Crescendo escrita por August Martinez


Capítulo 5
Capítulo 5




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"Os preparativos do funeral, a escolha do túmulo, a pompa fúnebre, mais do que homenagem ao morto, são consolo para os vivos."

 

 

O seu sorriso iluminava o grande salão de música, me olhando através de uma foto emoldurada. O mesmo tinha sido decorado com leves tons de lilás e beige, as cores favoritas de Vivian, segundo a diretora Cassandra. Faziam naquele dia dois dias desde a sua morte, e a escola ia se recompondo aos poucos. O funeral seria daqui a algumas horas, mas nada impediu de que aquela homenagem acontecesse. Os alunos e professores haviam se unido para criar uma bonita homenagem em sua honra, juntando a sua familia e amigos, aos alunos da escola. O cômodo já se encontrava lotado, reconhecia a maíoria dos rostos como sendo de alunos, mas a outra metade não fazia ideia de quem seriam. Todos se movimentavam de um jeito estranho, quase cauteloso. Sussurravam em tom baixo, pelo que a suave música clássica que tocava no fundo era bem audível. Era estranho ver todos os estudantes de preto, como um mar negro de pêsames e tristeza. Para além das muitas fotos de Vivian por ali espalhadas, haviam também imensas flores. A sala estava bem iluminada, sendo que todas as janelas estavam abertas, deixando entrar a brisa fresca daquela manhã de Primavera. Por incrível que pareça, aquele salão nunca havia estado com um aspeto tão cuidado quanto naquele momento. Estava muito bonito, porém fúnebre.

Drake estava sentado junto da mesa dos aperitivos, segurando uma pequena xícara de chá, de cabeça baixa e em silêncio. Não conseguia avistar Sabrine em lugar algum, e eu já me começava a habituar a tal coisa. Nesses dois dias ela vem a me ignorar, assim como a Drake, na verdade a todo o mundo. Sabrine não parecia mais a doce garota que havia conhecido fazia cinco dias. Ela estava fria, distante e extremamente estranha. Fui por muitas vezes na biblioteca, na esperança de lá a encontrar. Fui no seu quarto, também em vão. Eu não sabia o que estava acontecendo com ela, mas sabia que ela não estava bem. E eu sentia que a morte de Vivian só havia piorado as coisas. Eu precisava falar com ela o mais depressa possível.

Olhando mais atentamente para os rostos ali presentes, consegui avistar a diretora Cassandra conversando com a professora de música. A senhora que então me tinha parecido tão antipática, estava agora a dialogar amigávelmente com a mãe de Jean-Pierre. Me sobressaltei quando senti uma mão tocando levemente as minhas costas, era Adriel. Ele estava agora junto de mim, acendendo uma pequena vela púrpura, junto da foto da bela garota. Ficámos a olhando por alguns segundos em silêncio, antes de o quebrar:

—Ela era tão bonita...

—Era sim, muito bonita.- a sua voz era frágil, triste e pesada. Parecia extremamente incomodado com a situação.

—A família dela já chegou?- perguntei em seguida, revistando todo o lugar com os meus olhos.

—Não...ainda não.- respondeu ele inseguro, repetindo o meu gesto.- Apenas a irmã mais velha dela, Daphne.

—Quem?- ele apontou discretamente para a garota loira na outra ponta do salão. Ela era imensamente parecida a Vivian, algo que me fez estremecer por inteiro. Os seus cabelos eram do exato mesmo tom de dourado, e a sua estatura não era muito diferente da dela. Ela estava agora conversando com a diretora Cassandra, enquanto apreciava toda a decoração feita.- Meu Deus...ela se parece muito com a Vivian.

—Verdade. Chega a ser assustador olhar para ela nesse momento...

—Olha só para todas essas mensagens.- comentei, desviando o olhar da mesma. A mesa na nossa frente estava repleta de mensagens deixadas para Vivian. Todas elas dentro de vários envelopes coloridos e assinados pelo seu remetente. E do lado estavam variadas rosas, de várias cores, com o seu respetivo significado do lado. A diretora havia tido a ideia de as lançar no rio depois do funeral, para a homenagear.- Foi muito simpático da parte da sua tia de organizar essa homenagem.

—Nós devemos isso a ela...- respondeu ele, enquanto brincava com um dos envelopes. Consegui ler o seu nome escrito com uma caligrafia cuidada, e me perguntei o que seria que ali dentro estava escrito.

