Socorristas escrita por BlueBlack


Capítulo 41
Perto das cinzas


Notas iniciais do capítulo

Créditos à graça iluminada de DoctorSecrets (no Social Spirit) pela ajuda com o título e uma melhorada no cap. Love you ♥


Boa Leitura!



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Não pude dirigir por tanto tempo quanto gostaria, mas a gasolina durou o suficiente para eu conseguir chegar a uma pequena cidade e pegar outro carro. Eu não tinha certeza se este estava mesmo abandonado na garagem pelos moradores, ainda que o péssimo estado da casa deixasse claro que haviam passado por maus bocados, mas a verdade era que não me importava tanto. Odiava pensar em prejudicar alguém, como o CRUEL fez por tanto tempo, e odiava ainda mais depender de uma desconhecida como Andrômeda para saber como os Clareanos estavam. Eu estava tão bem disposta a resolver as coisas logo, encontrar com eles e poder conversar decentemente, que roubar um carro parecia ser o de menos. Seria, afinal, dependendo do rumo que as coisas tomassem.

 Segui para a cidade de Denver, como Andrômeda havia me dito que eles estavam lá, e abortei o uso do carro ao perceber a atenção que ele chamava no meio das pessoas. Além disso, com ele seria mais fácil para um Berg me localizar a qualquer deslize que eu cometesse.

 Imensa foi a minha surpresa ao me deparar com o enorme muro na entrada da cidade. Não tive a menor ideia do porquê daquilo, pois nenhum outro lugar teve tal proteção, mas logo soube o tamanho do meu problema ao ver guardas revistando um grande grupo de civis do lado de fora. Aproximei-me o suficiente para ouvir e não ser vista.

  — Já disse, é trabalho de campo. Não precisaríamos vir aqui se um de nós estivesse infectado. – um homem usando óculos disse, mais a frente dos civis que eram revistados.

 Não pensei duas vezes antes de me meter no meio daquelas pessoas como se fosse uma delas, tentando imitar o jeito intimidado dos mais jovens. Um instrumento de tamanho médio, provavelmente um detector de metais, escaneou-me de cima a baixo e emitiu um clique seguido de uma luz verde, e então passou para o próximo. Meu coração batia bem alto, mas pelo menos não estava suando.

 Todos nós ultrapassamos uma porta no muro e estacamos perante um painel na parede seguinte, que descobri verificar nossa imunidade através de um braço mecânico, por cima do qual nos inclinávamos e um fio de metal nos espetava no pescoço. A seguir, entramos num corredor que detectava alguma coisa que talvez aquele instrumento não conseguia. Por fim, estávamos na cidade.

 O grupo explodiu em comentários e eu me afastei deles antes que fosse notada. A recuperação das memórias viera na hora certa, pois assim eu tinha conhecimento da existência de algumas poucas unidades do Braço Direito em Denver. Já estava mais que na hora de nos unirmos contra o CRUEL e eu mal podia esperar para ver rostos antigos e conhecidos. Alguns membros quase chegavam a me fazer falta agora. Minha família e eu passamos anos acompanhando o mesmo grupo de pessoas do Braço Direito, depois que deixamos de ser nômades, então, em outras circunstâncias, eu poderia dizer que possuía mais laços fraternais no destruído mundo atual do que parecia. Encantava-me a probabilidade de um reencontro.

 A chama de esperança começou a ficar menor, no entanto, quando chequei o primeiro bunker e não encontrei nada além de vestígios de que alguém um dia estivera ali. E se todos eles tivessem se separado e se espalhado? Eu lembrava o quão turbulento havia sido quando o fato de Herman e eu sermos caçados pelo CRUEL começou a afetá-los… A maioria temia que o simples fato de existirmos fosse um perigo para eles, o que acarretou na decisão do nosso líder de expulsar umas cinco pessoas para outra unidade.

 Entrei no terceiro apartamento que eu conhecia... Estava vazio também. Faltavam apenas mais duas unidades, depois eu precisaria procurar os Clareanos sozinha.

