Na Minha Vida escrita por André Tornado


Capítulo 12
Gostaria de estar, no fundo do mar...


Notas iniciais do capítulo

No capítulo anterior:
Os quatro rapazes vão à procura da casa para se abrigarem e descansarem. Sobem a uma falésia e, desde o alto, com uma vista alargada sobre o local, descobrem que não existe casa nenhuma. Estão numa ilha deserta.



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Passado o ataque de neurose, Ringo Starr, nome artístico do bandido amador, sim amador, porque ele não se achava um fora-da-lei especialmente dotado ou munido de grande experiência profissional nesse ramo tão peculiar, nome artístico de Richard Starkey, reagiu.

Na verdade, o infame Ringo Starr tinha aparecido por causa da banda que ele tinha reunido com os seus anteriores amigos, não por causa do banditismo recente, aqueles companheiros que nunca lhe chegaram a pagar os instrumentos que ele guardava no armazém do cais antigo que era a sua casa. Melhor, tinha sido a sua casa pois ele duvidava que lá pudesse regressar depois do arrombamento da polícia. Devia estar tudo destruído, confiscado, marcado…

O baterista Ringo Starr, Ringo por causa dos anéis que usava nesse então, era conhecido no pequeno circuito musical onde se inseria o bar onde ele tocava com os amigos. Numa ocasião tinha até conseguido ganhar uma nota de cinquenta euros extra, fora as cervejas e os cigarros que constituíam o costumeiro pagamento dos músicos naquele lugar pobretanas. Tinham-lhe também prometido um contrato profissional, a sério, para tocar no casino da cidade e talvez gravar um disco com um dos artistas que atuavam nos espetáculos noturnos. Ele gostara da proposta… Podia fazer uns cobres extra com aquela história da música, dinheiro a sério. Dias depois tinham sido todos despedidos por causa de um problema qualquer com um dos outros membros da banda, nunca soube muito bem mas desconfiava que haveria uma mulher envolvida. Então, a fama do baterista Ringo Starr, nascido Richard Starkey, terminou antes sequer de ter começado. Foi um dia triste, muito triste. Ele tinha planos grandiosos depois da promessa do tal contrato.

Nunca desistiu da música, porém. Quando não se deitava deprimido à espera de adormecer ajudado pelos debates políticos da programação radiofónica, sentava-se no pequeno banco que ajustava sempre que o ocupava, subindo e descendo o mecanismo de rosca para encontrar a altura ideal, e tocava bateria. De olhos fechados e a tentar igualar o bater do seu coração ao ritmo que arrancava febril dos tambores e dos pratos, por vezes lento, outras vezes rápido, abanando a cabeça, mordendo os lábios, concentrado e feliz, tocava e vivia noutro mundo.

E foi entre estas considerações e lembranças que Ringo reagiu.

Um enorme peso desceu-lhe sobre o corpo que subitamente se tinha convertido em chumbo e foi desligado como um boneco cujas pilhas se tivessem esgotado. O saco do dinheiro pendeu inerte do braço. Depois da reação histérica sentia-se ridículo, exagerado e principalmente traído.

Olhou para os seus mais recentes amigos, forçados a essa condição porque ele os tinha obrigado a segui-lo por causa de uma pistola… sem balas. A comédia! Riu-se em soluços e os seus ombros sacudiam-se. Não se sentia traído por eles, sentia-se traído pelas circunstâncias, desiludido com tudo e com nada em particular. Estava a ser demasiado dramático? Que fosse! Sentia-se confuso…

— Vamos descer até à praia e pensar no que podemos fazer a seguir? – sugeriu John.

Ringo mirou-o esgazeado. Acenou com a cabeça, sabendo que os outros esperavam pela resposta dele. Foi um gesto automático que serviu para destravar a cena que começava a criar contornos de tragédia grega. Não valia a pena. Só estavam naufragados numa ilha aparentemente deserta, sem comida, água ou abrigo, com um saco de dinheiro roubado. Muito simples… Algo entre o hilariante e o caricato.

Paul tocou no braço de John e foram eles que tomaram a dianteira na descida da falésia. George perguntou-lhe preocupado:

— Estás bem?

Num reflexo, Ringo limpou os olhos secos. Acenou pela segunda vez.

Yeah, acho que sim. Foi só uma espécie de… desespero.

— Oh, sim… Também estava a apetecer-me o bife.

