Socorristas escrita por BlueBlack


Capítulo 49
Vínculos e desvínculos




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 Andrômeda parecia perder o efeito do sedativo quando saíram da sala da Caixa, mas apenas gemeu quando Nelly a chamou. Cada um deles pegou um membro seu para que a carregassem, apoiando-a nos ombros, e assim seguiram corredor a fora, subindo as escadas de serviço; um modo de garantir que ninguém ficasse para trás.

O complexo agora se encontrava quase sem nenhuma luz além das de emergência. Um alarme reverberava pelas paredes e havia poeira por toda parte, além dos escombros, rastro das explosões. “Se eu soubesse que o Braço Direito era capaz de fazer algo tão bem feito, teria lutado com mais garra para ficar junto deles”, Nelly pensou.

Um dos corredores estava bloqueado por um grande pedaço de concreto, então só tiveram um caminho para seguir. Assustaram-se ao começar a ver sangue pelo chão, e estacaram no lugar com os corpos soterrados na entrada de um laboratório. Um braço curto e frágil jazia por fora da rocha.

 —  Vamos! – Gally exclamou, sendo o primeiro a desviar o olhar da criança.

Cruzaram mais corredores com corpos e destruição, e àquela altura Nelly apenas acompanhava os passos dos outros, entorpecida por tudo aquilo. Ela queria culpar o Braço Direito, ter raiva de alguém, mas não conseguia. No fundo, agradecia pelo CRUEL tê-los deixado em paz, ainda que a estrutura continuasse a despencar. Precisaram desviar de dois desmoronamentos e Andrômeda, por pouco, não pagou o preço pelo mau jeito deles em carrega-la. Quando passavam por janelas, conseguiam ver os outros prédios também sendo desfeitos, e pessoas correndo em direção à floresta. Pensar em Newt naquele momento fazia a garota ficar perdida...

Decidiram usar a saída direto para o hangar, já que tantos empecilhos os fizeram tomar outro rumo, e encontraram a passagem quase totalmente bloqueada por ruínas. Havia apenas uma abertura em meio às pedras.

Kenan e Nelly apoiaram Andrômeda, enquanto Mike e Gally se esgueiravam para o outro lado, e então a recebiam pelo buraco. Gally olhou para a entrada do hangar subitamente, tentando entender o barulho que ouvia. Kenan e Nelly passaram pelos destroços, podendo ouvir tiros abafados. Alguém rompeu pelas portas altas e pesadas do amplo local que se abriam por algum comando vindo do lado de fora. Sonya entrava, acompanhada de um bom número de pessoas.

   —  O que está acontecendo lá? – Nelly perguntou.

   —  O Homem-Rato... Está morto, mas as pessoas estão saindo de controle. – ela respondeu, ofegante.

Nelly se entreolhou com Gally e de repente todos olhavam para os dois.

 —  Tudo bem! Vocês! Entrem e se acomodem! Vamos bater um papo amigável assim que as coisas se acalmarem! – Gally gritou, fazendo sinal para que todos acabassem de entrar e caminhando rapidamente em direção à saída.

Nelly se voltou para Mike e Kenan, deixando uma arma na mão do primeiro.

 — Fiquem aqui até voltarmos, está bem? E olhem ela por mim. – apontou Andrômeda e recebeu um aceno de cabeça idêntico dos dois. Mike não gostava muito da ideia de ficar sozinho com o rapaz, então apreciou a necessidade de prestarem atenção na multidão.

Do lado de fora, um homem de terno e gravata usava uma pistola para gesticular enquanto falava. Nelly e Gally passaram entre as centenas de pessoas, procurando por Thomas, Minho, Caçarola ou qualquer um que pudesse explicar o que estava acontecendo. Eles estavam à frente do grupo, formando uma espécie de barreira para os civis, observando o homem com um misto de medo e atenção. A postura de Minho dizia com perfeição que apenas esperava o momento certo para atacar e descontar tudo que sentia em golpes.

