Socorristas escrita por BlueBlack


Capítulo 38
Uma metade da laranja - Parte 2




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... Encarei as mãos unidas por alguns segundos, cerrando os dentes pelos pensamentos que preenchiam minha cabeça, então abri a porta do quarto de uma vez e saí.

 Não precisei me mover mais para ter outras memórias. Pouco mais de dois anos se passou, e minha rotina diária era mais estável. Os testes para eles estudarem minha síndrome e a sinestesia haviam ficado mais complexos e duravam mais tempo. Não eram nada agradáveis.

 Aos treze anos, eu era colocada num labirinto pequeno, que não chegava nem perto do que Thomas e Teresa haviam construído, e desativavam minha visão noturna. Eu precisava percorrer todo o lugar, no completo escuro, e refazer o caminho a partir do tato e das sensações que cada superfície diferente provocava. Não seria nada demais, se Cranks não surgissem de corredores do nada para me assustarem e eu levasse um choque na panturrilha a cada vez que gritava. Sem contar que era literalmente doloroso não poder ver no escuro. Meus olhos queimavam, e sempre que tentava avisar os cientistas, levava o choque.

 No fim, eu fazia o que queriam, mas os médicos informavam que precisaria fazer de novo pelas vezes que descumprira a regra de não falar. Tive sangramento nasal tantas vezes que perdi a conta, mas me recusava a gastar uma noite de sono na enfermaria.

 Àquela idade, graças à inserção de Gally na minha rotina, eu dormia, estudava e fazia as refeições com as outras garotas. Não lutava mais contra os médicos nem pregava peças, pois sabia que ficaria sem vê-lo por várias semanas. Se eu quisesse, Gally se juntava a mim para a diversão, assim pelo menos pagávamos o preço juntos.

 Nenhuma das meninas sabia ao certo por que eu demorava mais que elas nos testes, nos exames, e muitas vezes não ia à aula no dia seguinte, e nenhuma me perguntava. A maioria desacreditava minha síndrome e me ridicularizava por isso. Quanto à sinestesia, nem se fale. Algumas diziam que eu possuía deficiência mental ou sofria com alucinações, e por isso permanecia mais tempo nas salas de exames. Eu imaginava que aquelas menos hostis tivessem medo ainda de se relacionarem comigo, já que Gally e eu estávamos proibidos de contar sobre nossos encontros aos outros e, assim, incapacitados de deixar que o Grupo B soubesse que eu sabia agir como uma criança normal. No entanto, uma das meninas foi vencida pela curiosidade.

 Sonya tinha as próprias amigas e ainda era com elas que passava a maior parte do tempo, mas era ótimo ter sua companhia na hora de estudar ou para conversar tarde da noite, após um exame longo. Ela foi a única que soube de mim e Gally, mas acabei sendo, literalmente, torturada por isso.

 

— Já sabem qual foi a evolução da sinestesia nos últimos anos? — Gally perguntou numa noite.

 Era mais uma lembrança das fugas de madrugada que fazíamos. Nós dois estávamos dentro de um quartinho pequeno, iluminados por uma lanterna, sentados no chão e cercados dos restos da comida que tínhamos roubado.

 — Já. São as cores da fala que me ajudam a ver no escuro e as sensações são bem mais reais para o meu cérebro. A síndrome mudou mais, acho que reconheço e sou mais obcecada com padrões do que os antepassados, e mesmo assim não me diagnosticam autista. Deve ser por isso que sou tão chata nas aulas, eles vivem dizendo algo assim.

 — Chato é meu professor de química.

 — Nem me fale... Só de pensar que vou ter um teste das reações químicas do cérebro dos não-Imunes amanhã. — ela bocejou e se deitou de bruços sobre um esfregão. — Devíamos voltar para os quartos.

 — Uhum... — ele resmungou em resposta, sonolento.

 Eu, com dezessete anos, espantava-me cada vez mais vendo a proximidade entre mim e Gally durante aquele tempo. O Dissipador tinha realmente feito um bom trabalho em nós. A cor da voz dele não era tão magenta quanto eu vi na Clareira, mas, desde o tempo em que éramos crianças, eu já o via de um modo diferente. Um amigo, claro, mas também cúmplice e confidente.

 Quando a rotina começou a ficar tediosa demais, passamos a deixar as pegadinhas um pouco de lado e ir mais além para nos divertirmos dentro do CRUEL.

 Num dos exames de praxe, reparei melhor numa máquina que os médicos usavam para ver e sentir exatamente o que acontecia na minha sinestesia. Eu, imediatamente, lembrei-me de Gally. Ele sempre se divertia querendo saber como funcionava esse meu fenômeno e vivia me perguntando que cor, temperatura, cheiro, gosto e nota musical tinha tudo. Então, naquela noite, essa foi nossa missão. Saímos dos quartos no horário de sempre e nos encontramos perto da enfermaria, na sala em que a máquina ficava.

 — O que vai fazer? — ele indagou, vendo a garota mexer nos aparelhos.

 Ela configurou a máquina da forma que lembrava ter visto os médicos fazerem e então tirou fios e fios de dentro dela. Eletrodos. Pregou alguns às suas têmporas e esticou os outros na direção de Gally. Ele se esquivou para trás ligeiramente.

 — Não confia em mim? — ela indagou, sorrindo.

 — Não confio é nessa coisa. — ele disse com a testa franzida.

 Ele deixou que os fios se prendessem a ele e a garota esperou alguns segundos para ver o que acontecia. O receio dele quase podia ser tocado no ar, era questão de tempo até que sentisse algo diferente.

 — Wow! — Gally exclamou de repente e ela riu, colocando o indicador sobre os próprios lábios para que falasse baixo. — Por que estou sentindo gosto de gordura?

 — Qual a cor da minha voz? — ela perguntou, agora tão entusiasmada quanto ele.

 O garoto arregalou os olhos, olhando para algum ponto perdido no ar.

 — Ahn... Laranja?

 Ela riu fracamente e recomeçou a digitar configurações na máquina.

 — Gordura é o gosto que eu sinto quando alguma coisa parece estranha. — ela respondeu. — Deve ter visto alguma linha ou uma mancha com a minha voz, é exatamente isso o que me acontece.

 — Sério? — ele manteve o tom surpreso, virando a cabeça por toda parte.

 — Cada sinestésico tem suas cores, gostos, cheiros próprios, mesmo que estejam diante das mesmas coisas. Mas essa máquina só capta as minhas características. Se você fosse sinestésico, minha voz muito provavelmente teria outra cor. Ah, já sei.

 Ela deixou a máquina para ir abrir uma gaveta e tirar um alfinete muito usado nos testes, e espetou a mão dele. Gally apenas fez uma careta.

 — Que cheiro horrível.

