Na Minha Vida escrita por André Tornado


Capítulo 29
Adrenalina


Notas iniciais do capítulo

No capítulo anterior:
Margaret recebe John, Paul, George e Ringo no seu apartamento. Enquanto Paul vai com John ao supermercado, para comprar o jantar, Ringo e George ficam a ver um filme na televisão, com pipocas e tudo. Então, Margaret faz o impensável...



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John e Paul encontraram a loja facilmente, seguindo as indicações de Margaret. Era um supermercado acolhedor, bem arranjado, com o requinte que o primeiro esperava encontrar num estabelecimento daquela zona, um local de compras que condissesse com o bairro arranjado e imaculado, que fizesse par com a mulher que os acolhia no seu apartamento. A impressão que ela passava naquele segundo encontro, a estadia do barco era outra questão, o convívio fora forçadamente amigável, era de alguém proveniente de uma esfera diferente da dele. Já em relação a Paul, as possíveis diferenças esbatiam-se pois o amigo estava habituado a conviver naquele tipo de ambiente rebuscado.

Agarrou numa maçã e sopesou-a. Não sabia escolher fruta e fingiu que estava a avaliar o produto, como todos os compradores exigentes faziam. Para ele estava tudo com bom aspeto, brilhante e vermelho. Ótimas maçãs. Ele gostava do aspeto das maçãs. Aliás, a frutaria era um escaparate de pomos imaculados. Não era possível enganar-se a escolher o que quer que fosse, mesmo não percebendo nada de fruta. Ficaria sempre bem servido ali, era a vantagem daquele tipo de supermercados. Abriu o saco de plástico e começou a enchê-lo seguindo as indicações escritas no papel que Paul segurava na mão esquerda e que conferia amiúde com as secções que ia atravessando, empurrando o carrinho com a mão direita. Cinco, seis, sete maçãs. Achava que tinha sido esse o número… Na dúvida colocou uma oitava maçã. Tinha sido um número ou um peso? Dois quilos? Não via uma balança em lado nenhum. Fechou o saco, enfastiado. Não gostava de ir às compras.

— Então, vais contar-me o que se passa?

Olhou para Paul que parara ao seu lado. No carrinho tinha garrafas de vinho tinto, embalagens de massa, latas de molho de tomate, queijo, natas, bolachas salgadas, conservas de peixe, azeitonas, pimentos vermelhos em calda. Não se tinha apercebido de que estavam dentro do supermercado há tempo suficiente para que Paul completasse a lista de compras. Ou Paul era muito rápido a escolher, ou ele estivera bastante distraído com as maçãs.

— O que se passa contigo? – insistiu Paul um pouco mais agitado do que o normal. – Estás a ser demasiado bruto com a Margaret. Até para os teus padrões, Lennon.

A sua oportunidade para se explicar chegava. John foi sincero. Queria absolutamente ser verdadeiro com o amigo, ele precisava de contar o que estava a sentir.

— Não sei, Macca. Tenho um qualquer pressentimento…

— Que pressentimento?

— Não te sei especificar…

Paul avançou com o carrinho depois de deixar aí dentro o saco de plástico com as maçãs. Dirigia-se ao talho. Sorriu trocista, condescendente. Amaciou a voz para dizer:

— Serão ciúmes?

John lançou as mãos ao ar. Esperava uma réplica mais inteligente do amigo. Esperava que ele visse para além do encantamento tosco da mulher, daquele jeito delambido, das ofertas aparentemente gratuitas de casa, comida e amor.

— Oh, claro! Vai pela explicação mais simples! – exclamou frustrado.

— E que explicação querias tu que…

John espetou um dedo no peito de Paul. Pararam no corredor do supermercado, rodeados de frigoríficos que apresentavam garrafas e pacotes de leite, embalagens de ovos, manteiga e outros produtos lácteos.

— Quando começarmos a correr, lembra-te que eu tive um pressentimento.

Paul resolveu levar a sério o que ele estava a dizer. Endireitou as costas.

— Estás a dizer que a Margaret poderá… denunciar-nos?

— Somos procurados. Qualquer um pode achar a recompensa apelativa o suficiente para dar à polícia a nossa localização.

— Ela é nossa amiga, Johnny. Tem-nos ajudado desde que nos recolheu no seu barco. Se não fosse ela, a esta hora… estaríamos mortos! – Encolheu-se com um arrepio ao proferir aquela frase.

John suspirou, enfiou as mãos nos bolsos das calças, encolheu os ombros.

— Desculpa, sei que gostas dela… Mas não posso evitar pensar que o nosso encontro na cafetaria não foi coincidência. Não consigo explicar melhor, Macca. Um pressentimento… Os pressentimentos são assim. Não se conseguem definir… Até que se concretizem são como uma nuvem de suspeita, de mal-estar.