 — A cidade há pouco tempo era uma das maiores da atualidade, então podemos aproveitar seus recursos e começar uma civilização para valer. Com o CRUEL destruído e nossa imunidade garantida, não teremos muitos problemas com isso. – o Engravatado dizia.

 — O CRUEL não está destruído. – Teresa afirmou em alto e bom som.

 — Vê aquilo? – ele apontou para o corpo de alguém jogado no chão atrás de si. O Homem-Rato. — Para mim, parece um bom começo.

 — É, mas a Chanceler ainda está viva. Se quiserem recomeçar ou o que seja, terá que ser bem longe daqui. – Thomas disse.

 — Desculpe, mas quem é você?

 - Um participante do seu resgate, é o que precisa saber. – Minho respondeu.

O Engravatado recomeçou a falar e Nelly se aproximou mais de Gally.

 — O Braço Direito ou algum filiado do CRUEL podem voltar, acho melhor irmos para dentro para resolvermos o que fazer. – ela disse baixinho.

As explosões dentro do complexo haviam cessado, tudo que desmoronaria já havia desmoronado, o que significava que não havia mais risco dentro do hangar. Gally sussurrou o mesmo que Perenelle para Minho e um civil, que passaram à diante. Aos poucos, todos foram recebendo o recado e começaram a dispersar para entrar no hangar, deixando o homem falando sozinho.

 — Ei! EI! – ele berrou e esticou o braço para cima, disparando uma vez. Alguns gritaram e se abaixaram. Aqueles que seguravam bebês balançavam estes para conter seus choros. — Melhor manterem a droga da ordem antes que as coisas desandem!

 — Escute, precisamos ir para um lugar mais seguro. Temos Bergs e pilotos, podemos planejar com cuidado o que fazer. – Thomas disse ao homem, erguendo a mão como se pedisse calma.

 — Bergs? O que vocês, heróis, têm em mente, afinal? Vão comandar outro experimento dos seus amigos?

A menção daquilo fez Perenelle gelar. Pensar nos poucos que sabiam sobre a cura de Guilterson era um alívio, mas não deixava de fazê-la ter um medo inconsciente de que mais pessoas soubessem, como se a notícia pudesse se espalhar através dos poros.

 — Não temos nada a ver com o CRUEL. – Thomas afirmou, dando mais alguns passos à frente. Minho esquivava devagar sua mão para a arma em seu cinto.

 — E quanto à tatuagem em cada um de vocês? Me parece bem explicativa.

 — Podemos explicar o que quiser, contanto que entremos.

O Engravatado riu e ergueu o braço com a arma lentamente, apontando-a para Thomas. No instante seguinte, uma dezena de braços se ergueu com pistolas apontadas diretamente para o homem. Gally, Mallory, Jorge, Brenda, Minho e alguns outros que conseguiram roubar armas na fuga deixavam na cara que não hesitariam em atirar.

 — Todos nós podemos nos livrar disso! Não sejamos estúpidos em deixar que crianças manipuladas pelo CRUEL nos liderem!– ele gritou para os civis, que haviam recuado um passo.

Thomas pensou na carta da Chanceler e se sentiu grato por, aparentemente, ninguém ter comentado a respeito dela com o restante dos Imunes.

 — Há uma trilha pela floresta para longe daqui. A estrada leva a outras comunidades. – Nelly disse ao homem, um pouco desconfortável por ser a única voz no momento.

 — Quem quiser ir com ele, não vamos impedir. – Gally avisou.

O Engravatado soltou uma risada, claramente forçada e previsível para alguns, e no mesmo momento em que fez que atiraria, Minho puxou seu gatilho. O susto fez com que o homem imitasse o gesto, logo antes de pender para trás, agonizando.

 — Letty? Letty! – alguém gritou em meio à multidão, logo atrás dos Clareanos.

