Crescendo escrita por August Martinez


Capítulo 6
Capítulo 6




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"Na vida todos temos um segredo inconfessável, um arrependimento irreversível, um sonho inalcançável e um amor inesquecível."- Diego Marchi

 

 

Atravessávamos em passos largos os jardins de acesso à escola, cortando o vento com alguma dificuldade. Jean-Pierre não havia largado o meu braço desde que saímos do carro, continuando a me guiar até à mesma, sem dizer uma palavra. A minha cabeça girava, tentando processar toda a informação, e tudo o que havia acontecido perante os meus olhos, apenas minutos antes. Ele parecia extremamente nervoso, enquanto me levava pelo braço, suspirando de raiva por vezes, devido à minha lentidão.

A escola estava mais sombria do que me lembrava, estando completamente vazia. Apenas algumas empregadas da diretora Cassandra, se encontravam no jardim, retirando a pouca quantidade de neve da Primaveira, nos cedendo passagem. Os alunos ainda se encontravam no cemitério. Estremeci com essa ideia, tentando esquecer o que havia acontecido. Sentia o meu peito queimar, todo o meu corpo ansiava por um momento de descanso. Mas, Jean-Pierre, não parecia disposto a fazer paragens.

—Você precisa me falar o que aconteceu ali atrás!- falei com grande esforço, tentando convencer as minhas pernas de que era capaz de caminhar.

—Irei explicar tudo, a seu tempo...- respondeu ele, tentando recuperar o fôlego.

—Você tem noção do que irão fazer com ela por aquele comportamento?- estava extremamente irritada com a situação e pela falta de preocupação da parte dele.

—Acredite que ninguém se irá lembrar de nada do que aconteceu ali...-garantiu ele. O olhei confusa, tentando acompanhar as suas passadas rápidas e largas.

—Do que você está falando? Mais de 30 pessoas viram acontecer, entre elas imensos dos alunos dessa escola, Jean.- rebati.

—Acredite que nenhum deles saberá o que aconteceu.- repetiu ele, fazendo uma pequena pausa para retirar uma pequena chave do seu bolso. Uma chave de aspeto antigo, e de um tom dourado.

—Como assim?- perguntei, tentando manter a minha mente longe do pânico que sentia.

—Se quer que eu explique tudo, você vai ter que aprender a ouvir mais e perguntar menos. Estamos de acordo?

—S-sim...- balbuceei, sem entender o que estava acontecendo.

Jean pegou a minha mão de maneira brusca, e me guiou para as traseiras da grande construção apalaçada. Ali nada mais havia senão uma grande porta de madeira escura de aspeto velho, assim como bastantes contentores carregados de lixo, precisando de uma limpeza. Tapei o nariz, tentando evitar todo aquele odor, e o segui. Ele colocou a pequena chave na fechadura da grande porta, e a abriu de par em par. Uma grande quantidade de poeira saiu de dentro dela, me fazendo tossir compulsivamente. Vi a sua expressão atônita, visivelmente alheio a toda a situação. Entrou por alguns segundos naquele espaço escuro, e de lá saiu com duas lanternas. Esticou uma delas na minha direção, e eu a peguei automaticamente.

—O que é esse lugar?- perguntei, assim que ambos haviamos passado pela porta. Apontei a fraca luz para a frente, onde consegui distinguir umas escadas íngremes, que nos guiariam para baixo da escola.

—Antigamente era usado para guardar velharias, coisas sem importância. Mas de uns anos para cá, tenho vindo a melhorar tudo o que posso por aqui, e fazer meio que o meu...laboratório.- as suas palavras ecoavam dentro daquele pequeno espaço, na medida em que iamos descendo as mesmas. A madeira rangia a cada passo, e as grandes quantidades de poeira que eram soltas das mesmas, eram quase inacreditáveis.- Não sei bem se seria essa a palavra certa para o descrever mas, enfim.

—De onde vieram todas essas coisas?- perguntei admirada, ao pisar pela primeira vez o chão.