 A garota soltou uma gargalhada, mas tratou de se calar. Ele abriu um sorriso imenso e seus olhos ganharam outro brilho.

 — Sua risada tem gosto de ameixa! — exclamou, fitando o chão e claramente movendo a língua dentro da boca.

 Imediatamente percebi a coincidência peculiar de que ameixa era a fruta preferida de Gally. A máquina só captava as minhas sensações, eu tinha certeza disso.

 — Isso é bom, não é? — ela indagou, mexendo na máquina outra vez.

 — Acho ótimo. — respondeu displicente, observando o que ela fazia. — Isso tem alguma placa-chefe de armazenamento?

 — E eu lá sei?

 — É que, bem, se tiver, podemos tirar ela, e então eu poderia usar quando quisesse. Se for tão simples assim: só ligar os fios na minha cabeça...

 Ela parou o que fazia e o encarou.

 — Quer mesmo isso? — indagou um pouco descrente. Ela sabia que ele gostava do assunto, mas nunca imaginou que fosse tão interessado assim.

 Gally comprimiu os lábios como se ponderasse e assentiu com a cabeça. A garota revirou os olhos com um ligeiro sorriso.

 — Você é um idiota.

 — Sim, mas também sou o único que sabia existir uma placa-chefe de armazenamento.

 — Cale a boca, Gally.

 Isso foi o mínimo que fizemos durante as semanas seguintes. Entrávamos em salas de controle, mexíamos nos computadores dos médicos, brincávamos com os aparelhos dos exames. Nosso ponto de encontro preferido passou a ser nos dutos de ventilação do complexo, e, na maioria das vezes, os usávamos como caminho para qualquer lugar.

 À medida que o tempo passava, contudo, nossa curiosidade aumentava e nosso interesse também. Todos nós dentro daquele lugar sempre quisemos saber qual a finalidade exata daqueles testes e de tudo em relação ao Fulgor e à cura, que os cientistas diziam tanto procurar. Assim, um dia, tomamos uma decisão um pouco precipitada demais.

 Usamos os dutos para chegar à sala do Chanceler Anderson, fazendo ainda menos barulho que o habitual, sem falar nada. A garota pensava no que poderiam encontrar lá e as expectativas deixavam-na muda. Gally, felizmente, tinha conhecimento o bastante sobre consertos e o complexo para ir preparado para a tranca na saída do duto do escritório.

 O lugar não era lá tão grande quanto tinham imaginado, então não levou muito tempo até que encontrassem algo relevante. Havia um tablet de pesquisa dentro de uma das gavetas da mesa principal, e eu me lembrava perfeitamente do salto que o coração da garota deu naquele momento.

 — Com certeza vamos precisar de algumas senhas. — Gally comentou.

 Ele estava certo. Havia muitas pastas na tela principal, todas bloqueadas, mas com nomes atraentes demais. A menina teve esperança. Começou a se lembrar de histórias que minha mãe e Bruno contavam, que ouviu nas aulas e que estavam tão bem grudadas na minha memória. Ela sabia que precisaria delas para sempre se lembrar das razões para odiar aquela organização.

 Inseriu diversos códigos diferentes de acordo com possíveis padrões: datas de eventos importantes, de chegadas, de saídas, de criação, de mudanças, sempre sendo o mais específica possível. Gally até a pediu para que desistisse e fossem ver o que já estava liberado, mas o interesse dela em “Registros” era grande demais.

 — Consegui. — falou após oito minutos.

 Havia tanta coisa ali que, certamente, não daria tempo de ler tudo. Eram mais de cem fichas de crianças, memorandos anexados, atualizações muito recentes e informações que pareciam ter sido coletadas antes mesmo da chegada delas ao CRUEL.

 — Vamos ao mais importante. — Gally disse e abriu a ficha com seu nome, com mais de cinquenta páginas.

 O nome de Gally, na verdade, era Willian. Seu apelido tinha sido inspirado em Galileu Galilei e foi uma das primeiras figuras importantes a serem usadas para identificação dos “Indivíduos”. Sem querer perder tempo, digitamos na barra de busca palavras-chave para uma leitura mais direta. Seus pais tinham sido levados pelo Fulgor um dia antes de ele ser encontrado pelos cientistas, sozinho na casa em que viviam. Ele não passou muito tempo num quarto isolado do CRUEL antes de poder interagir com os outros, mas, por alguns anos, frequentemente era separado para o controle da raiva e de ataques de pânico e testes relacionados a isso. Aquilo não era uma surpresa, Gally ainda tinha esse temperamento quando o conheci mais nova. Xingava e gritava bastante quando o assunto era o CRUEL, seu rosto ficava realmente muito vermelho. E não foi apenas uma vez que deixamos de nos encontrar por ele precisar cumprir castigo por ter brigado com algum colega. Eu não podia negar que era um elemento que nos fez muito próximos no começo. Eu me lembrava das disputas de xingamentos. Presenciei apenas um ataque de pânico seu no meio da noite, mas sempre tive a impressão de que ele fingia não haver mais.

 Chegando aos relatórios dos testes, os dois viram muitas comparações com outros garotos para encontrar o padrão entre todos eles que os faziam Imunes. Havia análises até comparando meus dados com os dele, quando começamos a nos encontrar. Os nomes de Thomas, Minho, Caçarola, Mike, Herman estavam entre muitos que eu não conhecia. Newt estava entre eles. Newt aparecia bastante. Mas não era pelo mesmo motivo que os demais. Ele não era igual aos demais.

 Precisei de longos segundos encarando a informação para ter certeza do que estava lendo.

Newt

Status Zona de Conflito Letal: suscetível.

Não-imune, tipo A.

Sem registros de infecção.

Células debilitadas.

 Eu não sabia direito o que estava sentindo, minha cabeça começou a rodar. Meu coração teve uma crise, querendo escapar do peito, tirando-me todo o fôlego. Só o que consegui pensar em fazer foi gritar. Berrei para o teto por um longo tempo, perdida naquela realidade. Queria acordar daquele mar de lembranças naquele mesmo instante e fazer alguma coisa. Mas eu não conseguia. Estava sendo obrigada a continuar ali e engoli-las. Continuei berrando, ainda que minha garganta não aguentasse mais. Não era possível que eu tocasse em alguma coisa do local, então só puxei os fios do meu próprio cabelo com tanta força que senti alguns se soltarem. Newt era diferente de todos nós. Eu queria poder dizer qualquer nome. Eu poderia dizer qualquer nome, nenhum me machucaria mais.

 — Façam alguma coisa... – eu sussurrei para o chão, sabendo que a minha “eu” mais nova e Gally continuavam a conversar sobre as informações. — Vocês precisam fazer alguma coisa...

 As lágrimas vieram à medida que o óbvio vinha também: aquele era o passado. O tablet não mudou absolutamente nada, pois o Labirinto foi criado, fomos mandados para lá, fomos mortos, tudo aconteceu... Newt ainda se atirara daquele muro.

