampira em sua direção. E então ouviu o som de batidas novamente.  

— Deixe-o, meu querido Thomas — ordenou o velho, já ao lado da Mandy Duncan, no alto. — Leve a outra até seu destino. Não podemos deixar que nossas duas convidadas especiais corram riscos desnecessariamente. Não, não seria sábio.  

O menino vampiro tinha os olhos vermelhos de ódio, as presas de fora em posição de ataque... mas logo se recompôs, recuando lentamente enquanto Paul se colocava de pé. 

— Tudo bem, vovô — disse o garoto, contrariado. 

— Cacei você por um tempo, garotinho. Interroguei vampiros e servos humanos, mas você pareceu sumir de York — provocou o caçador. — Já curou sua obsessão por loiras de olhos claros? 

O esforço do menino para se manter sob controle foi visível, e passando a mão pelos cabelos loiros, abriu os olhos, novamente verdes. 

— Perdi muito, muito tempo procurando. Mas graças aos meus servos, já achei o que procurava, e agora estou bem legal.  

"Não graças aos seus servos... graças a mim", pensou o professor. Sorrindo consigo mesmo ao lembrar de como fez a foto e redes sociais de Claire Winnicott chegarem até ele. De como jogou a isca que atrairia o menino vampiro e garantiria que Adam fosse com tudo contra a Ordem do Dragão.

Enquanto o menino se afastava, Paul contemplava seu oponente. O Padre aparentava algo próximo de setenta anos mortais, apoiado em sua bengala e com ar cansado. As pequenas e barulhentas criaturas aladas dançando em volta dele. 

— O mestre despertará hoje, isso já foi determinado — afirmou o vampiro. 

Paul contemplou a menina sentada de onde o jogou, seu olhar perdido, em uma espécie de transe místico.  

— Não me importo com quem desperta ou não, mas pode esquecer a garota. O único sacrifício hoje será você. Mas não antes de me dar as respostas que vim buscar. 

***

O lobo branco abriu caminho silenciosamente pelas barracas. Não que ele esperasse surpreender seus alvos, afinal eram lobisomens, todos com faro aguçado o suficiente para detectar uns aos outros. Era apenas uma forma de prolongar a sensação. E os cheiros não mentiam: Rickon, o adolescente da idade dele, e Peg, a mulher do Malcom. Apenas eles, diante do grande lobo branco, diante da fúria de Andy Valentine. Então ouviu um uivo, vindo do Rickon. Um alerta... garoto esperto.  

Quando atravessou pela quarta barraca ele já esperava por alguma atitude desesperada. O garoto-lobo de pelo castanho e corpo franzino se jogou na direção do invasor, de presas abertas, buscando segurá-lo. Andy o derrubou com um só golpe. Rápido e pesado, só força bruta, sem usar as garras. 

— Vo–você quer a Mandy, não é? Você veio por ela? — o garoto perguntou, desesperado, cara no chão e alguns dentes quebrados. — Ela está na igreja, Andy, está nas mãos do Padre, o chefe dos vampiros. Se você correr, pode salvá-la ainda. 

Andy o olhou com desprezo, colocando a mão sobre a cabeça do jovem lobo. Jovem como ele, mas bem menos forte. Percebendo que o lobo branco não respondia, o garoto continuou: 

— Foi você que matou o Boris? Digo... o Jeff eu sei... disseram que a Evy foi parar no hospital com vocês. Cara, eu juro, eu não encostei em nenhum deles, eu só ajudo, eu não gosto de matar ninguém, então... 

— Ei, buchudinha. Pode ficando parada aí — Andy ordenou, empurrando o lobo assustado e entrando na última barraca. — Achou mesmo que eu não ia sacar você se arrastando atrás do teu macho? 

Peg estava em forma de licantropo, pelugem negra como a do Malcom e corpo esguio com garras longas. Garras que protegiam a barriga de gestação avançada. 

— O lobinho cresceu — ela disse, desprezo na voz. — Parabéns pra você, rapaz. Conseguiu deixar meu homem muito, muito puto. Os caras que você matou, eram nossos amigos. E caso tenha matado a puta também, pra mim você fez um favor, mas o Mal comia ela, então acho melhor você colocar o rabinho entre as pernas e fugir enquanto dá tempo. 

