Filhos da Noite escrita por Rick Batista


Capítulo 19
Mais homem que lobo


Notas iniciais do capítulo

Já vimos muito do passado do Paul e em seguida do Adam. Hora de sabermos um pouco mais do Andy, também.



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Era um depósito velho e mal iluminado, com pilhas de caixas alcançando de três a quatro metros, onde um jovem de roupas escuras e capuz se esgueirou. Ao menos três homens armados ele conseguiu avistar enquanto caminhava pelas prateleiras cheirando a urina de rato. Seu objetivo era um só: invadir uma sala cem metros à frente. Roubar de bandidos.

Com excelente forma física, se moveu como uma sombra. Seus parceiros já haviam criado uma distração que tirou metade dos indivíduos armados de lá, assim como um curto-circuito que tornaria as câmeras inúteis. O garoto passou por dois dos vigias apenas sendo furtivo, mas quando chegou no último, percebeu que teria de se arriscar mais. Vindo de um ponto cego do barbudo portando uma pistola, o garoto aplicou um mata-leão decisivo, tirando o último deles do seu caminho.

A porta do escritório estar trancada seria um problema, mas já há algum tempo ele aprendeu alguns truques úteis para arrombar fechaduras. E em poucos instantes, Andy Valentine se erguia triunfante sobre as pilhas de caixas, acima de homens que não foram capazes de impedi-lo. Segurando firme a mochila com as drogas que uma vez repassadas ao seu contato, renderiam dinheiro suficiente para ajeitar sua vida e largar os crimes, diante da vitória eminente, ele olhou para o teto, por onde uma pequena brecha revelava a luz da lua.

Uma lua cheia em um céu sem nuvens, com aquele brilho prateado prendendo totalmente sua atenção. Andy sempre teve fixação pela lua, desde pequeno que em noites solitárias podia passar horas no telhado, olhando para o céu, perdido em seus pensamentos. A lua, que sempre foi uma companheira silenciosa, observando seus problemas, seus medos; impassível e brilhante, reinando na noite. A lua que sempre assistiu seu sofrimento, ao menos naquela noite, poderia assistir sua vitória. Um primeiro passo. Quem sabe um recomeço, pensou ele.

O som de um tiro o puxou de volta à realidade. Andy olhou em volta, percebendo que um dos bandidos estava lá embaixo, apontando a arma para ele. A mochila que carregava estava caída, perto de si. Mas... quando foi que ele a deixou cair? Quanto tempo teria ficado ali parado!?

— Mãos pra cima, agora! — gritou o rapaz, barba por fazer e corpo atlético, suando em profusão e com mãos trêmulas.

Sequência de tiros de outro deles, um homem na faixa de quarenta anos, boné e pistola. Um dos tiros acertando sua perna. Andy rilhava os dentes pela dor do impacto, a surpresa o fazendo cambalear para trás e cair da pilha de caixas. O garoto sentiu a dor aumentando, tanto pelo tiro quanto pela queda sobre o piso de madeira velha. Pôde sentir o sangue escapando em profusão, e ao longe, os sons de passos e vozes se aproximando.

— Que merda, acho que acabou mesmo — reclamou para si mesmo, em meio a dor de uma tentativa frustrada de levantar-se.

E ele então viu a lua, ainda mais intensamente brilhante que antes. Como se estivesse falando com ele, chamando-o, dizendo: "Desperte". E foi aí que tudo ficou escuro, os cheiros começaram a aumentar de intensidade, e um sentimento começou a crescer dentro dele. Algo familiar, mas nunca antes tão forte assim: o ódio. Ele se pôs de joelhos, veias pulsando, coração acelerado, olhos vermelhos, dentes rilhados e uma expressão assustadora no rosto. Mesmo o sujeito que atirou se viu sem reação quando encontrou o garoto.

— Querem me machucar? Me matar!? — perguntou, diante de dois bandidos com armas apontadas e assustados, prontos para atirar ao primeiro sinal de risco.