 Parei em frente à mesa, encarando a garota distraída, com as lágrimas descendo pelo meu rosto. Ela não sentia nada lendo a informação. Aquilo me atormentava, porque eu não sabia o que pensar. Newt era tudo para mim agora, quando naquela época sequer o conhecia. Eu queria sair dali naquele instante. Queria poder acordar e arrancar a máscara e queimar tudo que havia do CRUEL.

 Eu não conseguia acreditar que era verdade. De todas as dezenas de garotos naquele lugar, Newt era diferente na Zona de Conflito Letal. Muitos podiam estar em risco, mas era ele que estava com os dias contados. Era ele uma das razões dos Criadores terem feito tanta barbaridade. E ele tinha tentado escolher sua hora no Labirinto... E nem isso havia conseguido.

 Eu gritei de novo, e desta vez senti uma vibração muito forte ao redor de mim, como se estivesse havendo um terremoto dentro da minha mente. Não podia negar parcialmente que estava.

 — Gally, eles fizeram de propósito... — a garota disse atordoada, atraindo minha atenção.

 Voltei a olhar o tablet em dois tempos para saber a que se referiam, ainda que meu corpo inteiro tremesse, e uma pilha de informações foi plantada na minha cabeça.

 O Fulgor foi criado e liberado intencionalmente pelo homem para que houvesse controle do crescimento da população, porque estava sendo difícil alimentá-la. Ele devia atingir apenas uma pequena parcela, mas sofreu uma mutação e se transformou naquilo que sobrevivia de canibalismo. Sem contar que muitas pessoas responsáveis por aquilo tinham ligação direta com o CRUEL...

 Em nove anos, desde que o conceito da organização foi criado, nenhum dos exames com os Imunes naquele lugar tinha feito alguma diferença relevante. A ciência era demorada, de fato, mas esperaram apenas mais dois anos para que as inserções ao Labirinto e as mortes começassem, se não escondiam mortes durante aqueles exames absurdos também...

 — O que fazemos? — a garota indagou a Gally, que encarava o tablet com completo abatimento. Ele arrancou o aparelho das mãos dela e o atirou no chão, produzindo um barulho muito incômodo. Ela imediatamente segurou os pulsos dele com força e sussurrou nervosa: — Ficou maluco?! Eu gritaria, se pudesse, mas nós...

 — Como eu disse. — a voz de Herman soou no momento em que a porta foi aberta.

 Dois guardas o acompanhavam, e o turbilhão de emoções que senti naquele momento, eu não senti em hora alguma da minha vida outra vez.

 Gally e eu fomos, no meio daquela madrugada, levados para falar com Ava Paige e o Chanceler. Tensos minutos. Interrogaram-nos, disseram que sempre nos tinham vigiado nas saídas noturnas, sabiam o que fazíamos, mas que desta vez tínhamos ultrapassado diversos limites. Houve gritos, e não foram poucos. Tive quase certeza de que todo aquele lado do complexo ouvira. Gally gritou. A garota gritou. Os dois choraram. Até o momento em que Paige disse que eu devia seguir o exemplo de meu irmão, fazer parte do ideal e cooperar da maneira certa, ser mais empática e menos egoísta, foi quando a menina arremessou a tela do computador da doutora no chão. Herman podia estar dormindo naquela noite, mas, em vez disso, tinha decidido seguir e entregar a irmã. O pior era que eu sabia que, mesmo contando a ele a verdade sobre aquelas pessoas naquela época, ele continuaria ao seu lado. Ainda que fosse um idiota, era dois, quase três anos mais velho que eu, e sabia o que queria.

 Eu sabia que tinha ido longe demais ao agir daquela forma perante eles. Mas, naquela noite, não me dei conta disso até o castigo ser dado.

 Ava e o Chanceler decidiram quebrar completamente minha relação com Gally. Sem encontros. Sem segredos. Sem comunicação.

 — Não... — Gally tinha a voz fraca.

 — Não podem fazer isso. — a menina disse quase num sussurro.

 — Devemos fazer isso. — Ava disse. — Precisam arcar com as consequências. Suas punições serão esclarecidas quando Gally voltar ao seu alojamento.

 Ela fez um sinal com a cabeça para os guardas na porta.

 Gally e a garota se encolheram com a aproximação de um dos homens e deram as mãos. Meu coração batia forte vendo a cena e achei realmente ter sentido o toque da mão dele na minha.

 Houve mais gritos.

 Fomos enxotados para fora da sala e cada guarda nos guiou numa direção diferente. O aperto das mãos se intensificou, no entanto. A garota gritava tão insuportavelmente que eu mesma não aguentava ouvir. Os guardas os puxaram com mais força; Gally agarrou o pulso dela com a outra mão. Ela fez o mesmo, debatendo os ombros para se livrar do homem.

 Tive vontade de chorar, abraçando meu próprio pulso ao sentir, de fato, o aperto de Gally.

 A luta terminou quando Paige saiu da sala com uma seringa e a garota estava ocupada demais para usar as mãos e afastá-la de si.

 Após isso, a vida antiga retornou em muitos aspectos. Eu podia comer, ir às aulas, interagir com as meninas, sim. Contudo, no momento em que percebi a razão disso tudo não ter mudado, parei de sair do meu beliche. Os médicos sabiam que Gally importava para mim mais do que tudo isso, só a companhia dele valia mais do que de cada garota daquele alojamento. À medida que eu o tempo passava, isso me deixava pior.

 Sonya foi conversar comigo no quinto dia que passei sem comer, e eu briguei com ela em resposta por achar que tinha sido mandada pelos Criadores. Isso era uma grande ofensa para qualquer um de nós e não me dei conta até ter dito. Ela não deixou barato. Disse que eu era fraca e pirracenta e, acima de tudo, burra por entrar no escritório do Chanceler, se era óbvio que eles sabiam o que fazíamos. Disse que minha síndrome do “idiota-prodígio”, como elas costumavam me chamar, fazia-me mais idiota do que inteligente, e que eu estava sendo ingrata, já que não passava por nenhuma tortura como consequência pelo que fiz.

 — Pense como você se sentiria se alguém invadisse informações altamente pessoais suas. Havia coisas sobre todas nós lá também. Você não gostou que soubessem da sua paixonite por ele, não é?

 Assistindo ao modo que ela falava e lembrando meus dias na Clareira, vi a semelhança entre Sonya e Newt, pois tive vontade de aplaudi-la, ainda que sua franqueza me pegasse desprevenida, como sempre.

 Ainda que eu, aos dezessete anos, concordasse com tudo aquilo, aquela “eu” de treze levou meses para se sentir menos mal. Ela cedeu à comida antes de ceder às aulas, pois os exames diários e ininterruptos deixavam-na fraca demais, e ela não tinha ânimo algum para ir à enfermaria.