A grande sala estava iluminada por algumas velas, que lhe ofereciam pouca luz. Não existiam janelas e muito menos luz artificial. Haviam várias bancadas de madeira escura espalhadas pela mesma, todas elas repletas de grandes esculturas, vitrines, livros, papeladas e o que pareciam ser variados tipos de animais embalsamados. Senti um arrepio percorrer toda a minha espinha ao perceber o que se encontrava na minha frente. Para além disso, existiam vários tipos de insetos enfrascados, assim como outras espécies desconhecidas. Várias estantes, repletas de livros, estavam nas paredes, circundando todo o ambiente. Haviam vários tipos de crânios e outras ossadas dispostas em pequenos expositores. O olhei incrédula, e ele apenas sorriu, dando de ombros em seguida.

—Anos de pesquisas...- disse apenas.

—O que você pesquisa exatamente?- perguntei interessada, passando os dedos sob uma das mesas. Tentando procurar com os olhos algum livro que reconhecesse. Nenhum deles parecia estar em Inglês.

—Mitos, lendas, folclore...mas principalmente criaturas sobrenaturais.- respondeu ele. O olhei intrigada por alguns segundos, enquanto o via tirar a sua jaqueta, e a jogar num pequeno sofá extremamente acabado.

—Como assim sobrenaturais?

—Digamos que eu já nasci no meio de tudo isso, o meu pai também era um investigador do sobrenatural. E de alguns anos para cá, depois da sua morte, tenho aperfeiçoado vários dos seus materiais e pesquisas.- explicou ele. A minha cabeça parecia prestes a explodir com tanta informação. Observava agora vários frascos dispostos junto das estantes, todos eles contendo líquidos diferenciados, que não conseguia identificiar.

—Que tipo de pesquisas...?- perguntei insegura, enquanto os meus olhos varriam o local.

—Digamos que aquilo que sabemos, na sua maioria informações vindas de lendas antigas, são apenas uma gotinha perdida no mar. Existe muito mais além disso. É o meu trabalho procurar mais a fundo, Lis.- respondeu ele entusiasmado. Conseguia detetar a sua paixão por aquele assunto. Suspirei, tentando manter a cabeça o mais lúcida possível. O encarei por alguns momentos, e depois decidi fazer a pergunta que mais me inquietava no momento:

—E-espere...do que estamos falando em concreto?

—Ghouls, Elisabeth. Ghouls.- respondeu ele, enquanto me observava do outro lado da sala. Soltei um risinho abafado, tentando controlar a minha ânsia cômica. Ele fechou a cara com o meu gesto, parecendo um pouco ofendido. Baixei a cabeça envergonhada, e decidi tentar entrar mais a fundo no assunto, numa tentativa de recuperar o seu bom humor.

—Você investiga...Ghouls?- perguntei.- Você é muito louco...você realmente acredita nisso?

—Você também deveria acreditar.- disse ele sério.

—Do que você está falando?- perguntei impaciente, trazendo de volta aos meus pensamentos a verdadeira razão por me encontrar ali.- Você falou que me iria contar mais sobre a Sabrine. Prometeu que me iria ajudar.

—E estou mantendo essa promessa.- respondeu ele, se levantando e se aproximando mais de mim.

—Você é louco!- reclamei, decidida a sair dali e procurar Sabrine. Apressei o passo até às escadas, quando ouvi a sua voz:

—Espero que seja mais agradável para você viver com as sombras, do que é para mim...

Senti o meu corpo paralisar por completo. Olhei para ele, tentando manter uma expressão vazia e segura. Ele me olhava com um misto de interesse e compreensão. Senti que a minha voz iria falhar, por isso pigarreei antes de prosseguir.

—Do que você está falando?- acabei por perguntar, fingindo desinteresse.

—No dia da morte da Vivian...você também a viu. Assim como na noite do apagão...- as suas palavras embatiam contra mim como fortes pancadas. Senti uma lágrima solitária escorrendo pelo meu rosto.- Eu sabia. Desde o momento em que a vi pela primeira vez, eu sabia que você era como eu.

—Do que você está falando? Eu não entendo...- menti.

—Eu também as vejo, Lis. Eu as vejo.

—Eu preciso ir...- disse eu, começando a subir as escadas em seguida.

—Pensei que queria ajudar a sua amiga, Sabrine!- provocou ele.

—O que tudo isso tem a ver com ela?- perguntei, parando junto da porta, a fechando de novo.