Eles poderiam abrir fogo, ele pensaria depois, mas apesar de tudo ele não devia parecer mais que um garoto desarmado e drogado, e que se capturado poderia dar informações sobre a tentativa de roubo. E esse foi o erro deles, pois em um instante a transformação iniciou-se, tão rápida quanto assustadora. Tiros foram disparados então, alguns acertando o alvo, mas nada que impedisse o que se seguiu. E entre as presas de um monstro de pelos alvos e olhos vermelho-sangue, as seguintes palavras se fizeram ouvir:

— Agora, eu que mato vocês!

As últimas lembranças de Andy envolviam cheiro de medo, suor e sangue. Gritos desconexos, barulho de tiros, seu corpo agindo por instinto e sua mente apagando. Quando acordou tempo depois, estava com os trapos do que tinham sido suas roupas, coberto de sangue e sozinho em uma área isolada da cidade. Um gosto ruim na boca e estômago o fizeram vomitar, mesmo sem entender o motivo. Invadindo uma casa, deu um jeito de se lavar e roubar roupas limpas. 

O garoto passou um dia inteiro vagando antes de voltar para casa. Ainda pobre, só que diferente. Não se lembrava do que tinha acontecido, mas tinha medo, muito medo de que voltasse a acontecer! No primeiro dia após o incidente sua mente estava um caos, sem lembrar-se de quase nada. Durante as noites seguintes, semanas e meses, fragmentos de lembranças começaram a ressurgir pouco a pouco, na forma de sonhos. Mas só agora, já em Bleak Hill, veio tudo de uma vez.

Andy passou horas vomitando, após lembrar-se do massacre, das mortes que causou enquanto estava naquela forma. Enquanto era um monstro. Ao menos dez pessoas, entre bandidos de guarda e parceiros de crime, foram suas vítimas naquela noite. Um pescoço rasgado, um braço arrancado, costas e pernas dilaceradas, tripas e sangue dos quais se alimentara. Tiros, choro, pedidos de clemência, mais tiros... Tudo se perdeu sob a neblina da raiva animalesca e da fome, mas agora voltava. E com eles a dor. E a culpa.

Andy acordou gritando, suado e com olhos molhados, e isso pela terceira noite seguida após as lembranças voltarem. Ninguém dizia nada, mas a cara que faziam ao olhar para ele e uns para os outros, deixava claro que estavam preocupados.

— Tá a fim de dar um pulo no centro? — perguntou o dono do bar, fingindo não notar que o garoto acabara de pôr o café pra fora novamente. — Mão extra pra carregar bolsa é sempre bom.

Já ao lado do motorista, cabelo contra o vento o garoto observava a paisagem, o verde onipresente atraindo seu olhar.

— Sei que a gente não costuma ter essas conversas, mas tipo, quiser falar sobre o que tem te incomodado, cara, estou ouvindo.

—... dispenso — respondeu, seco.

— Que foi, acha que não vou entender? Que vou ficar grilado contigo?

Andy apenas riu sozinho, Jimmy fechando a cara como reação.

— Você é todo certinho, cara! Trabalho honesto, irmãozão, namora uma tira... — disse o garoto, quebrando o silêncio. — Claro que não vai.

— Aahh, é mesmo? E se eu te dissesse uma coisa que vai mudar essa sua imagem minha de santo, hein?

— Tenta aí, tio.

O motorista desviou o olhar, como se relutasse antes de dizer as palavras:

— Eu fui do bando do Malcom.

— O quê!? — Andy não conseguiu esconder a surpresa, batendo com o cotovelo na porta. — Sério mesmo?

— Malcom e eu, a gente era amigo desde garoto. Brincava junto, fazia merda junto, e isso não mudou só porque a gente cresceu.

— Sei, então os dois faziam troca-troca, mas e aí?

Uma freada brusca quase fez o garoto bater de cara, o deixando irritado.

