Socorristas escrita por BlueBlack


Capítulo 37
Uma metade da laranja - Parte 1




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Eu recobrei a consciência, reprimindo um gemido rouco na garganta. Soltei um soluço e puxei o ar por entre os dentes e me permiti chorar. Eu teria que abrir os olhos e encarar o que me cercava de qualquer jeito, então não me importava em deixar esse momento para depois. Recolhi meu corpo em posição fetal, cobrindo minhas orelhas com os braços e entrelaçando meus dedos atrás da cabeça, afundando-me no gosto de canela que sentia. Com toda a bagunça que estava os meus pensamentos, quis me concentrar apenas na música da Transformação. Eu sentia como se estivesse de volta à Caixa, de volta ao início, e não sabia se seria bom ou ruim caso fosse verdade.

 

E aqui vou eu

Oh oh oh oh

Oh oh oh oh

Oh oh oh oh

 

Cinco, quatro, três, dois, um

 

A arma se foi, assim como eu

E aqui vou eu

 

 Meu choro foi passando à medida que eu cantava a música em voz alta, sem ter ideia se havia mais alguém ali. Os soluços cessaram e meu corpo ficou menos tenso. Suspirei uma última vez antes de abrir os olhos.

 Eu estava deitada no chão, cercada de paredes brancas e uma luz absurdamente clara. Uma porta se abriu alguns metros à minha frente, dando passagem ao Cara-de-Rato e mais dois guardas para caminharem na minha direção. Tentei me movimentar para longe, mas senti como se meus membros pesassem toneladas. Meus olhos mal se abriam. Era como se todo cansaço que já senti nos últimos meses tivesse sido injetado em mim. O Cara-de-Rato parou perto demais e se abaixou.

  — É uma pena, Perenelle. – ele disse.

 Sua mão foi erguida segurando uma seringa. Era isso. Era aquela a minha sentença de morte. Só esperava que Newt me perdoasse por ter saído da cama.

Ao abrir os olhos outra vez, eu não tinha ideia se estava viva ou morta. Senti o arrepio que percorreu meu braço ao toque de mais uma agulha. Não saberia que era uma agulha se não fosse pela sensação de algo entrando em minha pele com facilidade. Eu devia estar sedada o bastante para não senti-la espetar.

 Encarando o teto, percebi que agora havia bem menos luz no local, uma lâmpada estava acesa bem acima de mim. Tinha mais pessoas ao meu redor, eu só não conseguia vê-las. Tentei produzir algum som, mas parecia haver uma caixa inteira de algodão na minha boca. Meus membros não me respondiam, eu quase não os sentia.

  — A linha entre o talento profundo e a deficiência profunda parece ser realmente muito tênue. – uma mulher disse, reflexiva. Ela estava logo ao meu lado, ainda que sua voz soasse muito distante, cheirando a puro mofo. — Ela está pronta. – sua respiração se aproximou mais. — Sugiro que feche os olhos.

 Algo rangeu, raspou e tiniu, e em seguida uma coisa negra e monstruosa descia das sombras do teto em direção ao meu rosto. Não estava certa do que era, mas não podia ser bom. Meus olhos se arregalaram e fiz de tudo para me mexer. Um ecocardiograma produzia um apito irritante no local.

  — Frequência cardíaca se elevando. – alguém informou.

 A mulher respondeu alguma coisa e o aparelho acima de mim parou de se aproximar. Tudo ficou quieto, ou pelo menos pareceu. Meu coração era a única coisa barulhenta. De repente, alguém se aproximou.

  — Nelly... Estamos quase lá... Fique calma.

 Newt me observava com o olhar singelo, falava com o sotaque doce de sempre. Mas o que ele estava fazendo ali?

  — Apenas confie em mim, okay? Tudo vai dar certo. Estamos quase lá...

 Ele sorriu fracamente e pareceu esticar o braço para segurar minha mão, mas não senti toque nenhum. Newt nunca sorrira daquela maneira.

 O aparelho recomeçou a abaixar, rangendo, e ele não tirava os olhos de mim. Meu rosto foi coberto por aquela espécie de máscara e a armação dela escondeu Newt brevemente. A sonolência me fez piscar muito devagar, e subitamente ele não estava mais ali. E então estava. Depois não estava de novo. Assim me dei conta de que em momento algum eu havia visto a cor amarela. Mais rápido do que pude acompanhar, a escuridão me tomou, e junto dela veio uma dor muito estranha. Ela existia e era enorme, mas meu organismo parecia indiferente a isso e meus nervos não pareciam afetados. Ela não me incomodava.