 Estava prestes a sair do apartamento, quando um som alto vindo do céu me chamou atenção e me obrigou a me aproximar da janela. Esquivei-me para detrás de uma estante ao reconhecer um dos Bergs do CRUEL bem acima do prédio. Ele voou até o topo da construção da frente e uma porta de carga se abriu, despejando vários guardas bem armados. Não demoraria muito até que entrassem no prédio em que eu estava.

 Desci para o primeiro andar, ficando o mais longe possível das janelas, depois usei a porta dos fundos para sair. Me vi numa rua deserta, ainda muito perto do Berg, então andei por vários minutos até estar a uma distância segura. Não estava nos meus planos sair da cidade antes de ao menos conseguir alguma informação sobre o pouso do outro Berg que ocorreu há algumas horas. Andrômeda supunha que os Clareanos que fugiram do complexo haviam ido para Denver para conseguirem tirar o dispositivo que os controlava. Eu não sabia como poderiam tirar aquela coisa, pois ela não fez questão de me dar tantos detalhes, mas, independente da ajuda que ela me dera, estava me coçando para me livrar do implante que fizera em mim também. Talvez até o próprio Braço Direito soubesse como fazer isso.

 Continuei a caminhada sempre pelos fundos das casas e das lojas, entrando e me escondendo ao ver um guarda pelas ruas. Decidi aproveitar o fato de já ser uma criminosa e conseguir alguma comida pelo caminho. Era estranho ver tanta coisa funcionando como se o mundo fosse um lugar normal, mas não reclamei ao perceber que o dono de uma das lojas de conveniência estava sob o efeito da Benção e dificilmente mexeria comigo.

 Comecei a encher os bolsos do casaco roubado, tentando evitar o olhar de um homem grande, o único cliente além de mim ali. Ele mal fazia questão de fingir que não estava me observando. Virada para uma prateleira, pude ver pelo menos cinco guardas do CRUEL armados, esgueirando-se pelas esquinas em direção à loja. Enfiando um pote de batatas fritas no bolso interno, agarrei o cabo de uma faca enferrujada que conseguira na rua e apurei meus ouvidos para os passos do homem. Virei-me como se quisesse algo do caixa e percebi que ele não estava mais ali. Tive medo de dar algum passo, mas percebi que o dono me encarava, um senhor de idade, com a expressão vaga.

  — Não tinha o que eu precisava. – falei com a voz fraca e um falso semblante pesaroso.

  — E quem hoje tem? – ele respondeu, a voz nada além de um som seco, fazendo uma sensação áspera se apoderar das minhas mãos.

 Eu logo fui em direção à saída, mas senti que havia uma emboscada muito bem pronta para mim lá fora. Então eu vi uma porta vai-e-vem no fim de um corredor curto de despensas. Enfim tirando a faca do bolso, caminhei até lá e vi que era uma cozinha. Ao lado, havia escadas para um segundo andar. Ideias começaram a fervilhar na minha cabeça, fazendo com que eu odiasse cada vez mais minha criatividade.

 Ouvi a porta da loja se abrir bruscamente, então tratei de passar para a cozinha logo. Respirei fundo e me dirigi para perto dos fogões, abrindo todas as saídas de gás possíveis. A cada segundo que passava eu me sentia um ser humano pior, mas não tinha tempo para pensar nisso. Revirei todo o local atrás de qualquer coisa que produzisse fogo, abrindo gavetas e revirando móveis, mas, aparentemente, a loja não vendia ou produzia de verdade há muito tempo.

 Abri um dos armários perto do chão e precisei olhar duas vezes para ter certeza de que não estava imaginando coisas. Havia ali uma fotografia antiga do dono da loja com uma mulher e dois meninos, mas foi o som do relógio digital ao lado fazendo contagem regressiva que fez meu coração disparar. Tremendo, peguei a banana de dinamites deixada ali e virei para olhar o visor. Faltavam doze segundos para que todo aquele lugar fosse para os ares.

