Na Minha Vida escrita por André Tornado


Capítulo 40
Na minha vida


Notas iniciais do capítulo

No capítulo anterior:
John, Paul, George e Ringo abraçam finalmente e em exclusivo a sua carreira musical. Estão a fazer uma temporada de concertos numa cidade do norte, mas as condições que dispensaram aos músicos desconhecidos não são as melhores. Num quarto gelado, tentando adormecer, eles mantêm o seu otimismo e de que serão famosos e reconhecidos...



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Se dissesse que não estava nervoso, inquieto, ansioso, apreensivo, envergonhado, diminuído, estaria a mentir. Demasiados adjetivos pesados que lhe tolhiam o gesto e a pose, a habitual bazófia, o costumeiro desprezo, características menores que não condiziam em nada com o que normalmente se classificava como a personalidade vistosa de John Winston Lennon.

Ele, contudo, também era um ser humano, um homem cheio de dúvidas, de defeitos, de segredos, de pecados. Tinha direito a sentir-se pequeno e encolhido, a estender uma mão para o mundo hostil e perigoso que normalmente esmagava génios e pessoas com ideias diferentes e pedir, singelamente, ajuda para não ser varrido pelas suas inseguranças.

Fechou os olhos.

Naquele dia, como em todos os outros, tinha de continuar a liderar… Esconder as vacilações e fingir que sabia muito bem o que estava a fazer, em prol daquilo em que acreditava, em prol dos seus sonhos e em prol dos seus amigos, que depositavam nele a mais absoluta das confianças. E somente o calor derivado desse sentimento de pertencer a alguma coisa ou a algum lado fornecia-lhe o combustível necessário para superar os seus medos mais intrínsecos e todos aqueles adjetivos pesados.

Não iria ser difícil. Bastava imaginar que corria livre pelos jardins de Strawberry Field, quando tinha dez anos, o grande orfanato mantido pelo Exército de Salvação, e era ainda feliz por não carregar o peso do mundo nos ombros. Convenceu-se de que não iria ser mesmo difícil.

Ajeitou a guitarra ao peito, respirou fundo. Apertava os lábios e o sangue fluía para o coração, esfriando e adormecendo as extremidades. Mal sentia os dedos sobre as cordas, mal sentia que estava efetivamente ali, no estúdio três da editora EMI, um dos muitos locais que essa empresa possuía para fazer gravações. Não se recordava se deveria reverenciar aquela sala, por ter sido ocupada por algum artista famoso no passado mais recente, não se conseguia lembrar de nada naquele instante em que o medo de falhar era superior a qualquer outra função vital, mas se estivesse mais consciente também não lhe importaria conhecer outro qualquer artista famoso, pois ele iria transformar-se num.

Numa pequena saleta adjacente equipada com consolas e outros aparelhos de gravação, estavam os técnicos de som, Brian Epstein e George Martin, o patrão da Parlophone que os iria avaliar. O contrato ainda não tinha sido assinado, mas sê-lo-ia em breve se os Beatles conseguissem impressionar Martin. O que colocava ainda mais pressão em cima dos rapazes e John, repetindo o suspiro, entendia que ele deveria suportar a maior fatia desse peso e antes de ali entrarem assegurara-lhes e jurara-lhes de que tudo iria correr bem, transferindo assim as preocupações dos outros para a sua alma. Martin tinha gostado da demo que Epstein lhe tinha apresentado e aquela atuação seria apenas uma formalidade, dissera-lhes – era mentira. Martin ainda não tinha sido convencido.

Paul, George e Ringo não sabiam desse pormenor e estavam menos nervosos. Brian contara-lhe e pedira-lhe segredo. Se Martin não se deixasse conquistar, não haveria contrato. John percebeu o que se estava a jogar. O seu futuro… O futuro deles. Se aquela tarde corresse mal, eles iriam continuar anónimos, a arrastar-se em atuações por clubes e bares até chamarem a atenção de alguém. Ou até se cansarem e regressarem à vida desencantada que tinham antes.

Mas não iria ser difícil.

Acreditava em si próprio, acreditava no talento de Paul, acreditava no encanto de George, acreditava na simpatia de Ringo. E o mais importante, tudo era puro e natural, como água fresca a brotar de uma fonte selvagem. Ninguém lhes tinha dado lições como atuar para cativar esta ou aquela pessoa, ninguém lhes tinha dito para serem espertos, para serem dissimulados, para serem fingidos para alcançarem mais facilmente o sucesso. Eles eram o que eram e não acrescentavam nada mais ao que, simplesmente… eram.

