Filhos da Noite escrita por Rick Batista


Capítulo 2
Humanidade Perdida


Notas iniciais do capítulo

Adam desperta. Sua falecida esposa Alice, agora é uma jovem chamada Claire. Será que o antigo vampiro conseguirá se adaptar a esse novo mundo? E quanto a vampira que o sentiu no fim do capítulo passado, o que será que ela planeja ao se aproximar de Adam?

Hora de responder a essas perguntas.



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Em um quarto de grandes dimensões e iluminado apenas por um castiçal de velas, Adam encarou o espelho ao provar um terno.

— Tem certeza de que essas são roupas apropriadas para um cavalheiro inglês? — questionou o homem de longos cabelos na altura da cintura, e olhos que refletiam o tremeluzir das chamas.

— É um legítimo Armani, senhor Turner. Um terno de primeira, para um homem de primeira — respondeu Teresa, uma mulher de cabelos crespos em um penteado volumoso, roupas elegantes e sorriso fácil.

Adam sorriu satisfeito, sentindo–se à vontade com as novas roupas. Já fazia uma semana desde que voltou do túmulo, noites de descobertas e aprendizado constantes. Luz elétrica, televisão, rádio, telefone, internet... tudo era uma grande novidade para ele. Confusa, misteriosa e fascinante. O conhecimento humano deu um salto inimaginável nesses últimos séculos, e não seria nada fácil se adaptar a era da tecnologia.

— O homem foi capaz de vencer grandes barreiras através da inteligência, Teresa, então acredite quando digo: em breve, nem você me distinguirá de um homem do século XXI!

— Claro que sim, senhor Turner — respondeu ela, em tom de sarcasmo. — Não dou mais de um mês para isso.

Para o vampiro, ter Teresa Mendes à sua disposição pareceu uma forma dos céus compensarem um pouco do mal que lhe afligiram. Afinal, de que outra forma ele encontraria alguém confiável para lhe apresentar a esse mundo novo, sem ser tomado por louco?

O encontro entre os dois se deu na manhã seguinte ao despertar do vampiro, quando a mulher fazia a limpeza pós–festa. Recolhendo garrafas de cerveja vazias ou quebradas, a figura de pele negra e olhos castanhos seguiu o rastro de sangue que a levou até o cômodo acima das escadas, dando de frente com um indivíduo com roupas de época, longa cabeleira e pele pálida, deitado na cama de um quarto arrombado. Teresa quase teve um ataque cardíaco!

— Não creio. Aconteceu mesmo... de verdade. É real... você é real! — disse ela, levando as mãos à cabeça, com o sorriso de uma louca na face. Então se ergueu, tocando o rosto do vampiro, lágrimas molhando seu rosto. — O dono da casa finalmente acordou. Valeu mesmo a pena esperar por meus quarenta e sete anos, invés de me jogar da torre nas noites difíceis.

Quando Adam despertou, horas depois, encontrou a mulher diante dele. Após um banho e limpeza minuciosos, cabelos tratados e vestindo seu melhor conjunto social — o menos gasto —,  e em postura de reverência.

— Sou Teresa Mendes, a sétima a suceder Willian Connor como guardiã da sua casa. Cada um de nós fez o melhor que pôde para guardar seu túmulo até que o senhor acordasse — disse com emoção genuína na voz, diante de um Adam aparentemente surpreso. — Me sinto feliz como uma menininha por testemunhar seu retorno.

Ela estava nervosa, e se esforçava sem muito sucesso a disfarçar isso. Era mulher, era negra e ainda estrangeira. Como um homem de três séculos atrás aceitaria isso, perguntou-se, antes de prosseguir:

— É quase inacreditável ver o senhor diante de mim. O homem a quem eu jurei servir ainda na infância. Aquele sobre quem eu não podia falar a mais ninguém. Aquele que em muitos momentos até duvidei se existia mesmo, ou se tudo não passava das fantasias de um maluco me doutrinando na sua loucura.

— Prazer, Teresa, é bom estar de volta. — Ajudando a mulher a se erguer. — Então Willian, meu leal amigo, foi o responsável por isso? Cuidar do meu túmulo e posses? Treinar pessoas para fazerem isso após sua partida?