 Larguei aquilo de qualquer jeito e agarrei o extintor de incêndio da parede, e desferi golpes no cadeado da porta dos fundos. Estava tão desesperada que foi preciso apenas dois para que a porta se abrisse.

  — Ei! – ouvi um guarda berrar atrás de mim, mas era como se o contador soasse muito mais alto.

 Disparei para fora sem prestar atenção em nada além de correr o mais rápido que eu conseguisse. Mas nunca fui a melhor nisso.

 A cozinha explodiu em cor e destruição e eu fui arremessada pelo que pareceram três segundos através do ar, até sentir minha cara ser amassada contra o que devia ser uma parede.

Devo ter ficado inconsciente por alguns segundos, porque, quando me dei conta, eu estava deitada numa alameda suja, com as piores dores espalhadas pelo meu corpo, vendo a fumaça negra da loja alcançar o céu. Fiz de tudo para me levantar rápido, mas minhas costas ardiam como o inferno. Eu tinha corrido muito menos rápido do que parecera.

 Assim que me levantei, vi pessoas se aproximando para dar uma olhada no estrago da loja e guardas feridos no chão, e não quis perder mais tempo. Me virei e me afundei na rua o máximo que pude, torcendo para que não houvesse guarda nenhum atrás de mim. Apesar do sol quente e do horário, a escuridão parecia abater tudo e dar um ar frio à cidade. Ou talvez fosse só a sensação de que tudo estava uma mértila.

 Parei debaixo de uma cobertura, sentindo que o sol queimava ainda mais as minhas costas. Meu nariz doía, assim como meu peito. Olhei para o fim da alameda a alguns metros e involuntariamente li a placa com o nome da próxima rua: “Kenwood”. Repeti o nome na minha mente e li a placa mais próxima, que dizia “Brookshire”, e fiquei certa de que conhecia aquela alameda. Olhei para o chão e para a parede em que me apoiava; eram tijolos cinzentos de um prédio nada convidativo. Eu me afastei para conseguir ver o restante dele e ter certeza de que era o mesmo prédio que o Braço Direito usara uma vez. Era, de fato. Mas não significava tanta coisa. Soltei um suspiro e fiz uma careta de dor antes de entrar pela pesada porta escura, e gemi baixinho ao ver escadas a serem subidas.

 À medida que eu subia, tentava me lembrar de qual apartamento usamos antigamente. Tinha sido há muito tempo, antes mesmo do meu primeiro contato direto com o CRUEL, mas o apartamento me lembrava o número dois. Tentei convencer a mim mesma de que não era no segundo andar, para não precisar ir até lá, mas o tudo começava a ficar familiar. Obriguei-me a continuar a subir os degraus, prendendo gemidos e urros na garganta e arranhando a fraca madeira do corrimão. Eu sabia que ficar com raiva me ajudaria a fazer o que fosse necessário, mas sabia também que ia querer socar a cara de qualquer um que aparecesse na minha frente, e não seria um bom jeito de reencontrar o Braço Direito. Eles eram parte da minha família, mas sabiam ser barra pesada.

 Assim que cheguei ao segundo andar, ergui a cabeça e vi uma porta tão desbotada que mal se via a antiga pintura verde. Ela estava rachada e torta, a última coisa que se esperaria de um esconderijo de algo como o Braço Direito. Olhei para as outras portas, mas eu tinha certeza de que era aquela. Como nas outras vezes, eu primeiro dei um toque na porta, seguido de dois, uma pausa, e dois de novo. Era a antiga senha que usávamos para conseguir entrar. Permaneci encarando a porta por alguns segundos, mas a raiva começou a vir, e a paciência a ir embora. Dei um passo para agarrar a maçaneta, mas ouvi o chão do outro lado ser pisado e as sombras de pernas apareceram na soleira. Meu coração quase parou. A porta foi aberta e eu não soube o que fazer ou sentir ao ver Gally. As primeiras coisas que me vieram à mente foi o momento em que ele foi levado pelos Verdugos, traumatizado o suficiente para não dizer coisa com coisa; ter permanecido no CRUEL e me ajudado; e tudo de ruim que me passou pela cabeça a partir de então. Tudo que senti foram correntes pesadas soltando meu coração e me empurrando até ele para abraça-lo. Eu o puxei pelo pescoço, ignorando completamente a dor quando os braços dele cercaram minhas costas e tocaram minha pele através dos furos da camisa. Minhas pernas começaram a tremer e tive vontade de chorar, então comecei a repetir mentalmente que, no mínimo, era menos uma pessoa com que me preocupar. Quis ficar ali para o resto da minha vida, pois eu podia sentir que ele estava tão aliviado quanto eu.