— Sei. – Paul tornou a empurrar o carrinho. – Olha, podemos ter uma conversa com ela durante o jantar, explicar o que aconteceu…

— Explicar o quê? – alarmou-se John. – Contar-lhe que o saco das meias do Ringo é um saco cheio de dinheiro roubado? Não a conhecemos assim há tanto tempo, mesmo que nos tenha arrancado das garras da morte, para confiarmos totalmente que ela ficará do nosso lado depois de saber a verdade.

— Está bem, percebo-te… tentarei conversar com ela… no quarto. Compreendes? Talvez num momento mais íntimo…

— Hum. Não te estiques demasiado. O sexo pode não ser assim tão bom.

Paul corou.

— Ah, por favor…

— Não sejas convencido.

— Não sejas inconveniente!

— Precisamos que te portes bem… Num sentido de que terás de portar-te mal.

John riu-se. Encostou-se ao amigo e provocou:

— Apalpa bem o terreno, Macca. Nada de passos em falso. Deves conquistá-la… da maneira certa. A Margaret que fique totalmente subjugada aos teus encantos. Porta-te mal, sê um mau rapazinho. Entendes? Tens de ser persuasivo, deixá-la arrasada nas suas convicções. Canta-lhe qualquer coisa ao ouvido enquanto fazes amor com ela. A tua voz é excelente quando te pões a sussurrar.

— Por favor, queres calar-te?

— O que foi? Não vais carimbá-la, hoje à noite? Ela quer tanto! Para além do meu pressentimento, também consegui ver que ela arde de desejo por ti.

Paul meneou a cabeça.

— Oh, tu és impossível!

— Ela adora-te, mas não penses que ela é fácil.

— Nunca gostei de mulheres fáceis… E a Margaret é uma mulher. Bem…

— Experiente? Também acho, Macca… Pode já ter experimentado muita coisa.

— É uma mulher agradável, educada, inteligente.

— Certo, certo. Tu também deverás ser inteligente se a quiseres convencer de que somos ladrões e bons rapazes, uma combinação que nem sempre resulta, na realidade.

— Não somos ladrões…

— Na prática, somos.

— Mas somos bons rapazes.

— Perfeitamente de acordo. Eu sou um bom rapaz.

A seguir, John pôs-se a cantarolar a canção que tinham ouvido tocar na jukebox na cafetaria, em tom jocoso:

Oh Carol, don’t let him steal your heart away...

E voltou a rir-se.

Depois de passarem pelo talho onde se aviaram com carne de frango e carne picada de vaca, salsichas frescas e tiras de bacon, foram para a caixa. A lista de compras tinha sido exaustivamente conferida e não faltava recolher mais nada.

Enquanto John retirava os artigos do carrinho para o tapete rolante, que o operador da caixa passava de forma profissional e hirta pelo leitor de código de barras, que outro empregado da loja recolhia para o interior de sacos de papel com um sorriso ensaiado e cordato, Paul abria a sua carteira e puxava do seu cartão de crédito. Não tinha o mesmo pressentimento do companheiro, recusava-se a ver a Margaret como uma inimiga e todos os adjetivos que lhe colara correspondiam à sua avaliação mais sincera – ela era uma mulher que, de algum modo, encantava-o no ponto certo, sem ser vulgar mas também sem ser deslumbrante. Uma aventura que haveria de deixar boas recordações… Mas não evitava estar um pouco apreensivo por usar novamente o cartão de crédito.

Brincou com este entre os dedos. Se eles já tinham sido identificados visualmente como os assaltantes do Banco Central, com fotografias que embora de fraca resolução mostravam os seus rostos, então as suas famílias já tinham percebido o que se passava, já tinham associado o seu afastamento numa misteriosa e súbita viagem com o crime que tinham cometido ao vê-los num qualquer programa de televisão sobre os bandidos mais procurados, ao vê-los simplesmente nos noticiários que deveriam ter uma secção própria para reportar a caça ao homem que estava a ser desenvolvida, uma história que devia estar a apaixonar grande parte da população.

A polícia já teria ido encontrar-se com os seus parentes, já sabia provavelmente as suas identidades, os seus nomes, números de cartas de condução, o seu tipo de sangue e todas as informações que podiam obter a partir das diversas bases de dados onde estavam cadastrados. Incluindo… instituições bancárias. E sempre que algum deles usasse um cartão de crédito… O seu caminho estava a ser traçado. Eles deixavam migalhas perfeitamente visíveis no trilho da floresta escura, bastava que fossem seguidas, recolhidas uma a uma e chegavam até eles. O telefonema de Viejos tinha determinado o ponto de partida. Depois era só reunir as provas, os pagamentos com o cartão de crédito. Alojamento, comida, gasolina, compras num supermercado.