—Foi uma morte horrível.- comentei.

—Parece que essa atmosfera de paz e calmaria não estava destinada a existir nessa escola. Pobre Vivan...

—Ela não merecia esse fim.- disse sincera.- Eu não a conheço faz muito tempo, mas...ela foi das poucas pessoas que me ofereceu o seu sorriso e simpatia, sem nem ao menos me conhecer.

—Eu nunca tive a oportunidade de falar com ela...me sinto um pouco culpado por isso.- o olhei por alguns momentos, e consegui ver a dor nos seus olhos postos no rosto da jovem garota.

—Hey, está tudo bem...- o reconfortei, acariciando de leve as suas costas.

—Que rosa você vai jogar no rio?- perguntou ele, após alguns minutos de puro silêncio.

—A rosa escura.- respondi, enquanto pegava numa delas. A segurei contra o meu peito e ali a deixei ficar, suspirando em seguida.- Significa gratidão...pela sua amizade e simpatia, que eu tanto precisava naquele momento. E você?

—Eu vou escolher a mesma.- retirou uma das flores rosa escuras do pequeno jarro e a segurou gentilmente.

—Pelo que você está grato?- me arrependi de o perguntar no mesmo segundo em que o fiz. Sabia que estava sendo intrusiva. Elisabeth, você e uma pessoa horrível.

—Ela não fugiu naquela noite, Lis. Essa foi uma das poucas coisas que ela revelou para as autoridades...ela perdeu a visão tentando as salvar. Tentando salvar Pamela. E eu não poderia estar mais grato pela coragem e amizade, que tinha pela minha prima.

Assenti compreensiva perante as suas palavras tristes, e depois vasculhei a sala mais uma vez, dando de cara com Sabrine. Seria mesmo ela? A garota estava completamente diferente, os seus cabelos escuros estavam agora extremamente curtos, não usava os seus óculos e trazia uma garrafa de uma bebida da qual não fui capaz de identificar na mão direita. Cambaleava por entre as pessoas, que a olhavam com desagrado, caminhando na direção de Drake.

—Espere...aquela é a Sabrine?- perguntei relutante, percebendo que Adriel também a observava sem reação.

—É, eu penso que sim.- respondeu ele confuso com toda a imagem.

—Me desculpa, com licença...- ia pedindo, enquanto cortava caminho até ela. A vi parando atordoada, mesmo antes de chegar ao seu destino. Depois de o fazer se jogou numa das cadeiras, apoiando a sua cabeça na parede, derrubando muitas das fotos de Vivian que ali estavam expostas. Ouvi várias vozes indignadas, se perguntando quem seria aquela garota. Vi a diretora Cassandra se aproximando, mas em um olhar rápido mas significativo, pedi para que me deixasse falar com ela.

—O que você pensa que está fazendo?- perguntei furiosa ao chegar perto da mesma. Ela me olhou irônica, e soltou um risinho abafado. Estava claramente embriagada.

—Entrando no espírito do evento, e você?- respondeu ela, levantando a sua garrafa.

—Isso não é uma festa, Sabrine. Você está sendo muito inoportuna. Por favor, pare de beber.- pedi, pegando na garrafa que trazia consigo, e a colocando no topo da mesa mais próxima. Ouvi as suas reclamações fracas enquanto o fazia, mas as ignorei.

—Não é uma festa? Olhe ao seu redor, Elisabeth...todo o mundo bem vestido, reunido por alguém que nem conhecem, é...isso me parece uma típica festa.- comentou ela ácida, se levantando a grande custo, pelo que me senti obrigada a ajudar. A olhei com mais atenção, e então reparei nos grandes círculos negros que já se acumulavam ao redor dos seus olhos, e de como estava extremamente pálida.

—Pare com isso!- adverti, enquanto ela se debatia para pegar a garrafa de volta.- E o que houve com você?

—Não gostou?- perguntou ela divertida, desgrenhando as suas, agora, poucas camadas de cabelo.

—O que está acontecendo com você, Sabrine? Você passa dias sem falar comigo, me ignora como se nem me conhecesse. E agora isso?

—E eu te conheço, Lis?- perguntou ela incisiva. A olhei confusa por alguns segundos, e ela segurou o meu olhar, me encarando pela primeira vez.

—Não sei o que está querendo dizer...