— Quando virei lobo a primeira vez, foi o Malcom quem me ajudou a segurar a barra, a dominar o bicho. Eu nem sonhava com esse lance de lobisomem, mas o malandro já tinha até juntado outros de nós. A gente estava em quatro na época, e nem preciso dizer que ele era o líder. Pegamos muitos trabalhos, demos jeito nos lobos problemáticos que chamavam atenção demais. Demos jeito nos vampiros que tiveram a cara de pau de dar as caras por essas bandas. E vez ou outra, alguma merda pra levantar grana.

— Tipo, roubo? — Andy perguntou, mais interessado agora.

— Isso aí. Caminhão de carga, fábrica, depósito... era só mandar um ou dois como lobo na frente e o resto aparecer pra recolher o material. As vezes era só dar susto nos caras, mas é claro que vez ou outra dava merda. E nessas horas, carinha, a gente fazia o que tinha que fazer.

O garoto notou as mãos do barman apertando com força o volante, sua voz hesitante revelando que falar sobre aquilo não devia ser fácil para o sujeito. A estrada estava quase deserta, apenas o som das vozes, do vento e motor.

— O tempo passava, gente entrava e gente saía. "Saía" é modo de dizer, a maioria morria mesmo. Nossa vida era perigosa, e não é pela gente ser durão que é imortal. Tem coisa que nem regeneração dá jeito não. Seja a roda de um caminhão passando por cima da fuça, seja uma granada, ou até um vampiro mais esperto ou foderoso. Sem falar que de dia a gente é normal... morre como qualquer outro. Mas a alcateia cresceu bem, chegou a doze cabeças.

— Boa história, ô Forrest Gump. Mas adianta aí logo pra parte de como você saiu da matilha.

— Tá, tá, seu reclamão. Isso aí rolou tem mais de quatro anos, já. Na época a gente se achava os fodões do pedaço, os reis da cidade. Os tiras sabiam que a gente era metido com coisa errada, mas não era lá muito mole pra os caras provarem. E foi aí que o Malcom levou o bando pra um trabalho mais perigoso que o normal. Perigoso demais!

— Ele disse que era o esconderijo de um vampiro dos antigos, e que o lance era acabar com ele e fazer a limpa. O problema é que na hora do vamo—ver, tinha uma porrada deles! A gente fez o que sabia fazer, mas pela primeira vez não foi suficiente. Dos doze, só sobrou metade, e isso por que a gente meteu o pé de lá. Quando voltamos, o bando estava um bagaço! O Malcom sempre foi o mais forte, mas nem ele deu dentro com os sangue-sugas. Nem o corpo dos nossos parceiros deu pra salvar, e isso era muito humilhante pra gente.

"A culpa é toda tua!", o Steve gritou com o Malcom, o primo adolescente fazendo coro. "Nunca mais a gente confia em você". O cara era um lobo bem fortão, e quis aproveitar aquele momento pra tentar tomar o lugar de líder, que foi o que sempre quis ser mesmo. Além da gente, tinha o Bóris e a Peg, que está grávida agora. Todo mundo fiel ao Malcom.

— Já vi que deu merda — disse o Andy, notando o ar tenso do seu mentor de lua cheia. — Ele não ia deixar barato.

Jimmy exibiu um sorriso triste, antes de dizer:

— Não mesmo. A resposta foi bem rápida, cara. O Malcom arrancou um olho do sujeito só na primeira mordida... acho que ele ainda tentava entender o que aconteceu enquanto teve o pescoço arrancado de cima dos ombros. A gente olhou assustado, nunca tinha visto ele daquele jeito antes. O garoto gritou, desesperado. E então o Malcom olhou pra ele... os olhos vermelhos de puro ódio. Eu pedi cara, implorei pra ele não fazer aquilo. Não adiantou. "Teu primo era um merda", Malcom disse pra o garoto, totalmente em choque. "Tô sentindo cheiro de merda em você também". Ele enfiou as garras na barriga do garoto, uma mão, a outra, e então puxou! O moleque foi rasgado ao meio... cena horrível, de dar pesadelos.

