Na Minha Vida escrita por André Tornado


Capítulo 5
Perseguição a alta velocidade


Notas iniciais do capítulo

No capítulo anterior:
Ringo e Paul assaltam o Banco Central e depois do roubo entram no carro de John para fugirem do local do crime, trazendo um refém que apanharam no banco.



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O pé direito de John carregava no acelerador até esmagar o pedal, até atingir o fundo. Empurrava com tanta força que achava que iria abrir um buraco na base da carroçaria. Por mais que pressionasse, todavia, o carro parecia mover-se com lentidão, deslizando placidamente pelas ruas da cidade, num passeio agradável típico de um domingo primaveril. Ele rangia os dentes e calcava aquele pedal até ao fim do mecanismo, mas o maldito carro não queria decolar da estrada como o raio de um avião!

Ringo pediu-lhe histérico:

— Mais depressa! A polícia está a aproximar-se!

— Eu sei!

Olhou pela janela e os prédios pareciam que passavam devagar, cada vez mais lentos até se imobilizarem porque o carro parara, quando devia acontecer precisamente o contrário, os vários edifícios que ladeavam as ruas limpas e claras passarem depressa, mais rápidos, velozes, imparáveis até se tornarem em borrões indistintos. E aí sim, o carro tinha mesmo decolado da estrada e subiria no ar como o raio de um avião!

Era só impressão, claro, o medo de ser apanhado pela polícia com um bandido no carro, dois reféns e um saco de dinheiro roubado é que o fazia alucinar de que por mais que carregasse no acelerador o carro não andava mais depressa, como Ringo exigira. O que se passava era que estava a transportar mais peso e o velhinho Renault ferrugento demorava a reagir, o motor que pedia a reforma não estava habituado a tamanha exigência e tudo se petrificava numa grande aflição.

Devia estar a queimar combustível como um doido, mas nem quis pensar nisso. Ainda havia bastante gasolina no tanque, lembrava-se. Ou melhor, não tinha bem a certeza. Não quis certificar-se para não acrescentar mais problemas àquela situação complicada.

Voltou a cabeça para o lado direito e viu que Paul estava contraído e quieto, com a cara escondida nas mãos, os pés meio levantados para que não tocassem no chão onde estava o saco do dinheiro, os joelhos tremiam.

— Macca?...

O amigo reagiu. Puxou as pernas para o peito, de modo a assentar os pés no assento. Ficou parecido a um enorme gafanhoto encolhido. E gritou alucinado:

— Acabei de cometer um crime, Johnny!

Ele entreabriu os lábios, espantado com aquela declaração.

Estavam todos a cometer um crime. Que arrebate de consciência estranho seria aquele?

Paul explicou histérico:

— Estivemos a roubar um banco, em plena luz do dia, com a cara descoberta! Vamos ser apanhados! É só uma questão de tempo! As câmaras de vigilância vão mostrar as nossas caras que vão acabar escarrapachadas em tudo o que é noticiário de televisão, jornal e redes sociais. Não temos escapatória! A minha cara vai ser identificada como a do tipo que retirou o dinheiro da caixa.

— Isso é um grande problema.

Paul voltou-se para trás e olhou para o rapaz que fora feito refém durante o assalto e que tinha falado. Assumiu um ar menos desvairado e perguntou:

— E tu… quem és?

— George Harrison.

— É um prazer.

— Achas? Não estou a considerar nada agradável conhecermo-nos nestas circunstâncias.

— Chamo-me Paul McCartney e o meu amigo ao volante é o John Lennon – apresentou Paul. Completou desdenhoso: – E esse daí que não para de olhar para trás, a vigiar o aparecimento dos carros de polícia que nos vão prender, chama-se Ringo… Ringo qualquer coisa!

— Starr, Ringo Starr – emendou o bandido aborrecido.

— Mas nasceu Richard Starkey – informou John.

George assentiu com a cabeça e após alguns segundos a matutar se deveria dizê-lo, perguntou:

— Quando é que me deixam ir embora? Bem, já fizeram o vosso assalto, não precisam mais de mim como garantia…

A gargalhada de Paul foi estridente.

— Nunca! Quem entra nesta viagem já não sai!

— O quê?

Num gesto inesperado, Paul atirou o saco de dinheiro que aterrou no colo de George. Com o impacto, o rapaz bateu com as costas no assento e abraçou o saco.

— Fica com isso! Assim… fazes oficialmente parte do bando!

— Ei, nunca quis fazer parte desta festa.

— Macca, estás a exagerar – criticou John.

