Socorristas escrita por BlueBlack


Capítulo 36
Ilusão


Notas iniciais do capítulo

Capítulo em primeira pessoa!

Boa Leitura!



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Para a minha surpresa, quando o tal David nos conduziu pelo Berg para que comêssemos, tomássemos banho, tivéssemos cuidados médicos e roupas dignas, a primeira coisa que fiz foi chorar. Meus olhos marejaram no instante em que olhei para a muda de roupa nos meus braços. Tinha um cheiro floral estonteante. Percebi que, por um longo tempo, ainda que inconscientemente, eu tinha pensado que nunca mais teria aquilo.

  — Ei... Qual o problema? – Thomas perguntou baixinho, aproximando-se de mim ao notar meu estado.

 Eu balancei a cabeça e os ombros, sem saber pôr em palavras. Também não queria que mais alguém percebesse; dei graças que os funcionários do CRUEL ali estivessem ocupados com os outros. Olhei para Thomas e quase não o enxerguei direito pela visão embaçada.

  — Eu sei. – ele disse com uma mão firme no meu ombro. Seus olhos se encravaram nos meus com tanta precisão que pude senti-lo lendo minha alma. Quis abraça-lo, mas não queria me mover.

  — Sou humana, Thomas. Estou cansada. Mas o que vai acontecer quando eu acordar?

  — Talvez esteja ferrada. – ele meneou a cabeça. — Se estiver, também vamos estar. Mas vamos dar um jeito nesse pessoal de uma vez por todas...

  — Sempre dizemos isso. Dissemos no Labirinto, lembra? Depois perdemos mais da metade de nós.

  — A diferença é que agora estamos vendo a cara deles. Vamos dormir sob o mesmo teto e não tem nenhuma parede invisível nos impedindo de chegar perto. Vamos resolver tudo isso, Nelly, eu juro. – ele apertou meus braços com as duas mãos, seu olhar mais alarmante. — Mas falharemos se tentarmos algo sem dormir antes.

 Baixei meu olhar para o chão e respirei fundo, engolindo o nó na garganta.

  — Prometa para mim que estará no mesmo lugar quando eu acordar, seu trolho. – falei com a voz embargada.

  — Tem muito espaço. – Thomas olhou ao redor, o que me deu a impressão de que não queria me ver chorar.

 O aposento era extenso, repleto de móveis diversificados com revestimentos coloridos. Aquele pessoal não perdia o cinismo.

  — Tentamos dormir aqui, assim percebemos caso venham capturar um de nós. – ele concluiu.

 Comprimi os lábios para não fazer uma careta. Era um plano tão idiota. Em circunstâncias normais, deveria funcionar. Mas era o CRUEL. Eu sabia que não ia.

  — Certo. – concordei. Thomas não era estúpido, estava falando aquilo só para tentar me acalmar. E se eu não fingisse que acreditava no que dizia, ia surtar de vez. Eu estava mais que perto disso.

 Seus lábios se repuxaram para o lado num sorriso forçado e ele apontou para a minha perna machucada.

  — Precisa de ajuda? – indagou.

  — Íamos perguntar o mesmo. – uma garota do Grupo B se aproximou, acompanhada de outra. Thomas fez um aceno desajeitado então e seguiu os outros para o banho. Corri os olhos pelo salão à procura de Newt, mas ele já devia ter entrado também, por isso passei meus braços pelos ombros das meninas para ir para o banheiro. 

 Assim que nos dispersamos para entrar nos boxes, cacei Brenda com o olhar. Logicamente eu não conversaria com Teresa sobre nada. E quando vi que a Crank não estava ali, dei falta de Mike. Ainda que ela fosse uma garota, era mais fácil falar com ele do que com ela. Após a confusão no Berg para Thomas escolher entre ela e Jorge, não prestei mais atenção em muita coisa. E se Brenda não estava conosco, com quem estava?

 Agradeci às garotas e me sentei no banco comprido perto da parede, e fechei os olhos para afastar todas as teorias que invadiam minha mente. Caso começasse a pensar nisso agora, teria uma crise de ansiedade no meio da noite. Respirei fundo na tentativa de esvaziar minha mente, até sentir alguém sentar ao meu lado.

  — Obrigada pelo que fez. – Sonya disse. Permaneci encarando-a por longos segundos, tentando lembrar a que ela se referia. O mais fresco na minha mente era o fato de ela ter me apontado uma flecha. — Me defender daquela coisa biotecnológica e quase levar uma lança no peito no meu lugar.

