A incrível jornada de um lírio doente. escrita por Mestre do Universo dos Vermes


Capítulo 1
A longa e perfeitamente razoável jornada.


Notas iniciais do capítulo

Pela primeira vez em muito tempo, acho que não se qualifica em "paródia".
Mas ficou bem legal!

Dedico à LittleHobbit!



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/737947/chapter/1

 

                Era uma vez um jardim numa fazenda. Era um lugar bonito... Árvores, animais, fazendeiros, flores, vacas, natureza e essas coisas campestres. Nesse jardim, havia várias flores: rosas, margaridas, girassóis, lírios, damas da noite e todas essas flores coloridas que você dificilmente achará na cidade. Afinal, quando não se tem internet ou TV, cuidar do jardim vira uma das poucas formas de diversão além de ordenhar vacas e tirar água do poço.

            Enfim, nesse jardim havia um lírio. Devia ser apenas um lírio normal, comum e ordinário como qualquer outro... Mas não era! Porque, num belo dia, esse lírio em especial pegou uma doença e começou a tossir e espirrar.

            — Cof Cof Cof.

            — Uau, parece que você pegou uma gripe feia. Quer um chazinho? — Sua amiga, uma bela margarida, perguntou gentilmente. Os dois eram amigos desde que eram mudinhas, o que se deve principalmente a ambos terem sido plantados lado a lado.

            — Cof Cof... Não... Cof... Isso não pode ser uma simples gripe, eu me sinto acabado! Cof... Aposto que é alguma coisa séria! Eu devia ir ver a bruxa do topo da montanha, dizem que ela cura qualquer coisa!

            — Hm... Sei. — A margarida pareceu descrente. — E posso saber como você sabe disso? Você nunca saiu desse jardim!

            — Ah, sabe como é... A fofoca corre por aí. Enfim... Acho melhor eu ir atrás dessa... Cof... Bruxa e pedir para ela me ajudar.

            — Sei. E como pretende fazer isso?

            — Uh... Pode me ajudar a arrumar um vasinho?

            — Ai ai, nem sei por que ainda pergunto...

            Ao entardecer, o lírio já havia conseguido seu vasinho e, cuidadosamente, tirou suas raízes do chão e se replantou no pequeno vaso de planta.

            — Muito bem! Agora eu estou pronto para ir! — Ele sorriu e deu alguns pulinhos em seu vasinho em direção à saída. Isso é, até que se lembrou do cão de guarda.

            O cão de guarda da fazenda era um ser demoníaco com dentes afiados, orelhas grandes, pelo negro e uma grande sede por sangue. Isso mesmo, era um pinscher.

            O lírio tinha esperança de que, por ser noite, esse ser das trevas estaria dormindo. Mas o mal nunca dorme! E, quando ele chegou perto dos limites da fazenda, o pequeno ser raivoso rosnou para ele.

            —Grrrrrr.

            Entretanto, essa ameaça não acabou com os planos da flor e, após pensar um pouco, ele pediu ajuda às damas da noite, que sempre estavam acordadas a essa hora. Ele pediu que elas jogassem seu perfume forte sobre o pinscher e, assim, ele perderia o olfato e ficaria desorientado. Elas fizeram como foi pedido, mas o pinscher, como um bom rato demoníaco das trevas, não se abalou e apenas ficou com mais raiva.

            — GRRRRRRRR!!!!!!!!!

            O lírio, então, teve uma ideia. Ele prontamente subiu num banquinho e pulou na borda de um velho poço. Uma vez lá, ele chamou o cachorrinho demoníaco e, antes que o Pinscher pudesse alcançá-lo, ele pulou sobre sua cabeça e o desmaiou. Em outros cães, talvez ser atingido na cabeça por um vaso de planta fosse fatal, mas no ratinho cabeça dura das trevas causou apenas uma pequena perda de consciência.

            Vitorioso, o lírio saiu pulando com seu vasinho. E ele pulou e pulou e pulou até chegar numa pequena vila. O sol já havia nascido e ele percebeu que estava com sede, muita sede, muita sede mesmo. Infelizmente, o céu estava azul, limpo e sem sinal de nuvens de chuva, mas isso não abalou o pequeno lírio, que decidiu comprar uma garrafa d’água.

