Na Minha Vida escrita por André Tornado


Capítulo 4
Outro refém


Notas iniciais do capítulo

No capítulo anterior:
Paul McCartney fica desconcertado ao descobrir que John Lennon, o seu amigo, está a ser assaltado por Ringo Starr, um bandido amador, dentro do próprio carro. Torna-se no segundo refém de Ringo e este, para agravar a situação, decide ir assaltar um banco.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/734139/chapter/4

E agora, o que fazemos…

Ao acalmar a ânsia que o corroía e fazia-o suar, sujando o casaco de verão debaixo dos braços, Paul acabou por perceber que John referia-se somente a ele e ao amigo e não aos três, como se fossem um bando de ladrões.

Prendeu a respiração, fechou os olhos com força. Queria que fosse um maldito de um pesadelo e que este se diluísse com esse gesto infantil. Estava a sentir-se magoado, desesperado e cansado por estar numa situação incapaz de dominar. Isso era um golpe fundo no seu orgulho. Desde pequeno que a sua vida era serena e ele facilitava o seu próprio caminho, tomando decisões que o conduziam a objetivos simples que lhe permitiam subir degrau a degrau a escada longa das suas ambições.

Podia terminar ali. Podia perfeitamente terminar ali. O ladrão era o indivíduo que estava no banco traseiro, não ele, nem o amigo.

A resposta mais acertada seria o indivíduo despedir-se deles, agradecer a boleia e ir fazer o assalto que lhe competia, eles não tinham nada que ter participação naquela loucura. Fazia-se um pacto de silêncio, ele e John não contariam nada, desejavam-lhe boa sorte e cada um ia à sua vida.

Infelizmente não bastava suster o fôlego e deixar de ver.

Sentiu uma coisa dura a picar-lhe o ombro esquerdo.

— Tu, vens comigo.

Animou-se.

— Vou contigo? – perguntou, fervendo em indignação, olhando em frente. Cerrou os punhos, as mãos tremiam.

— Ei, calma aí, Ringo – interveio John. – Ele não precisa de ir contigo.

O bandido indicou o edifício do Banco Central com a cabeça.

— O assalto vai ser rápido, mas depois de me aviar com uns bons sacos de dinheiro vou precisar de fugir. Este será o nosso veículo de fuga. – Bateu com a arma nas costas do assento de Paul. – Como garantia levo o teu amigo comigo. Assim, saberei de certeza que estás aqui, à nossa espera.

— O meu carro não anda nada – justificou-se John. – Esta sucata não passa dos cem quilómetros por hora. E queres fazer deste, o teu veículo de fuga?

— Esperemos que não seja preciso acelerar pela cidade para escaparmos com sucesso desta empresa.

— Por que é que falas sempre na primeira pessoa do plural?! – zangou-se Paul. – Nós não fazemos parte de nada que tu possas liderar. Nada! Nem um grupo em excursão, nem uma banda musical e muito menos um grupo de delinquentes!

Ringo fingiu não ter ouvido a observação mordaz.

— Olha só! – apontou para o exterior, para a fachada do banco. – Nem um só polícia à vista. Vai ser um piquenique. Eu disse-te, a esta hora o banco nunca está guardado, mudam as rondas. Sei disso porque já tinha passado por aqui e apontado as rotinas… Para o caso de querer assaltar o banco. Percebes? Sou alguém prevenido.

— Os teus piqueniques, parece-me, causam indigestão – insistiu Paul, cruzando os braços.

— Mais uma razão para não precisares de nós – insistiu John. – Vai lá assaltar o banco. Se saíres a pé, ninguém irá em tua perseguição. Vão estar todos bastante assustados para reagirem nos minutos seguintes, não sabem se terás cúmplices à tua espera cá fora e vais conseguir um grande avanço, mesmo a andar. 

— Nem penses! Vocês conhecem-me, podiam denunciar-me. Não vou correr esse risco.

— E se entrássemos num acordo?

Ringo fez um sorriso irónico.

— Pois, pois… Boa tentativa. Liga o motor e mantém-no a trabalhar. Daqui a menos de cinco minutos estaremos de volta. – Deu um segundo toque com a pistola no ombro de Paul. – Tu, lá para fora!

Paul abriu a porta do carro e saiu, suspirando longamente. Postou-se ao lado do carro.

— E tu, Johnny boy, nem penses em avisar a polícia enquanto estou ali dentro. O teu amigo é que vai pagar pela tua atitude.

— Qual atitude? Nunca tive uma atitude…

— Estou a falar a sério. Enfio um balázio no teu amigo se te armares em espertinho.

Como sinal de boa vontade, John rodou a chave e ligou o motor.