  — Ah, é... Não me agradeça. – falei indiferentemente, com uma vaga lembrança da guerra contra aquelas criaturas estranhas do CRUEL, antes do Berg aparecer. Meu medo e abatimento haviam sido tão grandes que não me deixaram pensar em nada além de machucar aquelas coisas. Não me lembrava de ter lutado com o objetivo de sobreviver.

 Ela deu de ombros e desviou o olhar para observar as colegas. Sonya estava exatamente a mesma de quatro anos atrás; com o mesmo cabelo loiro longo, a feição delicada, o jeito doce de falar. A vontade que ardia dentro de mim de contar sobre a lembrança era enorme. Talvez ela me achasse louca, talvez aquilo não mudasse nada. Eu não tinha certeza. Desesperava-me o fato de eu ser a única além de Thomas a estar recuperando a vida passada.

 Demorei demais para me decidir e ela acabou entrando num dos boxes sem dizer mais nada. Esperei até que quase todas tivessem tomado banho para entrar, pois não estava com a menor pressa de sair dali e interagir com os outros. Eu não queria fazer nada. Nem queria saber o que aconteceria conosco, não queria ouvir que estávamos livres; eu não acreditaria. Não queria que me explicassem detalhadamente, com estatísticas e estudos feitos, a necessidade de nos fazer passar por aquilo. Queria me trancar dentro de uma cápsula em que não coubesse mais nada além de mim, e ficar lá. Ver Newt e Sonya interagindo um com o outro, fosse lá qual fosse a relação entre eles antigamente; ver Mike conhecendo uma garota; Thomas se sentindo bem, com a perspectiva de uma vida maravilhosa em que não seria enganado; Minho sendo feliz com seja lá que mértila o atraía. Eu estava cansada de pensar por mim.

 Liguei o chuveiro e deixei a água descer pelo meu corpo, tocar meu cabelo, preencher-me com uma das melhores sensações que eu podia ter. Era tão grande, era tão bom e tão irreal que se transformava numa bola enorme e me sufocava, até estourar em lágrimas. Eu chorei tanto que perdi a noção do tempo que estava ali. Lavei meu cabelo com às vezes muito cuidado, às vezes raiva; toquei cada parte do meu corpo de novo e de novo, sentindo toda a sujeira escorrer para o ralo. Era um alívio. Era exatamente o que o CRUEL queria.

 Encostei minha cabeça na parede, de olhos fechados, impedindo que meus soluços fizessem som, e desliguei o chuveiro. Usei mais alguns minutos da paz que estava o banheiro para respirar fundo e me recompor o melhor possível, ainda que isso não significasse muito. Sequei meu corpo e vesti a muda de roupa, um conjunto de calça e camisa azul marinhos, e um par de tênis brancos com meias, depois segui para a enfermaria. A última garota ali acabava de sair e torci para que rapidamente eu estivesse fazendo o mesmo. Vendo que eu me apoiava pesadamente na parede para caminhar, ela me ajudou. Minha impotência sendo tão facilmente apreciada pelos Criadores me amedrontava. A quantidade de maneiras para usar isso contra mim...

  — Foi um machucado bem feio. – a enfermeira comentou após a saída da garota. Eu quis muito pegar todos aqueles curativos e resolver aquilo sozinha, mas sabia que começaria a tremer de raiva e medo, se tentasse. — Pode usar isso durante os próximos dias. – ela apontou para o par de muletas descansadas ao lado da cama.

 A mulher não disse mais nada nos minutos seguintes, que pareceram horas. Ela também parecia demorar o máximo possível, a cara de mértila. Eu encarava suas mãos com atenção, meu coração batendo muito alto com o receio de que ela pegasse algo que, ao invés de me ajudar, pioraria meu estado. Enfim, ela terminou. Agarrei as muletas, apoiei meus braços nelas e me esforcei para me acostumar tão rápido quanto para sair dali. Entrei no refeitório ainda sem ouvir mais nada além dos meus batimentos cardíacos, encarando o chão e com medo de que alguém percebesse meu estado. Uma mão cobriu meu ombro e o susto foi tão grande que quase gritei. Mike me encarava com atenção; não me olhava como se eu fosse estranha ou precisasse de tratamento psiquiátrico urgente. Ele, como Thomas, parecia saber exatamente como eu me sentia. Todos eles deviam saber.

  — Trolha, parece que viu um fantasma. – comentou, cobrindo meus ombros com seu braço e olhando ao redor, como se para ter certeza de que ninguém mais estava prestando atenção. Mike havia sido uma das minhas maiores distrações durante a luta no Deserto, mas não por me preocupar. Eu ficava hipnotizada com o quão bem ele se virava sozinho usando sua única mão. Ele já havia mais que provado do que era capaz e eu não conseguia descrever o quanto isso significava para mim. Era uma das poucas razões para eu não ter entregado minha vida àquela Variável.

