Ao seu lado escrita por nanacfabreti


Capítulo 15
Antes de fechar os olhos




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Acordei antes do despertador gritar, sentia-me num misto de ansiedade e nervosismo, não me importava se seria julgada, a opinião de ninguém mudaria os meus sentimentos, de qualquer forma eu não podia evitar me sentir daquela forma.

Para minha surpresa a mesa estava posta, havia comida de mais ali.Seria minha mãe tentando levantar a bandeira branca?

—Vou receber uns advogados aqui, se quiser pode tomar café. –Ela surgiu ainda de roupão, mal olhou para mim.

Não respondi nada,estava entre um gole e outro de suco quando meu telefone apitou, na mensagem Ian me avisou que já estava a minha espera.

—Seu pai ligou ontem. –Ela falou usando um tom irônico. –Ele achou que você fosse passar o dia com ele.

Respirei fundo,havia mesmo esquecido de ligar para meu pai, e dado o flagrante que acabava de sofrer, tratei de sair o mai rápido possível dali.

Eu me sentia na ponta dos pés, precisava descansar, ter paz, mas mesmo assim me senti impulsionada a enfrentar a todos que possivelmente estavam esperando por minha queda.

Ian me esperava encostado em seu carro, seus olhos denunciavam seu nervosismo, queria dizer que tudo ficaria bem, mas silenciei , entreguei-me em seu abraço para recarregar minhas forças.

—Sabe que não vai ser nada fácil não é ? –Ele finalmente falou quando estávamos próximos do colégio.

Olhei para ele ,minhas expectativas estavam completamente bagunçadas.

—Acho que eles esperam por um show... –Falei notando mais pessoas na calçada do colégio que o normal. –Daremos à eles.

Ian arqueou as sobrancelhas, a veia de sua testa pulsava notoriamente.

—O que quer dizer? –Ele perguntou depois de estacionar.

—Que não vou me deixar acuar, não estamos fazendo nada errado. –Avisei enquanto destravava meu cinto de segurança.

Ian desceu e abriu a porta para mim, eu não olhei para os lados, agi normalmente , se é que isso era possível quando se tem dezenas de pares de olhos voltados para você.De mãos dadas seguimos colégio a dentro.Estava feito, quem ainda não tinha nos visto como um casal, estava oficialmente avisado.

O tempo estava leve, contrariando toda a situação.Era claro que àquela altura eu já era considerada soropositivo também, as pessoas me olhavam como se buscassem sinais de que eu estava doente, exatamente da mesma forma que olhavam para Ian.

Os cochichos eram tantos, entre uma frase e outra eu conseguia distinguir algumas palavras, todas eram pejorativas, tentei não me afetar.

—Deus sabe como eu... –Ian começou a dizer entre os dentes enquanto nos aproximávamos das salas de aula.

—Nem comece. –Revoltei-me. –Tirei um peso das minhas costas, me sinto leve e aliviada por não ter mais que esconder o meu amor. –Falei em voz alta para quem quisesse ouvir.

Ian ensaiou um sorriso, mas seus olhos azuis estavam tristes. –Eu posso fazer isso. –Continuei chacoalhando suas mãos que estavam entrelaçadas nas minhas. –Espero que você possa também,estou contando com isso.

Ele soltou minhas mãos e segurou-me pelos ombros.

—Você é tão forte. –Ian abraçou-me.

— Só porque eu tenho você, porque você me ama. –Sussurrei. – Dessa vez só Ian precisava saber daquilo.

De soslaio pude ver que algumas pessoas nos olhavam com repulsa, entretanto, aquilo era muito pequeno diante do que tínhamos.

—Sabe o que eu acho? –Ian inclinou-se em minha direção, seu perfume me embriagou.

—O que? –Quis saber enquanto me deleitava de seus afagos em meu rosto.

—Acho que precisamos de um tempo pra nós dois, só nos dois. –Ele sussurrou-me como se fizesse uma proposta indecente.

—Eu acho perfeito, e já tenho algo em mente.

—Tem? –Ele sorriu com o canto dos lábios.

—O que me diz de uma praia quase deserta, com uma casa bem aconchegante... – Sussurrei em seu ouvido, tentando ser o mais persuasiva possível.

Ian entrou na brincadeira.

—O que acha desse final de semana? –Ele não precisava tentar ser sedutor.