—Exatamente o que você ouviu.- respondeu ríspida.

—Você está bêbada...num velório.- disse, tentando a segurar a todo o custo, a guiando em seguida até à porta.- Por favor, me faça o favor de ir para o seu quarto. Vá descansar...por favor, por respeito à família, não apareça assim no funeral.- pedi eu, olhando o seu rosto exausto e escanzelado.

—Olha Lis, desfrute bastante desse grande evento sim? Te vejo no funeral.- disse seca, e depois virou costas e seguiu para a porta de saída.

—Sabrine! Volte aqui! Me deixe ir com você até o seu quarto...- pedi pela última vez, antes de a perder de vista. Suspirei derrotada pelo cansaço, e depois decidi voltar para junto de Adriel. Vi Jean-Pierre, na sua camisola justa preta de gola alta, caminhando na minha direção. Apertei o passo ainda mais, mas não fui rápida o suficiente para o evitar.

—Elisabeth...

—O que você quer?- perguntei ríspida, enquanto o encarava com a melhor expressão que conseguia colocar na cara naquele momento.

—Ah, vá lah! Não seja rancorosa...estamos num velório.- pediu o garoto, me olhando atentamente.

—O que você quer, Jean?- repeti impaciente.

—A minha mãe está pedindo para que todo o mundo tenha um acompanhante, para facilitar a contagem dos transportes.- respondeu ele rápidamente.

—E daí?

—Porque você não vem comigo?- a sua cara não demonstrava nenhum tipo de brincadeira ou ironia, pelo contrário, estava bastante sério.

—Você só pode estar brincando.- respondi lentamente, tentando controlar a minha raiva interior, que gritava para explodir.

—Não seja orgulhosa...

—Para além de infantil e intrometida, agora também sou orgulhosa?- perguntei com notado cinismo.

—Vamos lá, Lis. A sua lista de amigos deixa um pouco a desejar...o Drake vai com a Sabrine, o Adriel com a minha mãe. Por favor, me deixe a acompanhar.

O olhei por alguns segundos, pensando bem sobre o que iria fazer em seguida. Ele me observava paciente, enquanto me via ponderar sobre as minhas poucas alternativas.

 —Tudo bem.- acabei por concordar. Ele sorriu vitorioso e me ofereceu o braço, o olhei incrédula e depois apressei o passo para evitar o seu pedido. Ouvi o seu bufar divertido atrás de mim, e depois nos dirigimos para o exterior do edifício. Já haviam vários carros parados perto da porta da escola, assim como vários alunos se apressando para irem com quem desejavam. Que sorte a deles. Aos poucos o grande jardim estava lotado de alunos e convidados, e não conseguia afastar a ideia de que esse dia iria ficar comigo, para sempre, e não pelas melhores razões.

—Quanto tempo para chegarmos lá?- perguntei, enquanto o deixava me guiar para um dos últimos carros. Tinha um aspeto cuidado, e o meu pouco entendimento sobre carros me deixou perceber de que se tratava de uma marca consideravelmente boa.

 –O funeral será no mesmo cemitério onde está sepultada a minha irmã...chegaremos em uns quinze minutos.

—Esse carro é seu?- perguntei o observando por cima do tejadilho do mesmo, ele abriu um sorriso curioso e me pediu para que entrasse.

Fiquei alíviada quando percebi que o seu interior estava quente e confortável. Assim como o silêncio delicioso que havia pousado sob a viatura. Vi Adriel se dirigindo para o carro do lado, com a sua tia, e sorri para ele através do vidro. Ele me olhou preocupado, franzindo o sobrolho, e depois lançou um olhar incisivo para Jean-Pierre, que lhe retribuiu um sorriso zombeteiro. Suspirei aborrecida e depois pedi para que desse a partida.

Fizemos quase todo o caminho em silêncio, trocando apenas breves olhares significantes, quando vimos a carrinha funerária passar na nossa frente, já nas proximidades do cemitério.

—Olha...eu sei que fui um idiota. Um completo idiota. Queria pedir desculpas por isso.- disse ele quebrando o gelo pela primeira vez.- Decidi tirar essa oportunidade para me desculpar para você...

 —Você é muito mais que um simples idiota. Você é um ótario, uma verdadeira besta e um babaca.- comentei fria. Vi o seu rosto se moldando a um já tão habitual sorriso irônico, e o vi procurando por um bom lugar para deixar o carro.