Uma mulher tentava falar, mas sufocava com o próprio sangue. Caiu de joelhos, os olhos vidrados para o nada. Num segundo, Mallory estava ao seu lado e tentava estancar o sangramento do abdômen, mas sabia que já não havia o que fazer. Seu marido estava ajoelhado com o rosto banhado em lágrimas, a certa distância, e negando-se a chegar mais perto. Perenelle havia corrido na direção do Engravatado e, com os dedos sobre seu pescoço, constatava que Minho possuía uma ótima mira.

A garganta da mulher ferida emitiu um último ruído e seus lábios soltaram o ar.

 — Sinto muito. – Mallory disse ao homem.

Entre soluços e gemidos, ele se levantou, recebendo a atenção de todos, e caminhou cabisbaixo para dentro do hangar. Nenhum dos civis pensou muito antes de imitá-lo.

 

Todos estavam reunidos, em silêncio, em meio a Bergs e estantes, voltados para o Grupo A. Thomas tinha pensado em tirar a carta de Ava do bolso e comentá-la, mas sabia que apenas causaria transtorno. Era impossível que chegassem ao Transportal a tempo, se é que ainda estava aberto. Já havia conversado rapidamente com seu grupo sobre o que fazer, mas não tinham chegado numa boa conclusão ao se voltarem para os civis.

 — Lamento pela sua perda. – ele começou, vendo o marido de Letty sentado no chão logo à sua frente, e então encarou o restante. — Sei que ele não foi o único a perder alguém em consequência dos objetivos do CRUEL. Nós mesmos perdemos. E foi com essas pessoas em mente que resolvemos voltar por vocês e lhes dar uma nova chance. O CRUEL estava planejando usá-los para estudos científicos. O corpo de vocês, o cérebro de vocês. Têm estudado pessoas há anos, colhendo dados para desenvolver uma cura para o Fulgor. O que restou da organização, como Janson lá fora, agora quer usá-los também, mas vocês merecem mais que uma vida de ratos de laboratório. Vocês são, todos somos, o futuro, e o futuro não vai ser do jeito que o CRUEL quer. Por isso estamos aqui. Para tirá-los deste lugar.

Ele se calou, procurando as palavras certas, mas sabia que não precisava medi-las perante aquelas pessoas.

 — Não vamos decidir aqui e agora para onde devemos ir. Porque essa é a questão, ninguém aqui deve ir para lugar algum. Temos Bergs suficientes para que se dividam de acordo com seu destino.

Perenelle deu um ligeiro passo à frente para falar ao seu ouvido.

 — Na verdade, vamos precisar de mais transporte. – ela sussurrou, tendo separado mentalmente uma certa quantidade de pessoas e concluído que o espaço nos Bergs era, agora, minúsculo.

 — Certo. – ele disse e aumentou o tom de voz. — Vocês são livres agora. Qualquer dispositivo de rastreamento nas naves ou em vocês é inútil.

 — Iam fazer os implantes amanhã. – uma moça comentou.

Thomas assentiu com a cabeça.

 — Ótimo.

Foi a vez de Brenda dar um passo à frente.

 — As regiões entre os trópicos são as mais devastadas pelas chamas solares. Nos demais locais, há apenas oscilações extremas de clima. Poucos são os livres do vírus, como sabem, principalmente agora que justo o governo já está infectado. Mas acredito que haja espaço suficiente no mundo para que possamos coexistir com ele.

 — Ilhas são um bom refúgio. Não há como serem localizados nem encontrados com facilidade. – Perenelle comentou de modo que apenas seu grupo ouvisse.

 — O quê? – um civil disse, tentando ouvir.

 — Ilhas. – Brenda respondeu. — Elas podem ser uma boa opção.

 — Isso é... tão fácil assim? – outro indagou. — Digo, entramos nos Bergs e simplesmente traçamos um novo rumo?

 — Tudo indica que o CRUEL não tem mais interesse em nós. Ficar afastado é só uma precaução. – Teresa disse. “Meio arriscado chamar uma carta de “tudo”, Perenelle pensou.