 Eu me sentia passando pela Transformação novamente. Estava inconsciente e consciente ao mesmo tempo; em lugar nenhum, mas sabendo que minha mente tentava se situar. Era como olhar para todos os lados, na busca por alguma coisa em específico. Eu não tinha ideia do que deveria encontrar, mas, provavelmente, aquela máscara tinha, assim como o Soro da Dor tivera.

 O que quer que fosse que estava fazendo aquilo comigo parecia tentar me dizer algo bem do fundo da minha mente. Parecia importante e, de qualquer forma, o que mais eu poderia fazer além de descobrir o que era?

 Tentei me desligar da consciência e esquecer a vontade de acordar. Era como se concentrar para desativar todos os seus sentidos, até que apenas um funcionasse. Aos poucos, eu me sentia cada vez mais próxima. Uma camada de ar frio e ao mesmo tempo quente vinha de algum lugar e me preenchia da cabeça aos pés. Ouvi um burburinho, como se um canal estivesse sendo sintonizado. Senti gosto e cheiro de bolo de limão. Enfim, eu pisava em algo sólido, a ansiedade me dominou. Percebi que estava mesmo de olhos fechados, então os abri. Eu não estava acordada. Aquilo era mais calmo que a Transformação, principalmente porque eu não estava vendo a cena. Olhando ao redor, percebi que estava mesmo nela, como um segundo plano da Terra. Era o Paraíso? Inferno, talvez?

 Era um refeitório. O teto não era muito alto, mas o espaço era bem amplo. Várias mesas compridas com bancos estavam perfeitamente alinhadas, servindo comida a dezenas de crianças. Garotas. A falação tornava o local barulhento, ainda que não gritassem. Havia dois homens fardados guardando as portas duplas de entrada, e outros dois fazendo o mesmo do outro lado do balcão de comida. Eu não reconhecia ninguém de imediato e logo entendi a razão: aquele era o Grupo B. Mesmo que eu tentasse, levaria um tempo para reconhecer ao menos Sonya no meio de tantas.

 Alguém isolado me chamou atenção, no entanto. E só precisei do breve segundo que ela levou para erguer a cabeça do prato e pegar seu copo de água para saber quem era. Eu mesma. Bem baixa e com traços infantis de 10 anos, ainda que claramente muito insatisfeita e revoltada. Era eu no quarto dia após ser levada para o CRUEL.

 Aproximei-me da mesa perto da janela que a garota ocupava sozinha e observei-a como se estivesse hipnotizada. As bochechas já eram grandes nessa época e seu cabelo era apenas um pouco mais acima dos ombros. Não era nada bonita. Particularmente, parecia uma experiência de laboratório que dera errado.

 Duas garotas pararam perto, olhando para a “eu” mais nova. Ela não ergueu a cabeça, continuou comendo.

  — Hum... Oi. — uma delas disse. Seu nome era Kalah.

  — Oi. — ela respondeu.

  — Você é nova, não é? Faz anos que não temos alguém novo. Qual o seu nome?

  — Quer saber o de verdade ou o que forçaram a entrar no meu cérebro através de sessões de torturas físicas e psicológicas por dois dias inteiros? — ela devolveu, deixando para encara-las no final. Eu sabia muito bem o quanto a incomodava lembrar daquilo, apesar da pose.

  — Ainda lembra seu nome? — a primeira perguntou, surpresa.

  — Você não?

  — Nenhuma de nós levou tanto tempo para esquecer. – a outra, Dina, desacreditou. Tinha as feições indianas e o cabelo bem preto mal trançado nas costas, além de certo desprezo pela grosseria.

 Aquela “eu” pensou em deixar isso quieto e não se intrometer com como os outros iam lidar com aquilo, um traço da maturidade que cresceria mais tarde. Mas ela estava cansada o bastante para se dar o trabalho de se importar com desconhecidas.

  — Vocês lembram, sim, o nome de vocês, só são covardes demais para enfrentar esse bando de monstros que se denominam bem feitores. — ela replicou.

  — Não tem coragem de dizer seu antigo nome. — Dina desafiou, cruzando os braços como uma superior.

 A garota respirou fundo, alternando o olhar entre as duas como se decidisse.

