Na Minha Vida escrita por André Tornado


Capítulo 39
Vida dura, vida de artista


Notas iniciais do capítulo

No capítulo anterior:
Os quatro rapazes combinam encontrar-se com o seu empresário, Brian Epstein, num pub para saberem das novidades sobre uma primeira tentativa de contratação por uma empresa discográfica. Mas a resposta é negativa e eles ficam deprimidos. John Lennon anima-os, fazendo-os acreditar que lhes está reservado um lugar ao sol no mundo da música.



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— Ei… Johnny?

O sussurro na escuridão colocou-o em alerta. Na verdade, não o despertou nem o estimulou mais do que já se sentia despertado ou estimulado. A insónia atacava-o impiedosamente, potenciada pelas condições precárias daquele dormitório.

— O que foi, Macca?

— Tenho frio.

— Eu também…

Escutou um suspiro trémulo do amigo e propôs:

— Queres vir para a minha cama? Juntos talvez nos consigamos aquecer.

— Posso ir também? – pediu George.

— Estás acordado?

— Se estou a falar convosco… é porque estou – devolveu o mais novo, irritado.

— Já te disseram que és um chato, Harrison?

— E já te disseram que falas demais, Lennon?

— E o Ringo? – perguntou Paul.

— Esse conseguiu adormecer… Estás a dormir, Ringo?... Psst, Richard…

No ar gelado não se escutou qualquer resposta, ou sequer um leve murmúrio. John aguardou outro par de segundos. Estranhou:

— Como é possível que esteja a dormir?

Não quis que lhe respondessem. Fora uma pergunta retórica, uma dúvida que reunia uma série de outras questões que se relacionavam, direta e indiretamente com aquela situação noturna anormal. Os outros fizeram-lhe a vontade e não comentaram.

O baterista estava tão quieto que até duvidava que ele estivesse ali. Não se escutava o rumorejar da sua respiração, nem um ronco mais profundo. E ele roncava bastante alto… Pudera! Com uma penca daquelas! O nariz de Richard Starkey destacava-se no seu rosto simpático e curiosamente era dos aspetos que mais atraía as mulheres, em conjunto com os seus olhos azuis carentes. O nariz, os olhos e havia corações a palpitar na plateia quando eles tocavam. Tudo naquele baterista era uma atração para o elemento feminino e muitas vezes John perguntava-se porquê. Paul respondia-lhe que era por causa do seu carácter meigo, George respondia-lhe que era puro magnetismo e, portanto, inexplicável. Muito provavelmente se o vissem a dormir desamparado e a passar frio, como acontecia naquele momento, haveria logo um punhado de voluntárias para aquecer Ringo Starr, com todo o altruísmo dos seus corpos quentes.

O facto era que Ringo, por enquanto, não se queixava com o frio e daí não ser necessário essa tal legião de fãs para que a sua cama ficasse mais aquecida. E mesmo com esses pensamentos descabidos, mulheres nuas a doar o seu calor corporal, John não se conseguiu aquecer.

O facto era também que Ringo dormia sem fazer ruído ou estava demasiado congelado para se manifestar. E ele tinha de se focar em problemas imediatos para não se fatigar demasiado, já que a privação de sono era, por si só, motivo supremo de fadiga e no dia anterior era-lhes requerido que tocassem outra vez e havia que cuidar do seu conforto e, como acrescento, do conforto de Paul que se queixara. Depois tinha de resolver como meter George ali com eles, outro queixoso…

Paul enfiou-se na sua cama e John guinchou:

— Ui… Tens os pés gelados. Por que é que tiraste as meias?

— Isso são as minhas meias com os pés calçados – explicou Paul aninhando-se junto a ele.

— Eh, faz espaço para o George.

— Não vamos caber todos nesta cama.

— Isto não merece ser chamado de cama.

John tinha razão, considerou Paul mas não lho disse. Estava ocupado a bater os dentes. Tinham-lhes dado estrados com uma rede metálica cobertos por um colchão tão fino que o seu peso dobrava a rede, criando uma cova desconfortável. As almofadas estavam puídas e os cobertores eram míseros pedaços de pano que pareciam ter pertencido, outrora, a mantas dignas desse nome.

— Anda, George – chamou John. – Ficas entre mim e o Paul. És o mais magro de nós os três, deves estar a sentir o dobro do frio.

— Realmente… Acho que perdi as pernas algures.

Um segundo guincho e o guitarrista adiantou, enquanto se metia no espaço oferecido pelo dono do catre:

— Também tenho as meias calçadas. Se tivesse um segundo par, seria diferente… Mas é o que podemos arranjar…

— Como é que podemos caber aqui? – indagou Paul contorcendo-se.