 Perdi a noção de quanto tempo estávamos assim e resolvi que era hora de me afastar quando a fraqueza começou a pesar meu corpo.

  — Você... – eu apertei seus ombros e o encarei, quase sem fôlego, correndo os olhos por seu corpo para ter certeza de que não estava louca. — Meu Deus...

  — Parece ter sido uma viagem difícil. – ele comentou, analisando a mim também, um sorriso forçado na careta séria.

 Eu o afastei para o lado e pus uma das mãos na testa, acabando de entrar no local, agora com minha cabeça latejando. Estava exausta.

  — Você não vai parar de ressurgir assim? – indaguei ao me virar de volta, olhando ao redor à procura de mais pessoas. O apartamento estava silencioso, a não ser por nós.

  — É... Não acha melhor sentar?

 Eu me larguei num sofá rasgado, sentindo a pele machucada das minhas costas se repuxar e arder. Fiz uma careta e enterrei o rosto nas mãos, colocando os pensamentos em ordem, tentando afastar as lembranças tão antigas e ainda recentes sobre ele.

  — O que está fazendo aqui? – perguntei por fim, erguendo o olhar.

  — Fui trazido para cá há quase um mês. Um grupo chamado Braço Direito me tirou do CRUEL e me deixou aqui.

 Gally beirava a tristeza, mas sua expressão não demonstrava quase sentimento algum. Seu rosto estava cheio de cicatrizes, o olho um pouco inchado e o nariz tão torto que certamente o impedia de respirar direito. Não era como se eu estivesse como uma modelo de grande sucesso, por isso apenas fiquei satisfeita por ele estar vivo.

  — Conheceu eles? – indaguei.

  — Conheci.

 Ele ficou em silêncio, moveu o maxilar e cerrou os dentes, desviando o olhar para o outro lado.

  — O que aconteceu? – eu disse sem desprender os olhos dele. — Com você, desde que eu fugi sozinha daquele lugar. Você está bem? Fizeram alguma coisa com você?

  — Uma pilha de plongs. Nada que seja agradável de se ouvir.

  — Quando alguma coisa relacionada ao CRUEL foi agradável?

 Gally me fitou outra vez, claramente pensando sobre contar ou não, e não sei de onde tirei paciência para aguardar seus longos três minutos de reflexão. Até que seu olhar se tornou ainda mais sombrio e abatido, o que me fez lembrar que, talvez, falar daquilo era tão ruim quanto falar de uma noite no Labirinto.

  — Fiquei na enfermaria deles por umas duas semanas, Thomas conseguiu ferrar direitinho meu maxilar depois que matei Chuck. – ele se remexeu sobre os pés, encarando o chão. Alguma coisa me dizia que nada assombraria Gally mais do que ter feito aquilo. — Me mantiveram trancado num quarto sob a vigia de seguranças, mas não lembro de muita coisa durante esses dias. – no fundo, eu sabia que estava mentindo. — Foi uma mértila, meu cérebro parecia ter sido mastigado pelos Verdugos. Um dia, um dos espiões do Braço Direito infiltrado lá me explicou que o CRUEL me mandaria embora se me fingisse de louco. Faria qualquer coisa para dar o fora dali, então comecei a inventar. Enquanto estava sendo escoltado para fora, o carro foi atacado e me trouxeram para cá. Eles costumam vir aqui para reuniões, mas, na maioria dos dias, o lugar é só meu, assim posso ficar de olho na Rede e informa-los caso alguma coisa aconteça.