  — Meu nome é Jordan Sonora de Lacerda, inspirado em Jordan E. L. Yamanaka, a neuropsicóloga que descobriu a cura para o Transtorno do Espectro Autista e descendente de Shinya Yamanaka, o cientista japonês que recebeu o Prêmio Nobel em medicina pelo método dos minicérebros para reprogramar células de autistas e estuda-las. — ela disse cada sílaba de modo bem claro, como se quisesse gravar as palavras na mente das meninas. Na minha, com certeza, havia feito mais que isso.

 Eu agora lembrava perfeitamente o porquê de minha mãe se inspirar naquela neuropsicóloga. Eu, assim como a médica, possuía síndrome de Savant, um distúrbio psíquico que antigamente era mais frequente em pessoas com autismo, ainda que não fosse o meu caso. Essa era a razão de eu ter aprendido tão rápido tudo que minha mãe me ensinou desde que nasci, saber medir tudo com precisão, saber fazer a bomba de fumaça, ser tão obcecada com padrões... Era esse o motivo, acima de tudo, para eu estar me lembrando de tanta coisa desde a Transformação. O processo certamente tinha sido o último recurso de que a síndrome precisava para reativar a memória absurda com a qual nasci. Considerando alguns dados, estatísticas e raciocínio lógico, a sinestesia também se aproveitara do Soro.

 Uma movimentação no refeitório me trouxe dos meus pensamentos cedo demais. Os guardas das portas deram espaço para que outros dois passassem e viessem até nós. As meninas se afastaram, enquanto a outra era tirada do banco à força e arrastada para fora do local aos protestos e bracejos. Eu lembrava qual tinha sido a tortura daquela vez. Quase podia sentir as picadas dolorosas atrás da orelha.

 As portas se fecharam com um barulho alto me sobressaltando e fechei os olhos por um momento. Soltei um suspiro para me manter focada. Jordan. Tive uma imensa vontade de rir com a descoberta, mas meus olhos já estavam abertos outra vez.

 Estava numa sala que mais parecia de interrogatório, com uma mesa entre duas cadeiras e apenas um abajur como iluminação num canto. Eles nunca se davam o trabalho de colocar muita luz, para que a minha visão noturna estivesse o tempo todo sendo aprimorada.

  — Medida do refeitório. — uma mulher disse, sentada de frente para a “eu” mais nova, com uma prancheta na mão.

  — 97, 88 metros quadrados. — a menina respondeu entre um suspiro.

  — Medida do quarto.

  — 58, 96 metros quadrados.

  — A soma da medida da sala de aula com esta aqui.

 A menina girou os olhos pelo local por alguns segundos e fitou, totalmente inexpressiva, a mulher.

  — 72,24 metros quadrados.

  — Muito bem. Agora quero que repita com exatidão o desenho do labirinto que viu na semana passada.

 Com isso, lembrei que levara menos de dois meses após a minha chegada para que decidissem me inserir na construção do Labirinto com Rachel e Aris. Ou tentar, pelo menos. Dois encontros lá no subsolo foram o suficiente para que o CRUEL percebesse que eu não estava muito afim de ajudar. Sabotei algumas partes dos projetos de Aris e Rachel; fiz todo o oposto do que mandavam; e até dei ideias comprometedoras, que eles chegaram muito perto de executar. Lutar contra uma coisa tão grande dos Criadores me rendeu dias com pouca ou até nenhuma refeição, e sessões de tortura que me fizeram ir parar na enfermaria duas vezes em uma semana. As consequências foram boas, no entanto, pois a quantidade de vezes que roubei livros sobre Medicina e matei aulas para conhecer mais sobre o assunto os fizeram perceber que ao menos havia algo para que eu servia sem que houvesse desavenças. 

 Isso era uma meia verdade.

  Passar o tempo que eu passava na enfermaria e decorar livros na medida em que eu decorava fazia com que minha mãe estivesse com ainda mais frequência nos meus pensamentos. Até a minha participação no Labirinto começar, eu só me concentrava em querer fugir daquele lugar. Eu focava na raiva do que faziam comigo e esquecia de todo o resto. Confrontar era a única coisa que me fazia levantar da cama toda manhã. Estar em contato com a Medicina só fez isso voltar e se acentuar.

 Bruno, meu padrasto, ensinara-me tudo que eu sabia sobre enganar, sabotar, trapacear e fazer minha própria diversão. Minha mãe apoiara, já que sabia que precisaríamos de bons métodos para nos defender daquele mundo. E sob o teto do CRUEL e todas aquelas atrocidades, eu queria os dois perto de mim o mais rápido possível. Assim, sem querer abdicar do tempo que eu tinha para ficar na enfermaria, comecei a matar aula para colocar minha diversão em prática.