            No meio do caminho, ele percebeu que não tinha dinheiro, então pulou até uma agência de empregos para trabalhar e ganhar dinheiro para comprar água. Porém, o mercado de trabalho elitista e segregacionista não contratava flores, principalmente flores caipiras sem currículo, e ele acabou voltando para a rua desempregado. Por sorte, o lírio tropeçou numa moedinha no meio do caminho e pôde comprar água... Mas ele não achou ninguém vendendo água e comprou um refrigerante na máquina mesmo.

            Ele abriu a latinha, derramou o conteúdo sobre a terra de seu vasinho para absorvê-lo com suas raízes e, satisfeito, pôde seguir viagem.

            Mais adiante, ele ficou com fome, felizmente o sol é para todos e isso não foi problema.

            — Nham, nham, que delícia de fotossíntese.

            ***

            Já era fim de tarde quando o pequeno lírio adentrou uma grande floresta. Ela era grande e assustadora, com seus sons suspeitos e silêncios aterrorizantes. Logo ele ouviu um rosnado e uma grande pantera surgiu. Ele, obviamente, ficou muito aliviado, já que panteras são carnívoras e não comem flores. Pouco depois, entretanto, a flor ouviu um som de pulos abafados na grama... thump... thump... thump... E logo surgiu um grande e temível coelho!

            Dessa vez o lírio ficou apavorado, pois coelhos comem plantas. O animal o olhou com seus atemorizantes olhos vermelhos e estava pronto para devorá-lo, mas a pantera chegou primeiro e abocanhou o coelhinho, salvando a vido do lírio.

            A noite chegou sem que a jovem planta alcançasse seu destino. Ele começou a ficar cansado e sonolento, mas não conseguia dormir sozinho, afinal a floresta era assustadora e ele foi criado junto com outras plantas desde que era só uma mudinha. Simplesmente não dava para ficar sozinho!

            O lírio pediu abrigo às belas rosas selvagens, mas elas o esnobaram e disseram que uma plantinha tão sem graça não tinha lugar entre elas.

            Ele tentou com as Dioneias, plantas carnívoras selvagens, mas elas disseram que uma plantinha fracote criada em cativeiro jamais se juntaria a elas.

            E o lírio, já sem muita esperança, já ia buscar um canto para dormir sozinho quando viu uma plantinha isolada das outras.

            — Oi. — Ele cumprimentou.

            — Ah... Olá.

            — Eu sei que é estranho, mas posso dormir com você?

            — Sério? Você quer dormir comigo?

            — Claro! Por que não? Você parece muito legal!

            — É que ninguém chega perto de mim porque eu sou hera venenosa...

            — Ah...

            — Vou entender se quiser ir embora...

            — Não! Quer dizer... Hm... Eu adoraria ficar com você.

            — Mesmo? Que incrível!

            E assim os dois dormiram juntinhos. O lírio se envolveu nas folhas charmosas da hera, por quem ele teve certa simpatia instantânea, e teve sonhos agradáveis. Na manhã seguinte, ele se despediu com um sorriso e um abraço e ela ficou muito feliz por finalmente ter um amigo.

Ele se controlou até estar fora do campo de visão dela para então se coçar vigorosamente. Ai! Como hera venenosa coça!

Mais adiante, embaixo de uma grande árvore, o lírio encontrou uma plantinha bastante diferente: uma ervinha medicinal.

— Oi. — ele sorriu, ainda se coçando.

— Hey! O que há de errado com você?

— Longa história... Em resumo, hera venenosa.

— Ah, que coincidência... Sabe, eu alivio coceira de hera venenosa, sou medicinal. — Ela sorriu pretenciosa.

— Hm... E você vai me ajudar?

— Claro... Se você me ajudar primeiro.

— E o que você quer?

— Está vendo essa grande árvore? — Ela apontou com suas folhas para cima. — Eu nasci debaixo dela, mas queria mesmo era ficar no sol! Aqui é muito frio! Se você me levar para o sol, eu te ajudo.