—Aquilo em que a sua amiga se está transformando é muito poderoso, e vai destruir tudo em que tocar, Lis. Vai destruir ela própria. Ela precisa da nossa ajuda.

—O que você quer dizer com "transformar"?- perguntei incisiva, sentindo todo o meu corpo gelar. Algo em mim me alertava para a importância daquele assunto. Algo me avisava para confiar nas suas palavras.

—A Sabrine é um caso de hereditariedade, tenho andando a pesquisar sobre ela faz algum tempo. Os genes passados através de familia podem saltar algumas gerações, mas sempre alcançam um portador.- respondeu ele, girando nos seus próprios calcanhares, pronto para adentrar de novo na sala. Desci as escadas e o segui até lá.

—Você está dizendo que ela está doente? É isso?

—Não, Elisabeth. Eu estou dizendo que o sangue dela está infetado.

—Como assim infetado?- perguntei alarmada.

—Ela está na mutação para Ghoul.- respondeu ele perdendo a paciência. Eu recuei a passos lentos, tentando a todo o custo controlar a minha respiração. Um grito silencioso estava se formando na minha garganta, e eu senti todo o meu corpo se enrijecer. -Elisabeth...

—Você está louco! A minha amiga precisa de ajuda profissional, ela não está bem. E você vem com essas conversas fantasiosas?- gritei eu visivelmente irritada.

—Ela precisa de ajuda sim. Da nossa ajuda.

—Você não parece estar a ajudar, de todo.- respondi irônica.

—O que você pensa que viu durante todos esses anos, heim?- perguntou ele, se aproximando de mim, até que os nossos rostos se encontrassem próximos.- Você está louca, é isso Lis? Sofremos da mesma doença, é isso? Será? Eu e você somos iguais, Elisabeth.- disse por final.

Senti que as lágrimas se estavam acumulando nos meus olhos, tornando a minha visão turva. Ele pegou nas minhas duas mãos juntas, e suspirou, tentando encontrar as palavras certas para prosseguir.

—O que são...eles?- perguntei entre soluços, quebrando o seu pensamento.

—Keepers. E você não precisa ter medo deles, eles estão apenas te tentando proteger.- revelou ele. Senti a raiva se acumulando no meu peito.

—Do que você está falando? Um deles matou a Vivian!- gritei, me soltando da pequena prisão que as suas mãos faziam.

—Você acha mesmo que foi um deles que matou Vivian? Some 2+2, pense bem...pense bem fundo...- pediu ele em tom irônico novamente. O olhei irada, e depois me esforcei para que o meu raciocínio acompanhasse toda aquela situação. Quando levantei o meu rosto para o olhar, a compreensão já estava estampada no meu rosto.

—Não...Você não pode estar dizendo que...

—Relaxa, a sua amiguinha Sabrine não é uma assassina. Por enquanto.- completou ele de forma enigmática.- Ela está na fase número um da mudança. A fase da ansiedade, da agressividade...ela não controla o seu corpo, ou sequer os seus pensamentos. É uma das fases mais perigosas. Ela não sabe o que está acontecendo com ela.

—Você está me dizendo que a minha amiga se está transformando em um Ghoul...e que ela matou a Vivian.- disse lentamente, tentando engolir o meu pânico.

—Ela não teve a culpa, Lis. Uma ligeira discussão, a mais pequena irritação...e ela perde o controle. Ela nem sequer se lembra do que fez provavelmente...

—Você está errado! Eu a vi no momento do acontecimento...ela estava no refeitório.- me lembrei. Senti uma réstia de esperança no meu coração, e sorri ao perceber que poderia ter razão.

—E você não a viu sair porque estava falando com o meu querido primo, Adriel.- abri a boca espantada, me recordando daquela manhã. Me deixei cair sob o chão, colocando ambas as mãos na cabeça, ao perceber que ele estava certo.

—Você quer um pouco de água?- perguntou ele preocupado, caindo de joelhos na minha frente.

—Não...eu só quero acordar desse pesadelo.

—Lis...- insistiu ele calmamente.

