Filhos da Noite escrita por Rick Batista


Capítulo 12
Farejando a Noite


Notas iniciais do capítulo

Acho que o título já entrega sobre quem é o capítulo, certo?



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Naquela noite, a praça central de Bleak Hill estava um formigueiro. Aquela era uma cena que só se via uma vez por ano, no aniversário de fundação da cidade. Barracas de comes e bebes, feira de artesanato, circo e parque de diversões. Um palco montado ao lado da estátua de um dos fundadores era revessado pelas autoridades e artistas locais. Andy caminhou por entre a multidão com naturalidade, acostumado a cidades grandes e tumultos, diferente da maior parte da população de lá.

"Se eu fosse você, ia lá se divertir", disse Jimmy, o dono do bar no qual Andy vinha comendo e dormindo em troca de dar uma mão na limpeza. "Já beijei muitas gatinhas nessas festas, quando tinha sua idade".

Andy resolveu seguir o conselho, mas não estava atrás de gatinha nenhuma.

— Vê se olha por onde anda, garoto! — reclamou o homem bem arrumado em que ele esbarrou. — Ninguém mais tem educação, meu Deus.

Ele sequer olhou pra trás ou respondeu, o capuz do casaco escondendo sua identidade do sujeito de quem roubou a carteira. Era a terceira aquela noite, e após separar o dinheiro no bolso, o garoto largou o objeto pelo chão, com os documentos e cartões que não lhe interessavam. Uma noite especialmente lucrativa, ele devia mesmo uma ao Jimmy.

De repente, sentiu um cheiro diferente, que com dificuldade reconheceu como algo sobrenatural. "Seria o tal cheiro de vampiro do qual a garota falou?". Não, concluiu ele, era um cheiro familiar: Cheiro de lobisomem!

O garoto se virou rapidamente na direção do odor, corpo retesado, pronto para dar de cara com a gangue de lobos, o líder Malcom ou quem sabe com o sujeito que deixou em frangalhos na noite em que conheceu a matilha. Mas o que viu foi um cachorro quente em direção dos olhos, e segurando o alimento, o próprio Jammes Duncan.

— Quem não deve não teme, tá assustadinho, é? — perguntou ele. Jeans, blusa sem manga e tênis, comendo um e estendendo o outro ao garoto.

Ao lado dele, Mandy Duncan. Calça jeans rasgada e casaco, cachorro quente gigante em uma mão e lata de refrigerante na outra. Bebendo de canudo e com olhar de peixe. Andy mordeu seu lanche, falando de boca cheia:

—... fi graçaaafe injefao na testa. — E depois de um tempo mastigando. — Minha garganta tá seca, arruma algo pra beber, também.

— Mas que mal agradecido. — Jimmy riu, batendo com força nas costas do garoto e depois pedindo o refrigerante para o dono da barraca.

— É um passa-fome mesmo — soltou a garota.

— Mas vejam só quem eu encontrei. — Andy logo reconheceu a voz, além do bafo de tabaco. — O maldito pirralho que destruiu minha hospedaria!

A voz era do velho Fremman, coincidentemente, dono da barraca em que os irmãos compraram o lanche, e outros trabalhavam.

— Tá falando de que, velhote? Desde quando quebrei alguma coisa? — questionou Andy, tentando esconder seu nervosismo.

— Lembro muito bem daquela noite, molecote, e aqui está meu braço quebrado que não me deixa esquecer. — E o trio viu o braço enfaixado do velho. — Você bagunçou o quarto todo quando virou aquela coisa, deixou seus trapos rasgados e depois ainda arrombou a porta comigo no caminho. E vai pagar caro por isso!

Andy desviou da bengala que o velho balançou em sua direção, com Jimmy tomando a frente.

— O que eu fiquei sabendo, senhor Fremman, é que tua pensão foi invadida por um cachorro dos grandes, não foi isso não? — Jimmy perguntou. — E que a porta tava tão podre que o bicho quebrou ela fácil, fácil, destruindo inclusive as roupas do garoto. Disseram até que era Deus te dando uma lição pra reformar aquilo lá.

— Que cachorro o que! O bicho era grande como um urso, arrombou a porta que nem papel e ainda me derrubou. E era ele, sei bem o que vi.

Os dois adolescentes sorriram do velho nervoso.

— Então o senhor tá dizendo que o garoto aqui era o cachorro? É isso mesmo? — Jimmy perguntou, com a expressão de quem falava com uma criança.

— Alguém anda exagerando na vodka, pelo jeito — Andy emendou.

O velho faltou quase espumar de raiva, seus ajudantes mantendo distância e o trio começando a se afastar de lá.

— Sei bem o que esses olhos viram, pirralho dos infernos! Os idiotas dessa cidade podem ter ficado cegos com o tempo, mas os Freemans ainda lembram bem que tipo de coisa se esconde nas noites de lua cheia!

Andy ficou mais abalado com as últimas palavras.

— Não esquenta com isso — disse o barman. — A cidade sempre teve lendas de lobisomens, faz parte da cultura já. A verdade é que ninguém levaria a sério um velho como ele.