— Estou à vossa espera – disse. – Cinco minutos? Vou começar a contar o tempo… Não fico aqui mais do que cinco minutos. É o combinado.

— Assim é que se fala!

Ringo piscou-lhe o olho e também saiu do carro. Colou-se às costas de Paul para deste modo ocultar a pistola negra com que o ameaçava e começaram os dois a andar na direção da escadaria que conduzia à entrada do banco, a sincronizar os passos para que nem um, nem outro se afastasse demasiado, apesar de parecer esquisito que estivessem tão juntos.

— Ouviste o teu amigo – avisou Ringo num tom ligeiro. – Não me atrapalhes, vais fazer tudo o que eu te disser para que o carro ainda esteja à nossa espera. Não nos podemos demorar mais do que cinco minutos ali dentro.

— Não me vais mesmo dar um tiro, pois não? – perguntou Paul a caminhar com alguma calma, olhando casualmente em frente, tendo em atenção o problema que o perseguia, literalmente.

— Depende da tua colaboração.

— Não me parece que sejas… um tipo… que mata outros tipos. Estás a ver?

— Ah, começas a simpatizar comigo? Há pouco parecia que me querias condenar, sem possibilidade de defesa.

— Ouve… Ringo…

— Uh, já me tratas pelo nome!

— Isto não me agrada, mas também não quero que julgues que quero ser teu inimigo, nem quero ficar com uma bala dentro do corpo. Segundo dizem, isso dói! Podemos encontrar um compromisso.

— Podemos, claro que podemos. Por enquanto, porta-te bem!

Paul abriu os braços num gesto de desalento.

— Estou a portar-me bem.

— Continua assim.

Ocasionalmente, o cano da pistola que Ringo segurava tocava-lhe nas costas. Paul sentia o frio do metal como se não estivesse a vestir o casaco, nem a camisa. Aquele toque incomodava-o sobremaneira, um nervo preciso a ser estimulado da forma errada. Por cada contacto havia um pequeno saltitar, um retrair dos músculos, os dentes a cerrarem-se, uma gota de suor a somar-se a tantas outras que lhe ornavam a testa.

Como era ele que ia à frente, estendeu o braço, agarrou no manípulo prateado e puxou a porta envidraçada, criando o acesso que lhes permitiu entrar no banco que, naquela hora vespertina, estava prestes a fechar. Notava-se o movimento preguiçoso típico de um encerramento pelos poucos clientes que estavam naquele espaço onde eram atendidos por funcionários diligentes, mas já com o aspeto abatido do fim de um dia de trabalho. Os sorrisos eram mais cansados e os gestos menos assertivos. Até aqueles cujos assuntos financeiros estavam a ser despachados pelos funcionários mostravam-se impacientes, pois queriam sair dali e prosseguir nas tarefas que teriam delineado para aquela tarde que apenas começava. Mal sabiam eles, todos eles, que o que parecia um momento rotineiro iria transformar-se em motivo de notícia na abertura do jornal da noite.

Paul escutou Ringo murmurar atrás de si:

— Perfeito…

Ele teria de concordar. Podia contar os clientes pelos dedos das mãos. Numa avaliação rápida viu que estavam dentro do banco sete pessoas, quatro homens e três mulheres, uma delas fazia-se acompanhar por uma criança, um menino, de cinco anos.

Ele estremeceu… Uma criança. O miúdo podia ser imprevisível, mas até podia apanhar um susto de tal ordem que acabaria por ficar quieto ao lado da mãe…

Bem, eram então sete clientes que estavam ao balcão, a serem atendidos, ou a aguardar educadamente a sua vez, consultando os respetivos telemóveis, passando os polegares pelo ecrã táctil, em poses descontraídas. Os funcionários eram cinco, conseguiu ele apontar à medida que avançava com o bandido Ringo, o verdadeiro bandido naquela trapalhada, nas suas costas, a empurrá-lo sub-repticiamente com a sua proximidade. Três deles sentavam-se nos seus respetivos postos de trabalho a atender os clientes, um quarto funcionário sentava-se numa secretária na zona do escritório, por detrás do balcão, a conferir papelada e havia um quinto, um homem mais velho com um par de óculos sobre a ponta do nariz, que viajava entre as estantes com mais papelada nas mãos.

Nisto, o calor incómodo do corpo de Ringo desapareceu e o instinto levou Paul a parar. Ficou no meio da sala que constituía a zona de atendimento do banco, estático e bastante nervoso.

Um berro vibrou-lhe nos tímpanos:

— Todos para o chão! Isto é um assalto!

