Filhos da Noite escrita por Rick Batista


Capítulo 20
Quando a noite cai


Notas iniciais do capítulo

Um capítulo sob o olhar daqueles que cercam nossos protagonistas. As peças estão se movendo rumo a um inimigo imerso nas sombras.



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Ela correu pela noite escura, seu pelo cinzento recobrindo um corpo meio–humano, meio–lupino, escondendo assim sua forma monstruosa dos olhares da gente comum. E após se afastar o suficiente do hospital, Evelyn se deixou enfim cair sobre a grama fria. A sensação era agradável, e ela permaneceu assim, recuperando o ar, deitada e de olhos fechados por algum tempo, já de volta a forma humana.

As roupas se rasgaram durante a transformação — assim como o pescoço de uma enfermeira, uma médica e um policial que viram mais do que deviam —, mas ainda houve tempo de roubar o celular do policial antes de saltar do 3° andar do prédio. A fuga cobrou seu preço: a perna que já estava ferida pelo tiro, piorou após a queda, junto do braço em que se apoiou para não bater de cabeça no chão.

"Estou acabada. Os tiras me reconheceram na casa do Jimmy, os médicos também...", pensou ela, se sentando e olhando para o celular. "Tenho de dar o fora dessa cidade de vez."

E não vendo ou sentindo ninguém, se arrastou até uma árvore na qual se escorou, esperando o corpo se recuperar dos estragos. "Só mais um pouquinhoe aí eu posso seguir a viagem como loba. Ainda dá pra me juntar ao bando... ao Malcom. Depois é dar adeus a esse lugarzinho de bosta e minha vida dupla. Dar adeus a universidade, dar adeus... a Claire."

***

Pouco antes, no hospital.

Ignorando o bom senso que o aconselhava a ficar longe dos olhos da polícia, Roger decidiu ir até o hospital onde sabia que o dono do restaurante e a loba estavam internados. Havia um policial na porta do edifício, mas o aspecto envelhecido do ex-detetive (resultado de maquiagem) e sua postura corporal coerente com a idade falsa, facilitaram bastante sua entrada sem levantar suspeitas.

"Ninguém desconfia de um velho sorridente". Foi com base nessa crença que o velho de boina, bengala e roupas largas e grossas pôs as mãos nos crachás certos e se infiltrou em alas normalmente inacessíveis para ele. Na ala dos pacientes graves, viu por trás de um vidro a policial envolvida na invasão à delegacia: Emma Watson. Com a perna engessada e uma muleta escorada ao lado, apresentava uma série de ferimentos superficiais que não tinha antes, sentada ao lado de um leito. Nele, um homem inconsciente e bastante ferido, cheio de hematomas e pontos. O homem batia com a descrição do barman Jammes Duncan, um lobisomem, segundo Paul, que parecia desacordado.

Haviam outros leitos vazios, uma enfermeira que acabava de sair do local levando material usado e um policial robusto, de guarda entre a entrada do cômodo e os leitos.

—... e essa é a situação geral — explicou Roger pelo celular, após enviar por mensagem a localização dos possíveis complicadores, para além daquilo que descobriram através da planta do hospital e fotos de lá. — Posso cuidar do policial de guarda enquanto você faz sua entrada, e aí eles são todos seus.

— Faça, Roger. E me envie o sinal — voz do Paul.

Roger, que antes estava sentado em um banco, observando do corredor, se aproximou lentamente do policial, no ritmo de um idoso com dificuldades para caminhar. Até tropeçar propositalmente, esbarrando na parede ao lado dele.

— Se machucou, senhor? — perguntou o homem de queixo largo e olhos grandes, já ajudando Roger a se pôr de pé, enquanto o ex-detetive disfarçadamente injetava com a agulha uma substância capaz de deixá-lo inconsciente em poucos segundos. Roger o segurou, colocando o sujeito sentado no banco onde antes estava. Então enviou a mensagem automática que o professor aguardava para agir.

***

Emma se espantou quando viu tudo ficando escuro. Olhou para o noivo com ar preocupado, sacando sua arma. Foi quando, surgindo pela janela do terceiro andar do hospital, apareceu o vulto. A policial suava frio, mantendo a arma apontada em direção ao estranho, a figura que ela pressentia ser aquele que quebrou sua perna e nocauteou vários policiais apenas para pegar uma vampira encarcerada.

"Santa Mãe de Deus, diz que ele não veio atrás do Jimmy!"

— O que você quer aqui!? — Emma se esforçou para manter a firmeza, se concentrando no inimigo à sua frente, o qual ela só distinguia as formas gerais. Tentava localizar algum outro movimento suspeito de um comparsa, ignorar a respiração mais acelerada do Jimmy e não surtar pelo fato de nem conseguir ficar de pé sem a muleta.