John chamou por ele.

— Ei, estás a ouvir?

— O quê?

— Agora devemos pagar… O rapaz está à espera. E não devemos demorar-nos, a nossa anfitriã poderá ficar preocupada. – O sorriso de John era artificial.

— Ah, pois… Desculpe, estava distraído. Muito bem, quanto é a nossa conta?

Paul iria arriscar. Tinha estado sempre a arriscar desde que acompanhara Ringo no Banco Central. Mais um pagamento, mais uma migalha, mais uma prova. Que fosse… Agora não podia fazer nada, a não ser, após aquela aquisição, descartar-se do cartão de crédito no primeiro balde do lixo que avistasse. Mas se ficassem sem cartão de crédito, como iriam sobreviver dali para a frente? Talvez se usassem, por fim, o dinheiro roubado… Tinha a sensação esquisita, contudo, de que não deviam mexer nos quatrocentos mil euros, pelo menos não tão cedo. Prendeu a respiração, passou o cartão de crédito na máquina que o operador da caixa lhe estendia, marcou o seu código pessoal, fechou os olhos e soltou a respiração.

Tão fácil ser descuidado!

Sentiu uma necessidade imperiosa de telefonar ao irmão, Mike. Ser honesto com ele, antes de procurar a cumplicidade de Margaret. Saber o que se sabia, saber se podiam movimentar-se mais ou menos à vontade nos próximos dias. Devia isso a si próprio e aos seus companheiros, a John e também a George e a Ringo. Ter uma certeza, arquitetar um plano, algo concreto e ajuizado no olho daquele furacão de loucuras. Um pouco de planeamento dentro daquela imprevisibilidade irritante.

Ele e John agarraram nos quatro sacos de papel castanho com as compras e saíram do supermercado caminhando tranquilamente. Não podia deixar-se levar pelas suas preocupações, perfeitamente legítimas aliás, mas que constituíam um empecilho para a sua felicidade mais imediata. Pensou em Margaret e no seu sorriso caloroso e teve de admitir que John tinha razão. A mulher exsudava desejo por todos os poros.

Dobraram a esquina e avançaram na avenida larga onde se situava o prédio. O ambiente estava alterado, de alguma forma que Paul não conseguiu definir com exatidão. Notava um clima de opressão, mais cinzento, oxigénio rarefeito, sem presenças, um deserto de coisas e de gente. Os miúdos das bicicletas tinham desaparecido, por exemplo… Iria sacudir essa sensação, com a certeza de que estava a deixar-se influenciar pelo mau humor de John, rir-se do que julgava estar a sentir quando notou movimento no fundo da avenida.

John estendeu um braço que bateu nos sacos de compras que, nos seus braços, lhe tocavam no peito, e os dois pararam. 

O movimento concretizou-se em automóveis brancos e negros, luzes rotativas vermelhas, mas nenhum barulho estrondoso ou alarme que sobressaltasse os espetadores do espetáculo. Cinco veículos que chegavam apressados, em marcha de urgência, anunciando que a ordem pública tinha sido quebrada, que a sua intervenção era fundamental para recuperar a vida ordeira dos cidadãos cumpridores, que não se colocassem à sua frente que seriam considerados cúmplices da desordem, da prevaricação. As sirenes desligadas, porém, conferiam uma tonalidade assustadora ao quadro. A autoridade chegava e iria atuar nos limites da lei, com toda a força do braço da justiça, só que num aparecimento furtivo para que não falhassem onde já tinham sido falhos.

Cinco automóveis da polícia irrompiam pela avenida e travavam junto à porta do prédio da Margaret. Paul sentiu a alma escoar-se através dos sapatos.

— O que é isto?

— Acredito que seja o meu pressentimento.

John apertava os dentes. Vazio e desiludido, Paul gaguejou:

— Ela… Ela chamou a polícia? Mas como soube que somos nós? Como fez a ligação? Estaria um anúncio na cafetaria, igual àquele que vimos no posto de abastecimento perto da fronteira? Por que razão a Margaret fez isto? Ela… achava eu que ela gostava de mim… Eu gostava dela. Quero dizer…

— O que interessa isso? Ela é uma traidora. Ponto final. O que importa é que temos de fugir e o George e o Ringo estão lá dentro, na casa da bruxa!

Paul apertou os lábios. Estava incomodado por ter sido tão ingénuo.

— Uma… bruxa?

— Queres que eu use uma palavra mais forte?

— Não é necessário. O teu ponto de vista foi exposto de forma convincente. Agora… e antes.

— Antes era só uma impressão, Macca. Agora, temos a certeza!