Ficou totalmente aterrorizado com aquela ordem. Os funcionários suspenderam o que estavam a fazer, ficando tal qual estátuas humanas, a olhar em frente. Os clientes do bando, os quatro homens e as três mulheres, mais a criança, voltaram-se todos ao mesmo tempo para a origem daquele grito medonho e não reagiram logo, pois ninguém obedece de forma cega a um comando estranho num ambiente sereno.

Tudo se alterou, todavia, quando Ringo esticou o braço direito e exibiu a pistola negra, dedo no gatilho. Uma mulher gritou, por sinal a que estava com o filho e abraçou o rapazinho, numa atitude protetora. Uma segunda mulher agachou-se cobrindo a cabeça com as mãos.

— Não me ouviram? Todos para o chão! Despachem-se! – rugiu Ringo

O tom era tão assustador que Paul fletiu os joelhos para também se abaixar e só a adrenalina que era disparada pelo corpo o impediu do gesto deslocado. Sentiu os ombros a levantarem, o pescoço a sumir-se e a cabeça a afundar-se no colarinho da camisa e do casaco, a imitar uma tartaruga a esconder-se na sua carapaça. Recebeu um toque no braço, brusco e repentino. Ringo indicava-lhe o balcão. Ele teria de avançar e… Começou a suar frio ao perceber que iria agir naquele assalto. Coisa estúpida de se pensar, julgou ele a mover a perna esquerda para dar o primeiro passo, de que iria apenas como o refém que garantiria o veículo de fuga, conduzido pelo amigo John.

Os clientes atiravam-se para o chão à medida que ele avançava, como peças de um imenso jogo de tabuleiro gigante que ele derrubava com a simples deslocação do ar que provocava. Os quatro homens, a mulher abraçada ao filho e as outras duas mulheres, quando chegavam aos ladrilhos gelados de mármore protegiam a cabeça com os braços e gemiam. Os funcionários, os três da frente e os dois dos bastidores, assumiam as suas posições congeladas com dignidade apesar do terror e do desconcerto que se lia nas suas expressões pálidas.

Ele foi até ao lugar no balcão que tinha, pendurado por cima, um letreiro verde escrito com “caixa”, onde se geria o dinheiro do fundo de maneio e que, naquele dia, estava a ser assegurado por uma mulher anafada, de cabelo ruivo curto.

— Bom dia… minha senhora… Eh, o dinheiro… por favor? – balbuciou envergonhado.

— Por favor?! – guinchou a mulher anafada dando um salto com o susto. A cadeira de rodízios deslizou para trás e ela teve de se agarrar ao balcão para não escapar rolando.

— Não demore muito. O meu amigo… – Engoliu em seco ao pronunciar aquela palavra. Era lá amigo daquele bandido! Sorveu uma porção de ar. Para se escapar daquela situação ingrata precisava de John e se continuasse com falinhas mansas, o tempo acabava e o carro iria embora. Aclarou a garganta para engrossar a voz. – Vá, depressa, minha senhora. Quero o dinheiro que tiver aí… num saco.

— Está bem, está bem, não se enerve.

— Eu não estou enervado.

— Mas o seu amigo está…

— Não… Ele… Podia despachar-se?

A mulher agarrou num saco castanho e começou a enchê-lo com as notas que retirava da gaveta entreaberta por debaixo da prateleira que se projetava do balcão, no lado de dentro, pejada de documentos diversos preenchidos com letras descoradas, que a impressora devia estar com pouco toner.

— Ele tem uma arma – sussurrou a mulher abrindo os olhos, para mostrar-lhe o seu medo. – Não façam nenhuma asneira de que se possam arrepender mais tarde.

— Podia despachar-se? – pediu Paul inquieto.

Espreitou Ringo que varria a sala com a arma em riste, vigiando os clientes deitados e os funcionários petrificados. Paul debruçou-se sobre o balcão para conferir o enchimento do saco de dinheiro.

— Peço imensa desculpa, mas eu não tenho nada que ver com isto – confessou à mulher anafada. Esta meneou a cabeça, deu um estalo com a língua. Não estava a acreditar nele. – A sério, sou também um refém… Quero que isto acabe depressa. Quero… ir para casa. E se não faço tudo como deve de ser, serei punido. Eu e… Eu, bem só eu.

Achou melhor não falar em John.

— Está bem – concedeu a mulher descrente.

— Sim, isso, ponha todas essas notas dentro do saco. Muito obrigado.

— Realmente, você é demasiado educado para estar a roubar um banco.

Contra todas as expetativas, um dos funcionários do balcão, o que estava mais afastado da caixa, quebrou o feitiço e começou a mexer-se. Devagar, devagarinho, esticava um braço, apalpando para alcançar o que procurava num recanto escondido. Ringo percebeu a ousadia e berrou:

— Parado aí! Estás à procura do alarme, desgraçado?

