Na Minha Vida escrita por André Tornado


Capítulo 14
Exploração da selva


Notas iniciais do capítulo

No capítulo anterior:
A "casa" da ilha ficou pronta, é de noite e os rapazes abrigam-se debaixo do seu teto. Paul toca guitarra, ficam a conhecer melhor George, Ringo lamenta-se pelo desastre da sua vida amorosa e John tenta animá-los. Um verdadeiro Clube de Corações Solitários...



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Na madrugada, Ringo teve um pesadelo. De repente pôs-se a gritar e a esbracejar, adormecido. Levantou-se sonâmbulo como se possuído por um demónio, de olhos abertos e vítreos, a saliva a escorrer-lhe do canto da boca, a murmurar palavras incoerentes. Depois saiu disparado da cabana, levantando areia com os pés que espirrou para cima dos outros. Paul soergueu-se, apoiado nos cotovelos, John perguntou com a voz rouca de sono:

— Onde vai aquele maluco?

Assustado, George saiu atrás de Ringo a ver se o conseguia apanhar. Temia que ele corresse a direito e que se enfiasse no mar, caísse, perdesse a orientação e acabasse por se afogar.

Escutaram um baque e um gemido. De seguida um segundo baque e outro gemido. George voltou para dentro da barraca, a engatinhar.

— Bateu num coqueiro e desmaiou.

John bocejou e voltou a aconchegar-se.

— Deixa-o. Só assim dorme até de manhã e deixa-nos dormir também.

— Ele está com o saco de dinheiro…

— Ninguém o vai roubar, George.

Paul virou-se para o outro lado e despertou estremunhado com o brilho do sol a bater-lhe de chofre no rosto. Desde o episódio com Ringo até amanhecer parecia que se tinham passado apenas alguns segundos, que o dia se tinha insinuado depressa demais. Por outras palavras, ele queria dormir mais um pouco. Tinha o corpo todo amassado por causa das ondulações da areia mole, que mudava de configuração sempre que ele se movia e nem sempre para aconchegá-lo corretamente.

— Toca a acordar, mandriões! Rise and shine!

A voz de John foi como uma flecha a perfurar-lhe os tímpanos.

Se tivesse um travesseiro, tinha-o colocado cobre a cabeça e coberto os ouvidos para abafar os sons incómodos. Rolou até ficar deitado de costas, resmungou e sentiu os lábios secos, a garganta arranhada, grãos de areia abrasiva por todo o lado, a começar pelas mãos e a terminar no interior da roupa onde raspava na pele. Algo duro e redondo aterrou-lhe na barriga e Paul sentou-se admirado, atirando as mãos à coisa que envolveu com os dedos. Era um fruto rosado. Olhou para cima, John atirava um segundo fruto para cima de George, que lhe acertou na cabeça provocando um grito agudo e estava a comer um terceiro.

— A manhã está excelente. Muitos caranguejos a aproveitar a maré baixa, mas hoje apetece-me carne. Temos uma floresta para explorar!

— Isso doeu – gemeu George esfregando os cabelos despenteados.

Paul deu uma dentada sôfrega no fruto. Estava com fome e com muita sede.

— Vamos procurar água também. Não podemos só sobreviver com o sumo disto.

— Claro, Paulie – anuiu John falando de boca cheia. – As tigelas feitas com os cocos estão empilhadas à porta da barraca.

George olhou em redor. Não havia paredes e conseguiam ver a praia dali. A única parede era a dos fundos, que tapava a visão da selva escura e misteriosa.

— Porta?

John ignorou a sua observação e continuou:

— Estive a preparar uma lanças, afiando uns pedaços de madeira com o machado.

— Lanças? – insistiu George mastigando desesperado o pomo. Apesar da sua compleição magra era dos que comia mais e parecia estar sempre cheio de fome.

— Para apanhar os coelhos.

— Onde está o Ringo? – indagou Paul.

— A dormir onde caiu, depois de ter batido no coqueiro.

— Não o vais despertar?

John riu-se.

— Posso tentar. Acho que ele não vai estar de muito bom-humor depois de ter dormido ao relento.

— Dormir aqui debaixo é como dormir ao relento – contestou George. – O telhado não faz qualquer diferença, sente-se o vento todo.

John irritou-se.

— O que é que se passa, miúdo?

— O que foi? – George não compreendeu o tom agreste da interpelação.

— Ontem não estavas tão rezingão de manhã.

— Antes de ontem tinha comido lasanha ao almoço. Estava bem alimentado! Há dois dias que só como fruta, tenho as minhas necessidades… alimentares.

Paul levantou-se num salto, interrompendo-os.

— Eu vou despertar o Ringo para partirmos. Não discutam, não vai adiantar de nada.