 Ficamos separados por dezoito meses. Dezoito meses. E isso tomou conta de toda aquela minha vida. No primeiro mês, passei várias noites enrolando na cama sem fazer nada, à espera da hora em que nos encontrávamos, até lembrar que isso não ia acontecer. No segundo mês, eu ainda não produzia som algum para me dirigir à outra pessoa. No terceiro, eu ainda chorava repentinamente, não importasse a hora ou o lugar. No quarto e no quinto, fiquei apegada ou intolerante a todas as sensações que lembravam momentos com ele. Certos toques traziam o gosto de fruta podre que senti quando demos as mãos antes de sermos separados. A partir do sétimo, eu usava qualquer coisa para me distrair. Ria, interagia com as outras, obedecia aos médicos, fazia todos os testes com o máximo de empenho que podia reunir... Tudo para não pensar na falta que Gally me fazia. Aumentei meu tempo lendo sobre Medicina; comecei a ver os testes com olhos diferentes de antes (até escrevi aprimoramentos, mas os guardei debaixo do colchão e não deixei que ninguém visse).

 Eu nunca tinha tido prova tão grande de que só damos valor quando perdemos. Apenas com a separação pude saber a profunda verdade do valor dele. Eu empurrava a saudade para o meu âmago, sem perceber que lá ela crescia. Crescia tão perigosamente que às vezes se manifestava. Eu não suportava ouvir quando comentavam de garotos; ignorava completamente quando algum médico perguntava como eu estava sobre a ausência dele; negava que eu possuía um irmão; até inventava outra sensação nos testes quando provocavam alguma que lembrava Gally. Tudo isso porque não queria ser tão imatura quanto Sonya a acusara de ser. E estava cansada de sempre revidar quando faziam alguma coisa que não me agradava. Minha vida estava fadada a isso até que eu fosse grande o suficiente para poder fazer algo relevante. Agir como eles queriam não era aceitar aquilo, no fim das contas.

 Além disso, eu ficava cada vez mais orgulhosa de mim com meu desempenho na enfermaria, que era suficientemente grande para tomar boa parte da minha atenção. Era verdade que não tínhamos muitos pacientes de verdade, mas eu acabava tendo acesso aos exames de sangue e às coisas menos interessantes que os testes mostravam, e era o máximo de contato que eu tinha com organismo dos outros.

 Entretanto, uma vez, para a surpresa da garota de quatorze anos, havia sobre a bancada uma ficha médica em que continha dados de um paciente. Ele estava com o braço deslocado. E era Gally.

 Ela arregalou os olhos ao ler o nome e olhou ao redor para se certificar de que não havia ninguém à vista, checou o número do quarto e foi até lá. Devagar, ela abriu a porta, até para ver se alguma enfermeira já não cuidava do caso, mas viu apenas o garoto sentado na beirada da cama, com o braço dobrado em direção ao peito. Ela entrou e bateu a porta com entusiasmo até demais, e correu até ele para abraça-lo, esquecendo-se do ferimento.

  — Ai, Deus... – ele resmungou em meio a um gemido.

  — Desculpe, desculpe... – ela se afastou com as mãos sobre a boca.

 — Deixa pra lá.

 Gally pulou da cama e a puxou de volta, fazendo o esforço doloroso de tirar o braço da frente e poder apertá-la mais com o outro. Nunca tinha sido tão bom para ela ver a cor da voz dele outra vez. Ela forçava ao máximo seus braços ao redor do amigo, de olhos fechados e a respiração se normalizando. Eu sorri tristemente para a cena. Não importava o que era Gally e eu agora, as coisas foram completamente diferentes antes.

 — O que aconteceu com você? – ela perguntou.

 — Acho que não temos tempo para contar tudo. – ele respondeu em meio a um sorriso.

 — Não, estou falando do braço. – ela riu.

 — Ah, eu caí. Demorei um tempo para tomar coragem, mas foi até fácil. Doloroso, como o esperado.

 — Do que está falando?

 Gally balançou os ombros com os lábios comprimidos.

 — Eu teria feito bem antes, mas eles me isolaram num quarto por bastante tempo e achei que seria melhor passar a raiva para tomar uma decisão, como você disse para eu fazer. Não pude continuar na manutenção também. Mas algumas semanas atrás eu voltei e hoje tive a chance. Subi numa escada até a entrada do duto de ventilação e pulei. Precisei de mais duas vezes para conseguir, mas... – ele deu de ombros outra vez e olhou para o ferimento.

 A garota tinha o queixo caído, assim como eu.

 — Você é maluco. – ela disse.

 — Ei, foi um ato ilustre! Eu senti sua falta, Pem. – Gally se defendeu, e fiquei atordoada com o uso do apelido. A menina, no entanto, sentiu-se aliviada por ouvi-lo chama-la daquele jeito depois de tanto tempo. Não era sempre que ele o fazia, pois raros eram momentos como esse. Gally soube meu nome de verdade quando a garota deixara escapar uma vez numa conversa, e sua promessa de nunca mencionar a ninguém foi uma das primeiras provas de confiança que ela tivera.

 Ela sorriu de canto com o olhar melindroso para ele e o braço, mas suas emoções estavam uma verdadeira bagunça. O dia de repente parecia brilhar mais aos seus olhos.

 — Como veio parar aqui? Vocês não têm sua própria enfermaria? – ela indagou.

  — Estava num lugar perto daqui. Reclamei o bastante até convencer eles de que precisava ser atendido logo.

  — E já colocaram de volta no lugar? – a garota ergueu a mão dele para analisar o cotovelo.

  — Acho que ainda estou de castigo. Mas disseram ser só um deslocamento.

 Ela riu outra vez e observou melhor o braço, e foi como se as imagens que viu nos livros passassem perante seus olhos sobre o que deveria ser feito. Eu ainda duvidava que ela fosse mesmo cuidar daquilo quando suas mãos se posicionaram no braço dele.

  — Aqui. — a garota pegou um pano enrolado e colocou dentro da boca dele bruscamente. Ele se sobressaltou.

  Ela contou até três e moveu o braço de volta para o lugar; o grito de Gally mal ficou abafado. Ele respirou fundo algumas vezes e cuspiu o pano.

  — Já tinha feito isso? — perguntou.

 A porta foi aberta antes que ela pudesse responder.

  — O que faz aqui? Ninguém disse que podia entrar! — a enfermeira ralhou, furiosa.

  — Eu trabalho aqui. — a menina respondeu simplesmente.

 — Saia.

 

 

A menina passou dias com o que ele havia feito lhe arrancando sorrisos involuntários em momentos qualquer e lhe tirando o sono. Sonhava acordada com as diversas coisas que poderia ter respondido ao ouvir aquilo e começava a se sentir estúpida por ter mudado de assunto tão rápido.