Todos ficaram calados, trocando olhares temerosos, felizes, aliviados, pensativos. A maioria estava num torpor relativamente grande para conseguir entender que estavam livres. Mesmo Imunes, tiveram a vida ameaçada pelos Cranks, e agora eram resgatados com a promessa de que a segunda maior praga que os ameaçava não era mais um problema.

 — Fui piloto antes disso tudo começar. – um homem de aproximadamente quarenta anos disse, chamando atenção. — E tenho contatos numa área próxima daqui, atravessando o oceano. Até onde sei, estão a salvo.

Uma mulher mais velha, de mãos dadas com seus dois filhos, caminhou até ele e pediu ajuda com os olhos.

 — Posso dar uma carona a quem estiver interessado. – ele disse com um meio sorriso.

A movimentação e o falatório foram imediatos. Muito diziam conhecer lugares, mas não saberem pilotar; outros eram bons em geografia; outros tinham armamento escondido. Mesmo com o tumulto, Perenelle não conseguiu deixar de sorrir.

 — Certo! Certo! – Thomas elevou o tom, gesticulando para que se calassem. — Ok, pessoal, só pedimos para que deem prioridade às crianças quanto ao espaço nos Bergs. Podemos conseguir mais transporte, mas é vital que os pequenos estejam seguros lá em cima.

 — Tenho uma caminhonete escondida a alguns quilômetros daqui, não vou precisar dessa coisa. – disse um rapaz, ao redor do qual um grupo já havia sido formado.

 — Então? O que estamos esperando? – uma garota bem mais nova que ele perguntou com uma careta determinada, fazendo-o rir.

Assim, os Clareanos ajudaram a fazer com que a ordem entre eles fosse instaurada, ainda que estivessem dando conta muito bem sozinhos. Era um ótimo começo para eles ver a quantidade de sorrisos que os cercavam. Havia aqueles que choravam, uma prévia da dor que nunca seria amenizada, por mais longe que viajassem, e Perenelle se aproximava justamente desses. Naquele momento, mais que em qualquer outro, pensava em Newt. O estado em que ele se encontrava lhe causava tanta dor quanto causaria se o tivesse perdido de fato. Nunca esqueceria como se sentiu ao achar que ele havia partido.

Os grupos que usariam transporte terrestre se retiraram para o estacionamento ou seguiram estrada a fora, e passavam longe de ser a metade do todo. De acordo com os destinos em comum e as conversas que tiveram, o restante começou a embarcar nos Bergs. Entraram, ajeitaram-se, apertaram-se, tentando espremer o máximo que pudessem. No fim, viajariam como sardinhas enlatadas, mas sairiam dali.

Perenelle se retirou do tumulto para ir checar Andrômeda. Ela estava acordada, mas ainda na mesma posição em que fora deixada.

— Como se sente? – a Clareana perguntou.

 — Mal. Mas bem melhor do que se ainda estivesse lá dentro. – respondeu com a voz rouca.

 —Tem muita coisa para explicar, não se sinta tão segura. Acha que consegue se levantar?

Elas deram as mãos e Perenelle empregou toda a sua força para erguê-la com firmeza. Andrômeda ainda precisou se apoiar na parede, mas parecia melhor.

 — O que vocês vão fazer agora? – ela perguntou.

Nelly preferiu fingir que não ouvira. Esperaria até que todos estivessem reunidos para falar sobre isso. Não pretendia comentar sobre a cura com quem não fosse de confiança.

Mallory acabava de conversar com uma mulher sentada no chão, que havia sofrido de vertigem seguido de desmaio, e se ergueu ao ter certeza de que ela estava bem. Jorge, Brenda, os Clareanos e o Grupo B iam se reunindo aos poucos perto de onde Perenelle estava, a maioria esperando pelas palavras de Thomas. Mike conversava com um garoto, mas foi interrompido por um abraço de Mallory. A ternura e o carinho dela chamaram a atenção de todos. Ninguém ali tinha algo parecido há muito tempo.