 Eu estourava bombinhas em salas de trabalho completamente silenciosas; roubava cartões de acesso para invadir certos locais e encher os Lança-Granadas com água; soltava bombas de fumaça quando me perseguiam pelos corredores... Sem contar o esforço para manipular as câmeras de segurança. Eu sabia quais eram as consequências disso tudo, tanto que pude ouvir Ava Paige conversar com um Psi uma vez sobre novas torturas para mim, outras que me afetassem de forma diferente. Isso resultou num nível absurdo de violência da minha parte, ainda antes dos 11 anos.

 Revivendo as lembranças, fiquei assustada com o quão suscetível eu passei a ser. Qualquer coisa me fazia reagir, bater, gritar ou negar naquele tempo.

 A “eu” mais nova estava sentada na beirada da própria cama, de frente para um prato de comida na mesa e um dos médicos. A refeição era uma batata cozida e água. O castigo era por eu ter disparado a arma de um dos guardas contra uma professora. Não acreditaram em mim quando disse que tinha sido sem querer, por mais que fosse verdade. E eles possuíam recursos para descobrir se eu estava mentindo ou não, e ignoraram completamente minha honestidade. De qualquer forma, eu não devia estar do lado de fora da sala durante a aula.

 Quando o médico estava perto da porta para sair, a garota atirou o prato na parede bem ao lado dele.

 No começo, fiz aquelas brincadeiras por puro entretenimento. Mas as torturas estavam me destruindo, então percebi que, talvez, assim eu me tornasse descartável para eles; uma louca quase como os Cranks e, dessa forma, um estorvo nas pesquisas.

 Para eu ser mandada embora, contudo, estava levando mais tempo do que eu, com 10 anos, havia imaginado. Minhas idas à enfermaria se tornavam necessidade por excesso de vômito, insônia, má alimentação e alucinações. Eu tinha lido o suficiente para saber que aquilo poderia me matar.

 Desde que comecei a sair do controle, eles me mantinham separada das outras meninas em tudo: refeições, quarto, aulas. Por isso, numa noite em que, sem razão aparente, tive permissão para jantar com elas e encontrei o refeitório vazio, eu estranhei. No dia seguinte, no almoço, quando eu estava calculando uma quantia maior de ingredientes para fazer uma bomba de fumaça mais duradoura, cinco garotas vieram de uma só vez conversar comigo. Eu sempre tratava todas elas com certa grosseria, e após os avisos que receberam para não seguirem meu mau comportamento, todas tinham passado a me evitar totalmente, então não pude deixar de estranhar a aproximação.

 Não levou muito tempo para eu descobrir que os Criadores haviam pedido a elas para que fossem minhas amigas e me tornassem menos “como eu era”. Só serviu para me revoltar mais.

 Eu agora via a Jordan mais nova girando uma manivela próxima ao chão para outra pegadinha contra algum desatento que entrasse na sala de aula.

  — Você era muito irritante. – eu falei, encostada à parede com um semblante tedioso.

 Os minutos passaram; provavelmente os Criadores tentavam descobrir qual câmera de vídeo ela havia manipulado. Ela já estava escondida dentro de um armário, contudo, quando enfim descobriram, e bem posicionada para ver o show. Àquela altura, erros da parte dela eram raros. O guarda entrou na sala e o movimento que a porta fez ao se abrir soltou o estilingue com uma seringa na direção do pescoço dele. Ali havia adrenalina o bastante para fazer o guarda molhar as calças. A menina saiu correndo às gargalhadas pelas curvas do complexo, sem se dar o trabalho de soltar as bombas de fumaça daquela vez, para que todos pudessem ver o guarda.

 Ela corria a toda velocidade, até trombar com alguém que vinha carregando uma pilha de caixas suficientemente grande para que impedisse de ver o que estivesse logo à frente. Duas das três caixas caíram no chão com um barulho bem alto de metal batendo.

  — Opa... Foi mal. — a garota disse e riu em seguida, recuperando o fôlego.

 Eu estava prestes a sair à procura de uma lembrança por minha própria conta, abrir uma porta ou fechar os olhos por um longo momento e me concentrar, quando a pessoa abaixou a última caixa e pude ver seu rosto, o mesmíssimo que eu havia conhecido.