— Sim, segundo o que me ensinaram, ele foi o único dos seus homens que sobreviveu ao ataque, e tomou como missão pessoal cuidar de tudo até que o senhor voltasse. Como isso demorava, ele teve que arrumar outra pessoa para tomar o fardo após sua morte. Essa tradição foi seguida pelo seu sucessor, e isso até mim, a mais sortuda de todos!

Teresa logo percebeu que o vampiro pareceu pensativo, como se falar sobre aquilo o arrastasse de volta até aquela fatídica noite.

***

Após o último suspiro abandonar sua Alice, o desolado vampiro permaneceu um longo tempo contemplando o corpo de sua esposa, como quem esperasse por um milagre. Milagre que não aconteceu. Deu voltas pelo quarto, sem saber o que fazer com o sentimento que lhe subia pela garganta. O som da chuva caindo era uma música triste a lhe preencher os ouvidos, um som de fundo a melodia dos próprios passos sobre o piso.

Uma vez que não suportou mais esses ruídos enlouquecedores, sentou-se ao lado dela, segurando em sua mão.

— Como pode me deixar sozinho? E ainda me pedir para continuar sem você? — Todo o corpo tremendo. — Eu devia aguardar o raiar do dia em nossa sacada, queimando bem na sua frente! Então você veria que faço o que quero, assim como você o fez.

E após dizer essas palavras, com as costas na parede e caído, ele chorou. Chorou como nunca havia chorado antes, dando vazão a dor que lhe dilacerava o peito. Chorou até as lágrimas secarem e a chuva cessar. Só voltou a si quando viu Connor ajoelhado diante de si, suplicando perdão por ter falhado em protegê-la.

— Não sei como expressar o quanto lamento, mestre. Quando descobri que se organizavam para nos atacar tentei avisá-lo, mas fui pego no caminho. Esforcei-me então em mudar o desejo daqueles homens por sangue... mas falhei. Falhei e sequer consegui fugir a tempo de avisá-los, a tempo de protegê-la.

Connor também chorava, seu rosto marcado por hematomas de espancamentos pelos quais devia ter passado nas mãos daqueles homens, agora molhado de lágrimas sinceras. Algo sem sentido para Adam, pois se alguém podia tê-la salvo, era ele.

O vampiro não tinha palavras, apenas se ergueu e estendeu a mão para levantar seu único aliado. E foi um homem sem rumo ou esperança que deixou aquele quarto, com sua propriedade queimada e violada. A estrutura da mansão era firme o suficiente para resistir aos focos de incêndio, ele sabia. Já não podia dizer o mesmo de si.

Ele não deixaria o corpo de sua esposa ser profanado por homens perversos. Seus servos fiéis também não mereciam aquele destino. Se não poderiam receber um enterro cristão adequado, que suas cinzas subissem a Deus em um último ato de respeito.

— Que encontrem a paz que nunca encontrarei — disse ele para seu único amigo. — E assistam do céu, com olhos piedosos, nossa sina e miséria.

As chamas consumiram os corpos dos seus, diante dos olhos tristes de homens desolados. A única lembrança que restou de sua amada, o colar com uma cruz dourada que adornava seu pescoço. E foi com relutância que Willian cumpriu o último desejo de Adam, providenciando um descanso adequado para o vampiro entregar-se ao sono dos mortos, de posse apenas dessa lembrança.

— Não posso tirar minha própria vida, meu amigo. Não se quiser vê-la de novo, e isso é o que mais quero. Ela me pediu que a esperasse, mas a verdade é que a dor é grande demais para continuar. Preciso de descanso, Connor, preciso escapar da dor. Então dormirei pelos próximos anos, décadas, séculos! Até o fim dos tempos se preciso for! Dormirei até que meu pesadelo acabe. Até que eu possa ouvi-la me chamar de novo.

Seja nesse mundo ou no outro.

***

Adam foi apresentado a banheira, pasta de dentes e roupas limpas, ouvindo como Teresa recebeu uma propriedade já em estado precário, com rachaduras, infiltrações e até mesmo áreas semi-desmoronadas. Alguns de seus antecessores fizeram pequenas reformas e melhorias, mas a verdade é que a obra necessária demandava uma quantia de dinheiro muito acima do que dispunham. Por conta disso, alugar o imóvel para sediar festas, casamentos e farras de universitários foi a forma que ela encontrou de manter a si e ao enorme casarão sem abrir mão de sua missão.