A mulher entrelaçava seus dedos no cabelo do rapaz, deixando lágrimas rolarem por seu rosto e um sorriso enfeitá-lo. Há muito tempo não conhecia alegria tão grande. Qualquer um ali poderia sentir inveja do quão bem e fortes os braços dela se encaixavam ao redor dele.

Mike, ainda hesitante, pôs as mãos sobre as costas dela. De certa forma, conseguia sentir a emoção da mulher, mesmo que não tivesse as memórias que deveria.

 — Então... – ele se afastou e pigarreou, olhando-a nos olhos. — Você...

Mike se interrompeu, sem ter ideia de como completar a frase. Mallory soltou uma risada, acariciando o rosto dele.

 — Sou sua mãe. E Kenan... – disse quando o outro rapaz se aproximou. — é seu irmão.

 — É, eu percebi. Você tem meio...

 — A sua cara? – Kenan indagou, prestes a rir. — Meu, somos gêmeos. Não idênticos, mas está valendo. Temos meio que um papo para colocar em dia, eu acho.

A expressão de Mike era indescritível. Estava atordoado, mas não conseguiu deixar de rir com a fala.

 — Foi por isso... Por isso fizemos tanta questão de te seguir. – Mallory explicou, um braço por cima dos ombros de Mike, os olhos cintilando e um sorriso imenso para Perenelle. — Sabia que nos levaria até ele.

A Clareana sorriu de volta e encarou o amigo. Aquilo tinha conseguido animá-la um pouco.

Ela viu Thomas passando logo ao lado deles, observando-os trocar breves palavras, e se retesou. Podia sentir o abalo do rapaz, ainda que ela mesma se lembrasse da própria mãe. Estava mortificada pensando que Newt, Minho, Mike e Thomas eram os únicos sem memórias da vida passada. Havia sido escolha deles, mas apenas pelo medo de serem enganados pelo CRUEL, como sempre foram.

Thomas ficou de frente para os colegas de Experimento, no centro da meia lua que formavam. Teresa, Brenda e Jorge estavam logo ao seu lado, mas virados para ele. Perenelle preferira ficar perto de Andrômeda, atrás do Clareano.

Ele balançou os braços ao lado do corpo, procurando o que dizer. Era mais fácil fazer isso na frente de estranhos.

 — Estamos livres agora. – Sonya disse, descarregando parte do peso que sentia. Ela, como a maioria, precisava dizer em voz alta para acreditar.

 — Estamos. – Thomas afirmou.

 — Também vamos para um lugar seguro, certo?

Sua dúvida era compreensível, pois não restara Berg algum no hangar. Thomas olhou para Perenelle, que olhou para o chão como se não soubesse o que se passava pela cabeça dele. Mas ela sabia. Ele queria falar sobre a cura, mas reconhecia que não era a hora, e ela deixava isso claro.

 — Se Brenda e Jorge tiverem uma boa recomendação. – Thomas ironizou, apontando para os amigos.

Jorge se voltou para Perenelle, e ela lançou-lhe um olhar confiante. Ele tinha a consciência de que o lugar precisaria ser propício para a cura.

 — Acho que temos, sim. – Jorge respondeu. — Mas acho difícil ter sobrado alguma van naquele estacionamento.

 — Trouxemos um Berg, está na floresta. – Gally disse.

Muitos deles trocaram olhares antes de começarem a sair. Uma integrante do Grupo B chorava nos braços de uma amiga. A mulher que passara mal estava com um bebê e não quisera ir com nenhum dos grupos. O mesmo ocorrera com uma menina de treze anos, solitária. O pedido delas de irem com eles não foi negado.

Thomas fez que se aproximaria de Nelly para falar alguma coisa, mas ela passou direto, fingindo precisar dar apoio à Andrômeda. Só conseguia pensar em Newt, no que aconteceria depois que o vissem lá, a quantidade de perguntas, as respostas que precisaria proferir. O olhar que Gally a lançou ao passar por ela foi o que lhe deu mais segurança, pois sentiu que não estaria sozinha.