  — Sou um cara morto... — Gally resmungou agachado, analisando o conteúdo das caixas.

  — Ei, você é um garoto. — a menina disse, sentindo gosto de bolo caseiro. Era a primeira vez, desde que fora afastada da mãe, que a sinestesia lhe trazia uma sensação que não fosse ruim.

 Caminhei até eles quase correndo, parei bem ao lado e alternei o olhar entre os dois como se não acreditasse que estavam mesmo ali, frente a frente um com o outro, muito mais cedo do que eu poderia imaginar.

  — É, por pouco tempo. — ele respondeu, fechando as caixas.

  — O que faz aqui?

  — Trabalho. — disse simplesmente, ainda sem olhá-la.

 Ela ficou sem palavras e sem saber ao certo o que perguntar, apenas vendo-o fazer esforço para reerguer o material.

  — Você não quer ajudar? — Gally perguntou, indignado.

 Aquela “eu” franziu o rosto como se ele falasse outra língua, mas ajudou a colocar uma caixa sobre a outra nos braços dele, enquanto eu tinha a expressão completamente assombrada. As antigas palavras de Gally pulsavam na minha cabeça: “Sinto que nos conhecíamos muito bem antes de vir para a Clareira”. Meu raciocínio simplesmente parara.

 Antes que alguém pudesse dizer mais alguma coisa, guardas surgiram correndo e ela mediu o garoto com os olhos uma última vez com atenção, e então fugiu.

 A curiosidade sobre Gally não durou muito, pois o castigo com tortura psicológica daquela vez rendeu uma semana inteira com menos de vinte horas de sono, e o ocorrido pareceu nunca ter existido.

 Era estranho como as lembranças dentro daquela linha temporal se misturavam tanto, e eu precisava ver o que tinha acontecido mesmo já sabendo o que acarretara. Sentia-me um fantasma dentro daquilo tudo, parecia certo assim. Talvez a estranha máscara que controlava minhas memórias provocava isso.

 Enquanto aquela “eu” passava pelo castigo, os médicos faziam análises comparativas entre os meus dados e os de Gally, o que resultou na ideia de que o garoto talvez precisasse voltar ao Grupo B mais vezes. Consequentemente, Paige logo foi até o quarto da menina com o aviso da mudança no cronograma daquele dia. O ódio nos olhos da mais nova derreteria a mulher, se não fosse pela grossa casca que ela possuía.

  — Mais sessões de tortura? — a menina arriscou, cravando as unhas no colchão para não chorar na frente da doutora.

  — O evento de hoje só irá se repetir se for do seu desejo.

 A garota soltou uma gargalhada de escárnio. Era bom descobrir que o CRUEL era o responsável por tirar naquela época os parafusos que me faltavam hoje em dia.

  — Se forem me dar a escolha de desejar alguma coisa, eu desejo...

  — Sair daqui, eu sei. Não há um funcionário neste complexo que não tenha ciência disso, Perenelle.

  — Jordan. – eu sussurrei em correção, observando o modo como a mulher falava. Todos eles agiam como se realmente fôssemos apenas fantoches, que nossa identidade não importava. Era inimaginável o quão bem deviam se sentir por terem tido tanta influência na nossa formação como ser humano.

  — Porém, dadas as circunstâncias, receio esta ser a única oportunidade de escolha que terá. — Ava disse, uniu as mãos em frente ao corpo e tornou a falar. — Perenelle, pode pensar o que quiser sobre o que fazemos aqui, mas não se esqueça de que tudo é pelo bem da raça humana. E precisamos de você nisso. Então, não vou deixar que algo te adoeça seriamente e te tire de nós. É inteligente o bastante para saber a que me refiro.

 Não foi a primeira vez que tentaram usar meu interesse pela Medicina como meio para eu compreender o que faziam.

 A garota seguiu Paige para fora do quarto, certa de que não poderia ser nada pior do que já tinha passado. Após alguns minutos, o caminho ficou diferente de qualquer um que já tinha feito. Pararam num corredor igual a qualquer outro, contudo, e a mulher pôs a mão sobre a maçaneta prateada de uma porta branca. Nem eu nem a garota entendemos o porquê dos dois segundos que ela esperou para abrir. Ava olhou para o lado de dentro e então para a mais nova.

  — Divirtam-se.