George seguiu John e Paul, depois foi ele. Com mais cuidado e sem o entusiasmo da subida, porque nada os aguardava mais abaixo, ao contrário do caminho inverso em que esperavam encontrar uma gloriosa e confortável mansão que os iria acolher como pequenos príncipes endinheirados. Os quatro alcançaram a areia húmida da praia. Já não se importaram com os seus sapatos e com eles calçados percorreram o areal até regressarem ao local onde tinham pernoitado.

A maré começava a subir e os caranguejos tinham desaparecido. O silêncio imperava e a calma que antes tinha parecido tão benigna agora troçava deles. Paul perguntou, sem grande convicção, se alguém tinha fome, ele disponibilizava-se para ir apanhar alguns daqueles frutos rosados, mas ninguém se manifestou, nem recusando, nem afirmando que queria comer mais alguma coisa. Com o choque de se verem naquela situação extrema todos tinham perdido a fome, a sede, a vontade.

Ringo dirigiu-se ao mar, devagar. George chamou por ele, temendo que o baterista fosse fazer alguma loucura, quis segui-lo mas foi agarrado por John. Paul, de mão em pala sobre a testa, viu Ringo entrar nas ondas, avançar com alguma resolução e chegar aos bancos de areia, a seguir alcançou o barco encalhado. Voltou pouco depois com um pequeno machado, daqueles que costumavam ser usados para partir vidros em caso de incêndio, e alguns rolos de fita adesiva industrial metalizada. Explicou aos três, com uma atitude passiva e desmoralizada, que tinha aquilo guardado no barco, nem sabia muito bem porquê, mas provavelmente já antecipava que acabaria numa ilha selvagem.

— Não tens mais nenhuma ferramenta escondida? – indagou John retirando o machado da mão de Ringo, apertando o cabo. Quis logo apropriar-se daquela possível arma, temendo que o baterista tivesse outro ataque e desatasse à machadada.

— Não, é a única. E a fita adesiva.

Paul agarrou nos rolos, a obedecer ao sinal de John que lhe tinha piscado o olho. Ficou com aquilo nas mãos como se segurasse um bicho raro adormecido que não devia esmagar. Não sabia o que fazer. Nunca fora bom em trabalhos manuais.

— E agora, o que fazemos? – interveio George a olhar curioso para as coisas trazidas por Ringo, que estavam agora na posse de John e de Paul.

O primeiro levou a mão ao bolso traseiro das calças de ganga rasgadas e tirou o seu telemóvel que, entretanto, se tinha desligado sem bateria.

— Tens o teu?

— Hum?

— O teu telemóvel, George. Vão servir-nos como ferramenta.

— Como?

— Quando precisarmos de fazer fogo…

— Ei! – George recuou. – Não vais arder o meu telemóvel.

— Não vou arder coisa nenhuma. Vamos ter de desmanchar os aparelhos para usar os vidros para filtrar os raios de sol e acender uma fogueira. Podia usar o isqueiro com que acendo os cigarros… E apetece-me tanto fumar, mas paciência! Acho que agora é que vou conseguir largar o vício… Bem, adiantando, não podemos usar o isqueiro porque deixei-o no maço de cigarros, dentro do meu carro, junto à casa do Ringo.

— Para que queres uma fogueira? – perguntou Paul. – Não faz frio à noite, dormimos relativamente bem na noite passada sem necessidade de uma fogueira.

— Isso foi porque estavas cansado e adormeceste logo, foi também porque já estavas todo molhado da humidade que nos foi caindo em cima durante a viagem. Nem te apercebeste do desconforto. Aposto que esta noite vai ser diferente, depois de teres tomado consciência de que estamos numa ilha deserta. Certo, rapazes? – exclamou dirigindo-se a Ringo e a George que não partilharam o seu entusiasmo. Retornou a Paul. – E vamos também precisar de fogo para cozinhar os nossos alimentos. Não vamos conseguir manter as nossas forças só a comer aqueles frutos que, em breve, acabam se continuarmos a devorá-los como o fizemos há pouco. Naquela floresta devem existir pequenos animais, como cabras, coelhos ou perdizes, que temos de caçar para serem o nosso jantar.

— Estás a pensar em tudo… – observou Paul impressionado.

John tocou com o dedo indicador na sua testa.

— Sim, estive a usar os meus neurónios durante o passeio na praia, enquanto vocês deviam estar a lamentar-se pela pouca sorte que vos coube ao termos encalhado aqui. Ah, e a seguir a nossa prioridade é encontrar água.

— Não temos vasilhas para recolhê-la e guardá-la.

— Teremos de encontrar alguma planta que sirva de vasilha, depois vemos isso. – Bateu palmas ruidosamente. – Vamos lá a arrebitar, rapazes! Temos muito trabalho para fazer!