Aquelas palavras fizeram o garoto se lembrar dos próprios pesadelos. Das próprias lembranças, tão terríveis quanto assustadoras. Seria ele um monstro como Malcom? Jimmy esperou o garoto digerir aquilo, para então prosseguir.

— "A matilha vai crescer de novo", prometeu ele, após se acalmar. A gente já sabia de dois ou três com cheiro de lobo naquela época, e que logo, logo, passariam pela transformação. A Evelyn, o Jeff, "e daqui a uns anos, a tua irmãzinha", ele falou. "O sangue de lobo é forte na sua família, ela com certeza vai virar também".

— Então você saiu por causa da Mandy? — o ladrão questionou.

Jimmy apenas balançou a cabeça, em confirmação.

— Minha irmã tinha onze aninhos na época, cara. Como é que eu podia meter ela naquele mundo escroto?

— E o chefão deixou você vazar assim?

— Fiz mais uns trabalhos com o bando. Guardei toda a grana e, quando já tinha uma bolada, entreguei nas mãos dele. Era minha carta de alforria, cara. Só que o safado não aceitou. A gente caiu na mão, mesmo. Ele bateu com força, com raiva. Mas apesar de tudo, ele ainda era meu amigo. No fim ele estava sentado do meu lado, me abraçando. Aquela foi a única vez que vi o cara chorar, isso desde que o pai dele morreu.

— Então depois disso ele deixou vocês de boa?

— Usei a grana que já tinha guardado e juntei com o bolo que ele não aceitou, pra montar o meu bar. Comprei o lugar do senhor Freeman, reformei e mobilhei. As vezes ele dava as caras por lá, sozinho ou com o bando. Só que nossos mundos já eram outros, e ele passou a aparecer cada vez menos. Com o tempo, e já com os lobos novos, ele passou a ser mais marrento comigo, mais pra manter a moral em alta com os dele que de verdade mesmo. Sei que ele logo, logo, vai ser pai... quem sabe isso mude o cara pra melhor, vai saber.

No fim da conversa, Andy estava realmente surpreso com toda aquela história. Quem diria, Jimmy e Malcom, amigos? Não era algo que alguém fosse imaginar. Eles pouco falaram enquanto faziam as compras, e depois de carregar as sacolas até o carro, pararam em frente a um lago, tacando pedras na água.

— Mas e você, garoto? Você nunca falou sobre a noite que eles te levaram lá do bar — perguntou Jimmy, olhos fixos nas águas cristalinas.

— Os babacas me arrastaram com uma arma nas costas e uma cacetada na cabeça — disse ele, apontando para as partes mencionadas no corpo. — Depois ele veio com o blábláblá de "Friends lobisomens", e resolveram fazer a dancinha do lobo pelado. Como mandei geral se catar, o careca quis me intimidar e me descer a porrada.

— Jeff, eu imagino.

— Só que aí o negócio ficou doido, eu virei lobo também e bati nele até cansar. — Andy fazia os gestos dos golpes, ilustrando seu espancamento.

— Sei, e o Malcom?

— Riu que nem maluco, daí me deixou meter o pé.

Jimmy riu, talvez imaginando a cena.

— Fique feliz de ter conquistado o respeito dele. Se o Malcom quisesse matar você, não sobraria nada pra contar história.

Foi a vez do garoto rir.

— Eehhh, nem parece o cara que peidava pra mim quando eu ficava locão.

— Você é forte, cara. Mais forte que qualquer novato que eu já vi, ou qualquer um daquele bando atual. Só que o Malcom, ele é assustador. Nunca vi lobo que nem ele. Pra seu próprio bem, nunca arrume briga com ele.

— Bom, é só ele não puxar briga comigo, então — respondeu ele.