 Sem entender nada, a menina deu uma última olhada para a doutora e entrou, eu logo em seu encalço, ainda que, no fundo da minha mente, eu já soubesse do que se tratava.

  — Oh... — ela murmurou ao ver Gally sentado do outro lado de uma mesa no centro da sala, tão escura quanto ela já estava acostumada. Seu paladar era tomado por tutti frutti e vê-lo a fazia sentir-se inocente.

 Ele estava com os ombros largados e as mãos unidas sobre a mesa, mas ergueu uma delas para acenar brevemente, os lábios comprimidos num sorriso desconcertado. A menina se voltou na direção de Ava, mas a porta já se fechava. Ela olhou para o espaço ao redor distraidamente, sem ter ideia do que fazer ou onde pôr as mãos.

  — Sabe por que estamos aqui? — Gally perguntou.

  — Não. — ela respondeu para o nada, torcendo para que Ava voltasse.

 O garoto desviou o olhar por um tempo, aparentemente para pensar em alguma coisa.

  — Qual o seu nome? — ele disse, falhando no esforço de parecer descontraído.

 Ela o encarou quase imediatamente, semicerrando os olhos como se fosse um sensor. Já lhe passava pela cabeça o possível motivo daquilo.

  — Por que está aqui? — ela perguntou.

  — Eu não sei. Não disseram nada além de que era importante. E você?

  —  Parece que eu sei?

  —  Parece que você não gosta de responder perguntas.

 A menina encarou a parede outra vez.

  —  Certo. Vamos ficar olhando para o nada, talvez funcione e eles desistam. — Gally largou suas costas no espaldar e ela o fitou por um tempo, mas passaram ainda alguns minutos calados.

  — Vocês dois não mudaram nada, sabiam? – comentei, impaciente com aquilo. — Deviam s-

  — O que estava fazendo aqui naquele dia? — ela perguntou finalmente.

  — O que eu disse: trabalho.

  — Mas nunca vi nenhum outro garoto por esse lugar.

  — É, também nunca vi nenhuma garota. Há quanto tempo está aqui?

  — Quase um ano. Você?

  — Seis anos. A maioria dos garotos do meu dormitório também.

  — As meninas disseram que fazia tempo que não recebiam mais ninguém. Mas não fico no dormitório com elas.

  — Você é uma daqueles especiais? — ele ergueu as sobrancelhas em surpresa. — Ouvimos falar muito deles, mas nunca os vimos. É você? Estou sendo o primeiro a te conhecer?

  — Sim, e devia ter mais modos ao se dirigir a mim. — ela ironizou, ainda que séria e unindo as mãos atrás de si com uma postura superior.

 Gally olhou para o lado e flexionou os lábios para baixo como se concluísse que ela estava certa. Levantou-se e se afastou da mesa para fazer uma reverência tão exagerada que quase perdeu todo o equilíbrio. A menina riu alto e cobriu a boca rapidamente.

  — Mas, falando sério, é você? — ele indagou ao retomar o lugar.

  — Não. Fico separada das outras porque sou má influência.

  — Então por isso estava correndo feito louca naquele dia.

  — É, faço muito isso.

  — Eles não dão bronca?

  — Torturaram a gente até que mudássemos de nome, cara. Acha que deixariam isso passar impune?

  — Acho estupidez fazer isso mais de uma vez.

  — Está me chamando de estúpida? — ela franziu o rosto em descrença.

  — Estou chamando a atitude de estúpida. Bom, que sentido isso faz afinal?

 A menina continuou encarando-o, tomando conclusões demais sobre ele.

  — Eles te mandaram fazer isso, não foi? — ela disse.

  — Isso o quê?

 Ela crispou os lábios com os olhos meio fechados de novo.

  — Esquece, não vai funcionar. Não acredito que pareço ser uma criança tão idiota!

  — Eu não estou entendendo nada.

  — Aqueles aparvalhados te mandaram aqui para que eu fosse convencida a parar de fazer o que eu faço, não é?

  — O que você faz? — ele se inclinou sobre a mesa com certo interesse, como se estivesse preses a ouvir um grande segredo.

 Ela cruzou os braços com uma forte carranca irritadiça e virou o rosto para o lado.

  — Tudo bem, devo ter me expressado mal. E começamos errado. Juro pela minha mãe que não tenho ideia do motivo para estarmos aqui. — Gally disse, pondo-se de pé como ela ainda estava. —  Eu estava trabalhando quando me chamaram. É alguma novidade para você que eles escondam coisas de nós?