— Oh, deixa-me em paz! Os meus nervos já estão suficientemente destruídos para o resto da vida…

— Isto é leve – considerou George a sacudir o saco.

— Também achei – lamentou-se Paul. – Tanta trabalheira por tão pouco…

— São notas. Podem ser notas grandes… Viste se a mulher da caixa colocou notas grandes ou pequenas?

— Não pode ser que me estejas a fazer essa pergunta! – disse Paul incrédulo.

— Bem… é uma dúvida legítima – explicou George.

Ringo pulou para cima do banco, agachou-se sobre o assento, com a pistola na mão, apontada para o teto descascado e esticou o pescoço de maneira a espreitar pelo vidro traseiro do carro. John viu-lhe o salto e a agitação, temeu que usasse a arma para desimpedir a vista proporcionada pelo vidro sujo de poeira amarela. Era uma sucata mas era a sua sucata, o seu único meio de transporte e não queria vê-lo mutilado.

— Olha lá o que fazes, não me partas o vidro do carro!

— Já os vejo!

Paul também se ajoelhou no assento do pendura.

Três carros da polícia, brancos e negros, com berrantes luzes rotativas vermelhas, dobravam a esquina ao fundo daquela rua larga e surgiam na sua veloz corrida para intercetar o carro que fora identificado a abandonar o Banco Central. Paul tentou recordar-se se havia alguma testemunha por perto que pudesse ter dado a descrição do veículo de fuga dos assaltantes, mas a sua mente estava em branco e não se conseguiu lembrar. Muito provavelmente, durante a saída do banco, tinham sido vistos por alguém. Os clientes do banco também eram potenciais testemunhas e alguma delas poderia ter visto o carro estacionado no exterior, com o motor a trabalhar, à espera…

De qualquer maneira, não era normal um Renault a cair de podre a acelerar loucamente pelas ruas.

— Johnny? A polícia…

George manteve-se imóvel agarrado ao saco, como se este fosse a sua boia de salvação. Tinha os olhos abertos e o cabelo despenteado. Não ousou verificar por si mesmo, como fizera Paul, a chegada da polícia à perseguição. Murmurou:

— Estou inocente…

Ringo esmagou o estofo do carro com a mão esquerda, as unhas chegaram à esponja do revestimento.

John cerrou os dentes. Levantou o pé direito e voltou a calcá-lo no pedal.

O automóvel deu um solavanco e finalmente o ponteiro do velocímetro tombou para a direita, devorando números, indicando que a velocidade aumentava. Outro sinal de que estavam a galgar o asfalto da avenida era que se sentiam esmagados contra os respetivos assentos. John e George colavam as costas ao estofo, Paul abraçava a cadeira e a cabeça de Ringo quase que batera no vidro de trás.

— Estão a ganhar terreno! – avisou Ringo num grito.

— Estou a acelerar, estou a acelerar – respondeu John, dando pisadelas no pedal. Descobriu que se o fizesse conseguia imprimir mais velocidade do que se mantivesse o pé, simplesmente, sobre o pedal.

Girou o volante para a esquerda e os três passageiros foram projetados para esse lado. O carro apanhou uma rua secundária que se banhava em sombra. O piso era mais irregular e aconteceram alguns saltos. A porta rangeu e Paul sentou-se, temendo que esta se abrisse. Pelo sim, pelo não, trancou-a, carregando no botão que existia junto ao vidro. George saiu de cima de Ringo que se espalmava contra a outra porta que chocalhava, mal presa no trinco.

— Isso vai abrir-se – apontou George.

— Preocupa-te em não perder o saco do dinheiro – disse Ringo zangado.

As sirenes da polícia, irritantes, aproximavam-se cada vez mais.

John começou a rir-se.

— Achas que tem graça? – indagou Paul perplexo. – O que é que tem tanta graça?!

— Não vou conseguir escapar-me deles! – explicou John divertido. – Esta carripana não dá mais do que cem à hora.

Paul inclinou-se para ver melhor as indicações do painel de instrumentos desbotado do sol.

— O velocímetro está a marcar cento e dez.

— Isso não é nada normal!

— O motor vai explodir ou coisa parecida?

Com muito esforço, porque a manivela estava emperrada, Ringo tentava abrir a janela da porta do seu lado. George perguntou-lhe:

— O que é que vais fazer?

— Disparar uns tiros para dissuadi-los.

— Tiros? Fica quieto! Se disparares contra a polícia, pioras o teu estado.

— E que estado é esse?

— O estado de… condenado a mais de dez anos de cadeia!

— Que otimista! E quem disse que não vamos escapar?