— Abraçamo-nos uns aos outros – propôs John estendendo os braços. – Ponham-se de lado… Isso. Volta-te para a parede, Paul.

— A ponta do meu nariz está a bater no cimento.

— Chega-te para cá.

— Ei, eu estou no meio – avisou George. – Não quero ser esmagado.

— Ninguém te vai conseguir esmagar. Antes ficamos todos empalados no teu esqueleto.

— Ah, ah… Muito engraçado, Lennon!

O estrado rangeu, a rede metálica estrinçou-se, os três rapazes conseguiram encontrar uma posição decente para que conseguissem partilhar o seu calor e conciliar alguns minutos de sono. Deitaram-se sobre o seu lado esquerdo e o de trás abraçou o da frente, puxando-o contra si. Paul, como era o primeiro, colocou os braços cruzados sobre o peito e escondeu os dedos enregelados nas axilas. Era bom sentir a respiração de George sobre a nuca, lançava alguma tepidez naquela geleira.

— Agora, os cobertores… Vamos pô-los uns em cima dos outros – sugeriu John tentando puxar o seu para as costas, sem realizar mexidas muito amplas para não desmanchar aquele arranjo dramático. – Multiplicamos o calor que nos podem proporcionar.

— Eu não tenho cobertor – revelou George num fio de voz.

— Não estavas tapado?

— Não.

— E não disseste nada?

— O que querias que dissesse? Arranjavas um cobertor para mim? Acho que o Ringo também não tem nenhum…

— E tu, Macca?

— O meu está aqui.

— O que é isto?

— A Union Jack… Identifiquei-a antes de ficarmos sem luz.

John apalpou o tecido fino e sintético, estava verdadeiramente escandalizado.

— A bandeira do Reino Unido? Estavas tapado com uma bandeira? Que raio! Como é que alguém espera aquecer-se… com uma bandeira?! Nem para limpar o cú serve, porra!

— Não adianta protestares, Johnny – observou Paul com a voz abafada, pois tinha o queixo colado ao peito para não ficar demasiado exposto ao frio, enrolando-se o mais possível, aproveitando o conforto do calor de George nas suas costas. – Estamos encerrados dentro desta arrecadação sem janelas, sem eletricidade, sem condições sanitárias, a gelar como pedaços de carne num frigorífico…

— Acho que isto foi, em tempos, um frigorífico – balbuciou George.

— Mesmo que desates aos gritos, ninguém te vai escutar. Acho que foram todos embora, só nós é que ficámos nesta espelunca. Ao lado das casas-de-banho das mulheres… Não podia ser mais decadente.

— Isto é uma pocilga! – exclamou John e lançou o braço por cima dos amigos. Alcançou Paul e agarrou-lhe num braço, apertando George que arquejou.

— É uma arrecadação sem condições nenhumas – bufou Paul. – Agora temos de nos aguentar… Mais vale isto do que dormir na rua. Está a nevar lá fora!

— O Brian prometeu-nos que nos arranjaria um local melhor do que o Caverna, para tocarmos – insistiu George, num tom lamentoso. – O Indra não é melhor do que o Caverna… Pelo menos enquanto tocámos no Caverna, íamos dormir a casa e mesmo que não fossem casas boas, tinham o mínimo para nos sentirmos bem alojados. Isto é… horrível! Piorámos, não melhorámos.

— O Brian não sabe que o porco nazi dono desta merda nos enfiou aqui.

— Johnny! Olha a linguagem – admoestou Paul.

— Cala-te, Macca. O tipo dono do Indra é alemão…

— Nem todos os alemães são porcos nazis – cortou Paul. – A guerra acabou há algum tempo. Aliás… Não foi nada disto que eu quis dizer, parece até que estou a afirmar que só alguns alemães são nazis. Nenhum alemão é nazi…

— Ouviste-me? – pediu John com um suspiro cansado. – Cala-te… O Koschmider é um porco nazi. Fim da história.

— O Brian não sabe que estamos nestas condições ou já tinha feito qualquer coisa – disse George como se pensasse alto.

— Verdade – apoiou Paul. – O Brian aceitou que Bruno Koschmider nos contratasse para tocar no Indra, situado na rua das docas desta cidade nortenha, em determinadas condições. Dois meses de espetáculos, não foi? O Brian não admitiria que fosse pior do que o Caverna… O tipo deve ter pintado um quadro muito colorido ao Brian, deve ter prometido isto e mais aquilo, quando na realidade só nos quer explorar. Uma banda sem gastar o que verdadeiramente valemos… Quanto nos irá pagar? Não acredito que seja mais do que dois euros por dia.

— Então é… uma quebra de contrato e isso implica… como se chama? Uma compensação por danos.