  — Então, você... não teve nenhum contato com os meninos?

  — Nenhum... Até essa manhã. – respondeu com um menear de cabeça.

 Eu me empertiguei imediatamente, sentindo minhas costas reclamarem outra vez.

  — Como assim?

  — Hackeamos o sistema do aeroporto para saber do paradeiro de algum Berg fugitivo depois que uma mensagem anônima chegou até nós pela Rede.

  — Anônima? – Andrômeda logo me veio à mente.

  — Acreditamos que tenha sido o quartel-general para recrutar caçadores de recompensa. Imunes são a moeda da atualidade. Depois disso, mandei uma mensagem e me encontrei com Thomas e Minho.

  — Eles estão bem? – arregalei os olhos, tão feliz que de repente parecia que meus problemas estavam resolvidos.

  — Com as mesmas caras de mértila de sempre, mas bem.

  — E Mike? Newt? Sabe deles? Eles estavam com eles?

 Gally me mediu com o olhar e meneou a cabeça.

  — Mike estava. Olha, não quero bancar o terrorista... Mas também conversei com um grupo que fugiu antes do Thomas. A maioria era do Grupo B, mas Caçarola estava com eles. Apenas Newt não.  

 Eu encarei o chão e balancei a cabeça em conformação, apertando os lábios para me impedir de chorar.

  — Bom, se alguma coisa tivesse acontecido, eles teriam te contado, certo? Preciso de um banho, estou com uns machucados sérios.  

 Desejei silenciosamente que Newt não fosse mais comentado e segui para o banheiro do apartamento. Mais que viver um dia de cada vez, agora eu precisava resolver cada problema no seu tempo, pois as coisas, aparentemente, eram bem mais complicadas do que eu achava.

 Me fechei no banheiro, tirei minhas roupas e me meti debaixo da água do chuveiro, deixando algumas lágrimas indolentes descerem pelo meu rosto. Não me surpreendeu que a água fosse fria e não houvesse nada além de uma barra de sabão com cheiro forte para me lavar. Respirei fundo para aproveitar a sensação do meu cabelo limpo e não pensar no que precisaria fazer depois. Eu mal sabia o próximo passo. Havia muita coisa para conversar com Gally.

 Eu me sequei e abri o armário com mudas de roupa. Novamente, precisei me contentar com as roupas masculinas, mas dei uma olhada nas minhas costas antes de vestir a blusa. Eu sentira a pior dor possível ao lavá-las, mas agora sim estava claro o quão ruim eram os ferimentos. Eu quase não reconhecia pele em meio às bolhas e a coloração avermelhada. Para o meu assombro, uma parte do meu ombro estava escura. Se eu prestasse muita atenção na dor, começava a sentir cheiro de vômito. Não havia a menor possibilidade de eu lutar contra o CRUEL naquele estado pelas próximas três semanas. Suspirei e olhei para a porta através do reflexo do espelho, depois vesti a calça disponível e me cobri com a toalha sem que tocasse minhas costas. Assim que abri a porta e Gally me viu, ele abriu a boca para perguntar com um semblante meio desconcertado.

  — Preciso que me ajude com uma coisa. – falei e o fitei por alguns segundos, antes de me virar e mostrar.

 

— Você ia explodir o lugar com o cara lá dentro?

  — Obrigada pelo reconforto, Gally, mas ele já ia se matar. E teria feito o mesmo comigo sem um pingo de dó.

  — Era um plano meio idiota seu.

 Eu estava sentada no sofá, de costas para ele, permitindo que pudesse fazer um curativo improvisado nas partes afetadas das minhas costas que não possuíam bolhas.

  — Ai!

  — Foi mal. – ele disse e parou de enrolar o pano por um momento.

  — Tudo bem, só não estoure as bolhas. Tem alguma fita aqui para prender?