E saiu da barraca, ou melhor, contornou os pilares de madeira que sustinham o teto para chegar à zona dos coqueiros. Os seus passos a rasparem a areia afastaram-se, apressados e pesados.

— Eu não quero discutir – murmurou George ligeiramente amuado.

— Não ligues ao Paulie, ainda se considera o culpado por estarmos aqui – disse John pensativo. Piscou os olhos e voltou a entusiasmar-se com aquela energia que ele retirava do seu âmago: – Vamos, vamos, só estamos a perder tempo.

A manhã estava muito bonita, como no primeiro dia. Clara e morna, com cores suaves trocadas entre o oceano e o céu. Havia, como John tinha referido, muitos caranguejos onde as ondas passavam devagar e as gaivotas piavam estridentes, junto aos rochedos. O barco continuava encalhado nos baixios. O cheiro a maresia era intoxicante e deixava-os mais famintos porque lhes fazia lembrar peixe de carnudos lombos brancos, a assar sobre a fogueira.

O fogo não esmorecera totalmente, existiam algumas brasas que John já tinha estado a alimentar com folhas secas e pequenos ramos. Ele tinha acordado pela alvorada e tinha estado a preparar uma série de questões, compreendendo que a sua estadia na ilha era matéria delicada, cada ação, reação ou inação relacionava-se diretamente com a sua sobrevivência – literalmente. Fizera lanças, mantivera o fogo, apanhara a fruta do pequeno-almoço, preparara os recipientes para a recolha da água, entrançara fibras da palma das folhas e fizera alguma corda.

Ele e George saíram da barraca juntos. O segundo admirou-se com todo aquele trabalho e disse-lhe que estava impressionado e, sobretudo, agradecido. John encolheu os ombros com modéstia e disse-lhe que não tinha sido nada, que eram coisas necessárias.

Junto ao coqueiro que tinha abatido o desvairado Ringo de madrugada, este despertava ajudado por Paul. A mão na testa indicaria que estava dorido e combalido da pancada, mas aparte do mal-estar e da confusão, não se conseguia lembrar do pesadelo e nem sentir algum rancor por o que tinha sucedido. Comeu fruta, como os outros, levantou-se, cingiu o saco do dinheiro a si e comunicou que estava pronto para seguir naquela expedição improvisada à floresta insular. Hesitou ligeiramente e Paul assegurou-lhe que John tinha afugentado todos os dinossauros. Gargalhada geral. As lanças foram distribuídas, quatro espetos que esperavam que fizessem o seu serviço durante a caçada, também as tigelas, duas para cada um, correspondentes a um coco.

Entraram, pois, na floresta, pela primeira vez desde que ali tinham chegado.

As árvores eram cerradas e o trilho que escolheram estava cheio de arbustos e de plantas rasteiras espinhosas que eles evitavam desviando-se. Mas alguns espinhos atingiam-nos e rasgavam o tecido das calças. John não se importava muito pois as suas calças já tinham rasgões, mas sempre que acontecia com Paul este soltava uma interjeição e um lamento. Nas copas das árvores viam-se pássaros coloridos e entre a vegetação escutava-se o restolhar de pequenos animais, que John afirmava serem os coelhos do almoço. Estugava o passo, para depois abrandar porque tinham de ir por outro caminho, o trilho cerrava-se e seria impossível prosseguir por ali. Por algumas vezes, George olhava por cima do ombro e como já não conseguia ver a praia perguntava se o líder sabia o que estava a fazer e se sabia regressar, ao que Ringo balbuciava para os seus botões, apertando o saco de dinheiro, ao que Paul prendia a respiração apreensivo, ao que John respondia descontraído que sim, claro que sabia como voltar à barraca.

O chão era molhado e ligeiramente enlameado, o que indicava que haveria uma fonte de água doce que brotaria da terra algures nas proximidades. Já George teorizava que a humidade provinha da densa arborização, das noites frescas em que a temperatura baixaria muito ali dentro, por comparação ao resto da ilha. Paul ora defendia a posição de John, ora a de George e Ringo dizia sucintamente que tinha sede.

A certa altura, para que a moral do grupo não se afundasse, John perguntou:

— Conhecem a história do Bungalow Bill?

— De quem?

John sorriu e começou a cantar a capela, pois não tinham instrumentos musicais, que tinham ficado arrumados num canto da barraca. Pelos vistos, era uma canção dele.

 

Hey, Bungalow Bill, what did you kill, Bungalow Bill?

He went out tiger hunting with his elephant and gun

In case of accidents he always took is mom

He’s the all American bulled-headed Saxon mother’s son.

All the children sing…

 

Ei, Bungalow Bill, o que mataste, Bungalow Bill?