 A menina rolou os olhos na direção dele. Estava forçando a carranca àquele ponto, pois, na verdade, magoava-a que pudesse estar sendo enganada; ela realmente tinha achado o garoto legal.

 Com a ausência de resposta, Gally começou a olhar para todos os lados do teto.

  — Ei! Ei! Se estiverem nos ouvindo! Acho que estão gastando nosso tempo à toa! — ele gritou, depois começou a gesticular pateticamente para tentar passar a mensagem, e ela precisou fazer grande esforço para não cair da risada.

 Aquele foi o primeiro dilema de toda a minha vida. Fazer com que Gally e eu nos déssemos bem podia ser um plano maléfico do CRUEL, e muitas coisas passavam pela minha cabeça de 11 anos sobre o que significaria “maléfico” naquele caso. “Mas ele é legal”, foi o que ela pensou, “e não parece estar mentindo, ele é bem idiota”. E, além disso, ela queria um amigo.

  — Qual o seu nome? — ela perguntou numa voz fraca.

 Ele a fitou como se ela tivesse contado a cura para o Fulgor.

  — Gally. — respondeu.

  — Jor... — ela parou, e meu coração quebrou em mil ao vê-la fechar os olhos e respirar fundo antes de erguer a mão para um cumprimento. — Perenelle.

  — É um nome muito legal. — ele disse ao devolver o gesto.

 Ela sorriu de canto com o elogio, e nisso eu soube que Gally era a razão para eu ter deixado a revolta com a insignificância do nome de lado e parado de negá-lo tanto mais tarde.

 Balancei a cabeça e respirei fundo, fechando os olhos e pondo os dedos nas têmporas. Não queria pensar demais antes de ter visto tudo que a máscara tinha.

 Eles tiveram pouco mais de vinte minutos de conversa após isso, e ela aceitou a proposta de Paige para que eles se vissem no próximo fim de semana, contanto que ela não pregasse peças em mais ninguém. Aquela “eu” ainda não sabia se valia tanto a pena assim encontrar com ele, por isso matou uma aula naquela semana para ficar na enfermaria lendo. Mas só uma.

 No segundo encontro, a conversa se desenrolou como se nunca tivesse ocorrido desentendimento. Gally contou sobre os garotos de seu dormitório, as saídas secretas que alguns faziam para sabe-se lá onde e que não os acompanhava porque o sono vencia sua curiosidade.

  — O sono ou o medo? — ela disse com um sorriso divertido.

  — Medo? Estão fazendo isso há semanas. Se fosse para serem pegos, já teria acontecido.

  — Muito bom saber. — ela se remexeu na cadeira com entusiasmo e ignorou o olhar desconfiado dele.

 A Jordan mais nova levou duas noites para descobrir qual era o caminho que Gally fazia até o Grupo B e saber quais câmeras ela deveria manipular.

 Ela deixou de lado as cerimônias e entrou sem bater no dormitório, no meio da madrugada, apenas tomando o cuidado de ser silenciosa enquanto procurava por ele entre todas as dezenas de beliches do quarto. A única luz era uma de emergência no fundo. Com a facilidade para ver no escuro, não demorou a concluir que ele não estava em nenhuma das camas de baixo. Pude reconhecer Mike deitado perto da luz, dormindo, com o mesmo topete ao que estava acostumada. Jamais esqueceria agora a enorme espinha em seu nariz.

 Gally estava com o braço esticado para fora de uma das camas de cima, o que chamou atenção, então ela logo subiu a pequena escada.

  — Gally. Gally. — ela sussurrou urgentemente, chacoalhando-o.

  — Ei. O que está fazendo aqui? — sua voz era pesada.

  — Bom, estou contando com a sua bravura.

 Ela sorriu com energia e fez sinal para que ele a seguisse para fora do quarto. De volta ao chão, foi necessário apenas um relance involuntário para Herman ser localizado numa das camas de baixo. Kendrik. O nome foi substituído na minha mente no segundo em que a expressão da garota se fechou. Eu não fiz questão de lembra-lo. Era verdade que, desde o momento em que nos separaram no complexo, foi como se eu carregasse menos um peso. Eu tinha pensado algumas vezes se havia algo de errado comigo para não gritar e chorar por estarem separando meu irmão de mim. Eles simplesmente... o levaram. E ele tampouco pareceu se incomodar com isso também. Nosso mau relacionamento era de sempre, mas, sem dúvidas, piorou após alguns anos no CRUEL.