  — Por que você está tão feliz? — Sonya indagou numa noite, apoiando-se na parte de cima do beliche.

  — Não te contei?

  — Não, você ignora toda vez que tento te tirar dos devaneios.

 A “eu” mais nova sorriu e se sentou na cama.

  — Gally foi me ver na enfermaria.

 Sonya permaneceu em silêncio por um tempo.

  — Quê? — ela ergueu as sobrancelhas em descrença. — Achei que iam ficar a eternidade sem se ver de novo.

  — Eu também, mas ele se jogou do duto de ventilação e torceu o braço perto daqui.

 Sua descrença se acentuou.

  — De propósito?

 Ela assentiu.

  — Tem noção de como isso é insano?

  — Eu sei, ele é maluco. — ela fechou os olhos e mordeu o lábio entre um sorriso, cobrindo o rosto. Sonya não ligava muito para aquele tipo de assunto, até por ser mais nova, mas adorava zombar pelo quanto parecia idiota. — Ah, nem acredito que foi tão rápido. Tiraram ele de lá no minuto em que saí.

 Foi a vez de Sonya sorrir, e muito mais maliciosa.

  — O quê? — a Jordan mais nova perguntou.

  — Nada.

 O nada era que, na verdade, em duas semanas, os Grupos A e B passariam a dividir a rotina juntos, num mesmo lado do complexo.

 A garota mal pôde acreditar quando chegou ao refeitório com as meninas pela manhã e o encontrou já lotado de figuras masculinas. 

  — E começamos o dia bem. — Sonya murmurou carregada de sarcasmo e apontou para um canto do local.

 Gally estava brigando com um dos garotos, gritando e apontando o dedo para ele, os dois bem próximos. A garota caminhou até eles imediatamente, embrenhando-se no grupo ao redor que observava. Gally empurrou o garoto com tanta força que ele tropeçou nos próprios pés e bateu a cabeça num dos bancos, atordoado.

  — Ei, desacelere, okay? – ela disse a Gally, pondo as mãos em seu coração para afastá-lo mais do outro. — Acabou de chegar, cara.

 Ele olhou para ela de olhos arregalados.

  — Achei que iam te proibir de vir!

  — Ainda bem que eu sou a otimista.

 Eles se puxaram para um abraço e cambalearam sobre os pés com o entusiasmo. Apenas ela se deu o trabalho de pedir desculpas ao atropelarem três garotos. Depois, pegaram comida e foram para uma mesa isolada dos outros. Sonya os convidou para que se juntassem à mesa dela com o irmão, mas entendeu o olhar em resposta e os deixou sozinhos.

 Por dois dias, os dois não se preocuparam em conversar com mais ninguém além de um com o outro. Até que Gally foi chamado por um dos médicos na hora do almoço para fazer um procedimento e ela se viu sozinha.

  — Ei. – um garoto parou ao lado de sua mesa e ela ergueu a cabeça da mão. Eu tampei a boca sobre um sorriso. — Perenelle... não é?

  — Sim.

  — Sou Newt. – ele ergueu a pequena mão para um cumprimento e ela, após ouvir risadas e ver os olhares curiosos de Sonya e os outros, apertou. — É a amiga do Gally, certo? O que aconteceu com ele?

  — Ainda não faço ideia. Olha, se sua irmã inventou alguma brincadeira...

  — Ah, não. – Newt se apressou a dizer, acentuando as feições simpáticas. — É que, bom, os Grupos estão juntos agora. Acho que ninguém devia ficar sozinho.

 Ela franziu o rosto e cruzou os braços, encostando-se ao espaldar do banco.

  — Acha?

  — É só uma boa ação. Posso te apresentar aos meus amigos. A menos que olhar para o prato como alguém que perdeu o cachorro de estimação seja mais divertido. — ele disse.

 Ela olhou para a mesa de Sonya e viu outros garotos nela, Minho acenando com um sorriso idiota. Ela segurou o riso e cedeu ao convite, supondo que ter companhia para não pensar no que estavam fazendo com Gally fosse melhor.

 Newt e eu não tivemos tanto contato quanto na Clareira, em que praticamente perseguíamos um ao outro. Ele era o que mais me dava atenção, sim, mas não havia nada de mais. Absolutamente nada. Principalmente porque os pensamentos da “eu” mais nova sempre se voltavam para Gally, que ficou sumido por três dias, voltou, dizendo que tinha passado por uma cirurgia, e desmaiou no minuto seguinte. Os médicos o levaram de novo e ele ficou mais dois dias sem aparecer, enquanto eu batia na porta do Chanceler toda vez para saber o que estava acontecendo. Gally voltou bem, sabendo tanto quanto eu do que acontecera, e nunca descobrimos o que tinha sido a cirurgia.

 Os Grupos A e B haviam sido unidos por causa da proximidade da inserção ao Labirinto. Gally e eu havíamos tentado tirar alguma informação de Thomas ou Teresa (já que Rachel e Aris ainda guardavam ressentimento de mim), mas eles sempre desconversavam, e minha antipatia com a garota vinha desde então. Não era como se ela fosse discreta impedindo Thomas de falar qualquer coisa dando-lhe chutes por baixo da mesa.

 Faltavam alguns meses, mas os dias pareciam passar muito rápidos e meu nervosismo aumentava. Fui pega invadindo uma das salas de comando principais quando Gally disse que era possível entrar em contato com quem estivesse fora do complexo. Eu tinha tido um estalo na mente sobre me comunicar com o Braço Direito e pedir ajuda. Já tinha tentado antes, anos atrás, mas eu não conhecia nada sobre as instalações do CRUEL e me ocupava demais ter que cumprir castigos. Eu estava surtando aos poucos com a ideia de ter a memória apagada para fazer parte daqueles testes.

  — Pem. – Gally pôs a mão sobre a da garota, que, até então, encarava seu prato de comida totalmente absorta em pensamentos.

  — Hum? – ela virou a cabeça na direção dele, ignorando o frio na barriga que o toque dele trazia.

  — Se não comer isso, vai ser a terceira refeição no dia que você nega. — o olhar dele era até severo, carregando a austeridade que raramente demonstrava, mas que depois passou a ser frequente na Clareira. Algumas características nossas, talvez até defeitos, nunca seriam aflorados se não fosse pelo CRUEL.

  — Ah, sério? – ela franziu a testa para o prato, sem se lembrar disso.

  — Vai ficar tudo bem. Não vai ser uma cirurgia super bem equipada e tecnológica feita por cientistas a me fazer esquecer você. E você tem a sua super memória. Não vão conseguir te derrubar.

 A garota riu, e eu também. Se Gally tivesse noção de como estava certo...