O Golem levantou-se de forma lenta, sua face mascarada encarando o olhar de uma policial assustada.

— Vim por ele, e por você — disse ele. — Vim pela verdade.

— "Verdade"?

— Sei o que ele é, sei o que a matilha é. Posso salvar a garota-loba, mas preciso de algumas respostas.

Emma o encarou por algum tempo, relutante. Então abaixou a arma.

***

De volta ao tempo presente.

Sentindo frio por estar coberta apenas por poucas tiras de roupa, sentada e escorada numa velha árvore, Evelyn decidiu fazer uma ligação.

— Claire? — perguntou, tensa.

— Evelyn, é você? — A garota se acalmou ao perceber que era a voz da amiga do outro lado. — Que número é esse?

— Deixa de ser xereta, sua velha fofoqueira — e sorriu com a própria piada, sua voz transparecendo nervosismo.

— Está tudo bem? Você parece tensa... ou bêbada — risos da Claire. 

Evelyn olhou para a lua no céu, respirou fundo e então respondeu:

— Escuta, e escuta bem. Eu andei me metendo numas furadas, e você logo vai acabar sabendo, assim como a cidade toda. — Claire começou uma pergunta, mas foi cortada pela amiga. — Olha, eu juro que as coisas não são do jeito que a tv vai falar, você me conhece miga, sabe que eu não sou uma pessoa ruim... só faço as coisas muito por impulso, as vezes.

A garota sentiu as lágrimas salgadas descendo pelo rosto, até os grossos lábios. O vento soprou frio, o som de morcegos alçando voo a deixando ainda mais tensa, trazendo lembranças dos vampiros que também falhou em pegar. Evelyn se esforçou para reprimir um soluço de choro. Claire foi quem falou:

— Eu te conheço sim, Evy, você é minha melhor amiga. Pelo amor que tem por mim, me diz no que você se meteu, me fala como te ajudar!

Evelyn deu um riso nervoso. Poderia falar coisas assim tão absurdas para sua cética amiga? Como falar disso por telefone sem parecer completamente louca? E ainda antes de responder, teve um mal pressentimento. Uma sensação ruim que a deixou completamente arrepiada.

— Lembra bem disso Claire: somos melhores amigas. Confia em mim. — E se levantou lentamente, ainda escorada na árvore. — Vamos embora dessa cidade, Claire, da facul, chutar o balde de vez, o que acha?

— C-como é? Você pirou!? — uma Claire assustada perguntou.

— Claire, tá tudo errado, tudo! O Turner, aquele maldito playboy branquelo. O Tom, esse seu novo "irmão"... eles são perigosos, você tem que ficar longe deles. São perigosos de um jeito que você nem pode sonhar! Tipo, é tudo muito louco pra eu explicar por uma ligação, então por favor, me encontra na rodoviária da cidade que eu explico tudo. — E começou a enxugar as lágrimas, olhando ao redor e buscando algum cheiro sobrenatural, do tipo que ela poderia sentir mesmo como humana.

— Evy, eu sei que você não gosta do Adam, mas o Tom? Desde quando um menino pode ser perigoso pra mim? Eu já te disse, ele é meu irmãozinho. Eu só... tinha me esquecido dele, sei lá. É meio confuso mesmo. Eu quero ajudar você, miga, mas não me pede pra jogar minha vida pra o alto com um argumento desses. Olha, eu vou encontrar você, e aí, com calma, você me explica como eu posso ajudar.

Enquanto ouvia a voz da amiga, daquela que sempre a ajudou desde que se conheceram na faculdade, finalmente sentiu o cheiro dele. Tomada pelo medo, a garota olhou ao redor, buscando a origem do odor de lobisomem. Então ela viu, os olhos vermelhos... o porte assustador. E sentiu medo. Muito medo.

"... Evy! Você tá me ouvindo!? Me responde, por favor!". A voz da Claire era de quem já estava insistindo há algum tempo, Evelyn não saberia dizer, pois o tempo parecia ter congelado enquanto observava aquela criatura de pelugem alva caminhando lentamente, sobre quatro patas, em sua direção.

— Claire... desculpa. Você sabe que eu te amo, né? — E Evelyn soltou o celular no chão. Devido ao nervosismo, nem mesmo conseguiu encerrar a ligação primeiro.

"Evy, fica comigo, me...". Ninguém podia ouvir as súplicas desesperadas da Claire, mas ela ouviu a conversa que se seguiu.