— Palavras bonitas – bufou George.

— E então? Não somos uma banda conhecida, não somos famosos, mas não temos de ser tratados pior do que cães. Temos a nossa dignidade. Hum, fellas?

— Certo, Johnny… – concordou Paul, de olhos fechados, arrastando a voz.

Fellas?

— Certo, Johnny – anuiu George com um arrepio.

— Amanhã vou falar com esse Bruno…

— Não faças nada que depois envergonhe o Brian. Ele está empenhado em promover-nos da maneira correta. Se acontecem imprevistos, deslealdades… não serão culpa dele – avisou Paul sonolento.

Uma voz ecoou no dormitório escuro.

— Estão acordados?... O que fazem acordados?!

Ringo soava estremunhado, um pouco assustado e implicativo.

— Estamos a tentar aquecer-nos – explicou John devagar, a medir as reações do baterista naquele breu. Só as podia imaginar, infelizmente, e esperava que não fossem demasiado bruscas ou não conseguiria antecipar-se…

— Também quero.

Houve uma pausa e a seguir movimento. A madeira chiou, a rede metálica vibrou, Ringo tinha saído da sua cama com um pulo e esfregava as mãos uma na outra, escutava-se um raspar seco.

— Tu não cabes aqui – avisou John olhando para cima a tentar medir a aproximação de Ringo.

— Ponho-me debaixo de alguém. Vá lá, acho que os meus dedos dos pés já devem estar lilases e vão partir-se se lhos tocar! Nunca viram aqueles documentários sobre as expedições ao Evereste?

— Não!! – gritaram os três em coro.

John saltou quando sentiu uma mão gélida no ombro.

— Mas tu estavas a dormir – explicou ele focando o espaço em seu redor, mas não via nada, nem sequer um vulto. Por causa da ausência de janelas não existia uma linha ténue de luz que permitisse vislumbrar alguma coisa dentro daquele compartimento opaco, que só não era abafado por conta das baixas temperaturas. – Foste o único de nós que dormia nestas condições. Presumimos que não te deixavas afetar pelo frio.

— Estava esgotado da viagem, não me dei bem com os balanços do autocarro. E agora a vossa conversa acordou-me… Não gosto de frio, como vocês não gostam. Vá, dá-me espaço.

— Onde estás?

E antes de receber uma resposta, John sentiu um peso cair-lhe em cima. Paul soltou um grito e a sua cabeça bateu na parede, fazendo um ruído surdo. O urro de George veio das entranhas do colchão e este calou-se. John vociferou, zangado, tateando o que podia mas as suas mãos agitavam-se no vazio:

— Estás maluco?! Quase que partes a cama! Quase que nos partes os ossos!

— Acho que mataste o George! – acusou Paul.

— Não, eu estou aqui… E estou bem.

— Desculpem-me… – pediu Ringo arrependido. – Tropecei… O que é isto?

— Acho que são as minhas costas – esclareceu o guitarrista a tossir.

John pediu que todos se levantassem para se reorganizarem. Decidiram juntar mais um estrado, procurar por cobertores, por todos os que conseguissem deitar a mão, incluindo a bandeira do Reino Unido e outras bandeiras ou pedaços de tecido que achassem. Encolheram-se sobre os dois colchões, abraçaram-se, cobriram-se com as parcas mantas, que estavam esburacadas e que eram tão pequenas como aquelas disponibilizadas nas viagens aéreas de longo curso, entrelaçaram as pernas e tentaram adormecer, encostando-se uns nos outros, naquele quarto infernal que parecia escavado num iglu do Ártico. John suspirou, irritado.

Mas o sono permanecia ausente.

Encetou-se nova conversa.

— Acham que o que o Brian disse é verdade?

— O que queres dizer, George? – indagou Ringo.

— Quando nos largou aqui neste fim do mundo, o Brian contou-nos que havia excelentes perspetivas de conseguirmos um contrato com uma empresa discográfica dentro em breve… Se assim for, suporto melhor esta miséria do Indra… Pelo menos teremos uma recompensa no fim deste castigo.

Yeah, podemos finalmente ser contratados para gravar um disco… – concordou John, vago. Não se conseguia entusiasmar com essa eventualidade quando estava friorento e com outras preocupações na cabeça, como dormir, atuar, insultar o novo patrão que era um porco nazi…

— Ah, o George Martin – lembrou-se Paul.

— Sim, esse é o nome que o Brian falou. Vai acontecer uma entrevista com esse tal de Martin esta semana – disse o guitarrista. – Por isso deixou-nos aqui e só virá ter connosco daqui a um mês. Teremos um mês, pelo menos, de sacrifício. Conheces o Martin?

