Socorristas escrita por BlueBlack


Capítulo 39
Camisas de força




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 Após o efeito daquela máscara estranha passar e as peças que faltavam do quebra-cabeça que era a minha vida até ali serem reveladas, entrei num profundo e escuro mar de nada. Passei algum tempo com a mente vazia, como aqueles pouquíssimos segundos depois de um sonho, em que nos situamos da realidade. Contudo, muito mais prolongados.

 Não hesitei em acordar desta vez. Abri os olhos assim que pude, sentindo uma descarga súbita de adrenalina pelo meu sangue. Respirei fundo para me conter, pois ainda precisava descobrir o que acontecia e, acima de tudo, por que eu estava numa sala tão branca e sem poder mover meus braços. Eles estavam cruzados um sobre o outro por baixo de algum tipo de blusa, e não se desprendiam de forma alguma. Forcei minhas pernas e usei meu cotovelo para me sentar da melhor maneira possível, apoiando as costas na parede. Minha cabeça girava irritantemente. Eu olhei e enfim reconheci o que me prendia: uma camisa de força. O CRUEL havia me colocado numa camisa de força. Eu parecia tão maluca assim?

 Aquilo certamente era mais uma Variável. Nenhuma câmera estava visível na sala, mas eu me sentia sendo vigiada, como desde o meu primeiro momento na Caixa.

 A Caixa... Era colossal agora perceber que minha vida não se resumia mais nos meses que passei no Labirinto e no Deserto. Meus olhos se perderam em algum ponto do chão e as lembranças e ideias começaram a girar afobadas na minha mente. Meu conhecimento sobre Medicina ia muito além do que eu tinha imaginado e a perspectiva do que isso poderia acarretar quase me assombrava.

 Eu não conseguia ter a mínima ideia de que horas eram, mas, à medida que o tempo passava, percebia que era engolida por dias naquela solitária, mesmo que aquelas luzes brancas nunca se apagassem, do mesmíssimo jeito em que fiquei incontáveis vezes quando era menor. Balançar meu corpo para os lados num ritmo contínuo conseguia me distrair por horas, felizmente. Eu respirava fundo para me manter eupática, pelo menos para tentar me manter sã com toda aquela verdade jogada de uma vez só.

 

Era o terceiro dia, e então a porta se abriu. Ela foi trancada ao se fechar atrás do médico, que se aproximou com passos duros e a expressão vazia, descansou um prato relativamente cheio no piso branco e abaixou-se na minha frente. O cheiro de tinta, que não vinha de lugar nenhum além da minha mente, era forte demais. Não me dei o trabalho de encará-lo enquanto estava tão próximo e percebi que nem ele, pois logo se dirigiu às minhas costas para soltar a camisa de força. Ele mesmo a tirou do meu corpo e tentei não parecer tão grata quanto realmente estava. Meus braços doíam e meus joelhos protestaram quando estiquei as pernas.

  — Coma. Você tem uma hora. – o médico informou logo antes da porta ser destrancada e ele sair, fechando-a outra vez.

 Eu não tinha levantado muitas vezes desde que acordei, por isso me senti realmente como um objeto enferrujado ao me erguer e sentir o quanto minhas pernas doíam. Andei de um lado para o outro, exercitei meus braços, fiz polichinelos e me estiquei de todos os modos possíveis. Eu sabia que deveria estar pior em relação a... tudo, considerando que fiquei três dias inteiros sem comer ou me mover direito. Contudo, alguma coisa não me deixava sentar num dos cantos brancos e desabar em lágrimas. Eu olhava para a quina, realmente tentada, mas não o fazia. Sentia que teria uma hora oportuna para descarregar a raiva e tudo que estava preso na minha garganta. Além disso, eu já havia cedido demais ao que fizeram. Queria experimentar uma atitude diferente, pelo menos agora, que tinha minha vida restaurada.

 Olhei para o prato e, de repente, ele pareceu mais apetitoso que quando fora deixado. Havia fatias de presunto, purê de batatas, cenoura crua, uma fatia de pão e um copo de água. Comi o mais devagar que consegui, sem a menor pressa de participar do que quer que tinham planejado para mim dali uma hora.