Eles cruzaram a floresta em silêncio, no meio da noite. Nem seus passos faziam barulho direito sobre a neve. Nelly parou à frente do grupo ao alcançarem o Berg, sentindo seus olhos lacrimejarem contemplando-o. Gally acionou a porta de carga e eles começaram a entrar.

A garota seguiu imediatamente para o quarto onde Newt estava, checando os pacotes de congelados. Haviam o enrolado em mantas e baixado a temperatura da nave para que sua cabeça continuasse resfriada, mas, com os outros no Berg, precisariam encontrar alternativas, se não a máquina adequada de uma vez. Nelly acariciou o rosto dele, com o peito doendo ao ver seus lábios roxos.

 — Eu vou conseguir. Todos nós, Newt. Eu prometo. – ela murmurou, apertando sua mão.

Passos pesados soaram em direção ao quarto. Nelly se deu mais alguns segundos antes de se virar e ver Minho, acompanhado de Thomas e Brenda.

 — O que está acontecendo? – Minho indagou, aproximando-se mais até parar ao lado de Newt.

Perenelle olhou para o antigo Segundo em Comando, lembrando-se de como ele ficara por cima de Thomas, implorando, e então estivera à beira da morte na rodovia, dependendo de um milagre. Queria sentir raiva de Thomas, mas conhecia Newt o suficiente para não conseguir culpar ninguém. Ainda assim, lembrar a cena a perturbava.

Ela respirou fundo entre soluços. Sabia que não lhe cabia a tarefa de contar o que acontecera. Levantou-se da cama e passou pelos três em retirada do local, pregando o olhar no chão. Todos os outros estavam reunidos nos compartimentos principais, dividindo a comida do melhor modo que era possível, conversando. Mike, Mallory e Kenan estavam sentados no chão juntos, tentando equilibrar a quantidade de informações que precisavam ser ditas.

 — E o que é isso? – Mike perguntou com seriedade, apontando para o pulso descoberto da mulher.

Ela dirigiu os olhos tristes para a área, erguendo sua manga e revelando as veias saltadas, roxas, negras, vermelhas. Eram pavorosas. Imediatamente, Mike se lembrou dos Cranks que vira e, acima de tudo, da Transformação. As marcas que suas próprias unhas fizeram durante o processo tinham deixado cicatrizes. Paralisava-o imaginar a mãe que acabava de conhecer outra vez passar por aquilo.

 — Você não... – ele começou, balançando a cabeça, mas não precisava encerrar a frase.

 — Não vamos pensar nisso agora. – os lábios de Mallory se repuxaram num sorriso forçado, enquanto suas mãos acariciavam o rosto do garoto. — Ter encontrado você já foi minha salvação. Vão poder cuidar um do outro e nada me deixa mais satisfeita.

Kenan fechou os olhos e baixou a cabeça. Tinha passado muita coisa com a mãe no decorrer dos anos e sabia o quanto suas palavras eram verdadeiras. Ela havia perdido as esperanças de encontrar o gêmeo um dia, e por isso passara muito tempo tentando não ceder à pequena parte de si que acreditava num reencontro.

Os olhos de Mike se perderam na tentativa de entender o que sentia.

 

Nelly foi para a cabine de Jorge assim que o Berg foi abastecido, para avisar que precisavam fazer uma parada em Denver, assim ela poderia pegar as coisas deixadas no laboratório. Ele assentiu e ela o deixou trabalhar para que alçassem voo. Com o motor rosnando, a nave deu um tranco e começou a se erguer. A Clareana passou pelo corredor de entrada e viu Teresa sentada sozinha ali, admirando a neve pela porta de carga aberta com toda a postura abatida. Seus ombros estavam caídos e, pelas lâmpadas internas, era possível ver seus olhos brilhando com lágrimas. Teresa havia notado muito bem a interação de Thomas com Brenda, como se abraçavam e como se olhavam, e se sentia mais vazia a cada vez que pensava no quanto o tinha magoado. As lembranças da vida antes do Labirinto deixavam tudo ainda pior. Cresceram juntos, pensaram juntos, foram os confidentes um do outro por anos e anos... As razões dela eram todas sobre protegê-lo e ela via agora que isso nunca seria suficiente para que justificasse seus atos.