Ela viu o Valentine avançar calmamente, parando à poucos centímetros do rosto de uma jovem que tremia de frio e medo.

— Onde... encontro... a Mandy? — perguntou ele, com seu hálito quente.

Evelyn tentou usar a única arma que ainda possuía, justamente aquela que mais a ajudou na vida: o corpo. Mordendo o lábio e abraçando o corpo de modo que, além de se proteger do frio, pudesse evidenciar os belos seios, se aproximou ainda mais do garoto em forma de lobo. Alguém que apesar de tudo, imaginou ela, ainda estava na fase de "pensar em sexo acima de qualquer outra coisa".

— Qual é, Valentine? Acha mesmo que o Malcom contaria isso pra gente? Ele ia nos levar juntos ao lugar, não tinha porque falar antes. — E chegando mais perto do monstro, seus seios encostando no corpo dele, seu hálito e suor invadindo as narinas. — Olha, eu não sei onde eles tão, mas se você me deixar ligar, eu garanto que posso desco...

A voz dela se transformou em um grito de dor, quando as garras fizeram espirrar sangue por toda a grama. Marcas profundas de garras se encravando na pele negra, por conta de um único golpe do lobo branco.

"Evy, Evy! Meu Deus.... (choro), o que está acontecendo aí?", perguntou Claire, ainda ao telefone.  

Evelyn caiu de joelhos, olhando para o ombro destroçado, as lágrimas de medo e raiva se acumulando.

— Não, não! Por favor, não me mata, cara! Eu...

— Onde... acho ... a Mandy? — a voz gutural repetiu a pergunta, não sem um tom de raiva.

— Tá, eu sei, é numa igreja abandonada em outra cidade. Eu... posso te levar lá! Vai ser bem mais rápido que você sair procurando, daí você pega sua garota, eu volto para os meus amigos e nosso bando mete o pé dessa cidade. — Ela tentava manter a calma e lutar contra a dor, convencer o monstro a deixá-la viver.

Andy desceu com as garras contra o outro ombro da garota. O resultado foi igual, com ela gritando e agora caindo de costas no chão, enquanto rilhava os dentes de dor.

— Eu quero... o endereço. Não sou seu cafetão pra carregar você por aí. Vou sozinho. — E o lobo branco se colocou acima dela, os dentes sobre o pescoço... a saliva escorrendo pelo corpo de uma Evelyn que tremia. — Ou me diz, ou faço você em pedaços.

***

Minutos antes, no hospital.

— Uma igreja em York? "Padre vampiro"? — perguntou o Golem.

Segurando na mão do amor de sua vida, e com uma pistola na outra, Emma respondeu ao sombrio mascarado de roupas negras e reforçadas.

— Jammes não está em condições de confirmar, mas ele já me falou muitas vezes sobre o trabalho que a matilha faz para vampiros. Que foi por causa disso que ele saiu, anos atrás. Existe um vampiro em York à quem eles chamam de "Padre", ele usa uma igreja abandonada para matar suas vítimas, fazer seus rituais de sangue. Assim que meu Jimmy descobriu, pulou fora. Levou um bom tempo e um bom dinheiro até que o Malcom finalmente o deixasse em paz, mas quando ele atacou a casa hoje de manhã, um deles deixou escapar as palavras "igreja" e "sacrífico". Continuam trabalhando para a tal Irmandade de Sangue, pelo visto.

Ela falava enquanto o mascarado circulava pelo quarto, quando então ele parou, inclinando a cabeça como se tentasse ouvir algo.

— Então Evelyn Foster matou quem estava no caminho e fugiu?

Emma congelou ao ouvir aquilo. "Evelyn fugiu?". O sangue da ruiva ferveu, as mãos apertando firme o cabo da arma.

— E o tal garoto? Havia um garoto entre os resgatados — o Golem perguntou, num tom que Emma poderia ouvir.

— Ele é dos nossos! Não façam nada ao Andy Valentine — pediu a policial.

— A loba fugiu. Seu amigo também. Preciso me preocupar com ele, policial?

— Ele não será problema pra ninguém, pode ser um aliado, até.

— Não preciso da ajuda de crianças — ele respondeu, se aproximando da Emma, e apontando para o Jimmy. — Mantenha essas aberrações quietas, policial, e as deixarei viver. Se saírem de controle, eu mesmo os mato. E a você.

— Dane-se! Salve a Mandy Duncan, por favor, é só o que eu peço. — Arma apontada. — Faça isso, e você terá uma aliada na polícia de Bleak Hill.

— Conto com isso, oficial Watson.