Eu ainda estava terminando o copo de água quando a porta foi novamente aberta e dois brutamontes de jaleco branco entraram, seus maxilares tão rígidos que me fizeram pensar se não eram Cranks nas primeiras fases de transformação.

 Eles me agarraram pelos braços e me ergueram com um único puxão.

  — Não lute contra, isso é...

 Eu o interrompi com um soco em sua boca. Suspirei e fiz uma careta dolorosa, pois minha mão doía como se nunca tivesse socado ninguém na vida.

  — Estava precisando. – falei como quem pede desculpas, aliviada.

 Uma agulha foi injetada no meu braço e senti minhas pernas vacilarem sob meu peso. E então as luzes, que, até então, sempre ficavam acesas, finalmente se apagaram.

 

Na próxima vez em que recobrei a consciência, a primeira coisa que me veio à mente foi a minha volta ao CRUEL após matar minha mãe.

 Ela estava num estágio muito avançado do Fulgor e eu, com uma adolescente e inocência esperança, dei a ideia a Bruno de que voltássemos a nossa casa no Arizona, para que as lembranças boas que tivemos abrandassem os efeitos do vírus. No fundo, eu sabia que era mais que utopia, mas precisava de algum consolo por estar tão sozinha.

 Nós seguimos para lá, mas, no caminho, Herman (ou Kendrik, não é como se fossem pessoas diferentes), conseguiu informar nossa localização ao CRUEL. Logo depois que minha mãe morreu, de fato, os guardas invadiram a casa e nos devolveram ao complexo.

 Ver a mim mesma de volta àquele lugar foi a confirmação de que minha vida tinha acabado.

 Mas eu resgatei o espírito da menina de dez anos que vagava por ali e quis ao menos me despedir disso.

 Na noite anterior à retirada da minha memória, fugi da minha sala pelos dutos de ventilação e engatinhei até chegar ao andar em que eu sabia ficar o Labirinto A. Queria ver Gally.

 Àquela hora da noite, havia poucas pessoas na sala de comando, então consegui entrar no Labirinto. Uma sensação imensa de poder se apoderou de mim naquele momento, porque nada ia mais contra as regras que entrar no Labirinto após o início do Experimento. Não podia haver nenhum garoto ali, pois era noite, mas eu achei que pudesse me esconder e ir para a Clareira quando as Portas se abrissem.

 Para passar o tempo, fiquei escalando os muros pelas heras e criando desafios para mim mesma. Se não houvesse as regras sobre não entrar no Labirinto, aquele podia ter sido meu passatempo após ingressar no Grupo A. Até pular de um muro a outro eu tentei, mas sabia que precisaria ser rápida caso algum Psi viesse me buscar, e um tornozelo quebrado não ajudaria nisso.

 Lembrando agora, percebi que o CRUEL havia brincado bem mais com nosso cérebro do que pensávamos. Os muros eram três vezes menores do que pareceram após a retirada da memória. Certamente, criaram inúmeras ilusões de ótica para nós, e não eram brincadeira.

 Meia hora depois me distraindo nos muros, ouvi uma respiração pesada e passos correndo. Eu estava pendurada na hera por apenas um braço, alta o suficiente para que o Corredor não conseguisse me ver. Mas eu queria tanto que ele me visse... Era um pensamento travesso, pois isso desestruturaria os estudos com aquele garoto.

 Ele passou correndo por baixo de mim, e o Verdugo seguia destrambelhado logo atrás, seguido de mais dois. Eu saltei para o chão e fui atrás.

 Não consegui salvar o garoto, mas ele me viu. Sua expressão aterrorizada e surpresa foi a última coisa que lhe representou vida. O único que teria mais uma pista do quão estranho eram as coisas morreu porque um dos Psis invadiu o Labirinto e eu estava distraída demais em ajudar o garoto para impedi-lo de me tirar de lá.