 Ela tinha os olhos marejando e o peito ardendo com o entusiasmo de ouvi-lo falar daquela forma. Não tinha certeza se deveria dizer a ele o que sentia antes que perdessem a memória, ou se deveria justamente esperar até depois disso para ver no que dava.

 Dias mais tarde, quando o relógio marcava por volta de oito da noite, a garota decidiu ceder à ansiedade que não a deixava dormir. Tinha passado horas olhando para o teto e procurando o sono, mas nem as cores e todas as outras sensações, que costumavam distraí-la das angústias, estavam cumprindo seu papel nos últimos tempos. Eu me assustava vendo o quão específicas eram as fantasias dela de como as coisas se transformariam no Labirinto, principalmente porque ela entraria com o Grupo B. Acertou sobre a perda de algumas habilidades da síndrome e da sinestesia; todos ficarem contra mim se algumas lembranças retornassem; a mudança nas sensações sobre o ambiente e as pessoas; Sonya como uma das pessoas mais próximas, como Newt foi. A síndrome de Savant tinha a criatividade como uma das características aguçadas, mas aquilo mais parecia com profecias.

 Ela deixou de pensar em tudo isso e se levantou da cama para andar e esperar que assim a ansiedade fosse embora.

  — Ei, Gally estava te procurando. – Sonya disse ao ir de encontro a ela no corredor. As dezenas de meninas vinham atrás, saindo do refeitório. — Por que não foi jantar?

  — Estava tentando dormir cedo. – ela deu de ombros.

  — Vai precisar que eu fique na sua cama de novo?

 A morena riu com um revirar de olhos.

  — Não, idiota, não dá para ter pesadelos sem dormir. — ela disse.

  — Desculpe, estamos vivendo a mesma vida? — Sonya ironizou e acabou por desejar boa noite e seguir para o quarto.

 A Jordan mais nova continuou vagando pelos corredores, evitando passar perto do refeitório e encontrar com Gally. Estava lhe fazendo mal ter ele por perto com a chegada da inserção. Queria pensar sozinha e sem dividir com ninguém, pois faltava pouco para cair nas lágrimas do desespero.

 No entanto, após um tempo, a tentativa se revelou falha. Ela entrou num corredor e viu-o fazendo o mesmo do outro lado, correndo. Gally se meteu num nicho como quem se esconde, viu-a parada ali e fez sinais frenéticos para que ela se escondesse também. Supondo que algum guarda patrulhava por perto, a garota caminhou rapidamente até onde ele estava e se escondeu no segundo anterior ao que o guarda passou, distraído. Eles esperaram mais alguns segundos para falar, e a “eu” mais nova já o encarava inquisitiva.

  — Quê? Eu ia procurar saber se você estava bem. — Gally disse, na defensiva.

  — A essa hora da noite? Já nos deixaram ter a mesma rotina. O que acha que vão fazer se nos virem fazendo isso ainda?

  — Você esquece que estamos sendo vigiados 25 horas por dia e que sabem que saímos durante a madrugada, não é?

  — Bom, então é melhor voltarmos para os quartos. — ela disse simplesmente e se virou para sair.

  — Perenelle. – ele chamou paciente e inocentemente, e me lembro da tristeza que ela sentiu vendo a linha solitária da cor dele cruzar o ar. Ela se voltou para ele, inexpressiva. — O que foi?

  — Eu preciso falar?

  — Você precisa dizer. Soltar isso de qualquer forma. Se quiser, tem um quartinho de serviço a dois corredores cheio de coisas para quebrar. Podemos fazer igual daquela vez, lembra?

 Gally estava falando sério, porque realmente tinha funcionado quando fizemos isso antes. Juntamos diversos objetos diferentes e começamos a quebrar e arremessar para todos os lados de uma sala de aula, quando conversar sobre o quão horrível era aquele lugar não adiantava mais para nenhum de nós.

  — Seria ótimo. – ela respondeu, mas fitando o chão tristemente, o que não tinha acontecido na última vez em que ele dera a ideia. Os olhos dela tinham brilhado, em vez disso.

  — Mas? – ele instigou.

  — Não estou com tanta raiva. – ela moveu um dos ombros. — Estou frustrada. Sei lá, é um pouco deprimente ver que as coisas mudam depois de tanto tempo e mesmo assim...

  — ... se complicam mais? – ele emendou. A garota largou seu peso contra a parede, a expressão triste se acentuando. — É, também me sinto desse jeito.

  — Então por que só eu estou sendo a babaca que ignora você completamente? – ela questionou como se fosse a maior dúvida com que já se deparara.

  — Provavelmente você está com a cabeça mais no lugar. – ele deu de ombros e ela balançou as sobrancelhas.

  — Não colocaria nesse termo.

  — Aé? – Gally esticou uma das mãos e revelou um pano manchado de vermelho, amarrado ao redor das juntas de seus dedos. — Também estava indo pedir para trocarem o espelho do banheiro esta noite. Estou com raiva, Pem, e não é pouca. Eles me torturaram até que eu mudasse de nome, brincaram sabe-se lá quantas vezes com meu cérebro, e agora querem me tirar toda a memória. Vou nascer de novo aos quinze anos!

 Ela ainda encarava o ferimento dele, amargurada. Sua urgência para encontrar uma saída daquele lugar aumentava.

  — Não vamos ficar nem no mesmo Labirinto. – a menina murmurou com uma careta de dolorosa inconformidade.

 Gally passou as mãos pela cabeça, puxando o ar como um touro raivoso, e de repente desferiu um soco na parede com a mão machucada. Ele abriu a boca para xingar e a garota imediatamente a cobriu; sabia que fazer silêncio não adiantava, mas era costume. Ele abriu a boca num grito mudo, fechando as pernas sobre a dor.

  — Como espera sobreviver num lugar daquele sem os ossos da mão, imbecil? – ela indagou, pegando a mão dele nas suas e desfazendo o nó do pano. — Isso dói? – tocou as juntas menos ensanguentadas. Ergueu a cabeça para encará-lo e aconteceu de novo; o semblante dela foi tomado por uma expressão séria e melindrosa com o olhar dele sobre si. Eu sabia o quanto estava sensibilizada com Gally naquela época, mas ainda era difícil acreditar.

 Um tanto inconscientemente, eu me aproximei dos dois a passos lentos. Estava com medo, não sabia ao certo do quê. Não sabia o que aconteceria após acordar, nem como eu lidaria com todas essas lembranças; mas ainda assim, naquele momento, queria sentir o que a menina sentia, para ter certeza. Certeza de muita coisa em relação àquele assunto.