—No que ela se está transformando exatamente?- perguntei, engolindo aquela pequena parte de mim que não era crente. Nos entreolhámos por alguns segundos em completo silêncio, antes de ele responder o que eu tanto temia:

—Aquilo que você sabe sobre Ghouls é...muito pouco. Porém bastante válido. São descritas como criaturas da noite, frias, pecaminosas...são conhecidas por se alimentarem de carne humana. Mas você já sabia disso...

—Esse tipo de coisas não existe...- disse eu, tentando controlar a minha respiração.

—Eu posso te ensinar tudo o que sei, Lis. Juntos podemos ajudar ela.- garantiu ele, pegando as minhas mãos de volta.- Ela não sabe quem é nesse momento...

—Ela queria o corpo da Vivian...- sussurrei para mim mesma.

—Lis, ela é sua amiga. Ela precisa da sua ajuda nesse momento. Se ela não for ajudada a tempo, acredite que essa escola vai virar um banho de sangue.

—Não...- sussurrei, sentindo novas lágrimas se formando nos meus olhos.

—Lis, confie em mim.

—O que faremos para a ajudar?- acabei por perguntar, limpando a cara.

—Primeiro, precisa falar com a minha mãe. E preciso levar você e Sabrine o mais rápido possível para Crescendo.

—Onde?- perguntei curiosa, enquanto o via caminhando até às velhas escadas de madeira.

—A minha mãe irá explicar tudo para você.- assegurou ele, me fazendo de sinal para que o seguisse.

—A sua mãe...?

Não recebi nenhuma resposta, por isso mesmo decidi o seguir. Já conseguia ouvir o burburinho de alguns estudantes no pátio. Entrámos pela porta das traseiras, e depois de subirmos uns três lançes de escada, ele pediu para que eu ficasse ali. Me encostei na parede, o observando em silêncio, enquanto ele se encaminhava para uma das portas. O vi batendo na porta, entrando após uma voz melodiosa dizer o seu nome. Semicerei os olhos, tentando ler a plaquinha que se encontrava por cima da porta. Era a sala da diretora Cassandra.

—Lis! A minha mãe está pronta para a receber.- disse ele, saindo de novo pela porta. Assenti ainda confusa com toda a situação, limpando as lágrimas à pressa, e entrando na pequena sala.

Jean-Pierre saiu, nos deixando completamente a sós. O pequeno escritório estava muito bem decorado, de um requinte fenomenal. Com grandes influências barrocas e a sua cor predominante era o dourado. Sentada atrás de uma secretária amadeirada estava a diretora Cassandra. Reconhecia a sua cara, e continuava tão bonita quanto nos dias anteriores, porém mais cansada. Parecia demasiado jovem para ser mãe de um rapaz da minha idade. Com os seus longos cabelos ruivos, do mesmo tom de Jean, e com o mesmo nariz pequeno e empinado, ornado com pequenas sardas.

—Ah, sim...Elisabeth. Por fim nos conhecemos. Lamento que seja em circunstâncias como essa.- iniciou ela sorridente, pedindo com um gesto para que me sentasse. E assim o fiz, me mantendo em silêncio. -Acredito que o meu filho já a tenha informado sobre algumas coisas importantes. E acredito também que tudo isso possa parecer loucura. Mas a realidade, minha querida...é que é verdade.

—Como eu posso ajudar ela?- perguntei incisiva. Ela pareceu surpresa com a minha mudança brusta do tom da conversa, mas suspirou resignada, antes de prosseguir.

—Acredito que essa seja a sua maior prioridade no momento. Mas para que isso aconteça, você precisa saber contra o que você está lutando...

—Lutando?- perguntei alarmada.

—Precisamos ir para Crescendo o mais rápido possível.- respondeu ela, ignorando por completo a minha pergunta anterior.

—O que é Crescendo?- perguntei, enquanto a observava pegar no antigo telefone, que estava na mesa.

—Uma sociedade que investiga essas criaturas... Estou sim?- ela havia me ignorado, falando agora apenas com a pessoa do outro lado calmamente.- Claro que sim. Posso falar com ela agora? Estou aqui c--...

Peguei o telefone da sua mão, e o desliguei em seguida. Ela me olhou sem reação, e eu suspirei indignada. Conseguia perceber a minha raiva aumentando a cada minuto que passava. A minha vida estava ali, exposta, sem respostas ou uma verdade a seguir. Aquela não era a minha realidade. Eu precisava de respostas.