  — Eu vou pegar. Então, o que aconteceu desde que saíram do Labirinto?

  — Você primeiro. Pulou logo para a parte em que eu fugi. Por que ficou daquele jeito quando disse para vir comigo?

 Gally ficou num silêncio sombrio durante alguns segundos.

  — Eu matei Chuck.

  — Gally, você foi forçado. Não tem por que se culpar.

  — Eu poderia ter impedido se fosse menos cara de pau. Mas achei que fosse matar Thomas, não Chuck.

 Ergui minhas sobrancelhas em surpresa e meneei a cabeça.

  — Você tem um jeito estranho de se sentir melhor. – comentei.

  — Quer gostemos ou não, ele é culpado. Criou o Labirinto, ajudou eles. Podia ter impedido que entrássemos naquele lugar, ele tinha influência. Desde o começo eu estava certo, ele era um mau sinal...

 Senti uma pontada dolorosa perto do ombro, mas apenas fiz uma careta.

  — Como sabe disso? – perguntei por cima do ombro. — Que ele tinha influência no CRUEL. Thomas foi mandado para lá como todos nós...

 Gally não seria tão específico sobre a participação de Thomas no Labirinto, a menos que tivesse lembranças disso. E ele jamais havia comentado algo assim enquanto estava na Clareira.

 Ele ficou quieto e senti ser a minha deixa para falar. Contei sobre minha fuga do complexo, meu curto tempo sozinha no quarto do CRUEL, minhas alucinações, o Homem-Rato (que Gally disse conhecer), a travessia pelo Deserto e a estada no Berg.

  —... Até aí, Newt achava que não era Imune, e nós conversamos sobre isso. Naquela noite, os Criadores manipularam meu ferimento na perna para que eu saísse da sala, e então me atacaram. Eles sabiam que já estávamos muito desconfiados e que saberíamos se algum deles tentasse nos levar. Eu apaguei e acordei deitada numa maca com uma máscara estranha na minha frente.

 Os movimentos de Gally se tornaram mais lentos e eu tive certeza que ele sabia que máscara era.

  — Recebi minhas memórias de volta depois disso. – finalizei.

 Esperei que fizesse algum comentário, mas ele continuou quieto.

  — Você também, não é?

  — Depois de alguns dias na enfermaria, depois que você fugiu, Jorge e Brenda restituíram as minhas também.  

  — Então conhece eles. - concluí.

  — Estavam com Thomas e Minho quando vieram aqui.

 O tom dele estava muito mais apático e certamente o meu também. De repente, agora era estranho conversar com Gally. E eu estava, ainda que de costas, sem nenhuma roupa de cima ali. Pelo menos era bom saber que Jorge e Brenda não eram mais tão suspeitos.

  — Quem diria o que uma perda de memória pode fazer, não é? – seu sarcasmo era palpável, mas eu não me lembrava de tê-lo sentido tão nervoso.

  — Você já tinha passado pela Transformação quando subi pela Caixa, tinha todo o direito de ficar desconfiado de mim.

  — Por bastante tempo, eu fingi que tinha mesmo. Tive um mau pressentimento logo que você chegou e achei que toda a mértila que houve com o Thomas se repetiria. À medida que o tempo passava, as lembranças que tive na Transformação voltavam, e aí eu comecei a mudar.

  — Depois de um tempo, só lembramos do sentimento das lembranças. – eu adverti, dizendo o mesmo que ele havia me dito na Clareira, querendo entender o que, exatamente, ele dizia agora.

  — Para você ver que foi uma coisa bem significativa. Primeiro achei que não fosse nada demais, sabe, porque você era a única garota. Depois comecei a ter uns vislumbres e... sei lá, as coisas se encaixaram. Já tinha mais do que certeza de tudo quando Herman atacou você no Conclave.

 Por impulso, quase perguntei a quê ele estava se referindo, mas me contive para não ser irritante. Óbvio que ele falava dos sentimentos que teve por mim antes de tudo.

  — Parece que se lembrou de ainda mais que eu. – comentei, displicente. — A mísera pista que tive durante aquele tempo todo era a cor da sua voz.