 Pela primeira vez desde que mergulhei naquele mar de lembranças, eu estiquei a mão e toquei a “eu” mais nova. Meus dedos encostaram seu braço e, no mesmo instante, um frio roçou na minha barriga, depois tomou conta dela toda. Newt veio diretamente à minha mente. Nosso primeiro beijo; o reencontro no Deserto e na cidade dos Cranks; as inúmeras vezes em que dormi com ele. Era, basicamente, o mesmo que ela sentia ali, com Gally. Alguns segundos se passaram até que minha visão ficasse embaçada e eu percebesse que queria chorar. Aquela menina não era mais eu. Não era mesmo. Mas também era, então agora eu sabia muito bem a falta que minha amizade com Gally fazia, e o quanto as coisas tinham mudado devido à perda de memória. Era confuso. Eu estava plenamente feliz com o que sentia por Newt... No entanto, para isso, Gally precisou ser completamente apagado da minha vida. Tudo o que sabíamos um sobre o outro, o que fizemos juntos, a confiança, o sentimento... Tudo ficou perdido.

 Uma mecha do cabelo dela caía perante o rosto, solta do rabo de cavalo. Ela tinha desviado o olhar para o chão de novo quando o dilema sobre dizer ou não o que sentia tornou-se insuportável. Gally ergueu sua mão de repente e afastou a mecha para o lado, descansando a mão sobre a lateral o pescoço dela, suspirando. A menina fechou os olhos, sentindo o peito doer com a imagem de serem separados para a inserção. Faltava muito pouco e ela simplesmente não conseguia agir contra isso, aproveitar enquanto era tempo. Julgava-se uma covarde.

 Ela sentiu o espaço entre eles diminuir, sentiu Gally se aproximar, e apertou os olhos ainda mais forte. Quando a respiração dele tocou sua pele, ela os abriu apenas por breves segundos e colou seus lábios aos dele. Era estranho, foi a primeira coisa que ela pensou com o contato, ainda que seu coração pesasse menos à sensação de missão cumprida. Gally não refugou, até porque parecia muito sem reação. A garota enfim deu um passo para trás, o corpo tão quente que ela teve certeza de que ele podia sentir com a mão ainda em sua pele. Ele logo a recolheu, sem ter ideia do que fazer. E ela soube que não sairiam daquela situação até que dissesse algo desinibido.

  — Ainda quero quebrar coisas. – murmurou para o chão, logo antes de encará-lo. Gally estava inexpressivo, mas assentiu com a cabeça prontamente.

 Eles foram para a tal sala, abarrotada de materiais que talvez se mudassem dali em breve para suas respectivas utilidades. Arrancaram o Datashow, arremessaram o projetor; quebraram canetas e lápis; desmontaram objetos e espalharam cada parte aos lances. Por aqueles poucos minutos antes de serem encontrados, sentiram a liberdade os tomar.

  — Devíamos continuar tentando fugir. – Gally comentou quando pararam por um momento para apreciar a destruição da lousa.

 Ela olhou para ele e abriu um imenso sorriso.

 Nós dois concordamos que era melhor eu ir tentar contato com o lado de fora do CRUEL para pedirmos ajuda, já que Gally sofria um risco mais sério desde que ajudou Minho no plano de fuga, anos atrás. A verdade era que foi melhor assim, pois, numa das primeiras tentativas, fui pega por um dos funcionários.

  — É melhor termos uma bela conversa. — o homem de jaleco branco disse com seriedade, segurando a “eu” mais nova pelo braço e arrastando-a até uma sala acoplada à de comando. Naquele momento, ela teve absoluta certeza de que ficaria aprisionada num quarto separado até o último segundo antes da inserção. Mas não foi bem assim.

 Nossa conversa foi mais longa que muitos exames juntos. O homem se chamava Queter, mas era conhecido pelo CRUEL como Denis, e seu jeito mais despojado que o dos outros funcionários não era à toa. Queter era infiltrado ali pelo Braço Direito, assim como, segundo ele, muitos outros foram. Ele conhecia a mim e a Kendrik, portanto sabia que tínhamos sido capturados, mas não pôde fazer nada enquanto não entrou para o CRUEL e conseguiu uma boa confiança do Chanceler. Queter me contou que minha mãe e Bruno estavam bem e que me ajudaria a sair dali para ir direto até eles, mas eu precisaria seguir exatamente o que ele mandasse, sem uma única falha, ou nem eu nem ele seríamos poupados. Minha desconfiança não foi pequena. Pelo contrário. Aquilo poderia ser um grande teste dos Psis. Contudo, após um interrogatório extenso da minha parte, tive prova suficiente de que ele era de confiança. Expliquei sobre Gally e que não fazia questão que Kendrik fosse conosco, mas ele rebateu dizendo que minha mãe o mataria se não conseguisse tirar meu irmão dali também. Fizemos um acordo, ele me explicou o plano com todos os detalhes, e, por fim, senti como se uma placa de chumbo de quatro anos tivesse sido arrancada das minhas costas por aquele homem.

 Queter cumpriu seu papel de funcionário e me levou para ser punida pela invasão na sala de comando, mas não contou o que eu estava fazendo de verdade e interveio na decisão de Ava para que minha pena conviesse com o plano.

 Precisamos ainda esperar até que Queter conseguisse contato com o Braço Direito, informando a fuga e que precisaríamos de algum transporte à disposição para quando saíssemos. Também resolvi contar a meu irmão no último momento, pois assim suas chances de nos dedurar eram menores e, mesmo que ele decidisse ficar, não poderia nos impedir de sair.

 Eu não dormi por algumas noites, então passava a maior parte do tempo sonhando acordada com Gally e o que se seguiria quando estivéssemos do lado de fora. Tudo o que poderia acontecer...

 Eram sonhos. Claro, quase nada saiu como o esperado.

 Meu coração batia forte na véspera da inserção. Gally e eu precisaríamos fazer muita coisa sozinhos, pois Queter precisava manter seu cargo; era o único do momento infiltrado no CRUEL. Assim, quando todo o Grupo B, separado dos meninos, estava enfileirado num corredor e sendo examinado por enfermeiras antes da retirada da memória, fui chamada por Queter para um exame. Sonya apertou minha mão. Estávamos assim desde que fomos colocadas uma ao lado da outra. Eu contara a ela sobre o plano, mas, por mais que eu chorasse imaginando deixa-la ali, ela dizia que não iria embora sem Newt e que era burrice envolver mais gente nisso e chamar atenção para o que estávamos fazendo. Sonya nos desejara boa sorte, e eu também. Trocamos olhares antes de eu me retirar da fila e seguir o homem para fora dali.