Andy deu uma última olhada na direção do velho, imaginando porque ele não se engasgava com a própria saliva e deixava a herança pra família restante, de uma vez.

O trio passou as horas seguintes aproveitando as atrações da festa, os jogos e brinquedos do parquinho. Fosse bater com o martelo no alvo no chão, em que Andy ficou frustrado ao ser superado pelo barman. Fosse o carrinho bate-bate, em que a garçonete ficou zombando do garoto até ele se estourar e pular em cima do carrinho dela: sendo expulso do brinquedo, obviamente. Fossem os jogos de dança, em que o casal de irmãos conseguiu ganhar de todos os desafiantes... E esse o jovem lobo sequer tentou.

Jimmy pagou tudo, e o garoto não se mostrou nem um pouco envergonhado em aproveitar. E após se divertirem, pararam em frente a uma barraca de doces que Mandy atacou, quando ele reparou uma jovem policial olhando para ele: a mesma que o levou na viatura, lembrou-se.

O garoto tentou não chamar atenção, fingindo não reparar a ruiva o encarando. Quando olhou de novo, percebeu com alívio que ela não estava mais lá.

— Você ai, fique onde está e ponha as mãos onde eu possa ver — voz da policial, bem atrás dele.

Andy ficou paralisado, sem se virar e olhando para o chão. Tanta hora para ser pego, e tinha que ser logo diante deles? Diante dela, pensou.

Quando enfim se virou, encontrou Jimmy agarrando a policial pela cintura, enquanto trocavam um beijo intenso. Viu que a Mandy o observava com curiosidade, percebendo seu nervosismo.

— Pelo jeito, alguém está mesmo devendo — sussurrou ela.

— Desculpa ai crianças, mas tem uma tira malvada me levando pra uma revista — falou o jovem, enquanto a policial algemava uma de suas mãos.

— Pode fazer seu trabalho, Emma — disse a garota, depois apontando para o Andy —, mas e esse aqui, tem certeza que não precisa prender também?

Emma se aproximou dele, deixando o garoto ainda mais tenso.

— Valentine, o rapazinho que gosta de passear pelo quintal dos outros — falou, com um sorriso no rosto. — Sabe o que é engraçado, Valentine? Há anos não tínhamos uma denúncia de furto nessas festas, e foi só você chegar na cidade que só hoje tivemos três.

— Eu tô limpo, quer me revistar? — perguntou ele, ar de deboche.

Emma ignorou o garoto, puxando Jimmy pela algema.

— Tchau, Mandy. Prometo que devolvo o traste depois do interrogatório. — E encarou Andy de forma a deixá-lo desconfortável. — E você, comporte-se, hein garoto. Lembre-se que a polícia está sempre de olho.

— Isso mesmo, e sem gracinhas com minha irmã, hein! — emendou Jimmy.

O casal adolescente encarou o barman, e depois se encarou com a mesma expressão. Jimmy e Emma se afastavam entre brincadeiras, deixando os dois lá sozinhos. Andy sentiu-se tenso depois de tudo aquilo, e ficou pensativo. Após alguns minutos, a garota chutou a lata vazia de refrigerante, dizendo:

— Vem comigo, ô Scooby.

Eles seguiram em meio à multidão de famílias, crianças choronas, cheiro de comida, vômito e urina. Quando o garoto deu por si, estava na entrada da floresta com ela, a irmã adolescente do homem que o ajudou a se controlar no período de lua cheia. Então se deu conta do que poderia significar estar indo para o meio do mato com uma garota. Ele logo ficou vermelho, tentando disfarçar pensando em outra coisa.

Ela parou em um local deserto, com exceção dos dois. A lua brilhando no céu, as cigarras cantando e as luzes do parque e da festa já distantes.

— Tira a roupa, quero te ensinar uma coisa — disse ela, ar de desinteresse.

Ele empalideceu, sem saber o que fazer.

— Como é? — perguntou Andy, sem acreditar no que estava acontecendo.

Ela simplesmente deu um peteleco no nariz dele, respondendo.

— Você não ficou se mostrando na quadra, achando que é melhor do que eu? — ela perguntou, sorriso maldoso no rosto — Pois eu garanto que nisso eu sou melhor que um moleque inexperiente como você.

Em seguida Mandy começou a se afastar, tirando o tênis e levantando a blusa, já de costas para ele. A verdade é que Andy nunca namorou antes, e mesmo já tendo ficado com uma ou outra garota em sua antiga cidade, nunca foi além de alguns beijos e amassos. De modo que sexo pra ele ainda se resumia ao que um adolescente fazia sozinho no quarto. Seu coração estava acelerado, uma certa parte do corpo começando a reagir, suor escorrendo e a cabeça a mil.

— Já é então! — respondeu animado, começando a tirar a roupa o mais rápido que podia, "antes que ela mudasse de ideia".

— Vem logo, eu já tô pronta! — gritou a garota, já fora da visão dele.

— O Jimmy vai me matar se souber — disse ele, só de calças —, mas dane-se, até que vale o risco.