— O condutor disse! – intrometeu-se Paul apontando para o amigo que estava agarrado ao volante, debruçado sobre este, com cara de lunático. – O carro não dá mais do que cem quilómetros…

— Estamos a voar! – exclamou George.

Ele tinha conseguido a proeza de transformar aquela sucata num avião!

John riu-se alto.

— Olha só esta velocidade. Parece que estamos a andar a mais de cem… – completou George cingindo o saco de dinheiro.

— Continua, estás a conduzir muito bem – elogiou Ringo criando uma abertura que achou suficiente para enfiar o braço pela janela.

No entanto, os carros de polícia aproximavam-se e diminuíam de uma forma sistemática e segura a distância que separava perseguidores de perseguido. As sirenes berravam ininterruptas, anunciando a proximidade do inevitável. A captura, a prisão, mais matéria para o noticiário daquela noite.

— Segurem-se!

O anúncio de John não foi suficiente para que se preparassem. Houve segunda curva à esquerda. Paul percebeu que a sua estratégia de trancar a porta tinha resultado, pois já não sentiu a chapa tão instável quando esta recebeu o impacto do seu corpo. Já George projetou-se contra Ringo que, com a pancada súbita, de braço de fora, abriu a mão e… perdeu a pistola, que ressaltou no passeio indo contra a montra de uma loja estilhaçando-a. A porta traseira abanou perigosamente.

Os carros da polícia prosseguiam na perseguição, insistentes como predadores que tinham fixado a presa a apanhar para saciar os seus instintos. Nada os faria desistir, por mais voltas e reviravoltas que existissem no percurso.

Ringo empurrou George.

— Por causa de ti perdi a minha arma!

— Desculpa! – Mostrou-lhe o saco e sorriu. – Mas não perdi o saque.

— Somos piratas, ou quê? – comentou Paul.

— Sabes quanto me custou a pistola?

— Não a roubaste?

— Ah, cala-te! – Ringo agarrou em George pela blusa, sacudiu-o. – Se perderes esse saco, dou cabo de ti.

— Não tenho intenção de o fazer…

— Porquê?

— Depois de todo este incómodo, há aqui uma parte para mim… certo?

Ringo soltou-o e John desatou a rir-se.

— Estás a brincar…

A risada de John fez Paul agarrar-se ao banco com as duas mãos.

— O que foi agora? Estamos sem gasolina?

— Não sei! Estamos?! – Num relance, piscou-lhe o olho.

— Para com isso, Johnny!

— Segurem-se outra vez!

Desta feita a curva foi à direita.

Paul deu um encontrão no condutor, John mesmo assim conseguiu manter o volante seguro nas suas mãos, Ringo caiu para cima de George que gemeu sem ar.

O Renault era, de facto, um avião. Uma potente máquina voadora cujo motor roncava assustadoramente enquanto planava – sim, planava, a maravilha das maravilhas, John adorava caracterizar desse modo a marcha alucinada do carro – pelas ruas da cidade. Ele tinha a sensação de que os pneus não tocavam nas estradas percorridas, de que não rodavam impulsionados pelo eixo desalinhado, que a trepidação da carroçaria se devia ao ar que esta furava e não a todas as imperfeições que o chão irregular lhes oferecia.

A sua querida sucata enferrujada estava a portar-se muito bem.

No entanto, não iria durar…

A consciência dessa verdade fê-lo rir-se ainda com mais vontade. E já nem queria considerar o nível de combustível, pois o sistema de combustão devia estar a consumir litros e litros de gasolina sem parar, numa sofreguidão apenas comparada a um sedento acabado de mergulhar numa poça de água de um oásis. John sabia que teria de ser mais esperto do que os polícias para conseguir vencer aquela contenda.

Sim, pois era um desafio. Quem o iria vencer? A autoridade e a lei, ou aquele grupo desconchavado de ladrões improváveis? Apenas um era bandido e não era um grande profissional… Ele e George eram reféns, Paul era uma presença acidental, mas enchera o saco com o dinheiro. Hilariante!

Ele estava do outro lado da lei e esforçava-se para escapar, por isso torcia evidentemente pelo grupo desconchavado de ladrões. Que dia estava a ser aquele! Primeiro fora despedido, segundo fora assaltado, terceiro participara no roubo ao Banco Central e quarto estava a acelerar pela cidade a fugir à polícia.

O som das sirenes acercava-se, envolvia-os, contaminava-lhes os ouvidos, enchia-os de medo.

Ringo espreitou pela janela de trás.

— Não estamos a conseguir fugir deles, John!