— Você cumpriu seu dever, Teresa, agora venha comigo. Vejamos se ainda tenho alguma moeda — disse o vampiro, caminhando por áreas da mansão já interditadas.

Quando Adam revelou a câmara secreta, a mulher ficou estupefata! Moedas de vários países, anéis de ouro e prata, colares com pedras preciosas, braceletes ricamente ornamentados, espadas, punhais... uma verdadeira fortuna!

— Entreguei minha riqueza a Connor, como um presente de despedida. Ele teve tudo isso a sua disposição e não usou, preferindo guardar para um improvável e tardio retorno meu. Era mesmo um homem raro e leal — Adam disse, sorrindo para uma mulher cujas pernas tremiam de nervosismo. — Está ai minha fortuna, confio tudo em suas mãos. Reerga esta casa, contrate empregados, invista o dinheiro, torne possível meu retorno a esse mundo com dignidade!

Adam caminhou entre os objetos brilhantes, detendo-se apenas diante de um velho baú trancado, em meio a diferentes espadas. Ele levou a mão até o mesmo, parando o movimento pouco antes de tocá-lo. Então virou as costas a ele e suspirou profundamente. Tirou do bolso do terno um colar com uma cruz dourada adornada por pedras preciosas. A última lembrança de sua Alice.

— Preciso reerguer minha casa e entender esse mundo antes de ir até ela. Não posso correr o risco de confundi-la e assustá-la, como temo ter feito em nosso primeiro encontro.

— É uma decisão bem sensata — disse Teresa, sorrindo de orelha a orelha. — O senhor tem tudo a seu favor: juventude, dinheiro, seus poderes de imortal... só está faltando o conhecimento. Vamos logo corrigir isso.

***

Foi com o coração acelerado que Claire atendeu a ligação pela qual esperou por toda semana. Não que sua voz traísse alguma parte desse sentimento.

— Adam? Oi, tudo bem sim. É, apesar de tudo cheguei bem em casa.

A jovem estava no quarto, com tudo que se espera de um: guarda-roupa grande, criado-mudo, mesa de computador e uma cama. Na parede, prateleiras abarrotadas de livros de todos os tipos. Sentada na cama, cercada de papéis e livros abertos, ela segurava o celular com uma mão, acariciando sua gorda gata com a outra.

— Hoje a noite? Desculpa, estou meio atolada com as coisas da faculdade, hoje não tem como. Deixa eu dar uma olhada aqui em que noite estou livre. Vejamos...

Ela sabia perfeitamente a data, assim como poderia fazer um esforço para sair com ele ainda naquela noite. Mas obviamente, ela não faria nada daquilo.

Passei uma semana inteirinha esperando pela boa vontade dele, preciso manter um mínimo de amor próprio. Se quer me ver, que espere, pensou ela.

—... então, livre, livre, eu só fico na terça mesmo. Maaas se você quiser, a gente pode se ver antes. Amanhã é aniversário da Evelyn, minha amiga, e vai rolar uma comemoração. Você pode ir comigo se quiser, o que diz?

Um instante de hesitação do outro lado da linha, até a confirmação.

— Ótimo. Então anota por favor o endereço onde podemos nos encontrar.

Ao fim da ligação, ela era "só alegria". A verdade é que desde que se despediram, não conseguiu parar de pensar naquele homem. Sua voz, suas palavras, seus olhos... Claire ficou envergonhada ao se lembrar do toque dos lábios dele em suas mãos, algo tão simples, mas que a deixou arrepiada. Suspirando, agarrou o bichano.

— É, Fionna, a vida dos gatos é tão simples, porque será que a gente fica complicando as coisas, hein? — a resposta do felino foi um miado, seguido de tentativas de se soltar do abraço. — Gata malvada.

***

Eram 20h00 da noite marcada, a praça estava bem movimentada e iluminada, com um punhado de crianças e grupos de adolescentes namorando. Em um dos bancos de madeira, a jovem ouvia música no celular.

— Uma boa noite — Adam disse, seu rosto próximo ao dela.

Ela se assustou, quase deixando o celular cair. Depois sorriu sem graça para o homem a sua frente, guardando o aparelho e ficando de pé. Era uma noite fria, mas sem sinal de chuva.

— Não faz isso, quase me fez ter um treco aqui — disse ela, ainda sem graça.