—Perfeito, mal posso esperar. –Tive vontade de enchê-lo de beijos, mas estávamos no colégio, e isso já era complicado de mais.

Eu tinha duas opções, ou revidava a cada comentário e olhar atravessado que era diferido a mim, ou eu podia ocupar minha mente planejando e imaginando o final de semana perfeito que eu teria com Ian.Optei pela segunda opção.

Passei o resto do dia e da semana apenas pensando em nós dois, sozinhos, como se fôssemos para outra dimensão, onde ninguém, nos julgaria. Eu estava tão feliz que até mesmo a convivência com minha mãe, já não me afetava tanto.

Ela permanecia com a mesma expressão de desgosto e olhar de pânico quando tínhamos algum contato, ainda discutia com meu pai por telefone, e não trocávamos mais do que palavras monossilábicas.

Na quinta-feira à noite comecei a arrumar minha mochila, enquanto separava peças de roupas eu ensaiava como comunicaria minha ausência em casa por dois dias.Eu não pretendia mentir,mas também não sabia como falaria a verdade.

  –Pai, por favor, fale com ela, e avise que não estou pedindo permissão, estou apenas avisando. –Choraminguei, tentado passar a responsabilidade de falar com minha mãe, para ele.

—Lív... –Ele respirou fundo. –Por que não espera a poeira baixar antes de ficar fora de casa? –Ele falou calmamente.

—Por isso mesmo pai, a poeira está alta, Ian e eu estamos quase cegos com tanta poeira em nossa cara, precisamos disso, de um tempo sem problemas. –Comecei argumentar.

—Bem,eu vou ver o que faço. –Ele fez uma pausa. –Nem sei se deveria, mas vou falar com ela, as coisas entre nós estão ruins, acho que não tem como piorar.

—Pai. –Dessa vez foi eu quem respirou fundo. –Não sei como agradecer.

—Pois é, tenho ouvido muito essa frase nos últimos tempos.

Eu mal conseguia me concentrar na prova de história, era um resumo sobre um tema que eu conhecia bem, mesmo assim, as palavras me faltavam, meu cérebro apenas se concentravam nos ponteiros do relógio na parede.Mais quarenta minutos e eu estaria a caminho da praia com Ian.

Enquanto eu batia com a caneta sobre a mesa tentando buscar inspiração, três batidas leves na porta da sala fizeram todos olharem para a mesma direção.

O professor franziu a testa e seguiu para abrir.Era Ian.

— Por favor, preciso falar com Lívia. –Ele me procurava com os olhos, aflito.Senti meu coração acelerar.

Antes mesmo que o professor pudesse se manifestar eu já estava em pé ao seu lado.

—O que houve? –Perguntei em pânico.

—Fiquem a vontade. –O professor apontou-me a saída com um certo sarcasmo.Fechou a porta depois disso.

Ian estava parado em minha frente, seus ombros caídos e a sombra em seu rosto me fizeram arfar, queria perguntar o que tinha acontecido mas, temia a resposta, no fundo eu sabia que seria alguma coisa bem séria, na verdade, eu não me lembrava de ter visto tanto horror em seus olhos.

Abracei-o então, não sabia o que fazer.

—Liv, eu acabo de receber uma ligação da mãe da Suelen.. –Ele fez uma pausa, como se tivesse algo atravessado e sua garganta.

—O quê houve com ela? –Esperei pelo pior.

Ele balançou a cabeça então pude ver que ele quase chorava, seus olhos avermelharam-se instantaneamente.

Me senti enjoada.

—Sua mãe me disse que ela quer me ver,que quer se despedir. –Ele amargou as palavras. –Ela está mal, muito... –Sua voz era quase inaudível.

  –Meu Deus. –Sussurrei.Era a primeira vez que a morte me parecia tão real. –Eu sinto tanto. –Coloquei-o em meus braços.

—Eu acho que devo ir, me perdoe. – Disse ele em tom de culpa encolhendo os ombros.

—Você está certo, deve ir sim. –Afirmei sem pensar muito naquilo. –Mas, quero ir com você, quero estar lá,mesmo que do lado de fora.

Ian passou a mão pelos cabelos, estava nervoso.

—Eu não acho que você precise passar por isso,eu já a envolvi em problemas de mais.

Segurei sua mão.