— É impossível fugir deles – disse Paul. – Este carro não é assim tão rápido! Estava a tentar explicar isso há pouco!

— Eu não posso ser apanhado pela polícia.

— Ninguém quer ser apanhado pela polícia, Ringo! – gritou Paul.

— Por isso… continuamos com a corrida – disse John com outra gargalhada.

— Qual corrida? Isto não é uma corrida!

— É sim, Paul! E nós vamos ganhá-la. E… segurem-se!

Outra curva à direita.

Os três passageiros deram mais alguns trambolhões no interior do carro que trepidava e rugia como uma besta açoitada e escorraçada. Os pneus chiaram, demonstrando que era apenas uma ilusão a falta de aderência com o solo e que o pobre automóvel esforçado não voava, rolava loucamente pelo asfalto negro de cada artéria citadina.

Aquela quarta curva foi inesperadamente apertada e tensa. O automóvel derrapou e John agarrou o volante com quantas forças tinha. Cerrou os dentes, grunhiu, os músculos dos braços enrijeceram com o esforço. O guarda-lamas traseiro e a parte de trás esquerda bateram na parede de um edifício, arrancando tinta, cimento e tijolos. O motor assobiou. O ruído do impacto foi ensurdecedor no interior do carro. John reagiu a tempo e, virando novamente o volante para a direita, conseguiu manter o controlo do carro, carregou no acelerador e avançou pela rua mais estreita que todas as que tinha escolhido, veloz como uma flecha disparada por um centauro.

E foi a sua melhor decisão. Aquela, crucial e exata, que faria toda a diferença.

Os carros da polícia tentaram a mesma manobra. Curvaram à direita, numa imitação do caminho tomado pelo pequeno e insuspeito Renault que se mostrava tão competente como um automóvel de competição. Uma curva demasiado apertada como John tinha comprovado antes, contudo, tão à justa que o primeiro carro de polícia também derrapou e acabou mesmo por se despistar.

A nuvem de pó que levantou ao embater contra a mesma parede que o carro deles tinha descascado, o barulho medonho de chapa a torcer-se, fez os quatro voltar a cabeça para ver o que tinha acontecido. John, Paul, George e Ringo nem queriam acreditar no que estavam a ver. Um dos carros de polícia tinha ficado fora da corrida!

— Olhos na estrada, Johnny! – alertou Paul.

— Sim…

No limite, John conseguiu evitar bater novamente com a lateral do automóvel noutra parede. Se aquela rua não tivesse uma saída, viam a claridade mais ao fundo, de tão estreita que era, diriam que seria uma ruela que desembocaria num beco.

Os outros dois carros da polícia também acabaram fora da corrida, como Ringo comprovou espantado. Ao encontrarem o primeiro carro atravessado no meio da rua por causa do despiste, um obstáculo que não era expectável, voaram acrobaticamente por cima deste e acabaram a capotar com estardalhado, espalhando pedaços de metal e plástico por todo o lado. Uma jante, um manípulo da porta, estilhaços dos farolins e da caixa transparente que protegia as luzes rotativas.

As sirenes esvaíram-se e acabaram por se calar totalmente.

Mesmo sabendo que a autoridade já não os perseguia, John não aliviava a pressão no pedal do acelerador. Ringo deu uma palmada no ombro dele.

— Boa condução! Tens pinta para isto… Vou contratar-te como meu motorista.

Paul soltou um suspiro prolongado, George respirou fundo.

Ao recostar-se Ringo indicou:

— Dá mais umas voltas pela cidade e depois segue para o cais antigo.

— Porquê? – perguntou John.

No fim da rua que lhes tinha salvado a pele, ele girou o volante para a esquerda e apanhou uma avenida movimentada. O carro esgueirou-se entre os outros automóveis e John foi travando para diminuir a velocidade para não atrair olhares indiscretos. Esperava que o trio de polícias levasse ainda algum tempo até comunicar com a restante patrulha com a indicação da descrição deles, do que tinham feito e que desencadearia nova perseguição.

— É lá que está o meu esconderijo – respondeu Ringo.


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Notas finais do capítulo

Uf! John, Paul, Ringo e agora sabemos que era mesmo George Harrison conseguiram escapar da polícia. Por um milagre, pois o velho carro de John não estava em condições de andar àquelas velocidades loucas.
Agora os quatro terão um momento de pausa para pensarem em tudo o que aconteceu naquelas últimas horas...

A partir de hoje tentarei publicar semanalmente um capítulo desta história. Muito obrigado a todos os que estão a acompanhar!

Próximo capítulo:
Num esconderijo