Ele foi caçar tigres com o seu elefante e com a sua arma

No caso de haver um acidente levava sempre a sua mãe

Ele é o típico americano saxão teimoso menino da mamã.

Todas as crianças cantam…

 

Estava a contar a história desse Bungalow Bill, que mais ninguém conhecia, que fazia parte do seu reportório pessoal, a história depois convertida em canção, uma lenda da sua infância, especial e extraordinária. Era claramente uma invenção de John, tudo no seu conjunto, a lenda e a canção, mas parecia mesmo que ele estava a relatar um episódio histórico fundamental para o conhecimento da Humanidade.

No refrão, George começou a bater palmas e Paul acompanhou-o. Ringo, o senhor do ritmo, pôs-se a assobiar pois estava impossibilitado de aplaudir a segurar o saco de dinheiro.

 

Hey, Bungalow Bill, what did you kill, Bungalow Bill?

Deep in the jungle where the mighty tiger lies

Bill and his elephants were taken by surprise

So Captain Marvel zapped in right between the eyes, zap!

All the children sing…

 

Ei, Bungalow Bill, o que mataste, Bungalow Bill?

Nas profundezas da selva onde mora o poderoso tigre

Bill e os seus elefantes foram apanhados de surpresa

Então o Capitão Maravilha acertou-lhe bem no meio dos olhos, zap!

Todas as crianças cantam…

 

Então esse Bungalow Bill era um caçador… E um grande caçador pois a sua presa eram os tigres poderosos das selvas, talvez da Índia, que era o local geográfico onde viviam tigres nas selvas.

George e Paul entreolharam-se, continuando a bater palmas, o assobio de Ringo a entusiasmá-los. Paul encolheu os ombros com um sorriso respondendo à dúvida muda de George que arqueava as sobrancelhas. Não, não conhecia aquela canção do amigo, era a primeira vez que a ouvia. Voltou-se para trás e piscou o olho ao baterista que lhe devolveu um aceno com a cabeça.

E assim prosseguiam pelo trilho estreito da floresta.

 

Hey, Bungalow Bill, what did you kill, Bungalow Bill?

The children asked him if to kill was not a sin

“Not when we looks so fierce”, his mummy butted in

If looks could kill it would have been us instead of him.

All the children sing…

 

Hey, Bungalow Bill, what did you kill, Bungalow Bill?

 

Ei, Bungalow Bill, o que mataste, Bungalow Bill?

As crianças perguntaram-lhe se matar não era um pecado

“Não quando ele parece tão feroz”, a sua mãe interrompeu

Se a beleza pudesse matar éramos nós em vez dele.

Todas as crianças cantam…

Ei, Bungalow Bill, o que mataste, Bungalow Bill?

 

George comentou:

— Que história interessante!

John voltou-se para eles e fez uma vénia a agradecer por terem escutado a sua canção, como humilde artista que era, mais ainda, eles tinham gostado mesmo muito e demonstraram-no ao acrescentarem um ritmo e uma melodia condizentes, com palmas e assobios. Perguntou entusiasmado:

— Não se sentem como o Bungalow Bill?

— Faltam os elefantes – disse Paul.

— E as armas – acrescentou George.

Ringo deu um estalo com a língua.

— E já agora os tigres. Deixem o Bungalow Bill fora disto.

Fingindo uma seriedade assustada, John assentiu.

— Concordo, pois ele é mais bonito do que nós e depois…

— E depois o quê? – quis saber George correndo para juntar-se a ele.

John passou o polegar pelo pescoço, num gesto dramático de corte.

— Zap! Já éramos!

— Ah!

— Mas ouviste o que eu estive a cantar, ou não? Bungalow Bill é um herói tipicamente americano, protegido pelo destino e pela sua aura lendária. Nada o atinge. Basta mostrar o passaporte e todos os seus inimigos são fulminados em instantes. A mãe era mais tesa, contudo…

— Isso era alguma série de televisão?

— Dos domingos de manhã. Não te lembras?

Paul revelou:

— Dos domingos de manhã do John. Não te deixes enrolar, George.

— Gostei bastante – reforçou o rapaz mais novo com um sorriso largo. – Tens mais canções dessas?

— Obrigado! Sim, tenho outras canções… O Paul também. Ele é melhor do que eu a contar este tipo de histórias em canções.

— Que tipo?

— Histórias de heróis da televisão dos domingos de manhã.

— Vá lá, Johnny – protestou Paul. – Essa canção é genial. Não conhecia.

— Tenho feito alguns estragos com a minha guitarra… usada, nos serões em que estava mais entediado. Algumas composições e ideias. Depois mostro-te.

— Temos uma guitarra acústica na barraca.

— Combinado, Paulie!