O cansaço acompanhava-os naquele dia. Tinham passado uma larga temporada de ano e meio, com pequenas interrupções, na cidade portuária do norte onde tocaram em clubes quase num regime de escravatura e estavam esgotados, mal dormidos e pobremente alimentados.

Depois do Indra, veio o Kaiserkeller e outros pequenos estabelecimentos que requisitavam uma banda de rock ‘n roll para entreter os clientes, que os fizessem sobretudo gastar mais em bebida por estarem felizes a ouvir música. Epstein insistira para que eles continuassem as suas atuações nesses clubes, embora tivesse melhorado as condições em que eles viviam nessa cidade, alugando um quarto numa pousada depois de descobrir, escandalizado, a tal arrecadação onde eles tinham passado as noites do primeiro mês.

Para aquele encontro com George Martin tinham vindo diretamente do norte e com a ansiedade de estarem perante o seu primeiro contrato oficial não tinham descansado nada. A atuação no clube que os contratava naquela época tinha sido adiada para dali a duas semanas, mas eles tinham combinado não regressar à cidade. Entretanto, com o conselho jurídico do advogado que supervisionava a sua liberdade condicional, já se tinham despedido dos seus anteriores empregos na loja de pizas, no escritório de contabilidade e no armazém. Apresentavam-se profissionalmente como músicos e trabalhavam exclusivamente nessa ocupação.

No estúdio, Martin tinha-os recebido pessoalmente e anunciara-se como produtor musical. Dissera-o de uma forma enfastiada, dera a entender que fora quase um acidente estar ali e que o fazia por consideração a Epstein, que considerava alguém empenhado e honesto. John fingira não apanhar a indireta. Os outros simplesmente ignoraram os sinais.

O homem, com uma idade que rondava os cinquenta anos, usava o cabelo, empastado de brilhantina, puxado para trás num penteado retrógrado. Fleumático, cordato e distante, passara uma imagem de um tio condescendente que só visitava a família por alturas do Natal e que não era um grande conversador. Alguém cinzento e ausente, com segredos guardados a sete chaves. George, quando o cumprimentara, dissera-lhe:

— Não gosto da sua gravata.

A frase deslocada e insolente, em vez de ofender, derreteu o gelo entre todos. Martin sorrira, mas não fora uma manifestação de indignação em forma de esgar que denotava ofensa. Não, fora um sorriso verdadeiro de quem acabava de ser surpreendido agradavelmente, de alguém que conhecia todos os truques do Universo menos aquele. O coração de John batera mais depressa… Uma possibilidade tinha sido criada.

Indicou-lhes o estúdio. Eles ocuparam os seus lugares e ligaram os seus instrumentos que Epstein lhes tinha emprestado para aquela ocasião, provenientes da sua loja de música, pois aqueles que habitualmente usavam nas suas atuações eram umas pobres velharias batidas por anos de uso, adquiridas em segunda mão, pois não tinham dinheiro para mais.

Não… Não iria ser difícil…

John tinha ensaiado com os seus companheiros, no autocarro que os transportara até ao estúdio, a música que compusera recentemente e que achava que devia ser apresentada a Martin. Trocaram algumas impressões apressadas, Paul fizera outras tantas sugestões de melhoria, tanto na letra, como na melodia, George acertara o tom, contribuindo com dois acordes novos, Ringo propusera um ritmo que foi do agrado do compositor principal. Paul apertara-lhe o braço e dissera-lhe que a canção era excelente. Martin iria adorar. Ele esperava que isso acontecesse. Combinara com os amigos outros temas, deveriam tocar mais do que uma canção. Um cover, um par de canções originais.

Estavam prontos.

De olhos fechados, John rememorava a música. Qual o acorde inicial, que passagens deveria realçar, a afinação da voz, a sonoridade certa, os sinais a emitir para ajudar os outros membros da banda a acompanhá-lo nas transições corretas. Aquela música estava com ele há já algum tempo… Assobiara-a uma vez, há tanto, tanto tempo…

A melodia que ele tinha escutado enquanto fumava, prestes a ser despedido da empresa de logística, após quatro meses de trabalho inútil. Aquela canção que ele tinha murmurado a saborear a nicotina salvadora do fumo do seu cigarro. Estivera mesmo nas dobras da atmosfera ou fora um sonho que o haveria de transportar até àquele momento, no estúdio de George Martin?