***

—... sei, então é lá que eu encontro a Mandy. E a matilha toda — o lobisomem falava consigo mesmo.

— Andy... Andy, carinha. Eu sei que você não é um cara mau. Você não tem motivo pra me matar, cara. Por favor, eu disse como você faz pra achar sua garota. — Evelyn estava com o rosto molhado de lágrimas, as feridas queimando e a saliva do monstro escorrendo por seu pescoço. — Você acha que ela vai gostar de saber que você matou uma mulher indefesa, nua, chorando e suplicando pela própria vida?

"...Evelyn... onde você está? Por favor... como eu vou te ajudar assim... quem é Andy!?". A voz da Claire ainda ao celular, chorando e sem entender o que acontecia. Evelyn não ouvia, mas então se deu conta da tela acessa, e que a ligação não foi encerrada.

"Claire? Não... você tá ouvindo? Droga, droga.", pensou ela.

— Sei como vocês pensam: "se não é da matilha, não importa". Só que a Mandy é importante pra mim, do jeito que você é importante pra o Malcom. — Andy dizia, seus olhos vermelhos fitando ameaçadoramente os grandes olhos amendoados de uma jovem atraente e tola.

— Andy... por favor... você não precisa fazer isso — ela implorou, voz embargada pelo choro.

— Agora o Malcom vai sentir como é perder alguém importante.

E antes que ela tivesse tempo de gritar, os dentes afiados do monstro se encravaram no seu pescoço, macio, negro, e molhado de lágrimas. Ela sentiu as presas entrando cada vez mais fundo, penetrando com força sobre-humana sua carne, enquanto ela chutava e se debatia, entre dor e desespero.

A dor aumentou repentinamente, tudo ficou escuro, e o último som que ouviu foi o da própria carne sendo rompida.

***

Claire gritava, chorava, e chamava pela amiga. Sem resposta.

Desesperada, ligou inutilmente para a polícia... sem informações suficientes, de pouco adiantou. Pelo que entendeu eles já buscavam por ela como fugitiva do hospital e acusada do crime de invasão e sequestro... aquilo não fazia qualquer sentido. E com o coração doendo, sem ter mais à quem recorrer, decidiu ligar para a última pessoa com que acreditava poder contar.

—... Adam. Adam, é você?

— Claire? — ele respondeu, tom de surpresa. — Estou ouvindo, pode falar.

— Adam... Deus... eu, preciso da sua ajuda. Você é rico, é influente... você tem que me ajudar! — Um soluço de choro deve ter deixado claro para o homem o estado em que ela se encontrava.

— O que aconteceu? Me diga Claire, por você não há nada que eu não possa fazer.

— O problema é a Evelyn. Ela foi atacada por alguém enquanto falava comigo por telefone, a polí... — Mas antes que ela pudesse continuar, o smartphone foi tomado de sua mão.

Claire olhou espantada para o garoto loiro e de olhos frios que em um movimento pegou seu aparelho., a encarando com raiva.

— Por que, Alice? Por que está de novo correndo atrás desse sujeito? Logo agora que eu te encontrei, logo agora que estamos juntos de novo.

— Do que está falando, Tom? Meu nome não é esse... eu... me chamo Claire. — falou hesitante, incerta das próprias palavras. — Você pode ser meu irmão, mas isso não lhe dá o direito de mandar em mim. Preciso da ajuda dele, me devolve agora!

O pequeno a encarou com olhos vermelhos, a fazendo recuar pelo susto.

— T-Tom... o que você... — Antes que ela terminasse a frase, viu as presas do garoto à mostra. — Isso não... pode ser. Adam...

— Me ouça, Adam Tepes, você nunca mais vai roubá-la de mim! — disse Tom, ao celular. — Agora é a hora da Ordem do Dragão agir novamente.

— "Thomas"? É mesmo você!? — questionou uma voz surpresa do outro lado.

— O Padre manda lembranças.

E deixando o aparelho apoiado ao lado de ambos, segurou uma jovem sem ação em um rápido movimento, logo encravando os dentes em seu pescoço. Claire gritou, seu grito ecoando pelo quarto e através do aparelho até seu amado. Sentiu as veias levando o sangue até seu pescoço, e dele até o estranho e sinistro irmão.

— Adam... por favor... — a voz dela saiu fraca, lutando para se manter consciente. —... salve a Evy.

E com o sangue escorrendo pelo pescoço, os braços pendendo fracos... seus olhos se fechando. Claire finalmente perdeu a consciência, se entregando a escuridão trazida por aqueles filhos da noite.


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Notas finais do capítulo

Agradeço a você que tem lido até aqui. Até o próximo capítulo.



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