—Mais alguma coisa?- perguntou, suspirando divertido.

—Por agora é tudo.

—Já me chamaram de coisas piores.

—Acredito que sim.- confessei, abrindo a porta do meu lado em seguida. Uma fina chuva havia começado a caír, me insultei mentalmente por não ter trazido um guarda chuva da escola. Vi que grande parte das pessoas trazia um consigo, na sua maíoria preto, pelo que me senti a pessoa mais idiota do mundo. Foi quando parei de sentir a fina chuva, que reparei que Jean-Pierra já se encontrava do meu lado, segurando um deles.

—E acredito que você terá ainda mais insultos no seu dicionário.- disse ele, satisfeito pela minha reação surpresa.

—Oh, você acha mesmo que eu já o comecei a usar com você?- repostei irônica.

A fina chuva acompanhava o grande cortejo que seguia agora a carrinha funerária, e eu observava a grande multidão de preto, procurando por Sabrine. Mas a única coisa em que consegui reparar foi na grande quantidade de pessoas que choravam ao meu redor. Vi um casal que caminhava lentamente abraçados, presumi que seriam os pais de Vivian. Senti uma pontada cortante no coração, imaginando a dor que deveriam estar sentindo. Senti uma lágrima escorrendo pelo meu rosto, e pela primeira vez no dia agradeci estar chovendo.

—Odeio funerais...- comentou Jean-Pierre, enquanto seguia todo o mundo com passos lentos e cuidadosos.

—Esse é o meu segundo funeral. Continuo sem conseguir deixar de pensar em como ambas as mortes foram tão injustas...- confessei.

—Esse é o meu terceiro funeral. Apenas um deles foi mais que justo.

—A quem se refere...?- perguntei insegura, tentando manter uma expressão indecifrável.

—Ao meu pai.

—Me desculpe, eu não sabia...Lamento imenso.- senti as minhas faces queimando de vergonha e embaraço, pensando na quantidade de razão que ele tinha sobre mim. Eu era de fato muito curiosa.

—Não lamente. Ele era um idiota, um verdadeiro filho da mãe em todos os aspetos possiveis. Deixou a minha mãe com dois filhos no colo, e foi embora. Ele teve o que mereceu.

 Baixei a cabeça, decidida a não fazer mais perguntas inusitavas. O observei através da cortina que os meus cabelos formavam entre nós, e pude ver a tristeza no seu rosto. Pela primeira vez consegui ver um sentimento diferente em si, e isso me conseguia convencer finalmente, de que ele também era humano e não feito de pedra. Observava em silêncio os vários túmulos passando por nós lentamente. Era um pequeno cemitério, pequeno demais para a grande quantidade de pessoas que ali estavam. Porém, era extremamente bonito. Haviam variadas estátuas de anjos e outros santos ali esculpidas, assim como várias outras imagens. Todo o lugar estava bem cuidado, parecendo quase um lugar agradável, caso não fosse aquela a situação em que nos encontrávamos.

A chuva se intensificou, e chicoteava o toldo do negro chapéu com agressividade. Senti a mão de Jean me puxando para mais próximo, tentando me manter afastada da chuva forte.

Quando pisámos pela primeira vez a terra escura e molhada que nos guiaria para a sua sepultura, nos apercebemos de que aquilo estava realmente acontecendo. Vi dois coveiros se apressando para retirar o caixão de dentro da viatura, e consegui ouvir ao longe o choro desesperado da sua mãe. Vi o seu marido tentando acalmar a situação, e a sua irmã do lado de ambos, com uma compostura quase inabalável. A sua parecença com Vivian era assustadora. Do outro lado já se encontrava um padre já idoso, que lia algumas páginas do que eu acreditava ser uma bíblia.

—Estamos aqui hoje reunidos pela grande e triste perda da nossa jovem irmã Vivian Watson...- começou ele a cerimônia.

Não conseguia prestar atenção nas suas palavras, os meus olhos passavam pelo caixão de Vivian e voltavam para o rosto do senhor, que tentava a todo o custo se resguardar da chuva, enquanto falava calmamente. Explorei a multidão mais uma vez, e a vi. Sabrine estava junto de Drake, que limpava as suas lágrimas repentinas. Ela estava do seu lado, e não olhava diretamente para toda a cena, mantendo o seu olhar no chão. Sabia que entretanto as suas palavras tinham se extuiguido, pelo que o olhei de novo, me esforçando para não chorar.