— E como eu vou fazer isso?

— Sei lá, se vira.

E, assim, o pequeno lírio vagou pela floresta imaginando um modo de tirar a plantinha da sombra e replantá-la no sol. Andando assim distraído, ele acabou nem percebendo que havia alguém em seu caminho até que se esbarraram.

PAM!!!

— Ah, desculpa aí, cara, você tá legal? — Um tatu perguntou preocupado. — Foi mal, eu tava distraído e não te vi.

— Uh, tudo bem, eu também... — O lírio se levantou do chão. — E você, está bem?

— Estou. — Ele sorriu, mas não parecia totalmente sincero.

— Mesmo? Nenhum problema? Se quiser, eu adoraria ajudar...

— É muito legal da sua parte, mas não acho que você consiga. É que eu tô xonadão por uma tatuzinha que é chuchu beleza, mas ela nem dá bola pra mim.

— Ah... Traduz?

— Eu gosto de uma tatu legal que não gosta de mim.

            — Ah tá! Bem, eu posso ajudar!

            — Mesmo? Como?

            — Me dá para ela! Garotas amam ganhar flores! Pelo menos, é o que eu fiquei sabendo.

            — Demorou!

            E o tatu aceitou o conselho e levou o lírio até sua pretendente. Chegando lá, o lírio começou a recitar Shakespeare e Vinícius de Moraes e Olavo Bilac e todas essas coisinhas clichês. A tatuzinha ficou tão lisonjeada que aceitou o pedido de namoro do tatu e os dois, agradecidos, resolveram ajudar o lírio com seu problema.

            Assim, os dois tatus cavaram a terra ao redor da erva medicinal e cavaram um buraco no sol para ela. Ela foi replantada com sucesso e, agradecida, fez a coceira do lírio parar. Ele pôde enfim seguir viagem e sair da floresta.

            Poucos dias depois, a erva medicinal morreu, pois era uma espécie sensível que não aguentava exposição solar direta e por isso nascia na sombra.

            Seguindo com a jornada, o lírio chegou aos pântanos pantanosos enlameados da lama. Nome dado pelo explorador Redilson Redondo Redundante, que os descobriu.  Uma vez nos pântanos, o lírio não sabia como proceder, pois seu vasinho de cerâmica com certeza afundaria naquela lama. Então ele pensou e pensou e pensou e decidiu usar a ponte.

            Afinal, é óbvio que, depois de tanto tempo, alguém teria que ter a ideia de construir uma ponte! Provavelmente algum cavalheiro que percebeu que as damas sujariam seus pezinhos delicados naquele lamaçal todo.

            O lírio já estava no meio da ponte quando surgiu um troll.

            — Alto lá! Ninguém passa pela minha ponte sem acertar minha charada e esse blá blá blá todo.

            — Quem é você?

            — Eu sou o troll da ponte, ora! Sabe, aquele que mora debaixo da ponte e não deixa ninguém passar sem um enigma?

            — Ah... E qual é o enigma?

            — Hm... Bem... Sabe... Tem aquele do... Ah... Eu não faço ideia, tá?!

            — Como assim? Você não é o troll?

            — Sou! Mas eu sou um fracasso! Uma decepção para a minha família! Eu não sou bom de charadas, tá?!

            — Ah... Sinto muito. — O lírio se remexeu desconfortável. — Posso passar então?

            —NÃO!!! Você não pode passar sem uma prova! Meus pais morreriam de vergonha se soubessem!

            — O que eu faço então?

            — Hm... Eu estou de recuperação em matemática, se puder me ajudar a estudar, seria ótimo.

            — Ah... Ok.

            E os dois passaram um bom tempo estudando matemática.

            No fim, o troll ficou muito grato e, além de deixa-lo passar, disse que pediria para uma amiga dele ajudar o pequeno lírio mais a frente.

            Depois de passar sobre o pântano pela ponte, o lírio finalmente chegou a seu último desafio: a montanha.