Adam vestia um terno preto com ótimo caimento, com o cabelo preso em um rabo de cavalo. Enquanto Claire usava um conjunto mais casual: calça de couro marrom, botas da mesma cor e uma blusa com casaco por cima. Os cabelos presos em um penteado mais elaborado, que deixava apenas algumas mechas caídas sobre o rosto.

— Espero me redimir, declarando o quanto a senhorita está linda. Poderia passar a noite inteira só admirando seu rosto e não me cansaria.

— Obrigada, você também está ótimo — respondeu, sorridente. — Mas, por mais que eu gostaria de pôr a prova essa sua persistência obsessiva em me admirar, temos um lugar para ir.

Adam seguiu em direção ao carro, quando de repente travou. A jovem notou que ele pareceu tenso, olhando em volta.

— Problemas? — ela perguntou com um sorriso zombeteiro, devido a expressão assustada que ele fez.

— Desculpe, pensei ter visto um conhecido.

Ela cumprimentou Carlos, o motorista latino, estranhando o fato de Adam ter um motorista particular. Um imigrante brasileiro, pelo que ele mesmo disse.

— Boa noite, senhora, as suas ordens — respondeu, com um sorriso tão grande quanto o sotaque.

A viagem foi curta e agradável, por mais que Turner ainda lhe parecesse um tanto tenso. Adam lhe disse que após passar os últimos anos viajando pela Europa Oriental, resolveu enfim voltar as suas origens, assumindo a propriedade que era sua por herança. Ela achava engraçado o jeito peculiar daquele homem falar, seus modos de cavalheiro inglês empolado, contrastando com sua juventude e intensidade do olhar. Falava como um homem muito experiente, por mais que seus vinte e cinco anos não apoiassem tal postura.

Em pouco tempo chegaram ao seu destino, com música alta, carros e motos em volta de uma casa de dois andares, meia-dúzia de jovens do lado de fora, bebendo e rindo, e todos parando para observar quem sairia do possante que acabara de chegar.

Claire saiu do carro pouco a vontade, ciente de todos os olhos conhecidos sobre os dois. E após caminharem pelo meio daquelas pessoas, duas garotas apareceram, cochichando e indo na direção deles. Evelyn usava um vestido roxo, com abertura entre os seios e costas, para além de deixar a maior parte das pernas de fora. Uma jovem negra, de cabelos longos e cacheados, tão cheia de energia quanto de talento para arranjar problemas. Com ela vinha Brigitte, uma morena de minissaia e cabelos curtos, ambas se cutucando para ficarem sérias. Claire abraçou Evelyn, parabenizando a aniversariante e trocando brincadeiras.

— Miga, quem é esse gatão que você trouxe? — Evelyn perguntou.

— Meninas, esse é Adam Turner, o cara que me ajudou na festa.

— O tal dono do casarão!? — perguntaram, alto o suficiente para todos ao redor ouvirem.

Adam apenas confirmou.

— Você trouxe o melhor presente da noite! — Evelyn gritou, agarrando o rapaz pelo braço e o puxando para dentro da casa.

— Mas que safada... — resmungou Claire, que ficou para trás com a amiga a enchendo de perguntas.

***

O som alto incomodava os sentidos aguçados do vampiro. Os corpos suados dos jovens dançando ao seu redor, assim como o calor do corpo da jovem contra o seu próprio, mexiam com seus instintos de predador. Só então se deu conta do quão faminto estava, sem se alimentar há dias.

— Nunca te vi antes, pretende ficar na cidade? — perguntou ela, o puxando mais para o centro da casa e pegando uma bebida no caminho.

Ele se esforçou para manter a boca fechada, pois sentiu que as presas já teimavam em aparecer.

— Essa é minha cidade... vou ficar.

— Diz a verdade, o que realmente aconteceu naquela noite? Você e a Claire ficaram, não foi? — ela falou ao ouvido dele, os seios pressionados contra seu peito.

— Como assim, "ficaram"? — perguntou o inocente vampiro, o que ela pareceu interpretar como sarcasmo.

A dança continuou, o corpo daquela mulher voluptuosa contra o seu, enquanto o cheiro de suor e bebida o afetavam ainda mais, tudo ao som daquelas músicas irritantemente barulhentas. O monstro sentiu que perdia o controle, com a voz da garota perdendo aos poucos o sentido, apenas o som do coração acelerado e suas veias expostas importando. Apenas o fluir do sangue precioso e irresistível, se tornando uma tentação poderosa!