 Parecia ser essa a razão da minha inserção no Labirinto A em vez do B. Não podiam esperar um dia sequer, que eu colocava tudo em risco. Além disso, seria outra Variável colocar uma garota após 2 anos, depois seu irmão, depois outra garota, para mais tarde descobrirem que o Labirinto de Aris seguiu outro padrão. Talvez também tivessem previsto o quão maluca eu ficara tentando encontrar uma lógica padronizada no Experimento.

 A última lembrança que tive pela máscara antes de acordar naquele quarto branco era a que eu lutava corpo a corpo com Herman para não perder as memórias, e, depois, eu acordava na Caixa.

 Agora, deitada em mais um piso incomodamente claro, eu tentava manter minha expressão facial o mais apática possível, tal como minhas emoções. Meus sentimentos com as lembranças estavam turbulentos, afinal. Então, manter-me em silêncio era o mínimo que eu deveria fazer.

 Pus-me de pé e me dei conta de que o teto era muito baixo. Se eu esticasse o braço, as pontas dos meus dedos o tocariam. Havia uma parede de vidro bem na minha frente e, do outro lado, algumas pessoas sentadas em cadeiras e conversando entre si com pranchetas em mãos, todas de jaleco. O espaço em que eu me encontrava estava vazio e não era muito grande. Também não havia nenhuma janela ou porta para fora dali à vista.

 Ava Paige se levantou abruptamente, assim como mais dois médicos, e ela se aproximou do vidro com o semblante tão inexpressivo quanto sempre fora.

  — Olá, Perenelle. – ela cumprimentou calmamente. Eu não fiz nada além de devolver o olhar. — Queremos todos que saiba que estamos aqui para mais uma tentativa. Gostaríamos da sua colaboração nos próximos minutos. Compreendemos que viu muita coisa nos últimos dias e reconhecemos o quão doloroso foi para você.

 Dias?

 Ela baixou o olhar para alguma parte do meu corpo, que descobri ser meu braço. Ele estava arranhado em boa parte, como se eu tivesse me debatido como uma verdadeira maluca durante o efeito da máscara. Eu não podia dizer que descobrir que Newt não é Imune me faria reagir de uma boa maneira.

  — Queremos esclarecer as coisas o melhor possível. Os outros Indivíduos já foram instruídos também e posso afirmar que a resposta que tivemos está sendo proveitosa. Eles entenderam a causa e estamos trabalhando juntos neste momento.

 Ela, com certeza, falava do Grupo B ou ainda não tinha cansado de contar mentiras.

  — Ava... – comecei pacientemente.

  — Não agora, criança. – ela ergueu a palma virada para mim para me interromper. — Você é valiosa para o Experimento, não preciso enumerar as razões que já lhe foram apresentadas na retirada da perturbação do Dissipador. Você tem conhecimento da situação de seu amigo, e de que estará nos ajudando a salvá-lo, se contribuir com a causa. Foi um caminho árduo até aqui, passamos por coisas que, sem dúvidas, não imaginamos, ao criar a organização. Mas todas foram trabalhadas para que a saúde da população fosse restaurada. Nós conseguiremos, Perenelle. Sejamos francos, após tantos anos, não será um ou todos os Indivíduos, os quais nós mesmos criamos, que irão nos impedir de fazer o mínimo que podemos para com o restante do mundo. Não precisamos ser inimigos, as circunstâncias levaram a isto. Você é inteligente o suficiente para nos ajudar a salvar todos, por isso, queremos que nos ajude. Você pode se juntar a nossa equipe de médicos, talvez aos Psis; considero um tremendo desperdício deixa-la na enfermaria. Reconheça, talvez teríamos feito mais progresso no passado se tivéssemos nos unido. Mas não quero desenterrar isso. Você sabe a verdade agora. Está em suas mãos.

 Paige, enfim, se calou. Ela recuou e seus companheiros fizeram o mesmo. Eu permaneci quieta por longos segundos, reformulando todas as frases que pensei em dizer até aquele momento. Incontáveis eram as vezes que imaginei aquele encontro, ainda que, até então, não achasse ser possível. O espírito raivoso da menina de dez anos quase despertava com a presença da mulher.