— Apenas de reputação… Depois de termos sido recusados pela Decca – contou Paul –, estive a analisar o panorama das empresas com negócios ligados à música. Para não sermos apanhados desprevenidos, estão a ver? Realmente, a Decca é a maior de todas, depois temos a Horse e outra, que já não me recordo o nome. E temos a EMI, onde trabalha esse George Martin. Não é das maiores, mas tem um catálogo interessante e aposta em novos talentos.

— Ouvi dizer que a EMI trabalha, sobretudo, com artistas ligados… ao teatro – apontou Ringo com um certo desdém.

— Então será por causa disso que o Brian conseguiu uma entrevista tão rapidamente? – perguntou George. – O Brian também tem umas ligações com o teatro, talvez alguém lhe tivesse recomendado o Martin… Um amigo comum, ou algo parecido.

— Parece-me lógico… – soprou John desinteressado.

— Bem, de qualquer modo, devo esclarecer que o George Martin é produtor de uma etiqueta menor da EMI, a Parlophone – prosseguiu Paul. – E sim, essa etiqueta, segundo as minhas investigações faz edições de pequenas peças teatrais e de audiobooks. Na área da comédia. Tem ainda um par de artistas a solo, intérpretes femininas que cantam versões de outros artistas, nada de expressivo.

— Espetacular! – exclamou John irónico. – Seremos a primeira banda de rock ‘n roll que vai fazer o mundo rir-se à gargalhada! Música teatral, os palhaços de serviço, quatro meninos bonitos e seremos todos imensamente felizes!... Se não morrermos de frio, entretanto.

— Johnny, o Brian está a fazer o seu melhor – contrapôs Paul conciliador. – Vamos ver o que resulta da entrevista. Se formos contratados… Vamos mudar a Parlophone. Vamos ser a sua primeira banda de rock ‘n roll e vamos ter todo o sucesso que merecemos. Que importa a etiqueta? Onde gravarmos, faremos a diferença. O nosso objetivo é o topo do mundo!

— Eu só quero um contrato – disse Ringo. – Alguma coisa palpável. O resto… Sei que teremos a capacidade de fazer o que quisermos, se nos mantivermos unidos. Quando o mundo conhecer os Beatles, nada vai ficar como era antes.

Yeah… Eu até gravava para as MemeRecords se isso existisse – admitiu George com um bocejo. – Importa é sermos contratados. Estou ao lado do Ringo.

— Sabem o que eu queria muito, muito, neste momento? – perguntou John.

Os outros três perguntaram ao mesmo tempo:

— O quê, Johnny?

— Dormir…

Desataram a rir-se.

Calaram-se, aninharam-se, aqueceram-se e o desejo de John Lennon, o pequeno desejo daquele instante, tornou-se realidade. Os quatro adormeceram.

Se sonharam? Muito provavelmente. No dia seguinte, massacrados com a pobre qualidade das camas, com a horrível degradação da arrecadação que lhes servia de quarto, o seu humor estava péssimo. Lavaram a cara nos urinóis da casa de banho próxima, comeram mal e no fim da tarde tiveram de subir ao palco improvisado do clube Indra para atuar. Tocaram durante horas seguidas, estenderam cada canção por minutos impossíveis com improvisação de solos infindáveis, mas pelo menos estavam quentes, envolvidos na energia libertadora da música.

Assim foi durante dias e dias, sem poderem contactar com Brian ou com alguém para contar o que estava a acontecer. Apoiaram-se uns nos outros e sobreviveram. Quando se sentiam a desfalecer, tomavam uns comprimidos azuis chamados Preludin que lhes repunha as forças e os tornava eufóricos, desregrados e atrevidos.

Aceitaram aquele tormento porque a vida de artista era dura. Aceitaram porque no final iriam alcançar o maior dos prémios. Aceitaram pois eram um grupo, porque eram coesos e inquebrantáveis como diamantes – e os diamantes eram brilhantes, belos, admirados e cobiçados. Nasciam de negros pedaços de carvão que após serem submetidos a enormes pressões, elevadas temperaturas e outros processos físicos brutais, transformavam-se na mais nobre das pedras preciosas.


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Notas finais do capítulo

E neste capítulo tivemos o que se chama de "período Hamburgo" dos Beatles - os concertos intermináveis, as condições miseráveis de alojamento, os exigentes donos dos clubes onde tocavam (que eram alemães...), os comprimidos azuis...
Tivemos uma primeira referência a George Martin e os rapazes, que começam a dedicar-se a sério à musica, vão encontrar-se brevemente com esse produtor musical.
Por isso, só nos resta saber como vai correr esse encontro e vamos despedirmo-nos desta história...

Próximo e ÚLTIMO capítulo:
Na minha vida.