Chegaram a uma pequena clareira, um espaço aberto aleatoriamente na floresta onde se encontravam árvores tombadas. O sol, no alto, custava a penetrar naquele lugar pois a folhagem unia-se sobre a clareira formando um dossel verde.

— Estou cansado! Quero parar um pouco – pediu Ringo e sem esperar pela autorização dos outros, sentou-se num tronco caído. Fê-lo com tal resolução que indicava que não se iria mover nas horas seguintes.

John passou o peso de uma perna para a outra, informou que iria continuar. Aquilo não era um passeio, era uma expedição e tinha objetivos concretos que estavam longe de serem atingidos. O tempo estava a passar e ainda não tinham caçado nenhum coelho, se esses bichos suculentos realmente existiriam ali, nem encontrado uma fonte para se abastecerem de água. Paul escutou-o, preocupado e começou a pensar no que estava a acontecer. Acreditava que estavam todos cansados, as pernas de Ringo não eram as únicas a protestar, John estaria tão esgotado quanto ele ou George, cujo estômago roncava de vez em quando. Não podia deixar o amigo partir sozinho, nem deixar o abatido baterista, que exibia um inchaço arroxeado no meio da testa, abandonado naquela clareira. Eram quatro, podiam dividir-se, então propôs que George ficasse ali, ele iria com John e que em breve regressariam para vir buscá-los depois de explorarem melhor os arredores. Todos concordaram e Paul partiu com John.

George sentou-se ao lado de Ringo, o tronco oscilou.

— Uf! Este passeio abriu-me o apetite. A ti, não? – admitiu desanimado, as costas ligeiramente dobradas.

— Um pouco…

O guitarrista deu uma cotovelada no companheiro.

— Ei, continuas aborrecido?

O baterista suspirou alto, olhando para o céu coberto pelas ramagens das árvores.

— Sou rico e passo fome. Não é frustrante? Não é uma loucura? Nem nos meus piores dias, depois de ter sido despedido, senti-me tão mal. É horrível! Maldição!

— Para com essa atitude derrotista. Não vai resolver nada e só te vai deixar cada vez mais deprimido.

— Bah! Gosto de resmungar. Sou um resmungão. E depois?

— Depois, esse pessimismo vai afetar-nos a todos! Não quero estar, daqui a uns dias, a tirar à sorte para saber quem vamos comer primeiro!

— Dias? Se não caçarmos nenhum coelho vai acontecer esta noite, não daqui a dias.

— Queres calar-te?

Incomodado, George levantou-se do tronco de supetão e este voltou a oscilar. Afastou-se, com as mãos na cintura, a tentar desanuviar a mente. Não queria transformar-se num canibal, mas já tinha escutado tantas histórias de sobrevivência que falavam de que tinha sido preciso devorar os companheiros de infortúnio, que se arrepiou de horror.

Ringo ficou zonzo com a oscilação do tronco onde se sentava. Desatou o nó dos cordões do saco, abriu a abertura alargando-a com os dedos, espreitou as notas. Tanto dinheiro e não lhe servia para nada… Quando levantou o olhar, o coração parou-se-lhe no peito.

Uma lança ameaçava-o, dirigida à jugular que pulsava no seu pescoço. Não era uma lança frágil como a que ele tinha, fabricada a partir de um raminho, era uma lança a sério, com ponta de metal aguçada. Um homem negro gigantesco, com o corpo pintado, segurava na lança.

— Ringo!!

Outros homens negros rodeavam George e tentavam manietá-lo com cordas. Ao ter gritado, alarmou os seus captores, que se apertaram junto dele. Uma pancada silenciou-o, pois desmaiou de seguida. Ringo vira-o a cair e a desaparecer entre as pernas escuras daqueles homens perigosos.

Ele tentou pedir socorro mas vieram por detrás e amordaçaram-no. Sufocado, dorido, esfomeado, esgotado, também perdeu os sentidos.


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Notas finais do capítulo

Afinal... a ilha não será assim tão deserta!
O George e o Ringo foram raptados. O que irá acontecer a seguir?

Mas antes tivemos uma agradável excursão pela selva, com direito a uma nova canção.
Esta chama-se The Continuing Story of Bungalow Bill e encontra-se no album de 1968 chamado The Beatles que, por causa da sua capa branca, ficou conhecido para a posteridade como o The White Album, ou o Álbum Branco.
Lamento não vos conseguir deixar a ligação para a canção definitiva, no YouTube apenas encontrei uma primeira versão, um ensaio, mas pelo menos é cantada por John Lennon e está mais próxima de uma atuação "ao vivo" - https://www.youtube.com/watch?v=Ggb1mYY-uJY.

Próximo capítulo:
A tribo.