Ele tentou se afastar, mas ela não deixou, o puxando para mais perto de si. Corpos colados, ao ritmo da dança daqueles que os rodeavam. Uma dança mortal.

— Não tão rápido, gatinho — seus grandes olhos o encarando com um estranho interesse —, você parece um cara muito... interessante. Prometo manter os olhos bem vivos em você.

Tudo pareceu uma armadilha diabólica para revelar o monstro. Ele afastou o rosto dela, tentando esconder as presas já visíveis, tentando se focar em algo que pudesse impedi-lo de pôr tudo a perder. Quando levou a mão ao bolso do terno, sentiu o colar que trouxe consigo. Sua salvação. As lembranças que o objeto representava foram o suficiente para fazê-lo recuperar o controle, e enfim afastar-se da garota.

— Perdoe-me, senhorita Evelyn, mas minha acompanhante me espera — mal ele proferiu as palavras, ouviu uma voz conhecida atrás de si.

— Olá... Evy — Claire recitou, encarando a amiga.

A garota sorriu, devolvendo o acompanhante a amiga.

— Tava só aquecendo o gato pra você, Clairzinha. — Sorriso zombeteiro. — Acho que agora ele já tá no ponto.

O casal pareceu sem graça com a situação, mas ele ao menos pôde suspirar aliviado, conseguindo reassumir o controle. Então saíram do meio do salão, a procura de um espaço mais calmo.

— Sua amiga é um pouco... animada demais — disse ele, virando um copo de vodka e desejando que fosse outra coisa.

— Desculpe por isso. Ela é atrevida, desequilibrada, alcoólatra, aproveitadora... Mas apesar de tudo isso, tem lá suas qualidades.

De repente o som da festa abaixou, com todos olhando para a aniversariante no centro.

— Gente, esse é o Adam, amigo da Claire e dono daquele casarão enorme no alto da colina, que geral zuava de ser mal-assombrado. Todo mundo comigo dando boas vindas pra ele!

Um momento de silêncio, seguido de um grito em uníssono:

— Bem vindo, Adam!

Todos comemoraram, levantando as garrafas. A maioria seguiu dançando, enquanto o casal abriu caminho até a parte de trás. Mas foram logo cercados por uma dúzia de curiosos, e ai seguiu-se uma chuva de perguntas de todos os lados. Após alguns minutos de interrogatório, com Adam seguindo um roteiro já decorado e sendo tão evasivo quanto pôde, conseguiram se afastar do grupo, pois ele "precisava de um pouco de ar".

— Achei que era só desculpa, mas você não parece estar muito bem mesmo.

— Nada demais — mentiu, tentando ignorar a sede. — O que a senhorita estuda é medicina?

— Sou psicóloga clínica em formação. Ajudo nos problemas da mente, não do corpo.

— Então a senhorita estuda a existência humana e tenta guiá-la ao aperfeiçoamento, é isso? — questionou. — Entendo bem a filosofia, mas esclareça a um leigo, o que exatamente um psicólogo estuda?

— Nossa, aí está uma definição que nunca ouvi! Como posso dizer: a resposta a essa pergunta varia, dependendo de quem responder. Um psicanalista provavelmente dirá que o objeto de estudo da psicologia é o inconsciente. Um behaviorista, que é o comportamento. Um cognitivista, que é a aprendizagem. Acho que a definição mais abrangente, seria: subjetividade. Nós estudamos a subjetividade humana, esse universo de ideias, comportamentos e questões que envolvem o ser humano.

Adam colocou a mão no rosto dela, deslizando suavemente os dedos até o queixo.

— Tenho um problema, Claire, e preciso de uma psicóloga experiente para me ajudar — ela apenas sorriu, apoiando as mãos nos ombros dele. — Desde aquela noite, não consigo parar de pensar na senhorita. Existe uma cura para isso?

— Não rolou mesmo nada entre a gente, não é? Minha cabeça ainda tá uma bagunça.

— Não — disse ele, passando as mãos pelo cabelo dela. — Naquela noite não.

— Hoje é sua noite de sorte, então. Acho que tenho seu remédio bem aqui...