—Peço desculpas pela minha insolência.- disse sincera.- Mas você precisa me explicar o que está acontecendo.

—Para isso eu teria que contar uma longa história, Elisabeth. Penso que seria melhor esperar pela nossa chegada à sociedade.- respondeu ela, se remexendo na sua poltrona.

—Eu tenho todo o tempo do mundo.- respondi seca. Ela me olhou insegura durante alguns segundos, mas após um suspiro longo, decidiu começar a falar:

—Acredito que você já esteja informada sobre o passado dessa escola. Antes de ser uma instituição para ensino, era um humilde convento para freiras. Eu era uma delas. Era jovem, sem grandes perspectivas de futuro...e decidi me juntar à fé. Foi nesse meio tempo que eu conheci um homem, ele era encantador...muito parecido com Jean-Pierre. Ele sempre visitava a irmã Benedita, uma das líderes da paróquia, para trazer dinheiro e donativos. E eu me apaixonei por ele...

—O pai de Jean-Pierre...-concluí.

—Eu pequei, Lis.- disse ela triste.- E fui perdoada pela maioria das restantes irmãs, mas não por todas. Desisti da prática da religiosidade, e decidi seguir com a minha vida, já grávida do meu primeiro filho. Porém, eu não conhecia de todo o homem com quem iria casar poucos meses mais tarde. Ele era misterioso, sedutor...e eu me deixei levar, Elisabeth. Eu simplesmente...o segui.- parecia estar se lembrando de situações específicas, recordações que já não eram tocadas fazia muito tempo.

—O que aconteceu?- perguntei.

—Passado muito pouco tempo do nascimento de Jean-Pierre, eu engravidei pela segunda vez.

—Pamela...- deduzi. Senti a sua voz tremer ao ouvir aquele nome.

—Ela era a coisa mais linda que eu já havia visto. Tão perfeita...- disse com um sorriso caloroso no rosto.- Porém, o destino não parecia estar a nosso favor, ela nasceu com uma terrível doença pulmonar, e a sua esperança de vida era...baixa.

»-Eu estava desesperada. Não tinha um emprego, não sabia como pagar todos os tratamentos necessários...e finalmente descobri qual era o maravilhoso emprego do meu recente marido. Ele era um investigador, assim como Jean...passou esse fascínio para ele, sabe? Quando descobri o tipo de coisas que ele investigava, fiquei assustada, e tentei fugir com os dois. Acabei por voltar para casa, eu não sabia para onde ir, e a verdade é que amava aquele homem. Com o tempo, ele começou a ficar mais frio, mais distante...ele havia se afundado no seu próprio trabalho. Ele começou a falar de umas "sombras", umas sombras que o perseguiam...- senti o meu corpo estremecendo ao ouvir tal palavra.

»-Pensava que ele estava louco, Elisabeth. Até que Jean-Pierre as começou a ver também. E um dia ele desapareceu, sem deixar rastro. Deixou uma carta dizendo que precisava sair do país para aprofundar os seus estudos sobre umas criaturas, chamadas de...Ghouls. Ele acreditava que de alguma maneira as suas "sombras" e essas criaturas estavam ligadas. Ele nos abandonou. Me deixou com um filho destroçado e uma criança doente, praticamente morrendo nos meus braços. Comecei a investigar mais sobre o que ele havia pesquisado...li todos os seus livros, diários, cadernos de anotações...e descobri esse nome: Lótus.

—Lótus?- repeti, sedenta por mais informação. Ela assentiu visivelmente incomodada, e depois prosseguiu:

—Sim, Lótus. Supostamente seria uma entidade muito poderosa, a qual recebia o respeito dessas criaturas. Não o chamaria de líder...eu o chamaria de o "criador". Muitas das lendas que o meu falecido marido havia encontrado falavam desse Lótus, nunca ninguém o viu, mas há quem acredite que ele seja o grande criador dessas criaturas. O Ghoul original.