— Mas é muito do marrento mesmo, hein, garoto? — disse o barman, esticando os braços. — Tá a fim de uma brincadeirinha rápida aqui pra aquecer?

— Se for troca-troca igual você fazia com o Malcom, dispenso. Agora, se for uma luta... vamos nessa.

Andy e Jimmy já haviam se encarado repetidas vezes durante esse tempo, mas sempre como lobisomens. O garoto tinha dezesseis anos, e o homem trinta e dois. Jimmy era maior, mais robusto e mais forte, mas o garoto já havia derrubado muitos outros em iguais condições. Diante disso, ele se aqueceu, logo assumindo uma base de braços flexionados a frente e joelho erguido, típico de lutadores de Muay Thai. Jimmy manteve a guarda aberta, relaxado e sorridente.

O lobo rebelde logo encurtou a distância entre eles, usando uma finta com o punho para acertar uma joelhada no queixo do barman, que surpreso, caiu de bunda no chão.

— Essa fica de aviso. Na próxima que cair, eu te finalizo — afirmou o garoto, sorriso confiante.

— Tá bom, cara, já que você sabe mesmo brigar, vou levar a sério — e dito isso, Jimmy se ergueu, fechando a guarda e partindo para cima com tudo.

Jab, direto, cruzado, gancho. Finta, jab, cruzado, direto, gancho. Andy se focava em esquivar, surpreso com as habilidades do adversário. E ao se ver encurralado contra o rio, teve que começar a bloquear. O problema é que a mão do barman era pesada, e logo um cruzado bem dado jogou o garoto contra a água.

Jimmy gargalhou pela cena cômica, postura de super herói, ao dizer:

— Com essa eu pago seu aviso.

Andy saiu da água fria com cara de poucos amigos e disposto a tirar aquele sorriso da face do sujeito.

— Sua trocação não é nada mau, o que que você fez de luta?

— Meu pai foi boxeador profissional, cara. E o velho adorava ensinar o filhão aqui. E aí, vai desistir?

A resposta veio na forma de uma ofensiva agressiva, com Andy executando uma série de potentes chutes na canela, fazendo o boxeador ceder. Jimmy usava os socos fracos para medir distância e entrar na guarda de um adversário menor e mais ágil, que desviava dos punhos e contra-atacava com chutes nas pernas, parte mais vulnerável do adversário.

Mas, embora Andy desviasse da maior parte dos golpes, vários jabs entravam, e por duas vezes um direto que quase o levou a lona. Jimmy devia estar admirado com a capacidade daquele adolescente absorver seus golpes pesados, mesmo com uma diferença tão grande de peso entre eles. Não só isso, mas por se ver pressionado por um garoto que castigava suas pernas repetidamente. Fora as joelhadas, chutes no tronco e cotoveladas que entravam.

Andy estava ficando animado com a luta, vendo sinais claros de cansaço e diminuição de ritmo do adversário. Era claro que um soco bem encaixado do seu tutor ainda resultaria em nocaute, mas ele percebia que sua estratégia de focar nas pernas, esquivar e usar chutes no tronco para manter a distância funcionava muito bem. Andy ainda provocava, mas o oponente não era tolo para responder as provocações em palavras, perdendo ainda mais do pouco ar que tinha. Eles se encaravam... olhos semicerrados, sorriso no rosto, ambos sedentos por terminar a luta.

E avançaram! Jimmy buscando o nocaute, Andy buscando acertar outro chute potente nas pernas já fracas do rival, para vê-lo cair e terminar o trabalho. Olhos fixos, movimentos rápidos, foco na vitória... e som de sirene.

— Parados, isso é uma ordem! — ordenou pelo rádio da viatura, a policial já conhecida.

Os dois quase caíram pela parada brusca, recuperando o ar em seguida. Olharam para ela, e depois para si. Emma se aproximou lentamente, encarando com olhos recriminadores os machucados dos dois.