Os dois lentamente se aproximaram um do outro, os olhos se fechando, os lábios ansiando por se encontrarem. O coração da garota acelerava, ao que ele podia ouvi-lo batendo, e mesmo assim não lembrar da sede. Ele apenas a desejava, como amante, jamais como vítima. E quando estavam próximos o suficiente para que ele sentisse sua respiração... ele parou. Sentindo algo que podia pôr em risco a única pessoa com quem se importava.

— ... o que foi? — perguntou Claire, confusa.

— Turner, certo? — voz de mulher, interrompendo o casal a um passo do beijo. — Posso falar com você um minutinho?

Adam olhou para ela, perturbado por ver uma vampira tão perto da Claire. A aproximação foi silenciosa como a de uma gata, mas não o bastante para iludir os sentidos do vampiro. Isso fora a sensação que a presença de um dos seus lhe causava, uma agitação a instigar seu lado selvagem, um sutil alerta da ameaça que outro predador poderia representar em seu território.

— Escuta, não acho que seja uma boa hora. — Claire respondeu por ele, olhar de censura.

— Claire, vou pedir que a senhorita aguarde por um momento. Foi essa a pessoa que pensei ter visto na praça, temos um assunto urgente a tratar.

— Certo. Urgente, não é? Aguardo sim. — respondeu ela, se afastando e entrando no salão.

A mulher à sua frente era atraente, Claire teria razão em ter ciúmes, ele percebeu. Cabelos castanhos em rabo de cavalo, um vestido que deixava os belos seios em destaque, e olhos que pareciam examinar cada minúsculo detalhe seu.

— Quem é a senhorita e o que quer comigo? — perguntou ele, ao mesmo tempo aborrecido e intrigado com seu primeiro contato com um vampiro do século XXI.

— Jeanne Hillton, e o prazer é todo meu, senhor mal educado. — Mão estendida para apertar a dele.

— Que seja — Adam pegou sua mão, dando um beijo suave, e sentindo que cheirava a sangue.

— Parece um pouco abatido, senhor Turner — disse ela, se posicionando ao seu lado. — Será que posso te oferecer algo para beber? — Um olhar malicioso e ele percebeu o sangue nos lábios dela, assim como o rapaz inconsciente no banco, à poucos metros. Respingos de sangue na roupa.

— Dispenso, mas agradeço pelo convite — respondeu, usando todo o autocontrole que possuía ao sentir o demônio interior as portas.

— Uma pena, tanta gente nessa festa, tantas opções diferentes. Poderíamos secar tudo. Taça por taçaaté a última gota. — Ela o rodeou, como se estudasse suas reações, logo deslizando os dedos suavemente pelo rosto dele.

— Eu disse não. E não gosto de me repetir. — Olhos vermelhos e presas a mostra. Sua mão rapidamente segurando o pulso da vampira.

Ela riu em resposta, e ele sentiu o poder do sangue vampírico sendo usado pela mulher para lhe dar força sobre-humana — força essa que se mostrou totalmente inútil contra a mão firme dele —, que a manteve sob controle sem sequer ter que apelar para esses truques.

— Que pena, adoro beber em boa companhia, mas acho melhor me soltar agora, ou meus amigos ficarão chateados com você.

E olhando ao redor, Adam se deparou com a presença de outros dois vampiros, posicionados ameaçadoramente atrás de jovens distraídos. Ao que o vampiro apenas sorriu.

— Se tivesse apenas afrouxado o braço, eu a teria deixado ir sem problemas. Mas como não só resiste, como tenta me ludibriar com seus truques, aceitarei seu convite para uma bebida.

E dito isso, discernindo perfeitamente que aquela cena se tratava de uma ilusão, torceu o pulso da vampira, abrindo um corte nele com a unha e deixando que o sangue respingasse no copo que trazia na outra mão. Movimentos rápidos e camuflados de quaisquer olhares curiosos. Ele bebeu daquela pequena quantidade de sangue, diante dos olhos frustrados de uma vampira totalmente subjugada, incapaz de se soltar ou manipular os sentidos dele com seus dons ilusórios.

Ele a soltou, ao que ela levou a mão ao pulso ferido, massageando o antebraço e regenerando o corte. Ela por fim sorriu, parecendo baixar a guarda diante de um morto-vivo superior. E tirando um cartão da bolsa, o estendeu para ele.

— Apesar de tudo eu gostei de você. Quando quiser bater um papo é só me ligar, prometo que não ficará entediado.