Uma espécie de início…

E qual fora esse início? Havia muitos inícios… Se se fizesse o traço correto, em regressão, o exercício permitia descobrir um ponto de origem, minúsculo, que resultaria, quando se invertesse a marcha e se progredisse na direção contrária, na magna explosão que engolia tudo com um brilho ofuscante e impossível.

O início da banda, dizia-lhe a sua voz interior. O início dos Beatles.

Era esse o início que ele procurava.

Fora por causa de ter sido mandado embora daquela empresa de logística que conhecera Ringo, que retomara a sua relação de amizade com Paul, que esbarrara em George, que descobriram que a música os unia com uma ligação inquebrantável. O destino costumava ser-lhe caprichoso. Nunca ganhara nada com acasos, a improvisação legara-lhe mais dissabores do que sucessos. Ali, porém, após incontáveis peripécias, tristezas e alegrias, John Winston Lennon chegava a um terreno reconhecível e postava-se no centro da arena com toda a vontade de triunfar.

Oxigenou os pulmões. Entreabriu as pálpebras.

Fez um sinal mínimo com a mão direita, entre os dedos tinha uma palheta azul.

George arrancou com a sua guitarra. A simples beleza daqueles acordes introdutórios provocou-lhe um arrepio de prazer e de emoção. Era a sua canção…

Chegou-se ao microfone. Involuntariamente, voltou a fechar os olhos. Cantou, com a alma completamente despida, num desamparo inédito.

 

There are places I remember

All my life though some have changed

Some forever not for better

Some have gone and some remain.

All these places have their moments

With lovers and friends I still can recall

Some are dead and some are living

In my life I’ve loved them all.

 

Existem lugares dos quais eu me recordo

Por toda a minha vida apesar de alguns terem mudado

Alguns para sempre, não para melhor

Alguns desapareceram e outros ficaram.

Todos esses lugares têm os seus momentos

Com amantes e amigos, ainda consigo lembrar-me

Alguns já morreram e outros estão vivos

Na minha vida, amei-os a todos.

 

As recordações eram sempre poderosas. Após todos os anos passados mantinham a sua capacidade intrínseca de curar, de magoar, de trazer júbilo ou de causar sofrimento. Havia sempre as duas faces da moeda – alegria e tristeza. John convocara as suas recordações. De uma forma ampla, sem particularizar esta ou aquela situação, mas as suas palavras entoadas dentro de uma melodia absolutamente extraordinária evocavam as imagens que ele tinha na sua mente, voando como balões leves, cada um destes carregando esses pequenos pedaços da sua existência. Lugares e pessoas do passado, sopros breves que se desfaziam quando se tentava focá-los… Porque eram inconsistentes, por natureza.

 

But of all these friends and lovers

There is no one compares with you

And these memories lose their meaning

When I think of love as something new.

Though I know I’ll never lose affection

For people and things that went before

I know I’ll often stop and think about them

In my life, I love you more.

 

Mas de todos estes amigos e amantes

Não existe ninguém que se compare a ti

E estas memórias perdem o seu significado

Quando penso no amor como algo novo.

Embora saiba que terei sempre afeição

Por pessoas e coisas que já foram

Sei que muitas vezes pararei para pensar nelas

Na minha vida, amo-te mais.

 

A melancolia e o sentimentalismo serviam, naquele caso singular, para construir um futuro. Elaborar algo novo, inédito, concreto cujos alicerces eram as recordações. O otimismo não deixava que se afundasse inteiramente no lamento de se estar a olhar para o que existiu e que não existia mais.

A nota de esperança era comovente.

John abriu os olhos nesta parte e olhou para Paul. Depois para George e, por fim, para Ringo.

Repetiu o refrão com uma convicção pueril.

De todas as pessoas que tinham passado na sua vida, ninguém significava mais para si do que aqueles três rapazes que estavam com ele há mais de dois anos. Quem conseguisse aturá-lo durante todo esse tempo merecia a sua consideração, o seu respeito. Mais extraordinário, merecia o seu amor.

 

Though I know I’ll never lose affection

For people and things that went before

I know I’ll often stop and think about them

In my life, I love you more.

 

Embora saiba que terei sempre afeição

Por pessoas e coisas que já foram

Sei que muitas vezes pararei para pensar nelas

Na minha vida, amo-te mais.

 

Era verdade, uma verdade crua e inteira, sem possibilidade de refutação, de apelo, de argumentação. A discussão que eventualmente nasceria dessa confissão era estéril, à partida. Não havia explicação para um amor verdadeiro.