»- Me informei mais um pouco e encontrei algumas pesquisas que falavam sobre uma maldição. A maldição da alma. As lendas diziam que qualquer ser humano que vendesse a sua alma para essa entidade, teria direito a desejos infinitos. À felicidade eterna, luz eterna, vida eterna...—eu ouvia todas as suas palavras com grande atenção, tentando manter uma expressão natural.

»-Porém, teria o seu preço...a alma passaria para as mãos de Lótus, deixando o seu corpo vazio. As almas, Elisabeth, são a chave para a força dessas criaturas. Eu estava desesperada. Eu precisava ter a certeza de que a minha querida filha iria sobreviver, e fiz o ritual.

—Você entregou a sua alma a Lótus?- conseguia perceber que ela estava prestes a chorar.

—Ele me prometeu cumprir todos os meus desejos. E assim o fez. Ele curou a minha Pamela, e levou em troca a minha alma...

—Você é imortal?- perguntei, sentindo cada palavra pesar na minha boca. Ela abriu um sorriso fraco e depois abanou a cabeça em negação.

—Não diria imortal. Serei imortal até que ele se decida a vir ceifar a minha vida, ele é o meu dono agora.- completou com pesar.

—Como nos pode ajudar a salvar a Sabrine, se Lótus tem a sua alma?- perguntei calmamente, tentando controlar as minhas emoções.

—Eu sou muito útil para Crescendo. Eu sou a única pessoa que consegue manter algum tipo de ligação com ele. Sinceramente, e depois do que aconteceu com ela...preferia ter morrido juntamente com ela naquela noite.

—Eu lamento imenso...- sussurrei triste.

—Você não queria ouvir a história, Elisabeth?- apenas assenti.- Desde então que toda a familia foi envolvida nesse mundo. Nunca mais tive contato com Lótus, apenas sensações estranhas que por vezes me assolam, como se algo de errado estivesse prestes a acontecer... E foi então que Crescendo nos recrutou para a sua instituição.

—O que acontece lá?- perguntei preocupada com Sabrine. O seu nome me dava a volta ao estômago, como se de um murro nele se tratasse.

—Não se preocupe, querida. Ninguém irá machucar a sua amiga...a principal função da Crescendo é a investigação e estudo dessas criaturas. Eles acreditam que tenham criado uma forma de tratamento revoluncionário que iria ajudar na prevenção de ataques, semelhantes ao da semana passada. E nós precisamos de você.

—Porquê eu?- instiguei perplexa.

—Você nunca se perguntou o porquê de ver essas "sombras"?

—Keepers...- murmurei, para completar o seu raciocínio, pelo que ela apenas assentiu.

—Exatamente. Você não é louca, Elisabeth.- disse ela carinhosamente.- E teve imensa sorte ao nos encontrar. Muitas pessoas com esse dom, são simplesmente decretados como loucos e internados em hospícios sem escrúpulos...sem nunca saberem o quão importantes são.

—Dom?- perguntei perdida na situação.

—Aquilo que você vê nada mais são do que aquilo que eu gosto de chamar de "memórias". Sempre que estamos relacionados com algo que diz respeito a esse mundo, elas aparecem. Como que um aviso de que eles estão por perto.

—Como assim relacionados?- a minha cabeça girava de confusão, tentando encontrar respostas para perguntas ainda por fazer.

—Eu ainda não sei, quanto a si Elisabeth. Você ainda é em grande parte um mistério para mim...- confessou ela. -O Jean-Pierre teve as influências do pai, e depois da morte dele, devido à sua pesquisa, ainda mais aflorou essas imagens...Mas você?- disse após uma longa pausa.- Não consigo encontrar uma razão para o desenvolvimento da sua capacidade.

—Como pode imaginar, nem eu...

—Falei com a sua mãe hoje de manhã.- mudou ela de assunto. Senti novas lágrimas se formando nos meus olhos ao ouvir a palavra "mãe". Como gostaria de a puder abraçar naquele momento, mesmo que nunca o tenha feito antes.- Ela está extremamente preocupada com você, depois do que aconteceu aqui na escola, acredito que as notícias corram depressa. Fique descansada, a convenci a não vir. Mas deveria fazer um telefonema para a acalmar.

—Devo a avisar sobre a minha futura saída da escola?- quis saber.