  — Honestamente, Chanceler, depois de tanto tempo, eu esperava que sua capacidade de mentir estivesse mais falha. – eu comecei, encarando cada um deles enquanto falava. De certo modo, todos eram um só. — Mas esqueçamos a parte em que vocês insistem em nos tratarem como cobaias. Sabemos que isso nunca vai mudar. E eu não iria querer trabalhar com pessoas tão desesperadas quanto vocês estão. É melhor que o mundo se acabe a ter gente como vocês vivendo nele. Lembro-me muito bem das milhares de vezes que quase deixaram informações escaparem para nós quando éramos crianças. Como podem se considerar aptos para encontrar uma cura para a humanidade?

 Virei de lado para a parede de vidro, andando e cerrando os punhos para me manter calma.

  — Vocês... Vocês são tão burros. – continuei, falando para o chão. — Não tinham planejamento, não tinham nada. Só culpa. Acham que o arrependimento pelo que fizeram à população é o suficiente. – parei e os encarei. — Não é. Vocês continuaram machucando pessoas. Todas inocentes. Deviam ter parado e pensado em qualquer solução que não envolvesse mais mortes e sofrimento.

 Ava abriu a boca, mas foi a minha vez de erguer a mão.

  — Sacrifícios precisam ser feitos? – eu supus. — Não é esse o mesmo pensamento que tiveram quando tomaram a decisão da qual o arrependimento é a desculpa que usam para fazerem o que fazem agora? Não sejam hipócritas. Um “esboço” devia ter sido feito antes de nos enviar aos Labirintos, Chanceler. Seus testes, suas Variáveis, suas porcarias médicas... Por que não foram feitas em trabalho voluntário? Há muitas técnicas antigas que são eficientes. Demoram… como tudo na ciência. E há quanto tempo estamos sendo testados, considerando o minuto em que roubaram a primeira criança?

 Fiquei mais próxima do vidro, encarando cada um deles. Minha mágoa era enorme, mas minha determinação em quebrar todos os vínculos com eles nem se comparava...

  — Olhem para mim... Sou humana como todos vocês. Não sou só uma trolha de dezessete anos revoltada por tudo que fizeram comigo. Querem esquecer o passado? Então me escutem...

 Mordi o lábio inferior e o umedeci, voltando a andar de um lado para o outro.

  — “Vamos dizer que ela tem uma deficiência, que ela é prejudicial... Vamos fazê-la pensar que passou dez dias sem comer, que há cadáveres presos no teto, só para ver no que dá...” Foi o que vocês pensaram? “Só para ver no que dá”? Porque é isso o que parece. Vocês não vão conseguir nos ter ao seu lado enquanto não soubermos a lógica disso tudo. Se não têm uma lógica, certo, amassamos essa e jogamos no lixo, e pensamos em outra. Eu admito, mais da metade dos dois Labirintos juntos quer matar vocês independente disso, mas isso seria a menor das preocupações. Por que se apegaram tanto a esse tipo de Experimento? Vocês têm o plano escrito anos atrás aí? – eu me aproximei do vidro de novo, encenando curiosidade ao olhar para as pranchetas deles. Encarei Ava outra vez com total serenidade. Eu sabia que aquele bate-papo não daria certo, mas precisava despejar aquilo antes que implodisse. – Não precisam mentir para mim, sei que não confiam em nenhum de nós para estar na sua equipe. Apenas pensem melhor sobre essa mértila.

 Quando terminei, todos eles abaixaram as cabeças e começaram a escrever freneticamente, tanto que pareciam robôs. Ava continuava de pé e apenas desviou seu olhar do meu. Longos minutos se passaram. Eu me sentei no chão para esperar qualquer coisa que fossem fazer, até o momento em que fosse certo tomar uma atitude. Paige tinha dito que passei dias recuperando as memórias. O que teria acontecido aos outros nesse meio tempo?

 Fechei os olhos e balancei a cabeça, repreendendo-me. Jurei a mim mesma não me martirizar com isso. Já bastava as milhares de possibilidades sobre Newt.

 Uma abertura surgiu do centro de uma parede e dois guardas entraram, um deles com uma seringa pronta na mão. Nem me dei o trabalho de levantar.


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