 Ficamos em silêncio outra vez e a tristeza começou a se manifestar. Se eu deixasse esse assunto de lado, como ele parecia querer fazer, ficaria assombrada pelo resto da vida. Soltei um suspiro, mexendo nas minhas unhas, tentando pensar numa maneira de me expressar que o fizesse falar também. Eu não precisaria ter essa cautela se nunca tivéssemos perdido a memória.

  — E então? – falei.

  — Que foi?

  — Como você está?

 Gally não respondeu de imediato. Senti que ele estava atrasando o curativo de propósito para não precisar me encarar tão cedo. Eu não podia dizer que não faria o mesmo.

  — Confuso. – respondeu.

  — Eu quero me virar para conversarmos direito, mas não vou fazer isso enquanto estiver nua. – falei por cima do ombro, quase podendo vê-lo. – Finja que nada mudou, que somos os mesmos daquela época. Fale comigo.

  — Por quê?

  — Bom, somos aliados agora, não somos? Por qual outro motivo você teria me ajudado a fugir do CRUEL?  

 Ele suspirou e novamente esperou para falar.

  — Não vou fazer terapia com você. Sei que não era essa a área que mais te interessava. Se quer saber, estou evitando pensar nessas lembranças desde que entendi elas na Clareira. E não é como se esse fosse meu único problema desde então. Vou precisar passar o pano por cima dos seus ombros para cobrir tudo, como quer fazer?

 A repentina mudança de assunto me deixou desnorteada, mas logo peguei o pano de suas mãos e passei pelo meu busto e ombros algumas vezes.

  — O que o CRUEL fez comigo já é o suficiente para me ocupar, então prefiro viver com a confusão desse assunto. – ele disse.  

 Pensei em comentar, aconselhar, dizer alguma coisa que o reconfortasse, mas enfim entendi que talvez ele não quisesse isso. Quem sabe, apenas dizermos como estávamos bastasse para que as coisas não fossem estranhas entre a gente.

 Abri e fechei minhas mãos algumas vezes com certa força para me distrair, sentindo-o finalizar o curativo. Ainda assim, preferi ficar de costas.

  — Eu achava que fosse impossível que as coisas mudassem tanto, mesmo com uma perda de memória. – falei. — Até porque, você sabe, somos praticamente os mesmos. Honestamente, acho que, em outras circunstâncias, tudo ainda seria o mesmo. Mas não é como se aquela máscara tivesse plantado de volta o que eu sentia e tirado o que passei com vocês na Clareira, sabe? Sou a mesma em relação ao Newt...

  — Bom, acho que esse era o x da questão. – ele disse como quem encerra a conversa e ouvi sua cadeira ser arrastada para trás como quem deseja espaço imediatamente.

  — Gally. – eu me virei e o encarei, e ele congelou seus movimentos para fazer o mesmo. — Como se sente... de verdade?

  — Não se preocupe. Não é como se fosse assim tão simples eu ficar babando por você outra vez.

 Eu mesma questionava minha preocupação em saber se Gally estava bem ou não com tudo isso, se o sentimento dele por mim tinha ou não ficado guardado por todos esses anos dentro dele. Por outro lado, não havia por que questionar a empatia por ele. Já fomos apenas amigos uma vez, não precisava ser diferente agora.

 Assenti com a cabeça em resposta, decidindo acreditar nele. Não poderia forçar intimidade entre nós depois do que passamos na Clareira, no fim das contas.

  — Está melhor? – ele perguntou.

 Eu me levantei e movi os ombros com cuidado, inclinei um pouco as costas, sentindo que o pano, mesmo frouxo, roçava dolorosamente na pele.

  — Vai ter que servir por uns dias. – respondi.

  — Afinal, como encontrou esse apartamento?

  — Eu pintei aquela porta. – disse entre um ligeiro sorriso, ignorando a participação que Herman teve também.

  — O que pretende fazer agora?