Ela tinha um ar confiante, sabendo que Andy também sabia da aproximação do líder.  

—... fugir? — ironizou, ignorando os avisos. 

— Andy, por favor, se você quer mesmo salvar sua namorada, vai enquanto tem chance. — Rickon se aproximou, submisso, se colocando entre Andy e Peg. — O líder está vindo, e se te ver aqui, acabou pra você. 

Andy olhou nos olhos do lobo, cheios de medo... e para os da mulher mais velha, confiante pela chegada do seu amor, líder, homem... "macho-alfa". E lembrou do olhar da Mandy, das suas últimas palavras para ele: "se esconde".  

— Eu não fujo, nem me escondo — Andy afirmou, já ouvindo os passos acelerados do lobo negro, já sentindo sua fúria. — E não deixo trabalho pela metade. 

Uma mordida. Uma mordida foi tudo que foi preciso para matar a loba. Não só isso, os dentes do lobo branco entraram fundo no corpo de uma Peg aterrorizada, contemplando os restos de uma vida em formação que saíram das presas de seu assassino. Ela caiu de joelhos, morta. 

Rickon gritou de horror, contemplando o garoto-lobo cuspindo as partes do que seria o futuro do bando. O orgulho do Malcom... aquilo que ele tentou proteger. Andy fez questão de cuspir o sangue em cima de Rickon, antes de virar as costas em busca da Mandy.

***

Simultaneamente Malcom chegou, ainda com tempo de tentar atacar o inimigo inesperado... mas não conseguiu. Perdeu a reação, perdeu o fôlego. Diante da cena, tudo o que o enorme licantropo negro conseguiu fazer foi cair frente aos restos da sua família. Sua matilha... seu mundo. 

O corpo da mulher assumiu sua forma original, o que ressaltava ainda mais o aspecto grotesco do quadro. Malcon levou as mão a cabeça, as garras tirando sangue da própria face, como se estivesse buscando penitência. Ele gritava, urrava! Rickon olhava para seu líder com compaixão. Sequer teve coragem de encará-lo, sequer conseguiu parar de tremer e chorar. Já como ser humano, igualmente impotente.

— Eu traí o Jimmy, sequestrei a Mandy pra evitar que o Padre usasse meu filho nesse maldito ritual... — Malcom sussurrava, o ódio como única âncora impedindo de afundar na loucura. — E então você vem e mata ele. Mata a Peg... mata todos eles. 

Sua voz se tornando cada vez mais alta, cada vez mais aterrorizante, até se torar um grito. Um grito de libertação e morte. — Valentine!!!

***

O Golem usava o arpão para se mover entre as colunas, disparando com a outra mão enquanto avançava. Saltando, agachando e atirando de modo a confundir o vampiro e escapar do alcance dos morcegos. As criaturas malditas apagaram as velas com seu voo, de modo que o cenário era contemplável apenas por olhos feitos para a noite. Olhos como os de um vampiro, ou de alguém com visor noturno na máscara.  

O Golem seu viu obrigado a pousar na sacada de lado oposto. Da munição prateada que descarregou, acreditava ter acertado ao menos seis tiros. Isso seria suficiente para derrubar a maioria dos vampiros que enfrentou até aquele momento... mas sequer pareceu afetar o velho. Recarregar a pistola não era algo fácil quando se fazia isso em meio a um vendaval de morcegos e sob tamanha pressão, e logo se mostrou impossível. Pois como que saída do nada, uma mão dura como aço se fechou sobre seu pescoço. Sem o reforço do grosso material, talvez seus ossos sequer resistiriam. 

— Estou muito velho para essas coisas. Toda essa agitação inconsequente. — O velho vampiro aumentou a força, como se testando a resistência da proteção. — Diga-me, filho: por qual motivo joga sua vida fora dessa forma? Afinal, o que é você? 

Um movimento do Golem e o Padre recuou. Sangue farto escorrendo de uma mão decepada. Paul largou a pistola e arpão, sacando em seu lugar as duas lâminas prateadas da madre Pietra. Suas lâminas agora. Ele as moveu de modo a limpar o sangue e assumir postura de luta. A mesma postura que a madre usara contra o vampiro Adam. E então atacou com tudo. 