Explicou, de seguida, que a primeira tarefa seria construir um abrigo, uma espécie de casa. Como mais ninguém estava com ideias, ou sequer disposição para pensar em algo mais racional, concordaram com o que John ia sugerindo.

Este entregou o machado a George e pediu-lhe que fosse recolher madeira em forma de pequenos troncos. A cabeça do machado era pequena e não podia ser usada exaustivamente ou o gume ficaria rombo muito rapidamente e não tinham maneira de o amolar. Disse a Paul para ir ajudar George na recolha dos troncos. Seria com esses que, unindo-os com a fita adesiva, formariam uma espécie de estrutura que cobririam com as folhas largas dos coqueiros para simular um telhado e talvez paredes e mandou Ringo recolhê-las. Ele iria limpar o terreno onde iria ser erguida a barraca improvisada.

Então, a luz serena daquele lugar filtrou-se num véu translúcido de imensas cores brancas e o paraíso que era e que sempre ali morara surgiu em toda a sua pacífica exuberância. Havia também um sopro de brisa morna que transportava odores marítimos, notas musicais, uma alegria simples só possível nos sítios simples.

As ondas leves e espumosas estendiam-se de forma preguiçosa pela areia clara.

Escutou-se uma canção…

I’d like to be under the sea

In an octopus’s garden in the shade

He’d let us in, knows where we’ve been

In his octopus’s garden in the shade.

 

Gostaria de estar, no fundo do mar

No jardim de um polvo à sombra

Ele deixava-nos entrar, sabia onde tínhamos estado,

Nesse jardim de um polvo à sombra.

A canção não estava realmente lá, a vogar na atmosfera cálida e transparente, a soar acima dos outros sons que provinham da Natureza sossegada, mas de repente todos eles escutavam-na e começaram a sorrir.

Pois devia ser mesmo engraçado se fosse possível viver no jardim de um polvo, poder respirar debaixo de água e deixar-se estar nesse refúgio perfeito construído entre rochas submarinas, coberto de algas oscilantes e enfeitado com anémonas coloridas.

John alisou a areia num local que definiu como ideal para a construção. Ficava próximo do pequeno pomar das árvores, não seria afetado pelas marés e não estava demasiado junto à mata densa. Ringo carregava braçadas de folhagem que recolhia na base dos coqueiros, tinha cuidado para escolher as menos ressequidas e as mais farfalhudas. Paul e George revezavam-se com o machado, para que nem um, nem outro se cansasse demasiado, pois cortar madeira era penoso.

I’d ask my friends to come and see

An octopus’s garden with me

I’d like to be under the sea

In an octopus’s garden in the shade.

 

Convidava os meus amigos para virem e verem

Comigo um jardim de um polvo

Gostaria de estar, no fundo do mar

No jardim de um polvo à sombra.

Era estranho pensar numa perspetiva mais realista, mas aquilo que eles estavam a construir seria um lar para os próximos tempos. Uma casa onde viveriam juntos, como quarto rapazes universitários desconhecidos que partilhavam um apartamento comunitário. Classificar “próximos tempos” era outro dos exercícios curiosos. Significaria horas, dias… ou meses?

Com a canção a adocicar-lhes os ouvidos, as preocupações desvaneciam-se.

We would be warm below the storm

In our little hideaway beneath the waves

Resting our head on the sea bed

In an octopus’s garden near a cave.

 

Estaríamos confortáveis debaixo da tempestade

No nosso pequeno esconderijo sob as ondas

Descansando no leito do mar

No jardim de um polvo perto de uma gruta.

O facto era que se sentiam bem no que estavam a fazer. A construir uma casa! A mansão que eles esperavam encontrar na ilha, o teto que os iria proteger de todos os perigos externos.

Numa das voltas, Ringo descobriu John sentado de pernas estendidas, a contemplar o oceano. Gritou pelos outros a dizer que o chefe estava a mandriar, Paul veio disparado da orla da floresta, com uma braçada de ramos, que despejou no colo do amigo, exigindo que ele voltasse a trabalhar. Uma gargalhada de Ringo fez Paul sorrir. John mostrou as mãos, alegando que estava a pensar e Paul retrucou que podia pensar e atar os troncos com a fita adesiva.

We would sing and dance around

Because we know we can’t be found

I’d like to be under the sea

In a octopus’s garden in the shade

 

Nós iríamos cantar e dançar

Porque sabíamos que não podíamos ser encontrados

Gostaria de estar, no fundo de mar

No jardim de um polvo à sombra.