 Encontramos Gally e Kendrik quase do outro lado do complexo. Entramos numa sala médica, que eu havia visitado algumas vezes, e pouco a pouco o coração da menina martelava mais forte contra o peito. Fomos deixados em pé contra uma parede e falsamente instruídos por Queter sobre como seria o exame. Enquanto ele estava de costas, analisando papéis, eu me adiantei até uma máquina relativamente grande e a liguei com o máximo de cautela possível. Gally foi rapidamente pegar os eletrodos e se colocar próximo a Queter, em cima de uma cadeira, de modo que enganasse as câmeras sobre o homem vê-lo ou não. Como previsto, meu irmão gritou de onde estava para que não fizéssemos aquilo; Queter se virou, Gally colocou o aparelho em suas têmporas e se afastou até a menina, no instante em que ela ligava a máquina no mínimo. O homem caiu, tremendo da cabeça aos pés, e lembrar as incontáveis vezes que o agradeci antes pelo que estava se submetendo tranquilizou a garota quanto a não poder fazer isto naquele momento.

  — Quer ver a mamãe? – ela perguntou com urgência, agarrando os braços de Kendrik com as unhas. — Faça o que eu disser.

  — Você vai pagar muito caro por isso, cabrona. E não vai me levar junto.

 A entonação da voz dela mudou e de repente ela falava outra língua:

  — Eu bem que gostaria, mas estou fazendo isso pela mamãe. Imagine o que ela vai pensar do próprio filho que escolheu o CRUEL em vez dela.

 Ela falara em espanhol, de modo muito claro e direto. Apesar de toda a tensão do momento, lembrar a nacionalidade de meus pais me fez satisfeita.

  — Pem, vamos. – Gally disse à porta, olhando para um dos lados do corredor.

 Temendo que Kendrik realmente ficasse, a menina agarrou seu pulso com toda a força e o puxou para correrem. Cruzaram vários corredores e desceram escadas até o andar do estacionamento. Gally pegou um Lança-Granadas que escondemos pelo caminho para usar contra qualquer um que aparecesse pela frente. Nenhum guarda, médico ou alarme tentou nos impedir de sair. O mau pressentimento da garota nunca fora tão grande.

 Eles saíram para o estacionamento e pararam para olhar à procura do furgão do Braço Direito que os esperava. Ela viu a bandana amarela de identificação num carro grande e preto, mas, antes que pudessem correr até lá, guardas os agarraram de todos os lados. Ela se debateu nos braços de um deles e viu Gally fazer o mesmo. Kendrik apenas era segurado pelos braços, completamente imóvel. Houve um disparo. A menina foi solta quando seu guarda caiu no chão com um ferimento na cabeça e o que segurava Kendrik largou-o para atirar contra o inimigo. Ela foi tentar libertar Gally, chutar, gritar e bater com ele contra o homem fardado, quando Kendrik engatilhou o Lança-Granadas disponível contra os mais novos. Era possível ouvir os disparos do Braço Direito contra o outro guarda e os que saíam do complexo para ajudar.

  — Não podemos mais lutar. – Kendrik disse, posicionando a arma tão bem que era certo que já havia feito aquilo antes. — Vamos voltar para as salas de preparo. Em paz. Civilizadamente.

 Os minutos pareceram se alongar enquanto ele e a “eu” mais nova se encaravam. Nunca havia ficado tão claro de qual lado ele estava. A menina não sabia ao certo o que pensar, sua mente estava bagunçada pelo ódio do irmão.

  — Jordan!

 Minha mãe gritou de algum lugar, com uma voz estranha, mas era ela. Um alerta. Um chamado. Uma mensagem. O impacto que sua voz causou era absurdo.

 A menina avançou na direção de Kendrik para lhe tirar a arma, mas foi muito devagar, e se tornou a mira. Um guarda se aproximou correndo e meu irmão atirou nele, certamente por puro instinto. O outro soltou Gally e foi afrontar Kendrik, que recuou nervosamente e sem equilíbrio, disparando a granada sem uma mira concreta. Gally foi atingido. A menina arregalou os olhos e se abaixou ao seu lado, seus batimentos cardíacos como a única coisa que ela ouvia. Gally a encarava aterrorizado e ela torcia as mãos com a impotência sobre ajuda-lo. Não podia pôr as mãos nele. Só rezou para que as correntes elétricas passassem logo.

 O guarda restante mais próximo caiu com o mesmo ferimento que o primeiro. Homens fortes e sem farda, sem jaleco, agarraram Kendrik e agarraram a garota para arrastá-los dali. Ela não precisou de mais que um segundo para perceber que não havia ninguém para carregar Gally.

  — Não! Não! Ajudem ele! Gally! – ela berrava, balançando os pés no ar para lutar contra.

  — Sinto muito, menina. – um deles disse.

  — Não!

 Gally continuava tremendo no chão, mas ela conseguia ver perfeitamente que o efeito passava. Continuava a ser arrastada para o furgão sem ele. Sem o melhor amigo que tivera em toda a minha vida. Ela podia jurar que uma parte de si ia se esvaindo de seu corpo e ficando como rastro no chão. Ela continuava a gritar e a se debater, ainda que a força empregada em seus braços para que fosse contida a machucasse.

 Guardas continuavam a atirar contra o Braço Direito, enquanto alguns deles revidavam para dar cobertura aos mais novos e aos homens.

  — Não se esqueça de mim... Por favor, não se esqueça de mim... – a garota sussurrava aos prantos, encarando Gally com as bochechas molhadas. Ele começava a ser erguido por médicos.

 Todos entraram no furgão e a porta foi fechada. Ela ainda estava imersa no choro e nos soluços quando foi envolvida pelos braços da mãe.

  — Minha filha... – a mulher murmurou com alívio e preocupação na voz, pressionando a cabeça da menina contra seu peito. As duas choraram, apertando-se uma contra a outra, enquanto o carro partia para longe dali.

 Acusei meu irmão por semanas sobre Gally ter sido deixado. Contei a minha mãe e Bruno sobre a posição dele em relação ao CRUEL, sobre como ele agira durante aqueles anos lá e sobre como os ajudara. E vi isso não fazer a menor diferença. Minha mãe conversou com ele a respeito, mas, aparentemente, a mentira que ele, decerto, usou como desculpa serviu muito bem. O assunto foi deixado de lado. Ela sempre me contrariava quando eu o acusava. Acreditei quando disse que eu estava agindo daquela forma pela falta que Gally fazia; de acordo com tudo que eu havia estudado, isso era, sim, uma parte dos motivos. Mas não era tudo, e jurei a mim mesma nunca esquecer isso.


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Notas finais do capítulo

Curiosidade: a cirurgia pela qual o Gally passou foi uma tentativa de colocar o mesmo implante de telepatia que Teresa e Thomas tiveram, mas para ligá-lo à Nelly. O organismo de Gally não o aceitou, no entanto.
*Cabrona significa em espanhol basicamente o que queremos dizer com vadi*.
Entoooon, agora temos praticamente tudo da vida da nossa Nelly por aqui. Agora só falta o que ela vai fazer no futuro... Acham que todo esse esforço vai valer a pena?
Espero que tenham gostado ^^

Até o próximo!



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