— Senhor Duncan, explique-me o que está acontecendo aqui, por favor.

Jammes pôs as mãos na cintura, visivelmente cansado e envergonhado.

— Só... uma... brincadeirinha... Emma.

— Senhora policial, pra você. E que bonito, trocando murros com um menor de idade, parabéns! — disse ela, aplaudindo em deboche.

— Sei me cuidar... tia — disse Andy, respirando ainda com dificuldade.

— Não falei com você, marginalzinho. Estou falando com o irresponsável aqui. — E o olhar com mão no cabo da arma, calaram o garoto lobo.

— Foi só um treino, Emma. Queria ver se o garoto aqui derrubava alguém com um golpe.

— Verdade? Bom, ele eu não sei, mas eu sim derrubo um homem com um golpe só — afirmou a policial, mãos para trás e sorrindo ao notar o olhar apreensivo do noivo. — E não precisa ter medo, garanto que não inclui chutar suas bolas.

Jimmy começou a rir, mas logo seu riso se transformou em um grito, enquanto recebia uma descarga elétrica direto no pescoço, graças ao teser usado pela policial. Ele caiu no chão, gemendo baixo.

— Viu? Um golpe só! — disse ela, para um garoto molhado que recuava daqueles olhos castanhos e assassinos.

Minutos depois, um Andy já seco com um pano qualquer via o casal se despedindo, em meio a beijos, apalpadas e brincadeiras. Eram um casal divertido de se observar. Em breve casados... e a família Duncan aumentaria.

Já de volta, Jimmy encarou o garoto, colocando a mão em seu ombro.

— Bom, agora que já sabe meus podres, pode se abrir comigo, cara.

Andy jogou a última pedra no lago, que quicou várias vezes antes de finalmente afundar.

—... prometi foi nada. — E saiu de lá, voltando em direção ao carro, sob os protestos de um lobisomem indignado.

Ele não falaria sobre aquilo. Não conseguia se abrir assim com ninguém, nem mesmo com o Jimmy. Mas saber que seu patrão e mentor era humano como ele, que também já tinha errado como ele, isso ajudava. Ele estava aprendendo, tomando o controle sobre o monstro interior, e não queria assustar ninguém dizendo que quando perdeu o controle matou conhecidos e comeu carne humana. Pois isso, nem o Jimmy teria feito, com certeza.

Ele fazia parte daquela família agora, e aquilo era bom. Não podia arriscar tudo sendo sincero demais... tinham coisas que não eram feitas pra se dividir com ninguém, pensou. Não podia arriscar perder o Jimmy. Não, não podia arriscar, perdê-la. Perder a Mandy.

***

O silêncio da manhã foi quebrado pelo som de tiros.

Andy abriu os olhos assustado, totalmente alerta, ciente da proximidade dos tiros. Em um instante se pôs de pé, deixando para trás o velho colchão cercado por suas coisas. Lembrou-se que desde que chegou a Bleak Hill a única vez em que ouviu esse som foi quando a matilha atacou a vampira e o playboy. E isso lhe deixou com um péssimo pressentimento.

Vestindo apenas uma um conjunto de moletom em uma manhã fria, descalço e descabelado, avançou em direção a escada que levava a cozinha. Quanto mais próximo, mais sútil, silencioso... e atento. Felizmente para ele, a tampa que levava ao sótão estava trancada por dentro, como ele exigiu que fosse, após ser pego mais de uma vez pelo casal de irmãos, trocando de roupas ou assistindo programas adultos na tv. Faziam de propósito, era certo. Andy sabia que eles eram desse tipo. Mas agora a chave dali era sua, prova de ser senhor daquele pedaço de território, de que foi totalmente aceito naquela estranha e divertida família. Família que agora estava ameaçada.