Do fundo, George perguntou num grito se ainda iriam precisar de mais madeira para a casa. Suava abundantemente e já não conseguia limpar-se com as mãos que estavam escorregadias de tão molhadas. O cabo do machado deslizava-lhe entre os dedos e os cortes tinham perdido precisão. Paul decidiu que ele parasse de rachar lenha, que descansasse um pouco. Logo se veria se iriam precisar de mais matéria-prima para a estrutura da barraca. John, que unia troncos com a fita adesiva, protestou dizendo que a ele não o tinham deixado descansar. Ringo dava-lhe uma palmada nas costas e dizia-lhe para se calar, que ele tinha feito menos do que George. E John devolvia, indignado, que ele era o cérebro da operação, que tinha andado a alisar areia, que tinha estado mais não sei o quê e já ninguém o escutava.

We would shout and swim about

The coral that lies beneath the waves

(Lies beneath the ocean waves)

Oh what joy for every girl and boy

Knowing that they’re happy and they’re safe.

(Happy and they’re safe).

 

Nós iríamos gritar e nadar à volta

Do coral que existe sob as ondas

(Que existe sob as ondas do oceano)

Oh que alegria para cada menina e menino

Saberem que estão felizes e a salvo.

(Felizes e a salvo).

Com grande esforço, falta de jeito e dúvidas milhentas sobre arquitetura, engenharia e ciência dos materiais puseram de pé a espécie de caixa que compuseram com troncos unidos pela fita adesiva. As junções metalizadas brilhavam quando o sol incindia sobre elas, o que constituiria um possível chamariz para os navios que passassem ao largo. Ficariam assim a saber que alguém estaria na ilha e que precisaria de auxílio. A caixa não era muito alta. Tombou, desengonçada, algumas vezes, mas à sexta ou sétima tentativa conseguiram fixá-la. De seguida iriam criar a parte cimeira, também feita a partir de troncos, algo simples para não pesar muito pois iria cobrir a caixa, e que seria posteriormente coberta pelas folhas do coqueiro.

O suor era tanto que Paul despiu o seu casaco de verão e retirou a gravata.

We would be so happy you and me

No one there to tell us what to do

I’d like to be under the sea

In an octopus’s garden with you.

 

Seríamos tão felizes, tu e eu

Ninguém para nos dizer o que fazer

Gostaria de estar, no fundo do mar

No jardim de um polvo contigo.

Entre a possibilidade de habitarem a barraca que tinham acabado de construir e o tal jardim do polvo que seria maravilhoso e acolhedor, a escolha era óbvia: a barraca!

De mãos na cintura, os quatro rapazes contemplavam satisfeitos a sua obra. Uma casa tosca, coberta por um telhado composto por palmas sobrepostas, a parede dos fundos elaborada com o mesmo material, três lados abertos, atarracada e de alicerces inseguros, que abanariam ao menor vento ou encosto, por isso tinha-se decidido que era proibido tocar nos quatro pilares que sustinham tudo aquilo.

— Bem… acho que não ficou nada mal – observou John.

— Amanhã construímos a piscina – atirou George.

— Eu acho que deveríamos começar pelo campo de golfe – disse Paul.

— Eu voto pelo recheio – afirmou Ringo.

— Qual recheio? – perguntaram os outros três, ao mesmo tempo.

O baterista encolheu os ombros.

— Estava a pensar nas divisões da casa. A cozinha, os quartos, o salão, a sala de jogos, a sala de ginástica…

Uma gargalhada.

John apontou para o céu azul. O sol já tinha começado a sua descida, o que indicava que a tarde avançava.

— A próxima tarefa: fazer fogo.


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Notas finais do capítulo

Os rapazes depressa aceitaram a sua situação e puseram mãos à obra. Vão ter de conseguir sobreviver na ilha até que sejam resgatados por algum navio que passe naquelas águas. O que acharam da "casa" que eles construíram?

Foi apresentada uma canção como pano de fundo durante a aventura de engenharia de John, Paul, George e Ringo. É uma composição de Richard Starkey, de Ringo, desse mesmo (o baterista dos Beatles sempre cantou e até compôs algumas canções), e chama-se Octopus's Garden. É uma canção divertida e ligeira que faz lembrar... o ambiente descontraído de uma ilha, de uma praia, do mar e da sua imensa vida.
Deixo-vos a ligação do vídeo esperando que se mantenha no YouTube (pois com material dos Beatles nunca se sabe, tudo desaparece):
https://www.youtube.com/watch?v=N57AeGlYTS4

Próximo capítulo:
A noite cheia de estrelas