Adam pegou o cartão e o pôs no bolso, virando-se para a direção da casa, mas não antes de lhe proferir as últimas palavras:

— Agora vá, senhorita Hilton. E não esqueça de limpar sua bagunça.

Após algum tempo rodando em meio aos convidados, encontrou Claire, conversando com as amigas. Quando ela o notou se aproximando, seguiu rumo a entrada, sozinha. Logo estavam os dois na porta, Claire com uma irritação mal disfarçada, e ele com mãos que começavam a tremer pela necessidade de sangue. Afinal, as poucas gotas do sangue vampírico não eram nada diante da sede que o consumia.

***

— Está melhor, Adam?

— Acredite, o assunto era realmente urgente, mas gostei ainda menos da visita do que a senhorita, assim como da interrupção. Mas para falar a verdade, ainda não estou muito bem. Creio que a viagem de carro me deixou enjoado.

— Que chato — disse ela, sem encará-lo.

Claire olhou no celular, enquanto ele mantinha o olhar fixo nela. E quando notou que ele diria algo, voltou a falar:

— Então é isso, Adam — recomeçou ela. — Te trouxe na festa e você até mesmo já fez amigas, logo, logo, será muito popular na nossa cidadezinha. — Sorriso forçado. — Acho melhor deixar pra lá a conversa de sair juntos. Com isso estamos quites, certo?

Adam apenas sorriu em resposta, como se achasse graça de tudo aquilo. Atitude que a irritou.

— Então ficamos por aqui, senhor Turner — despediu-se ela, dando as costas ao homem que a deixou de lado após quase beijá-la.

E após apenas três passos, a loira sentiu a mão dele tocando a sua, e seu corpo sendo puxado contra o dele. Ela tinha os olhos surpresos quando Adam aproximou o rosto e a beijou. Ela tentou relutar por um breve instante, mas logo fracassou, se entregando ao beijo. E por um momento sentiu-se tomada por um sentimento muito forte, poderoso e antigo. Seus lábios se encontrando com tal intimidade que pareciam apenas repetir um ato já familiar. E após um longo e suave beijo, ela o viu afastar os lábios.

Claire Winnicott afastou o cabelo do rosto, desviando o olhar. 

— Quero vê-la muitas vezes a partir de hoje, Claire. — Ele aproximou-se novamente dela, que parecia ter perdido a voz. — Por isso espero que aceite esse presente como um sinal da minha gratidão pela sua companhia.

Ela o sentiu colocar algo em seu pescoço. Uma pequena cruz de ouro, bela e brilhante.

— Eu não... não posso aceitar isso, parece muito caro! — disse ela, ao tocar na joia. — Nós mal nos conhecemos, Adam!

— Pelo contrário, sinto como se já nos conhecemos há muito tempo — disse ele, beijando as mãos de uma garota totalmente sem reação, mas que percebeu sentir o mesmo. — Agora realmente preciso ir.

Ele se afastou em direção ao carro que sumiu no escuro da noite, deixando para trás uma garota com um sorriso bobo no rosto.

***

Adam caminhou em direção ao carro que passou os últimos minutos a sua espera na beira da estrada, à cerca de cinco minutos de distância da festa. Numa área mal iluminada, cercada pela vegetação nativa e com um motorista impaciente o aguardando.

— O lugar é meio sinistro pra ficar parado, chefe. Mas como dizem: melhor pra fora que pra dentro. — brincou Carlos, provavelmente achando que seu patrão bebeu demais.

O carro logo voltou ao seu destino, deixando para trás uma garota bêbada e inconsciente, que ao acordar se sentirá fraca e anêmica. Enquanto o carro comeu a distância entre a vítima e a mansão, o vampiro olhou para o nada, com ar melancólico:

"Eu sou um monstro, Claire, uma besta que se alimenta de sangue humano. Alice me amou como ninguém mais, mas eu sei que você é só parte ela. Será que essa parte poderá me amar? Amar um monstro?"

E enquanto refletia sobre essas coisas, ouviu um uivo cortar o silêncio da noite. Algo nele lhe dizendo que não era o som de um lobo comum.

— Algumas coisas não mudaram — sussurrou o vampiro para si mesmo, ciente de que lobisomens ainda habitavam aquela cidade esquecida por Deus.


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Notas finais do capítulo

É gente, nem só de vampiros vive essa cidadezinha. Hora de vermos os lobos em ação.