  — Você disse que conseguiram localizar o Berg de Thomas, não foi? Preciso saber onde ele está. Não vou conseguir sair pela cidade para procura-los com as costas assim, principalmente se encontrar algum guarda do CRUEL. Se não estiverem lá, fico no Berg esperando até que voltem, e também...

 Parei de falar assim que percebi que dizer aquilo em voz alta soaria idiota.

  — O quê? – Gally indagou.

  — Bom... Talvez Newt tenha vindo com Thomas e Minho. Não consigo imaginar aqueles dois saindo do complexo sem ele.

  — Então por que ele não veio com eles até aqui?

  — Ele não quis. - eu dei ombros. — Newt já está mudando com os efeitos do Fulgor e, se depois de tantos dias, ele ainda for o mesmo que conversou comigo sobre estar infectado, tenho certeza que ia querer ficar sozinho e garantir que não seria um fardo.

  — É um bom chute. – ele cruzou os braços como se caçoasse.

  — Preciso acreditar que ele está vivo. – respondi com um menear indiferente de cabeça, abolindo a sutileza nas palavras.

 

Gally usou um computador para checar a localização do Berg de Thomas e anotou o endereço do aeroporto para mim, explicando como eu chegaria lá. Espiei a tal Rede mais uma vez por curiosidade.

  — Esse ponto vermelho é eles, certo? – perguntei, apontando.

  — Isso.

  — Então de quem é esse outro?

  — O do Grupo B. Estiveram aqui, conversamos com eles o mesmo que conversei com Thomas. Teresa parece determinada a não dar mole para o CRUEL outra vez, mesmo depois de terem recebido a memória de volta.

  — Não me fale de Teresa. – dispensei com amargura e voltei a olhar o mapa na tela. — Aquela infeliz ainda vai me pagar.

  — É, muitos estão precisando acertar contas hoje em dia...

  — Está brincando? Ela é uma traidora das boas, quem sabe nunca tenha perdido a memória! Brincou com Thomas e com todos nós! Eu não teria conseguido o ferimento na perna que me separou de Newt se ela não tivesse seguido as ordens dos Criadores!

  — Supere. Acho que já lidou com coisa pior.

 Balancei a cabeça com os dentes trincados de raiva e fechei os olhos por um momento.

  — Melhor eu ir logo... – falei.

  — Bom isso.

  —... A última coisa que temos é tempo. – guardei o pedaço de papel no bolso e segui para a saída, ainda sentindo que Gally estava nervoso.

  — Tome. – ele me estendeu uma bolsinha redonda de pano com uma alça longa e fina. — A menos que prefira morrer de fome e sede no caminho.

  — Obrigada.  

  — Tem um comunicador também. Se alguma coisa der errado ou precisar de uma mão, é só chamar. – Gally apontou para um tipo de rádio moderno no chão da sala. — Não morra, ok? E, olha, sei que não vai gostar de ouvir isso, mas tome cuidado, caso encontre Newt.

  — Vou ter o CRUEL e outros Cranks pelo meu caminho, Gally, é bem mais provável que eles me ataquem.

  — Eu sei, trolha. Mas você entendeu.

 Fiz uma careta e encarei o chão, balançando um dos pés.

  — Escuta, o ódio que você tinha...

  — Não era bem ódio. Vocês, trolhos, adoram um sentimentalismo, por Deus... Relaxe que não estou mandando você para o olho de um exército mertilento de guardas do CRUEL.

 Sorri singelamente quando o gosto de um bolo fofo e quente invadiu meus sentidos.

  — Foi bom saber que está vivo.

 Ele concordou com a cabeça.

  — É, foi...

 Gally me observava com um ar distante e estranho, como pouco antes de sumir misteriosamente da Clareira, e parecia estar imerso em pensamentos. Lancei a ele mais um sorriso e deixei o apartamento, aliviada por sentir que talvez não fosse a última vez que o veria.


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Notas finais do capítulo

||Espaço é só uma palavra inventada por alguém com medo de chegar perto da chama e se queimar||



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