Perenelle não pensou muito sobre deixa-la sozinha. Não sentia nada da empatia que sentira pelos civis que se lamentaram no hangar. Teresa estava tão errada para ela quanto para Thomas. Toda a traição e as mentiras deixavam-na suja como Herman, e Perenelle torcia para que o irmão estivesse morto àquela altura.

A porta de carga começou a se fechar e a Socorrista se virou de uma vez para sair dali, quando gritos vindos do lado de fora a fizeram voltar. Teresa tinha se levantado e tentava ver melhor o que era. Um casal vinha correndo na direção deles, gravemente feridos, amparando um ao outro e gritando para que os esperassem. Eram sobreviventes do desmoronamento.

 — Jorge! Pare a decolagem! – Perenelle gritou, e então percebeu que a porta da cabine estava fechada. Estava prestes a ir até lá, quando ouviu um grito de Teresa e a xingou mentalmente por estar debruçada sobre a beirada da porta, que continuava a se fechar. Nelly entrou na cabine e viu Jorge mexendo freneticamente em tudo.

 — Estou tentando! – ele gritou.

Perenelle se precipitou na direção de Teresa ao perceber que ia ficando alto demais para que o casal alcançasse a borda. Ela segurou as mãos do homem e começou a berrar pela ajuda dos Clareanos. Sentia seu corpo começar a ser arrastado porta a fora. O teto estava a meio metro de suas cabeças e os pés do homem já não tocavam a neve. Teresa gritou também, até que a voz de Gally foi ouvida e a porta parou de se fechar. O coração de Nelly deu um salto quando, em vez disso, a seu apoio desceu de uma vez só. O peso do homem a puxou para fora, os quatro gritaram, mais da metade do abdômen de Teresa estava fora da nave, quando os Clareanos apareceram e as agarraram. A porta então subiu um pouco, desceu, subiu, como se apresentasse defeito. Jorge tomou o controle e várias mãos se esticaram por trás das meninas para puxar o casal.

Eles se largaram no chão, cobrindo os ferimentos, e o Berg enfim deixou a floresta.

 — Que maluquice foi essa? – Brenda indagou, descrente.

 — Pergunte ao Jorge, ele deve ter tido um maldito derrame lá dentro. – Nelly replicou.

Brenda se retirou justamente para ir até a cabine, e os outros ajudaram o casal a se levantar e entrar. Nelly começou a se perguntar se não havia mais deles sendo deixados para trás. Ela se deu um minuto para recuperar o raciocínio antes de pensar nisso, e percebeu que estava sozinha com Teresa no corredor. Thomas acabava de voltar para o quarto sem dizer nada.

Teresa respirava com dificuldade. Colocou a mão sobre a testa, fechando os olhos, chorando. Estava tão cansada de passar por situações assim.

 — Você acha... que ele um dia vai me perdoar? – ela indagou, para a surpresa de Nelly. As duas se encararam, pela primeira vez em muitíssimo tempo, e as lágrimas da antiga parceira do CRUEL continuavam a descer.

A Socorrista não estava preparada para aquele tipo de situação, então tentou fingir que estava falando com uma desconhecida. Vendo que a porta de carga ainda estava meio aberta, chegou um pouco mais para o lado.

 — Talvez. Mesmo que você mova montanhas para provar confiança, vai precisar dar um tempo a ele. É uma boa hora para não ser egoísta.

 — Fiz tudo aquilo pensando na segurança dele.

 — Thomas não está preocupado só com ele, trolha. Ele te defendeu quando soube que você me assistiu ser espancada, mas vai saber o que pensa disso agora, com todo o resto que houve.