— Eu sou o túmulo dos mortos que caminham. — Sequência de golpes em arco que feriram o tronco do alvo. — Caçador de homens e monstros. — Espadas combinadas com chutes que pressionavam o velho vampiro. — Justiça divina na forma de homem de barro. — Impulso na coluna para atingir o joelho de apoio do morto-vivo. — Eu sou o Golem! 

E ao dizer isso, Paul se jogou sobre o Padre, caindo sobre ele do alto da sacada enquanto posicionava as lâminas para decapitar o morto no processo. O que se mostrou inútil. Parando em pleno ar, o velho apenas girou o corpo de modo a arremessar o mascarado contra o chão, ele mesmo se mantendo sobrenaturalmente a levitar. Paul não esperava pela brusca mudança na situação, rolando e perdendo uma das espadas no processo. Seu corpo doeu pela nova queda, e sua visão ficou turva. Sequer sua audição era muito útil, devido ao som onipresente das criaturinhas noturnas. 

Um golpe certeiro na altura da coxa fez o mascarado rilhar os dentes de dor, sufocando um grito que sabia, apenas deliciaria seu oponente. A lâmina perdida foi bem usada por seu adversário, vencendo a proteção reforçada e tirando sangue... o suficiente para que o vampiro o provasse, para que ele o sentisse.  

— Humano. Um mero ser humano — o velho afirmou após lamber a lâmina, ignorando a dor do contato com a prata que queimava a língua. — Que sangue delicioso você tem, humano. Sangue de um homem perdido nas sombras da noite. Agora eu o desejo para mim. 

Paul se ergueu tão rápido quanto conseguiu. Todos aqueles cortes causados no monstro, a perda da mão... pouco a pouco estavam se regenerando. Por um instante, um breve instante, ele viu a face da madre o observando pelo reflexo da lâmina de prata. Aguardando por sua alma, talvez? Ele estava sem arpão, pistola ou a segunda espada, mas sabia que precisava continuar.

Os morcegos continuavam rodeando a ambos, as vezes interferindo no meio da batalha, para o desprazer de Paul Davis. Direita-esquerda, esquerda-baixo-cima, esquerda-direita... Paul alternava a sequência de golpes, dando tudo de si, apenas para ver cortes superficiais que sequer eram capazes de diminuir o ritmo do sacerdote. Ele se forçou a prosseguir, chegando ao limite das forças, ao limite do fôlego... seu corpo perdendo velocidade.  

O demônio então recomeçou o ataque. Os golpes desciam com velocidade e força, não buscando matá-lo, apenas tirá-lo de combate. Como se o monstro desejasse seu sangue, e para que isso fosse ainda mais prazeroso, ele precisasse estar vivo.

Paul foi forçado a recuar, mais e mais, cada golpe estremecendo seus braços e pernas. A adrenalina da morte a um fio o fazendo ignorar a dor da coxa ferida, mas não dos novos ferimentos, que se acumulavam, um a um, retalhando braços e pernas, que sem a proteção adequada estariam em frangalhos. O monstro o encarava com seu olhar sereno de um avô bondoso, contrastando com os olhos vermelhos e as presas demoníacas. 

A espada prateada roubada reduzindo as forças do mascarado a cinzas. E então, parando novamente. Paul caiu de joelhos, exausto. Impotente ao assistir o monstro saborear seu sangue na lâmina pela segunda vez. Sangue que tingiu não só a arma do adversário, mas sua própria couraça e o chão da igreja. A luta deles já havia prosseguido se afastando do cômodo inicial, ignorando o som do impacto do caminhão contra as portas e chegando até próximo ao altar, através de uma porta.  

A velocidade, a força, tudo naquele vampiro era além do que Paul esperava encontrar. Seria aquela a real força de um vampiro antigo? Todo o treinamento, todos os recursos, seriam apenas para acabar daquele modo? Será que ele morreria sem sequer vê-la outra vez?  Ajoelhado diante do monstro e dos corpos que substituíam os santos, Paul podia sentir sua vida se esvaindo. Enxergar os olhos acusadores daqueles que foram mortos por ele. Olhos famintos por sua alma, famintos como o vampiro que estava diante de si. 