O garoto abriu a escotilha sem quase fazer sons. Abaixo dela, som de passos pesados e de outra pessoa se debatendo. Ele observava ainda escondido, apenas o suficiente para enxergar o grande e gordo homem que carregava Mandy Duncan nos ombros. Boris, lembrou-se.A matilha, Andy se deu conta. Jeff... Malcom!

Descendo pela escada, deu de cara com uma jovem com olhos cerrados de ódio e rosto machucado. Os olhos dos dois se encontraram, e ele viu medo neles. Medo, mas também ternura. Se... esconde — Andy leu os lábios, em um pedido aflito. Mas era óbvio que o garoto não faria aquilo, atravessando a porta semiaberta e acelerando na direção de um Boris que ignorava sua presença ali. De repente, uma rajada de tiros foi disparada em direção ao garoto. Ele desviou por reflexo, se jogando para trás de uma divisória da cozinha de cerca de um metro.

— Hoje é meu dia de sorte — disse Jeff, balançando uma semiautomática na direção do esconderijo. — Quem diria que o filho da mãe se escondia bem aqui?

Mandy gritou, assustada. Boris parou um momento, olhando para o careca de piercings que exibia um sorriso amarelo e sádico, de quem esperou muito por essa chance. Então simplesmente retomou seu caminho, ignorando os chutes que a garota tentava acertar, já sem forças.

— Vê se não apanha de novo, careca. Esse aí não está no trato, pode virar carcaça — disse Boris, com sua voz potente.

— Cala a porra da boca, e leva logo o pacote, baleia! — gritou Jeff, Andy ciente por uma fresta que ele buscava melhorar seu campo de visão para acertá-lo. — Se sair calminho e com as mãozinhas pra cima não vou encher você de bala, tá ligado?

Andy tentava pensar com clareza, criar um plano para se livrar do inimigo e chegar até o Boris antes que ele fugisse com a Mandy. Tentava não pensar no que poderiam ter feito com o Jimmy e a Emma. Tentava não lembrar do que o líder da matilha disse sobre o Boris na noite em que foi apresentado ao bando "as vezes come até gente". Só que a raiva foi mais forte.

— Tá surdo, maluco? — insistiu Jeff — Já mandei...

Antes que terminasse a frase, Andy saltou como um gato por cima daquilo que estava entre eles. Sem plano, apenas confiando na própria velocidade. Por um instante Jeff hesitou, olhos nos olhos, talvez lembrando da noite em que quase foi morto por ele,e travando. Foi por só um instante, mas foi o tempo que o garoto precisava. Andy se jogou contra ele, fazendo ambos se chocarem contra o armário da cozinha! Após uma chuva de objetos caindo sobre eles, e de uma sequência de tiros desperdiçados, Andy derramou sua fúria sobre o homem, uma chuva de murros descendo freneticamente sobre um inimigo desestabilizado. A arma caindo da mão do motoqueiro.

Jeff tentou revidar, mas a verdade é que o garoto era excepcionalmente rápido e forte, fazendo o sujeito cuspir dentes e sangue. Andy bateu, bateu e bateu novamente, liberando a raiva e frustração em cima do lobo desgarrado. Cego pelo ódio, não percebeu a aproximação da pessoa que desceu as escadas. Muito menos a pistola que ela apontou em sua direção, apenas ouviu o som do disparo e sentiu o corpo deslizar para o lado.

— Ai, ai. Apanhando de novo, hein Jeffinho? — brincou Evelyn, usando uma toca que escondia o cabelo e metade do rosto.

Enquanto ela se mantinha a uma distância segura apontando a arma, Jeff se arrastava para longe do garoto, que levou a mão ao ombro ferido.

— Pena tudo acabar assim, hein, gatinho? — esnobava, exibindo um sorriso zombeteiro e brincando com a arma. — Se tivesse se juntado a gente... mas pelo jeito, preferiu ficar brincando de casinha.

Andy assistiu ao sujeito chegando até a porta e se escorando nela para se pôr de pé. Ouviu o som do jipe sendo ligado, onde sabia que o Boris fugiria com a Mandy. Então viu uma chance.