Os olhos de Teresa secaram, encarando a outra com a determinação à flor da pele para não mostrar fraqueza sobre seus ideais.

 — Ainda acha que tive escolha, não é? – Teresa perguntou com o tom azedo.

 — Olhe para mim anos atrás. Eu fiz minha escolha.

Perenelle se levantou após dizer isso e começou a caminhar para dentro do Berg. Teresa se ergueu também, cerrando os punhos ao lado do corpo. Ela se importava com Thomas, e com ninguém mais. Não lhe interessava a opinião de alguém como Perenelle.

 — Queriam tirar você do Experimento porque sabiam que não era capaz de fazer algo realmente bom no mundo. Todos os dados apontavam que o máximo que poderia fazer era ajudar quem fizesse algum bem a você.

Perenelle continuou andando, reconhecendo que tinha mais com o que se preocupar. “Thomas havia atirado em Newt para seguir com o plano do Braço Direito”, ela pensava; “talvez ele e Teresa realmente merecessem um ao outro”.

A porta de carga rangeu num lamento triste. O chão oscilou sob os pés de Teresa; Perenelle sentiu como se estivesse sendo puxada pelo ar do lado de fora. Num barulho mais alto, a porta se abriu completamente. Perenelle se virou a tempo de ver o corpo de Teresa ser sugado pelo vento. Quando se deu conta, dava impulso para se lançar sobre a beira da porta e tentar agarra-la. Ter a blusa arranhada foi o suficiente para que Teresa conseguisse erguer o braço e segurar o de Perenelle, com tanto desespero que suas unhas lhe fizeram um corte. Nelly segurou numa alça lateral da nave, consciente de que dependia disso para não cair nos borrões que passavam por baixo delas. Ao encarar Teresa, conseguiu captar cada centímetro de terror da expressão dela; cada centímetro de humanidade que ela possuía. Conviver com Teresa não seria uma tarefa nada fácil, principalmente depois que iniciassem a produção da cura. Confiar seria o maior desafio de Perenelle dali para frente. Ninguém estava por perto ali, ninguém as ouvira, e lembrou-se de quando se encontrara na mesma situação com Herman, no Labirinto. Desejara a morte dele mais que qualquer coisa e poderia tê-lo matado e posto a culpa nos Verdugos. Ainda que muito fácil, ela apenas não o fizera porque jamais teria se perdoado se traísse a confiança dos Clareanos daquela maneira.

Num ato muito simples, Nelly se viu afrouxando os dedos doloridos, guardando o semblante apavorado de Teresa, sentindo o corpo dela ficar muito leve enquanto caía em direção a um rio. Era um alívio pensar no quanto seriam poupados de estresse. Thomas havia atirado em Newt, afinal. E tinha Brenda para consolá-lo. Por que mereceria piedade sobre mais uma morte?

“Ele salvou minha vida”. Com esse pensamento, ela largou a imaginação e puxou Teresa de volta para o Berg, ignorando a dor, o esforço, o quanto lhe custava e o quanto era impossível conseguir. Apenas fez. Sentiu suas unhas machucarem a pele da garota por cima da blusa, mas preferia quitar sua extensa dívida com Thomas de uma vez, se ainda não o tinha feito. Se Perenelle não soubesse o quanto ele se importava com Teresa, estaria naquele momento voltando sozinha para a cabine do piloto e simplesmente avisando a Jorge que o defeito na porta de carga era grave.

Nelly soltou a alça e apoiou os pés nos vincos do chão quando o busto de Teresa alcançou a beirada para conseguir puxá-la melhor, segurando seu braço com as duas mãos. Teresa imitou o gesto, cercando o cotovelo da garota, e Perenelle deu um puxão para que ela entrasse de uma vez. Teresa caiu mais no fundo e Perenelle se largou no chão, fechando os olhos, cobrindo o rosto, imaginando em quantos pedaços o corpo de Herman estaria se tivesse sido ele.


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