Ato contínuo, o funcionário levantou os braços, dobrando-os pelos cotovelos, mostrou as palmas das mãos num sinal de redenção. Abanou a cabeça a negar essa intenção, mas era escusado estar a tentar disfarçar. Era evidente que os dedos se arrastaram pela parte inferior do balcão para chegar ao botão que chamaria a polícia àquela cena.

Ringo tinha ficado zangado. Puxou por um dos clientes que se arrojavam no chão, um dos homens, um rapaz na verdade, obrigou-o a pôr-se de pé e colou a pistola à cabeça dele. Vociferou:

— Pensam que isto é uma brincadeira?

O rapaz pediu num grito agudo:

— Façam o que eles querem!

Paul estendeu as mãos por cima do balcão. A mulher anafada soltou um chiado, pressionando um punho sobre o peito, entre os seios grandes. Deu outro salto e a cadeira de rodízios deslizou.

— Depressa, minha senhora. O saco! Dê-me o saco!

— Eu posso… Tenho mais notas… Há mais…

— Não, está bom assim! Quero o saco! Dê-mo, agora!

A mulher anafada estendeu a bolsa castanha que se avolumava pesada com o seu recheio, Paul agarrou-a e sopesou-a por um breve instante, achando-a estranhamente mais leve do que antecipava. Eram notas, as notas eram leves, pensou febril de excitação. Se fossem moedas…

— Já está… Vamos embora! – exigiu dando meia volta, apertando o saco do dinheiro.

Ringo agarrou no braço do cliente refém e deu-lhe um puxão.

— Ei!

— Vais connosco.

Paul espantou-se com a decisão de Ringo e disse, agitando o saco em jeito demonstrativo:

— Deixa-o! Estás maluco? Já temos o que viemos buscar…

— Ele é a nossa garantia para sairmos daqui sem sermos impedidos.

— Mas tu gostas de… fazer reféns? As tuas garantias são…

— Cala-te e obedece.

Para assegurar-se de que todos se mantinham nos seus postos até eles debandarem dali, os clientes estendidos no chão, os funcionários quietos, Ringo exibiu a pistola, apontando-a a todos os possíveis alvos, movendo o braço esticado em gestos curtos e rápidos. Foram saindo às arrecuas.

Os três deixaram o banco a toda a pressa, saltando por cima dos degraus, correndo pelo passeio, Ringo aos tropeções porque arrastava o rapaz consigo, Paul mais lesto pois carregava a prova máxima do assalto, o saco com o dinheiro roubado ao maior banco da cidade, o Banco Central. Era leve, continuava a pensar no peso mínimo que aquilo tinha, mas era suficientemente exemplificativo do ato criminoso.

No início achou que tinham sido abandonados. A agitação era tremenda, a ânsia de escapar era tão grande que ele não conseguia ver nada. Depois o velho carro do amigo Johnny dos tempos de escola apareceu em destaque numa paisagem que ia perdendo as cores e os contornos pois a sua visão ia-se afunilando. Só existia o carro, o resto esbranquiçava-se. Desenhou um sorriso de furioso triunfo no rosto. John não se tinha ido embora! O assalto decorrera dentro dos cinco minutos estipulados!

Paul atirou-se para o lugar do pendura, fechou a porta com tanta força que a carripana abanou. Tapou a cara com as mãos e gemeu, escondia a sua vergonha, passada a euforia da fuga. O saco de dinheiro caiu-lhe aos pés. Para o banco traseiro entrou o terceiro rapaz, de olhos esbugalhados de medo, que estava a ser empurrado por Ringo. Tombou sobre o assento numa posição pouco ortodoxa.

John rosnou com esse terceiro passageiro. Aquilo estava a passar das marcas! Mas quantos mais iria aquele ladrão ridículo recrutar? Sim, ridículo! Porque quanto mais tempo passava mais ele considerava Ringo, nascido Richard, a pobre imitação de um ladrão, mais desastrado e azarado do que ele no que tocava a uma profissão, pois era notório que além de não manter um emprego, nem conseguia honrar o facto de ser um assaltante digno desse nome.

As sirenes surgiram no silêncio quente da tarde.

Ringo berrou a fechar a porta do carro com a mesma força de Paul, outro abanão que sacudiu o carro de um lado para o outro:

— Arranca! Arranca! A bófia vem aí!

John envolveu o volante com as mãos, apertando os dedos até estes ficarem brancos. Carregou no acelerador e o Renault arrancou com o motor a rugir.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

O assalto ao Banco Central aconteceu e Ringo fez um terceiro refém - quem acham que será?
Agora são quatro dentro do velho carro conduzido por John e a polícia vem atrás deles...

Próximo capítulo:
Perseguição a alta velocidade.