—Eu preciso ver a minha filha uma última vez.- pediu a mãe de Vivian, dando dois passos em frente. Logo a seguir dela vinha o seu marido, com grande pesar no seu rosto.

—Querida, por favor...não faça isso.- pedia ele. Eu já não conseguia controlar as minhas lágrimas, pelo que me permiti soluçar baixinho. Senti o olhar de Jean-Pierre queimando na minha face agora encharcada.- Essa não é a imagem que vai querer ter da nossa filhinha. Por favor, meu amor...

—Eu quero ver a minha filha, Victor!- disse olhando furtivamente  para ambos os coveiros. Um deles se aproximou do caixão, meio descoordenado, tentando se proteger da forte chuva. Via o seu marido sussurrar algo no seu ouvido, e ela continuava a insistir para que o abrissem.

—Você não precisa ver isso.- sussurrou Jean-Pierre no meu ouvido.- Podemos nos afastar daqui por um pouco.

Eu simplesmente neguei com a cabeça, sem conseguir tirar os olhos de toda aquela situação. Ambos os coveiros estavam agora retirando as pregas do caixão amadeirado, e aquele barulho arrepiava todo e cada cabelo da minha nuca. A minha respiração ia aumentando de sonoridade, se tornando descompensada, na medida em que o momento se aproximava. Assim que a última foi retirada, e vi o casal se aproximando mais do mesmo, olhei instintivamente para Sabrine e Drake. Drake já me olhava de volta, por detrás dos seus óculos escuros, mas Sabrine não desviava a sua atenção nem por um segundo.

Quando a tampa foi levantada, consegui ver os cabelos loiros de Vivian, agora já desbotados de cor. O seu rosto pálido continuava extremamente belo e parecia repousado, como se de um sono profundo se tratasse. Senti um suspiro aliviado e entrecortado saindo de mim, ao perceber que a imagem que esperava não era aquela. A sua mãe havia caído de joelhos perto dela, chorando compulsivamente.

O meu olhar foi distraído pela criação de uma manifestação de sons de burburinho agitado e vozes entrecortadas. Via várias pessoas se dispersando, com expressões de choque e medo. O pai de Vivian cortava caminho para junto de toda a confusão. Olhei confusa para Jean-Pierre, que largou o chapéu no chão, se encaminhando rapidamente para junto de Sabrine. O segui o mais rápido que conseguia, sentindo o meu coração bombardear o meu peito. Sabrine estava curvada sob a terra molhada, e todo o seu corpo se contorcia devido à sua respiração pesada. Abanava a cabeça compulsivamente, como se de uma convulsão se tratasse. Via Drake tentando acalmar a situação, enquanto Jean afastava os seus cabelos da cara, sussurrando algo. Eu não sabia o que fazer, corri para junto dela, deixando toda a multidão olhando curiosa para a situação.

 –Sabrine...-chamei baixinho, me ajoelhando perto do seu rosto, afagando os seus cabelos.

—Lis, saia daqui agora!- advertiu Jean-Pierre alarmado.

Vi os seus olhos me olhando rapidamente, levantando lentamente o seu queixo. Por alguns momentos o seu corpo parou de se contorcer, e eu sorri aliviada. E sem que eu pudesse prever, disparou uma das suas mãos em direção ao meu abdômen, me fazendo caír no topo de um outro túmulo. Me contorci com a dor do embate. Os gritos haviam se alastrado, e eu sabia que teria que me levantar e fazer algo. Ela já se encontrava de pé, e soltava grunhidos horrendos, e quase animalescos. Drake recuou em passos largos, com as mãos postadas na cara com terror. Vi toda a multidão se movimentando para lugares diferentes e indistintos, e vi Sabrine se aproximando a grande velocidade do caixão, que guardava Vivian sem vida. Vi Jean-Pierre a puxando para trás, mas num golpe rápido e forte, o vi sendo disparado para trás com grande agressividade. Corri sentindo uma dor lacinante na minha perna esquerda, prendendo em seguida a sua mão, tentando a deter. Ela me olhou furiosa, e agarrou o meu pescoço com extrema força. Me senti sufocando por alguns segundos, que pareceram uma eternidade, até que as mãos de Jean-Pierre arrancaram as suas de mim. Caí no chão puxando o ar com força, sentindo uma dor horrenda na garganta. Tinha grande dificuldade em respirar.