            A bruxa sábia que podia ajudá-lo morava no topo, ele estava na base.

            Agora... Como subir a montanha sem cair e se quebrar todo?

            Enquanto ele ponderava esse último desafio, surgiu uma cabra montanhesa, amiga do troll, e lhe entregou um feijão mágico que este mandou como agradecimento pela ajuda em matemática.

            O lírio, agradecido, plantou o feijãozinho mágico e esperou que ele crescesse. E esperou. E esperou mais. E esperou de novo. E continuou esperando. Quanto tempo um feijão leva para brotar?! No fim, o lírio decidiu usar um pouco de refrigerante, que tinha ficado acumulado no fundo do vaso, para regar o feijão. A mistura da mágica do feijão com seja lá o que tem no refrigerante fez uma reação que causou o crescimento instantâneo e anormal do pé de feijão.

            O pé de feijão cresceu até as nuvens e em seu grosso caule havia um prático elevador. O lírio entrou no elevador e apertou o botão que parecia o certo: o do andar mais alto. Depois de uma hora ouvindo música de elevador, as portas se abriram e ele chegou ao topo da montanha... Quase.

            Esperando por ele, estava um gigante que o parou ainda na porta do elevador e disse que estava preocupado porque, da última vez que alguém subiu um pé de feijão gigante, ele acabou no prejuízo. O pequeno lírio teve que dizer seu objetivo ao plantar o pé de feijão, garantir que ia embora logo e deixar o gigante verificar todos os seus documentos, incluindo passaporte com visto e licença para ter um vaso. Depois de tudo conferido e em ordem, ele foi liberado. Mas o gigante arrancou o pé de feijão do chão e o levou embora só para garantir.

            Finalmente a fase final: o lírio foi até a porta da casa no topo da montanha e bateu suavemente. Toc. Toc. Toc.

            — Sim, quem é? — Surgiu uma velha mulher com feições simpáticas.

            — Ah, oi, eu sou um lírio.

            — Isso eu posso ver. Mas o que deseja, meu jovem?

            — Uh... Eu estou doente e preciso da sua ajuda.

            — Doente? Entre, vamos checar isso.

            A mulher fez alguns exames no lírio, verificou sua temperatura, testou seus reflexos e, enquanto examinava, o lírio contava sua aventura até ali.

            — Bem, garoto, você é um tanto dramático, não? É só um resfriado, e já está praticamente curado. Mas, depois de tudo isso, acho que você merece alguma coisa... Já sei, vou te fazer um chá delicioso para você terminar de ficar bom.

            — Ah... Tá. — O lírio não tinha certeza do que dizer. Que vergonha! Tudo isso por um resfriado!

            Pelo menos o chá era uma delícia.

            — Senhora, desculpe incomodar, mas o gigante levou o pé de feijão, pode me ajudar a voltar para casa?

            — Já vai, tão cedo? Fique mais um pouquinho, adoro visitas. Quase não as recebo...

            — Desculpe, mas eu realmente preciso ir...

            — Ó, tudo bem, meu jovem. Venha aqui, eu te mando de volta.

            E a velha bruxa invocou um avião de papel gigante e arremessou o lírio direto no jardim da fazenda. Lá, ele recebeu um “bem feito, eu te disse!” da margarida e muitos olhares invejosos enquanto narrava sua aventura.

            E, como é de praxe:

            Moral aceitável um: não duvide do poder do chazinho!

Moral aceitável dois: se você gosta de visitas, provavelmente não devia morar perto do fim do mundo.

Moral aceitável três: não vá radicalmente contra sua natureza, afinal, às vezes nascemos na sombra ou no sol por algum motivo, certo?

Moral aceitável quatro: algumas pessoas são naturalmente irritantes e nos deixam desconfortáveis, mas merecem amizade mesmo assim.

Moral aceitável cinco: se você quer se aventurar numa jornada épica, seja educado e tente fazer amigos. Melhor ter aliados que inimigos.

Moral aceitável seis: trolls também mandam mal em matemática e tem problemas familiares, não é privilégio humano.

            Fim.

 


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Bye!