O Sopro da Locomotiva escrita por Charles Oliveira


Capítulo 1
O Sopro da Locomotiva - One Shot


Notas iniciais do capítulo

Uma One Shot curtíssima, minha primeira.



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Quando uma tarefa é muito difícil e exige demais de você, sempre recomendam dividi-la em partes menores e realizá-las uma à uma, mas a verdade é que ninguém gosta de fazer algo aos poucos. Somos apressados e queremos ver logo o resultado.

Mas eu digo que às vezes subestimamos os pequenos passos.

O relógio desperta e levanto correndo. Eu tinha que ter acordado antes do alarme soar, não vai dar tempo.

Escovo os dentes no banho mesmo para poupar tempo. Me visto correndo e saio de casa segurando uma torrada queimada na boca, acabei deixando tempo demais na torradeira enquanto me vestia.

Não consigo ver as horas em meu relógio de pulso. Os óculos, claro, os óculos.

Ainda em movimento tiro a mochila das costas e vasculho. Em meio à bagunça os encontro. Coloco a mochila de volta nas costas, limpo as lentes na camiseta e coloco-os no rosto.

Três minutos. Não acredito que não vou conseguir. Era pra ser hoje. Era pra ser hoje.

Levei minha vida toda para encontrar, quatro meses para me aproximar, enquanto apenas observava de longe, mais dois meses para me sentar ao seu lado. Não posso deixar esse surto de coragem passar.

Algo me diz que hoje vou conseguir. Me sinto confiante e corajoso.

Subo as escadas e corro pela passarela. Tem que dar tempo. Tem que dar tempo.

O ruído conhecido não deixa dúvidas, o trem acabou de passar.

Tudo arruinado. Não cheguei à tempo. Eu devia ter me levantado mais cedo. Mas como eu saberia do surto de coragem em que acordaria hoje?

Vou diminuindo o ritmo da corrida apenas para ver que não fui o único atrasado. Ela estava lá e também acabou de perder sua condução. Será o destino?

O vento produzido pela passagem do monstro metálico faz tremular seus compridos cabelos pretos, revelando seu rosto desenhado.

O formato de seus olhos castanhos eram o de uma lua crescente e agora demonstravam decepção por perder o trem.

Me aproximei devagar, mas não tanto, pois só havia dez minutos entre a passagem de um trem e outro.

Chegamos quase juntos no banco e nos sentamos.

Não havia ninguém naquele lado da estação, apenas eu e ela sentados lado a lado.

Olho para minhas mãos, suadas, brinco com os dedos em nervosismo puro, respiro fundo, tento começar à falar mas não sai nada. Depois de algum tempo de preparação, abaixo um pouco a cabeça, como se tentasse escondê-la dentro do próprio corpo feito uma tartaruga e então começo:

— Você… não deve saber quem eu sou, mas é que… eu venho te observando faz um certo tempo.

Ótimo início, assim ela vai pensar que sou algum tipo de maluco-perseguidor.

— Demorei meses para conseguir me aproximar. As únicas palavras que você me disse até hoje foram “me desculpe”, um dia, quando jogou o cabelo para trás e eles acertaram no meu rosto. Eu não consegui nem responder, só pensava: “os cabelos dela tocaram meu rosto”. E isso me deixava feliz.

Agora ela vai pensar que você é um pervertido. Está indo bem, amigão.

— Decorei o caminho que você faz até o trem, seu horário, reconheço seu jeito de andar mesmo quando você está longe, sei quando você chega apenas pelo cheiro do seu perfume.

Maluco-perseguidor! Definitivamente maluco-perseguidor!

— Desculpe se estou te assustando, mas é que fico muito nervoso perto de você. Hoje, depois de tantos meses, finalmente arranjei coragem para dizer essas coisas, então não podia deixar passar a oportunidade.

Atrás de mim, o trem que vai no sentido oposto acabava de chegar. Era naquele que eu deveria embarcar, mas hoje eu chegarei atrasado na aula.

Algumas pessoas começavam a chegar na estação, achei que faria com que me sentisse ainda mais envergonhado, mas eu parecia estar anestesiado, “imune” à tudo que acontecia ao meu redor, como se nada externo pudesse me atingir. Apenas aquele momento entre eu e ela existia. O banco era o nosso mundo e nós dois os únicos habitantes dele.

Neste momento ela se encolheu um pouco, olhando sempre fixamente para frente, estática.

— Sabe, quando eu era criança caí nos trilhos do trem. Me tiraram de lá bem rápido, o trem ainda estava longe, mas foi o suficiente para eu passar a odiá-lo. Todos os dias em que eu tinha de vir pra cá eram um inferno… Até que conheci você. À partir de então, o banco desta estação passou a ser o meu lugar favorito. Este é o lugar exato onde eu gostaria de estar agora... Com você.

O ruído metálico pode ser ouvido ao longe, deixando claro que meu velho inimigo de infância estava chegando. Apesar de não querer que aquele momento acabasse, ao mesmo tempo a tensão estava me matando e cheguei a sentir um certo alívio, mas misturado com tristeza.

— Você não tem ideia do quanto me fez bem poder te dizer essas coisas. Poder falar sobre o que eu sinto e o quanto quero te conhecer… Mesmo que minhas palavras não tenham chegado até você.

Novamente o sopro causado pela passagem do trem faz tremular os cabelos da garota, revelando um par de fones em seus ouvidos. Os fones que ela sempre usa, todos os dias, isolando-a de tudo ao seu redor.

— Mas tudo bem. Pode não ter sido exatamente o que eu queria. Mas foi mais um pequeno passo que dei em sua direção.

Ela se levanta e parte em direção à sua condução.

Com aquele jeito de andar, que eu reconheceria à quilômetros, ela caminha em direção à porta, afastando-se de mim… De novo.

Percebi que ela esqueceu algo no banco, uma folha de papel. Nele há, bem grande, nove números escritos em sequência. Um telefone?

Ela agora me encara de dentro do trem, segurando a outra extremidade do fio dos fones. O plugue desconectado.

Ela sorri.

A porta do trem se fecha.

O sopro da locomotiva pode ser mágico.


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Notas finais do capítulo

Opiniões e criticas construtivas serão bem vindas.



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