 Gally pulou no chão e acompanhou o olhar da garota, que saiu do quarto no segundo seguinte sem dizer nada.

  — Tem algo errado? — ele perguntou ao fechar a porta e vê-la de costas, olhando para o chão com os olhos fora de foco.

  — Hum? — ela se virou e o encarou com as sobrancelhas arqueadas. — Ah, não. Tudo bem. Você... conhece aquele garoto? Na cama de baixo do terceiro beliche?

  — Era o Herman. Por quê?

  — Herman... — ela repetiu num murmúrio para o nada.

  — Ele fica com a equipe de trabalho pesado na maioria das vezes, acho que por causa de... Você sabe. — Gally abriu os braços ao lado do corpo. Realmente tínhamos a estrutura mais encorpada que atualmente. — Mas já o vi com uns médicos. Ele... Ei, ele está aqui há tanto tempo quanto você!

  — Dim-dim-dim, o pirata encontrou a pista. — ela cantarolou com um sorriso forçado. — Ele é meu irmão.

  — Quer que eu o chame?

  — Quê? Não! Nada disso. Vim aqui pelo quão corajoso você diz ser. — ela pôs as mãos na cintura, tentando afastar completamente o irmão da cabeça. — Vamos fazer um tour noturno.

  — Por onde? — ele ergueu uma sobrancelha em confusão.

  — Não sei. Você conhece área. Mas comecemos pelo ponto mais importante: estou com fome.

 O rosto ainda confuso de Gally foi a última coisa que vi antes do local ao meu redor mudar subitamente. Os dois estavam numa cozinha tão clara quanto os outros corredores agora, entre bancadas vazias, utensílios pendurados e fogões. Gally terminava de fechar a porta bem devagar enquanto ela girava sobre os pés, observando tudo.

 — Okay, quem sabe eles não escondem uma comida que preste em algum lugar? — ele disse.

 Ambos começaram a vasculhar tudo e, aparentemente, o CRUEL confiava bastante em seu sistema de segurança, pois não havia trancas ou cadeados em nada. A garota amontoava frutas e sacos de batatas fritas num canto da mesa à medida que encontrava.

  — Ei, olhe para mim! Pareço um chef, ham? — Gally disse com um imenso sorriso no rosto, os braços abertos, uma mão segurando uma colher comprida. Ele vestia um avental branco com listras vermelhas, laranjas e amarelas na borda, e havia uma panela em sua cabeça cobrindo a testa.

 Ela caiu na gargalhada de tal maneira que teve certeza de que alguém ouviu.

  — Pode ficar melhor. — disse e se abaixou para abrir um armário, sem deixar que ele visse o que estava fazendo. Ao se levantar outra vez, assoprou um pó amarelo no rosto dele.

 Eu os ouvi rindo, gritando um com outro, atacando a comida, mas algo atrás da porta que levava à despensa me chamou atenção. Caminhei até lá devagar, notando que o barulho dos dois ia se abafando, e de repente eu me encontrava no quarto da minha “eu” mais nova. Já era tarde da noite, a única luz acesa era a do abajur. Gally estava sentado na cama, de frente para a garota, e havia se passado algumas semanas desde a outra lembrança. Ele tinha o olhar tristonho e a cabeça abaixada.

  — O que eles fizeram? — ela perguntou.

 Gally havia sido torturado para dedurar a fuga de Thomas, Teresa e os amigos de seu alojamento. Ele se recusou totalmente a contar qual tinha sido a tortura e eu nunca tive ideia do que acontecera.

  — Gally... — a menina segurou a mão dele gentilmente. — Eu estou aqui, okay?

 Ele apertou a mão dela de volta, e os dois continuaram em silêncio.

 Encarei as mãos unidas por alguns segundos, cerrando os dentes pelos pensamentos que preenchiam minha cabeça, então abri a porta do quarto de uma vez e saí.


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Notas finais do capítulo

"A linha entre o talento profundo e a deficiência profunda parece ser realmente muito tênue" é uma frase de Danniel Tammet, um savant e sinesteta. Para quem tiver curiosidade, esse é o vídeo detalhado (em PT-PT) sobre como funcionam a síndrome e a sinestesia nele e alguns outros >> https://www.youtube.com/watch?v=11wQKnXjJqc.
Espero que o capítulo não tenha ficado confuso. Qualquer coisa, me avisem!

Até o próximo!



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