— O sangue é a chave para os segredos. Mesmo sem palavras, teu sangue revela as profundezas do teu coração. — Ele caminhava lentamente, parando ao lado de seu inimigo caído. — Sinto seu medo por trás dessa máscara. Medo de fracassar. A mente sempre confusa, sua saudade de alguém que se foi para sempre. 

O Padre pareceu descobrir algo, sua expressão mudando para um sorriso. 

— "Kellen"? Não posso crer, então veio até nós por ela? Nos perseguiu e caçou, por ela? — O vampiro o encarava com curiosidade. — Se soubesse que a amava não teria lhe imposto tais castigos. Deixaria que ela mesma o fizesse. Agora, terei de entregá-lo nesse estado. 

Kellen, a ex-esposa vampira. O grande amor que Paul Davis não aceitava perder. Nem mesmo para a morte. Nem mesmo para o Padre e sua seita. Ela o veria daquela forma patética e derrotada? Riria ou choraria por ele? 

— Sua amada ouvirá meu chamado do sangue e virá até nós. Não é maravilhoso que eu lhe tenha poupado para que possa ter tal bem-aventurança? 

As palavras do vampiro o trouxeram de volta. Não o homem com medo da morte, trouxeram o Golem: a máscara, o símbolo, o mito do monstro de barro e pedra, da coisa que existe apenas para cumprir a vontade de seu senhor. 

Coisas criadas não tem medo, e ele também não.

De repente um estalo, e uma bomba de fumaça encheu o recinto. A fumaça não afetava a inexistente respiração de um vampiro, mas atrapalhava a visão. Em um movimento rápido o Golem executou um golpe com a lâmina em direção ao braço da espada, instigando o Padre a defender-se.  

— Não insista no erro, humano — aconselhou o vampiro. 

Um truque, enquanto com a outra mão ele enredava o alvo com o fio de prata, e usava o próprio movimento de esquiva girando para prendê-lo. Ao sentir os braços presos contra o peito pelo fio prateado, o velho o encarou. O fascínio de um predador frente a presa. 

— Você é apenas um fantasma... uma casca vazia! – declarou o Padre, em meio a um sorriso. Focando olhos invisíveis sob a máscara, sem parecer de fato preocupado com o desfecho da batalha. — Diferente de você eu tenho uma missão nesse mundo, e a volta dele não será interrompida por uma casca vazia.

Paul se pegou lutando contra uma força sinistra que tentava dominar sua mente. Uma voz, um desejo, um impulso de largar as armas e se entregar. 

— Você não é nada, nunca será nada. — Olhos arregalados e profundos, injetados de sangue, presas salientes num sorriso terrível. — A morte é sua libertação, sua única chance! Entregue-se a sua amante, entregue-se a morte!

Paul travou, trêmulo, frente a frente com o velho vampiro com o braço preso contra o corpo e queimando por efeito da prata.  

— Sou um fantasma... uma casca vazia — Paul confessou, parando de lutar. Então ergueu a face encarando seu inimigo. Sua presa. — Eu sou o Golem. 

E largou algo dentro da batina do Padre, antes de afastá-lo com um chute. Levou cerca de três segundos para o experiente vampiro entender do que se tratava. E cinco para que o Golem saltasse para sua segurança. A explosão queimando grande parte daqueles morcegos, e deixando do Padre uma carcaça carbonizada e separada pela metade. Mais que um terço do corpo destruído.  

Paul olhou em volta, apenas a escuridão e silêncio diante de si. E uma garota, uma adolescente assustada e de olhos arregalados. 


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Notas finais do capítulo

E então, esperavam essa atitude brutal do Andy? Dúvidas? Raiva? Rs, bom, vou ficar contente se deixarem um oi com aquilo que acharam do capítulo, ou mesmo dos rumos da história em sua etapa final.
Grande abraço.

*Abraço especial ao Rokudo Mokuro, que deixou uma bela recomendação pra mim. Valeu mesmo, amiguinho!



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