Andy Valentine se aproximou de onde esperava encontrar uma garota nua e querendo sexo, mas acabou não achando nada além de roupas espalhadas pelo chão. Confuso e frustrado, procurou por algum sinal dela. Após dez passos, sentiu uma pancada na perna, caindo de bunda no chão. Diante dele uma loba, pelo marrom e olhos brilhantes, rodeando o garoto. Ele ficou um tempo olhando, até deduzir.

— É você, Hello Kitty?

A loba balançou a cabeça afirmativamente, ganindo de modo que lembrava um riso. Depois correu para a direção de uma árvore de onde instantes depois, se ouviu a voz da jovem garçonete:

— É claro que sou eu, era isso que eu queria te ensinar. — Deixando o rosto e o braço visíveis, sorriso maldoso. — Pensou em outra coisa, foi?

Ele se ergueu, tão corado quanto irritado.

— Tô caindo fora, detesto essa coisa de virar lobo! Seja lobo grande ou pequeno.

E foi embora, deixando uma garota gargalhando sozinha na floresta.

***

Depois de ser vítima da pegadinha da Duncan, o rapaz andou sem rumo pela estrada, refletindo sobre os rumos que sua vida vinha tomando. Estava numa cidade dominada por lobisomens como ele, tinha uma policial no seu pé e ao menos um velho que sabia exatamente o que ele era. Não bastasse isso, a matilha sempre poderia ser uma pedra em seu sapato se cismasse com ele. O que faria, afinal?

Sua atenção foi atraída pelo som de tiros, distantes. Tiros que ecoavam no silêncio da noite. Andy começou a correr por instinto, algo lhe dizendo que os tiros vinham da direção daquele casarão sombrio. Enquanto correu, ouviu sons de uivos — o som da matilha. Aquilo deveria afastá-lo, mas a verdade é que só aumentou sua vontade de chegar até eles.

Por pura coincidência o bando passou por ele, vultos monstruosos correndo sobre quatro patas, seu deslocamento balançando o cabelo do garoto, até um parar diante de si. Jeff.

— Você está seguindo a gente, moleque? — Jeff perguntou, olhos cheios de ódio.

— Tenho coisa melhor pra fazer, ô carecão — respondeu ele, sorriso no rosto. — Mas se quiser apanhar de novo, pode vir. Vou até me esforçar pra te deixar vivo.

Quando Jeff começou a avançar em direção ao garoto, foi detido por uma mão forte que o segurou pela pata traseira. Saindo das sombras, o lobisomem chamado Malcom.

— Já disse pra deixar o Valentine em paz.

Jeff urrou de raiva enquanto correu para longe dos dois. Malcom lentamente se aproximando daquele que rejeitou seu convite para o bando.

— O que faz por aqui, Andyzinho? Longe de casa, não acha?

Andy não se intimidou, olhando nos olhos do monstro gigante.

— Eu sou livre pra andar por onde quero.

Malcom soltou sua respiração forte na face dele, um sorriso sinistro em sua bocarra cheia de presas.

— Pode ser. Mas toma cuidado por onde anda... pra não se intrometer nos negócios dos outros.

O lobo sumiu no escuro da noite, enquanto o som de uma sirene se fez cada vez mais próximo. Andy notou a aproximação da viatura com a policial ao volante e seu parceiro ao lado.

— O que o rapazinho está fazendo por aqui? — Emma perguntou, parando ao lado dele. — E onde está a Mandy?

Andy não pôde deixar de notar o estranho casal no banco de trás. Um sujeito alto e cabeludo, ao lado de um mulherão de cabelos castanhos e um belo par de seios. Os dois sujos de sangue e com as roupas em farrapos.

— Cansei da festa e resolvi dar um rolé, sozinho — respondeu, olhando para os dois. — Que eu saiba, nem é crime.

O homem lá dentro não dedicou muita atenção a ele, mas a mulher deu uma piscada que o deixou constrangido. E depois sorriu com sua reação.

— Eu te oferecia uma carona, mas tenho que levar esses ai para o hospital com urgência. Vai ficar bem?

— Ah, policial. Ele pode vir aqui apertadinho comigo se quiser — provocou a mulher, notando o olhar do garoto em seu decote.

Andy apenas desviou o olhar, com um meio-sorriso.

— Eu tô de boa, segue ai — e ao dizer isso, se afastou do carro.

A viatura deu partida, seguindo seu rumo. Deixando um garoto fungando para o nada, tentando identificar o estranho perfume que sentiu naquela mulher.

Um cheiro diferente... de alguma forma sensual, pensou ele. Um cheiro bom, mas que ao mesmo tempo parecia esconder algo de muito errado.

Ele viu a viatura sumindo nas curvas da estrada, enquanto continuava parado, concentrando-se naquilo.

O que aquele cheiro o lembrava? Então veio a sua mente a imagem do enterro do avô, quando ainda era uma criança. O cheiro das flores, do caixão, da terra...

—... Lembra a morte — disse ele, para ninguém.


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Notas finais do capítulo

Próximo capítulo: Adam, Claire, Jeanne...



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