—Ian, eu também acho que você não precisa passar por isso sozinho.Eu vou,ela não precisa me ver,mas quando você cruzar a saída eu vou estar a sua espera, meus braços vão estar prontos pra te receber. –Argumentei emocionada.

Ele me abraçou fortemente.

—Você sabe que isso será tudo o que vou precisar, você. –Ele me beijou.

Abri a porta da sala, sabia que todos estariam curiosos.

 –Vou ter que fazer a prova outro dia, se o senhor permitir. –Falei baixinho para o professor. –Terei que pedir dispensa.

—Problemas? –Ele pareceu-me curioso também.

Apenas balancei a cabeça positivamente, eu não podia dizer que a ex-namorada do meu namorado estava morrendo e queria vê-lo.

—Tudo bem, refazemos outro dia. –Ele pareceu-me mais compreensivo que o normal.

—Muito obrigada. –Segui para pegar minhas coisas.

Evitei olhar para os lados, era constrangedor todos olhando para cada gesto meu.

—Aconteceu alguma coisa? –Julia perguntou meio sem jeito, não nos falávamos desde a festa, desde a sua estúpida reação.

—Acontecem coisas o tempo todo. –Respondi já de saída.

O silêncio  preenchia cada espaço daquele carro, Ian estava destruído e eu sem experiência alguma em como consolar alguém naquela situação.

  Quando ele entrou em uma rua estreita de um bairro desconhecido por mim,avistei alguns carros estacionados em fila em frente das duas últimas casas do quarteirão.

—Queria poder dizer alguma coisa que fizesse sentido agora. –Falei sem jeito e com medo de parecer boba.

Ian virou seu rosto, parecia não querer que eu visse seu sofrimento.

—Quer ficar aqui no carro? –Ele disse quase que num sussurro.

Abri aporta do carro e desci.

—Não.Eu vou com você. –Avisei já em pé do lado de fora.

Ele segurou minha mão e atravessamos a rua.A ultima casa era uma construção antiga,mas bem cuidada,tinha um portão baixo e um jardim de rosas brancas já na entrada.Ian sem cerimônias abriu o portão e entrou.

Na garagem haviam duas mulheres de meia idade conversando,mais a frente, próximos a porta da sala, outra mulher, essa já mais velha e um homem que chorava discretamente.O clima ali era o pior possível, algo próximo de um velório.

Senti um calafrio tomar conta de todo o meu corpo.

—Ian...que bom que você veio. –A mais velha animou-se ao vê-lo.

Enquanto ela caminhava em nosso encontro, pude ver que na verdade, ela não deveria ser mais velha que as outras duas ali, seu rosto estava inchado e abatido, em torno de seus olhos caídos duas bolas roxas, quase negras, os cabelos mal tingidos exibiam raízes brancas com mais de dez centímetros. Aquela mulher era o sofrimento personificado.

—Eu...não deixaria de vir dona Célia. –Ian encolheu os ombros.

Ela tentou sorrir, depois olhou para mim.

—Eu sou a mãe da Suelen... –Ela se apresentou.

—Desculpe-me. –Ian balançou a cabeça. –Essa é Lívia, minha namorada.

—Prazer. –Falei sem saber se deveria ou não.

Ela sorriu para mim e depois voltou sua atenção a Ian.

—Deixamos ela na sala, é mais arejado que seu quarto... –Seus olhos voltaram a verter lágrimas. –Peço que não se assuste, ela está muito diferente .

Comecei a me sentir enjoada.

—Eu não sei o que dizer. –Ian parecia tão perdido quanto eu.

A mulher então cobriu o rosto com as mãos.

—Ela quis assim Ian, ela não quis lutar, não quis fazer o tratamento...minha filha se entregou para essa doença sem lutar. –Ela começou a soluçar.

  O homem que antes conversava com ela, interveio ao vê-la a ponto de se descontrolar, pegou-a pelos ombros e a levou para os fundos da garagem.

—Eu vou... –Ian começou a falar.

Soltei sua mão e o abracei com força.

—Vou ficar aqui. –Falei.

 Ele então seguiu sala a dentro, as conversas ali na garagem eram feitas aos sussurros.Perdida segui para o jardim, as roseiras floridas me chamaram a atenção.O cheiro que exalavam pareceu ter aliviado meu coração.Estava distraída quando senti alguém se aproximando.