—Não, Elisabeth. Sigilo total sobre esse assunto, não pode contar nada disso para absolutamente ninguém. Estamos claras?- assenti.- Deveria aproveitar enquanto maioria dos alunos ainda não estão presentes para arrumar as suas malas.

—O que devo levar?- perguntei por impulso, o que a fez sorrir.

—O básico dos básicos para uma semana. Irão fornecer tudo o que precisa. Iremos já essa noite.- a olhei pasma com aquela afirmação.- Lamento muito...queria que pudesse ter recebido essa notícia de uma maneira mais leve e menos repentina.

Assenti perante aquela afirmação, e sussurrei um "Eu também...". Depois de o ter feito, saí disparada pela porta, decidida a não falar com ninguém durante o caminho para o quarto. Comecei a fazer uma lista mental do que levar, mas os meus pensamentos estavam demasiado confusos para tal. Esbarrei contra duas alunas, que gritaram de volta para mim, iradas. Me limitei a continuar a andar desnorteada, descendo em seguida as escadarias, até chegar no segundo andar. Sentia que iria começar a chorar desesperadamente a qualquer momento, e pedia a mim mesma para esperar até que chegasse no quarto. Retirei com algum custo os sapatos pretos que havia utilizado no funeral, e corri até à minha porta. Não consegui evitar suspirar desapontada quando avistei Adriel parado junto da mesma.

—Lis?- chamou ele preocupado, se encaminhando para junto de mim, o mais rápido que conseguiu.

—Adriel...- retorqui exausta.

—Lis...o que aconteceu? Você está bem? Você desapareceu do funeral de um modo tão apressado!

—Você estava lá? Eu não vi você...- confessei, tentando me lembrar a todo o custo da cena que me aterrorizava.

—Eu estava com a minha tia um pouco afastados.- respondeu ele, ainda me olhando com uma preocupação gritante.- Não queria estar ali...no meio. Sabe?

—Compreendo.- respondi, me preparando para a minha próxima grande pergunta.- Como correu o funeral? Eu saí na metade...eu não estava me sentindo bem.-menti.

—Foi muito bonito...uma cerimônia merecida.- o olhei desconfiada, sem entender. Foi então, que me lembrei das palavras de Jean-Pierre. Ele me assegurou que ninguém se iria lembrar de nada. Mas como?

—Você viu a Sabrine lá?- perguntei, fingindo desinteresse.

—Não...Ela foi ao funeral?- respondeu ele confuso.

—Penso que não...- menti de novo.- Eu preciso ir arrumar as minhas malas...

—Malas? Como assim?- perguntou ele demasiado rápido, visivelmente magoado e alarmado.

—A minha mãe ficou bem preocupada comigo depois do que aconteceu...eu estou indo para casa.- não sabia onde havia ido buscar aquela desculpa, mas era a melhor que tinha naquele momento.

—Vai desistir da escola?- perguntou ele chocado.

—Não, não...é por apenas uma semana.

—Ah, sim.- concordou ele, abrindo um sorriso largo.- Claro...bom, imagino como ela deve estar preocupada, estando você tão longe dela.

—É...ela está bem preocupada.

—Quando vai?- perguntou ele.

—Já essa noite.- revelei.

—Tão cedo? Quem a irá levar para o aeroporto? Se você quiser e-...

—Eu irei.- respondeu uma voz vinda de trás de mim, cortando Adriel. Era Jean-Pierre. Ele havia mudado de roupa, não estava mais com a roupa do funeral. E os seus cabelos ruivos estavam molhados, pingando sob os seus ombros largos.

 –Ah, é mesmo primo?- perguntou Adriel admirado, trocando um olhar prolongado com ele, mantendo sempre a sua simpatia contagiante.

—Eu e a minha mãe iremos ficar alguns dias longe da escola, para lidar com algumas burocracias sobre a morte da Vivian. Aproveitamos e a deixamos  no aeroporto.- esclareceu Jean, mentindo com todos os seus dentes.

—A tia não falou de nada disso para mim...- respondeu Adriel magoado.

—Acredito que você não tenha que saber de tudo, não acha Adriel?- respondeu Jean irônico, pelo que o seu primo fechou a cara, cruzando os braços numa atitude provocatória. Dirigi um olhar irado a Jean, que me olhava sorridente.