John e Paul entreolharam-se.

 

In my life, I love you more.

 

Na minha vida, amo-te mais.

 

A canção terminou.

O silêncio assentou devagar, insinuou-se em cada porção de espaço à medida que as derradeiras vibrações se perdiam no ar. Não havia qualquer ruído passados alguns segundos e, curiosamente, os rapazes respeitaram esse estado suspensivo.

Ninguém ousava mover-se para não perturbar aquela calmaria tão boa, tão consoladora. John espreitou-os. Paul e George tinham sorrisos tímidos nos lábios, Ringo, medindo cada movimento com uma precisão milimétrica para evitar a brusquidão que quebrasse aquele encanto, acendeu um cigarro.

O pescoço de John moveu-se para levantar os olhos e observar a saleta onde estavam Brian Epstein, George Martin e os técnicos de som. Eram estátuas, paralisados num assombro quase eclesiástico. Nos seus rostos havia uma sombra que não se podia definir exatamente como luz ou treva, era estranha e tinha vários matizes. Aquelas máscaras estáticas refletiam as milhentas luzes coloridas da consola e os seus olhos brilhavam assustadoramente.

Ou tinham adorado, ou tinham odiado.

John engoliu em seco.

— O que quer que aconteça – sussurrou Paul –, eu gosto desta canção.

— Obrigado… Paul – agradeceu John com a voz rouca.

— Estamos contigo, irmão – consolou George.

Yeah… Unidos, sempre – concordou Ringo.

Epstein sacudiu-se com um espasmo. Passou uma mão pela cara e pestanejou rapidamente. Os outros também quebraram o feitiço. As estátuas animaram-se e voltaram a ser homens. Epstein sorriu para Martin, trocaram algumas palavras. Os técnicos de som afadigaram-se com a consola e pareceram profissionais diligentes nos seus gestos formatados, mas Lennon achou que eles estavam só a fingir aquela azáfama.

A cena tomou contornos de surreal.

E eles esperavam, com os instrumentos a postos.

Bem, tinham outras canções preparadas e queriam fazer o maior número possível de gravações para tentar convencer o patrão da Parlophone de que valia a pena apostar neles. Eles eram os Beatles. Não sairiam dali sem conseguir o tal contrato.

O produtor George Martin abriu o microfone e falou através do sistema interno de som para o estúdio onde eles estavam:

— Parabéns, meus senhores. Acabaram de criar o vosso primeiro número um!

A voz dele era grave e paternal. Extraordinariamente reconfortante.

Paul sorria e John percebeu que o seu amigo tinha um sorriso bonito. George, tímido, encantador, tentava parecer adulto, pois a sua idade fazia-o estar sempre um degrau, um mísero degrau imaginário, abaixo dos outros. Ringo puxava uma passa ao seu cigarro e era uma figura impecável de estilo, de segurança, de um excelente baterista.

Como Brian Epstein os definira tão bem – a energia, a melodia, a alma, o pilar.

Sim, agora parecia mais provável, mais plausível do que nunca.

John estremeceu com um calafrio de prazer.

Eles iriam chegar ao topo do mundo.


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Notas finais do capítulo

E assim termina esta história louca com os The Beatles como protagonistas.
Começou por ser uma aventura com situações caricatas e inusitadas, nesta reta final transformou-se na narração do início de uma das mais famosas bandas musicais de todos os tempos, porque foi mais ou menos assim que aconteceu.
Na realidade esta história derivou de um sonho - no ano passado sonhei que no dia 1 de junho, quando se comemorassem os 50 anos da edição do disco mais famoso de todos os tempos, Sgt Pepper's Lonely Hearts Club Band, publicaria uma fanfic com os Beatles. E em cumprimento desse desígnio onírico comecei a publicação desta história.
Foi uma experiência fantástica!
Quero agradecer a todos os que me acompanharam até aqui, até este capítulo final, que leram, que comentaram, que favoritaram, que se emocionaram.

No fim ficámos com o título da história em jeito de canção - e porque é mesmo uma canção - In My Life, de 1965, uma canção intimista e incrivelmente madura para um jovem de 24 anos chamado John Lennon. Se a quiserem ouvir, o vídeo tem várias imagens dos Fab Four, deixo-vos a ligação:

https://www.youtube.com/watch?v=-eCh3y5VROM

E mais uma vez, muito obrigado a todos!
E como diria o Ringo, fica em jeito de despedida (sendo um "até já")... Peace and Love!!