—Lívia, não é? –Era a mãe de Suelen.

—Isso. –Sorri voltando a sentir meu coração se encolher.

—Você é soropositivo? –Ela foi direta.

Balancei a cabeça.

—Não.Não sou.

Ela arqueou as sobrancelhas, parecia espantada.

—Ian tem sorte...ele é um ótimo rapaz. –Ela elogiou antes de me dar as costas.

 Esperei mais uns cinco minutos e inquieta fui me aproximando da sala.Encostei-me na parede, as pessoas ali nem pareciam notar minha presença, estavam todos ocupados com seus próprios sofrimentos.

   De onde eu estava, dava para ver parcialmente a cama improvisada onde Sulen repousava, consumida pela curiosidade, dei dois passos para o lado e então pude vê-la deitada , e,Ian  ao seu lado.Ele segurava sua mão, extremamente magra, coberta por uma pele pálida e cheia de manchas escuras.Seus cabelos antes loiros e bem cuidados agora resumiam-se em poucos fios alaranjados com enormes raízes escuras.

Um de seus braços, mais finos que o de um bebê, exibia um cateter preso com um esparadrapo.Eu não vi seu rosto, ele estava voltado para Ian, que chorava enquanto falava com ela.Ele balançava a cabeça negativamente, parecia estar tentando convencê-la de alguma coisa.

Confesso que estava em choque, toda aquela situação era impactante e pesada de mais.Eu olhava para Ian ali, ao lado daquela garota cadavérica e por um segundo inverti as posições e troquei os personagens, um segundo foi o bastante para que eu me desesperasse.

Quando vi Ian passando pela porta eu praticamente me joguei sobre ele, o apertei tanto em meus braços que ele até recuou.

—Ela quer conhecê-la... –Ele sussurrou. –Se você quiser é claro, não se sinta obrigada.

  Não pensei em nada naquela hora, e mesmo sem saber se seria bom ou ruim para mim, se aquela garota queria por algum motivo me conhecer, eu não negaria.

Segurei na mão de Ian e cautelosamente entrei na sala, meu coração estava na boca.Respirei fundo e o cheiro de remédio e éter me lembrou o cheiro de um hospital.

Quando coloquei-me em sua frente tive que me segurar para conseguir disfarçar meu horror.De olhos fechados ela não parecia ter vida.Seu rosto fino, tinha a mesma coloração do resto do corpo,havia apenas pele e osso ali.

Ela abriu os olhos e sorriu para mim, senti vontade de chorar.

—Você tem mesmo muito bom gosto Ian...Ela é linda. –Suelen balbuciou aquelas palavras com um esforço sobre-humano.

—Obrigada. –Tentei sorrir de volta.

—Ela é ainda mais bonita por dentro. –Ian afirmou enquanto me olhava.

—Acha que não sei?Cara de sorte... –Ela ainda lutava para continuar falando.

—Antes da doença ela me achava um idiota– ele tocou meu rosto. –agora vive dizendo que me ama, então, acho que estou na vantagem. –Ele falava com ela como quem fala com uma criança.

—Estou tão feliz por você...muito mesmo. –Sua voz era um sopro.

—Eu sei. –Ele tocou seu rosto com muita delicadeza.

—Lívia, cuide bem dele...Ian merece ser feliz. –Dessa vez ela encarou-me e forçou-se para emitir um tom um pouco mais alto.

—Deixa comigo. –Afirmei já sentindo lágrimas quentes correndo pelos meus olhos.

Ela voltou a fechar os olhos e antes de partirmos Ian beijou sua testa.

Já no carro, ele que parecia uma rocha até então, desabou em meus ombros. Eu o vi chorar como uma criança, com dor, com desespero.

Não sei quais eram seus pensamentos, nem suas tormentas, mas, de uma coisa eu tinha certeza, eu não podia tirar aquilo dele.Só me restava ficar ali, servindo de pilar para que ele não desabasse por completo.

—Sinto muito. –Foi tudo o que me restou dizer na manhã seguinte, quando no colégio Ian recebeu o telefonema avisando que Suelen havia falecido.

Ian não quis ir ao funeral, mas, ambos pedimos dispensa do colégio, mais uma vez.Saímos de lá e fomos até a praia, naquele lugar onde ele abriu seu exame.Permanecemos em silêncio apenas observando as ondas,até o anoitecer.


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