—Bom, eu realmente preciso ir fazer as minhas malas.- admiti, cortando aquele ambiente estranho.

—Se não nos virmos até à noite....tenha uma boa viagem até a casa, Lis.- disse Adriel carinhosamente, me olhando com insegurança.

—Obrigada, Adriel.

—Se mantenha segura...- pediu ele, se movimentando rapidamente para me abraçar. Depois sorriu afagando o meu braço, lançou um último olhar significativo para o seu primo, e se dirigiu para as escadarias.

—Bom...isso foi bastante romântico.- comentou Jean sarcástico. Bati na parte de trás da sua cabeça, provocando um estalido agudo.

—Porque você nao vai se...

—Ah, ah, ah.- falou ele rapidamente, gesticulando o seu indicador perto dos meus olhos.- Vá fazer as malas. Estamos a ficar sem tempo.- pediu ele, me incentivando a ser rápida.

—Onde está a Sabrine?- me lembrei subitamente.- Eu preciso falar com ela antes de ir...

—Terá todo o tempo do mundo para falar com ela, assim que chegarmos lá. Ela já está pronta, só falta você.- disse ele.

—Como assim pronta? O que você fez com ela?- perguntei, sentindo a preocupação subindo cada vez mais.

—Relaxa...a sua amiguinha está ótima. Administrei um pouco de loção de bambu no chá dela, que a enfermeira de serviço lhe serviu, quando ela chegou...acredite que estará num sono profundo até lá chegarmos.

—Porque bambu?- perguntei furiosa.- E isso é sequestro!

—Vá fazer as suas malas. Agora.- falou ele cortante.

Depois de o dizer, virou costas e saiu rapidamente do corredor. Suspirei exausta, e corri para o meu quarto, utilizando o resto de forças que ainda tinha. Sem sequer fechar a porta do quarto, joguei todas as minhas roupas na cama, as enfiando aleatóriamente na minha mala, sem sequer me preocupar em as dobrar. Fiz todo o processo o mais rápido que conseguia, pegando em tudo o que achava essencial. Varri o quarto com o olhar uma última vez, me perguntando se não estaria me esquecendo de alguma coisa. Bati com a mão na cabeça ao perceber que me havia esquecido de levar a minha fotografia com a minha mãe. Após de fechar o zipper da mala, me olhei no pequeno espelho em cima da minha cômoda, e me perguntei o que estava fazendo. Eu estava prestes a cometer uma loucura.

Afastei esses pensamentos, quando ouvi um carro acelerando no lado de fora. Corri para a janela e vi Jean-Pierre perto de um grande carro preto, com múltiplas portas e vidros escuros. Ao volante estava a sua mãe, e conseguia ver os seus cabelos pela janela aberta do condutor. Me apressei a pegar a mala, e após trancar a porta, corri para junto deles, sem me importar com a quantidade de pessoas que me observava. Consegui ver Drake falando com Amanda junto da escadaria, e me esforcei para que ele não me visse. Corria com todas as minhas forças, sentindo o ar frio queimando o meu interior. Quando cheguei perto do carro, olhei para a única porta que estava aberta. Sabrine estava deitada ao longo dos três bancos traseiros, parecia dormir profundamente. Deitada numa posição estranha e desconfortável.

—O que você fez com ela?- perguntei irada. Jean-Pierre suspirou divertido e depois rolou os olhos com impaciência.

—Ela está apenas desacordada, Lis. Ela está ótima.

—O que você lhe deu?

—Bambu...penso que já tinha dito isso.- reclamou ele.

—Bambu?- repeti tentando manter a calma, enquanto observava o seu corpo pálido.

—Bambu é venenoso para Ghouls. Na verdade no estágio em que ela se encontra é apenas venenoso, mas quando a transformação estiver concluída será mortal.- esclareceu ele.

—Entrem no carro! Não temos muito tempo.- avisou a diretora Cassandra, colocando a cabeça fora da janela.

—Não temos tempo para quê?- perguntei a Jean-Pierre, que agora abria a porta do seu lado.

—Até que eles nos descubram...- respondeu entredentes.

—Quem?- perguntei curiosa.

—Os seguidores de Lótus.


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