Ele continuava prendendo o seu braço, pelo que ela o girou, e pelo barulho que se fez ouvir, diria que o teria fraturado. Jean-Pierre soltou um grito abafado e caiu de joelhos no chão. Ela sorriu satisfeita, com os seus olhos sanguinários e energéticos, e se aproximou mais do caixão, observando sorridente o seu público em pânico. Ela estava agora em cima do caixão, numa posição curva, espumando um estranho líquido viscoso em cima do corpo de Vivian. Me levantei a grande custo, correndo na sua direção. Senti a mão de Jean me puxando para trás, indo de encontro ao seu tronco. Estava agora cara a cara com ela, e pude observar com terror, uns olhos já tão conhecidos. Os seus olhos estavam escarlate, da cor do sangue. As sombras. As mãos dela seguravam a cabeça de Vivian, e conseguia ouvir os gritos horrorizados de toda a gente, inclusive dos seus pais.

—Sabrine! Olhe para mim!-pedi num grito, sentindo uma dor aguda ao falar, pelo que me senti obrigada a segurar o meu pescoço. Ela me olhou por alguns segundos, mostrando os seus dentes brilhantes, e por momentos pensei que ela me iria atacar de novo. Consegui ver os seus olhos mudando de cor lentamente, passando de novo para o seu castanho original. A sua expressão anteriormente amedrontadora mudou, e vi o pavor estampado no seu rosto, olhando ao redor confusa. Soltou um grito estridente ao perceber o que estava fazendo e se afastou aos solavancos do corpo inerte de Vivian. Depois de observar toda a multidão que agora a olhava aterrorizada, virou costas rapidamente e correu para longe, sem que ninguém a impedisse. A vi se afastar a uma velocidade incrível, correndo pela chuva. Senti as mãos de Jean me puxando para cima, e apenas me deixei levar. Não tinha forças para o combater naquele momento, os meus olhos ainda a seguiam, até a perder de vista. O burburinho das pessoas havia retomado, e percebi que ele não pretendia permanecer ali. Estávamos caminhando a passos largos para a saída do cemitério.

—Para onde você está me levando? Precisamos voltar para trás, agora!- exigia eu sem forças, enquanto Jean me apoiava firmemente.

—Você pode calar a boca só por cinco minutos, por favor?- falou ele visivelmente nervoso, enquanto procurava as suas chaves no bolso das calças. Nunca o havia visto tão nervoso. As procurava sem retirar as suas mãos de mim. A chuva já estava abrandando, mas mesmo assim sentia as roupas encharcadas, pesando sob o meu corpo.

—Volte para trás! Eu preciso falar com ela!- pedi, tentando me debater nos seus braços.

—E você irá falar com ela.- garantiu ele, me puxando de volta para a posição inicial.- Assim que chegar na escola.

Ele me guiava até ao seu carro, apoiando a minha cabeça numa das suas mãos, visto que o seu outro braço estava visivelmente machucado. Estava zonza e dolorida, e era com muita dificuldade com que eu me mantinha de pé. Tudo estava turvo, como se de um pesadelo se tratasse. Um horrível pesadelo, do qual só queria acordar. Sentia as minhas pernas fracas, assim que desabei sob o assento do seu carro. O vi correndo para entrar do outro lado, com a preocupação marcada no seu rosto.

—Por favor, coloque o seu cinto de segurança.- continuou ele inquieto. Assim o fiz, como que em modo automático.

—O que aconteceu ali atrás? O que está acontecendo com ela?- perguntei num tom alterado.

—Eu não sei, Lis...

—Então porque é que eu sinto que você sabe mais do que diz?- perguntei sentindo a minha cabeça latejar.

—Você faz perguntas demais. Prometo que assim que o puder explicar o farei. Não há nada nesse mundo que me faria mais feliz nesse momento do que falar tudo o que sei para você. Mas eu não posso...

—Eu...- comecei a frase, mas desisti após sentir uma grande pontada na barriga. No exato sitio onde ela me havia acertado. Mas porquê? O que aconteceu ali atrás?

—Eu irei explicar tudo para você, Lis. Mas eu preciso que você mantenha uma mente totalmente aberta.- garantiu ele.

 

 


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