Paul empertigou-se, tornou-se cínico. Esqueceu os lábios vermelhos e quentes da Margaret, os seus sorrisos, os seus olhares húmidos, o seu corpo insinuante. Ela era uma falsa. Uma traidora da pior espécie. Que tipo de mulher fazia aquilo? Salvava-os da morte para entregá-los assim que tivesse uma oportunidade? Atraí-los para o conforto e o recato do seu lar, para de seguida telefonar à polícia e descartar-se deles tão facilmente? Como se fossem desprezíveis? E onde estava a oportunidade de se defenderem, de contar o que realmente aconteceu, de explicar que eram mesmo todos, os quatro, incluindo Ringo Starr, bons rapazes?

Olhou para a cobertura do prédio, onde se situava o apartamento, onde estava a mulher e os seus dois infelizes amigos. John disse receoso:

— Temos de ir salvar o George e o Ringo… outra vez!

— Eles não fazem de propósito, sabes?

— Nem estou a dizer que o fazem.

Entreolharam-se. Estavam determinados, sentiam-se prontos, apesar de estarem cheios de medo. Se falhassem, terminava aquele sonho de liberdade, de uma vida fora de qualquer padrão.

Era isso, não era? O que estavam a viver? Um sonho fora da normalidade.

Podia ser prolongado, podia ser encerrado.

Eles queriam manter a fantasia viva. Não era de todo desagradável experimentar uma existência empurrados pelas vicissitudes do destino e dos deuses brincalhões. Era até… bastante cativante, curiosamente estimulante. Viver no fio da navalha!

Bem, tinham de fazer qualquer coisa.

John largou os sacos de compras num murete que delimitava o prédio que se estendia até à esquina que eles tinham acabado de dobrar. Equilibrou-os contra o pilar de uma cerca de ferro forjado que encimava esse murete. Os carros da polícia tinham estacionado em frente ao prédio, dispondo-se em cunha para trancar a rua e cobrir todos os ângulos de fuga, incluindo os passeios. Provavelmente existia uma barreira anterior, no início da avenida e outra posterior tinha sido ordenada. E os agentes continuavam a organizar-se dentro dos carros para subirem até ao apartamento e prenderem a quadrilha de assaltantes. A informação estaria completa, pensou John. A bruxa tinha-lhes contado que dois estavam na casa, os outros dois estavam na rua… Dali a nada apareceriam polícias a pé que iriam vasculhar cada centímetro daquele local, que iriam até ao supermercado. Tinham de se despachar a fazer qualquer coisa.

Deu um puxão no casaco de Paul e este estremeceu surpreendido.

— Anda daí.

— Vamos onde?

— Antes de começar a fumar, estive a escolher um local adequado para fazê-lo. Existem duas janelas. A maior, onde estive a fumar. E uma mais pequena, que tem uma escada de incêndio. Damos a volta ao quarteirão, encontramos a escada e será por aí que vamos buscar o George e o Ringo, depois fugimos todos, por essa janela mais pequena. Não queres largar os sacos das compras? Acho que já não vamos jantar com a tua querida Margaret.

Paul depositou os seus sacos no chão, equilibrando-nos no candeeiro da rua. Desatou a correr atrás de John. Tinham de ser rápidos para chegarem ao apartamento antes da polícia. Lembrou-se de um detalhe enquanto usavam uma passagem estreita entre dois edifícios que levava às traseiras.

— São… São oito pisos, Johnny! O apartamento fica no topo do prédio!

— Então vamos ter de subir essas escadas muito depressa se quisermos salvar os nossos amigos, Paulie! Sentes-te em forma?

— Não tenho opção de não me sentir em forma…

Contornaram o prédio, encontraram um terreno baldio onde cresciam ervas daninhas no meio da relva mal cuidada, existiam ali alguns baldes do lixo, um depósito de sucata ilegal, um escorrega partido e uma caixa de areia, no que fora em tempos um parque infantil. Correram até ao prédio certo. Olhavam para cima e encontraram a escada de incêndio. John alçou os braços, as mãos puxaram pelo barra de ferro enferrujada que fazia descer a estrutura metálica que lhes permitia chegar ao primeiro patamar. A chiadeira desse movimento foi fantasmagórica naquele silêncio.

Desataram a subir pelos degraus, dois a dois, três a três, impulsionando-se com a ajuda do corrimão. O coração batia muito depressa e a cabeça estava completamente vazia de pensamentos.


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Notas finais do capítulo

A polícia chegou, mas John e Paul conseguiram aperceber-se antes de serem surpreendidos. Conseguirão eles chegar a George e Ringo e conseguirão os quatro rapazes, mais uma vez, escapar?

Próximo capítulo:
Corre, corre, corre, corre!