— Eu até queria ficar tirando uma da sua cara, mas tenho compromisso, então...

Mas não teve tempo de terminar a frase. Andy agarrou uma panela com o braço bom e arremessou com toda força contra a cabeça da garota. Evelyn disparou duas vezes antes de ser atingida, mas o garoto era rápido o suficiente para rolar ao mesmo tempo em que fazia o ataque. Ela caiu de joelhos por conta do impacto de raspão, que se pegasse em cheio, a deixaria apagada ou morta.

— Filho... da... puta. — Levando a mão a cabeça, ela escorregou pela parede até ficar sentada. Em um momento, Andy já havia retirado a arma da sua mão.

— Você vai ficar aqui esperando, vadia — disse ele, disparando na perna dela.

Evelyn gritou de dor, rolando pelo chão e resmungando xingamentos e palavras sem sentido. Andy correu até a porta, ignorando a dor do ombro latejando. Quando viu a rua, percebeu que o jipe já estava longe, acompanhado de uma moto pilotada pelo Malcolm, ambos fora de alcance. Ele sentiu a frustração sufocante... e então viu o Jeff.

O motoqueiro subia na moto com dificuldade, ainda zonzo e acabado pela surra. Quando o veículo percorreu os primeiros cinco metros, seu piloto foi atingido por uma bala na coluna, caindo com a moto por cima e em pleno movimento.

— Merda... merda... merda... — entre grunhidos de dor, o homem caiu de rosto virado para cima.

Andy seguiu com passos lentos na direção dele, parando com olhos cheios de ódio e mão segurando firme a pistola. Ao vê-lo, Jeff pareceu perder a voz, esquecendo até mesmo da dor. No garoto, olhos de um predador esperando para dilacerar a presa já abatida.

— Andy... cara.... você precisa de mim — falou, com lágrimas nos olhos. — Eu sei onde eles vão, cara. Posso levar você até o Malcom e sua menina.

O garoto apenas o encarou com desprezo mudo.

— Só deixa os tiras levarem a gente para o hospital — Gemido de dor —, a noite a gente se transforma e fica bom, daí ajudo você a pegar o Malcom.

— Eu devia ter matado você naquela noite. Devia ter acabado com todos vocês — Andy cuspiu as palavras, junto do sangue que sentiu na boca.

— Ju- juntos, cara! — Jeff pareceu se desesperar mais, com a tensão aumentando — Eu ajudo você a salvar a Mandy, ajudo a matar o Malcom e até a sair da cidade se quiser. Arranjo uma grana pra...

— Devia ter matado — Andy apontou a arma para a testa de um homem desesperado —, e vou matar.

— Não, não, não... — E a vida e súplicas do Jeff foram interrompidas por uma bala que se alojou dentro do crânio.

Em meio ao fraco som de sirenes distantes, o garoto caminhou de volta até a casa, sentindo o sangue escorrendo do ombro por todo corpo. Ele passou com dificuldade por uma porta arrombada, depois por uma cozinha cheia de buracos de bala e, com passos lentos, subiu a escada que levaria aos quartos da Mandy e do Jimmy, ignorando a porta que dava na escadinha que levava ao sótão onde dormia. Emma devia estar com o Jimmy, dormia lá desde que teve a perna quebrada. Ignorou no caminho uma Evelyn chorosa, que apertava a perna baleada e encharcada de sangue, tremendo de medo ao ver a face do assassino do seu parceiro de matilha.

Andy subia, mas com passos pesados de medo. Não medo da matilha, da polícia, de vampiros ou lobos. Ele temia o que podia encontrar lá, temia o que podiam fazer com a garota mais interessante que já conheceu.

Medo de voltar a ser apenas um lobo solitário. 


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado do capítulo, já que nosso garoto-lobo estava sumido já faz um tempo. O ritmo agora só tende a acelerar.



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