 Mike começou a caminhar com sua perna crepitante e eu só soube para onde quando alcançamos a mesa de Newt, Thomas, Minho, Teresa e Caçarola. Newt tinha o maxilar cerrado, olhando para nós dois.

 Relanceei para o chão por um momento, desejando silenciosamente que Mike se afastasse, e assim ele fez para ir sentar. Enfim reparei melhor na mesa. A pergunta me veio imediatamente e meu tom soou muito hesitante.

  — Vocês viram Jorge?

 O olhar de Thomas foi o primeiro que captei; ele negou com a cabeça, claramente frustrado.

  — Voltamos a parecer pessoas normais. – Minho disse, servindo seu copo com um líquido amarelado. Suco de laranja. — Deveríamos esquecer de pensar por algumas horas.

  — Não vai dizer que não está...

  — Estou. – ele me interrompeu, fitando-me com urgência. — Só quero fingir que não.

 Eu odiava entende-lo. Odiava que realmente precisássemos dar as mãos uns aos outros, porque compartilhávamos do mesmo sentimento de medo, e simplesmente deixar as coisas fluírem. Foi o primeiro ódio que senti com extrema plenitude.

 Sentei-me ao lado de Newt e encarei, atordoada, as tigelas repletas de alimento sobre a mesa. Eu estava tentando encontrar algo para sentir, mas não dava certo. Newt fechou sua mão ao redor da minha, encarando seu prato vazio também. Respirei fundo para apreciar o aroma de chocolate e fazer isso me acalmar. Não soube exatamente quanto tempo ficamos assim antes de começar a comer.

  — O que você tanto olha? – Minho indagou a Mike, que não se deu o trabalho de parar a busca que fazia pelo local com o olhar.

  — Você precisa ser tão implicante? – repliquei ao antigo Corredor, sedenta por uma deixa que pudesse ser usada para descontar tudo que eu sentia.

  — Ainda sou o Líder. A menos que queira que eles tomem esse título. – apontou com os olhos dois guardas em frente a portas duplas.

  — Ninguém como você para tomar esse posto, capitão. – Newt ironizou. Em parte, senti até alívio por ele ainda fazer brincadeiras.

  — Só não quero ser surpreendido por nenhum trolho maluco, hipócrita e quase assassino enquanto estivermos aqui. – Mike respondeu, voltando a comer. Eu o encarei e observei imediatamente o refeitório com atenção.

  — Herman? – indaguei.

  — Ele está aqui? – Newt e Caçarola perguntaram sombriamente.

  — Não o vi, mas não me admiraria se tivessem tirado ele do Deserto para que servisse de mais um teste ou sei lá. – esclareceu.

  — Ele deve estar morto. – Minho comentou e deu uma boa dentada em seu sanduíche, cuspindo salada ao voltar a falar. — Achei que estivesse falando do Gally.

 Encarei-o na mesma hora.

  — Por quê?

 Minho devolveu meu olhar com firmeza e compadecimento, o que fez a minha raiva borbulhar um pouco mais.

  — Olha, acredito quando você diz que ele não quis matar Chuck. Mas mesmo assim ele decidiu ficar com essa gente ao invés de fugir com você.

  — Esqueceu da parte em que ele é maluco, Minho. – retruquei. — Depois de tudo que aconteceu, ele não estava em condições de decidir nada, principalmente porque havia guardas armados tentando arrombar a porta.

  — Não acho que precisasse pensar muito. – Teresa disse.  

  — Não acha? O que você pode falar? Ficou dias longe da gente para aparecer com o discurso de que estava ao lado dos Criadores e acertar Thomas e eu com uma lança, você não pode falar mértila nenhuma! – exclamei. De repente, eu estava de pé, sentindo meus dedos da mão doerem por alguma razão. Minha pele estava tão quente e começava a suar. Newt segurou ao redor do meu cotovelo, mas eu estava no meu limite com ela. — Quase fiz questão que fosse morta por aquelas coisas antes do Berg aparecer no Deserto. Você é uma traidora, covarde, e que com sorte vai aparecer viva amanhã, se estiver muito perto de mim. – eu apontava o dedo para ela. Seu semblante era firme me encarando, o que aumentou minha vontade de acertar nela seja lá o que eu estivesse segurando com tanta urgência.

  — Não preciso me explicar para você. – Teresa disse semicerrando os olhos e saiu da mesa com sua comida.

 Larguei o garfo com um tilintar e apoiei minhas mãos ao lado do prato, respirando fundo e de olhos fechados. Eu podia sentir a atenção de todos na mesa voltados para mim. Parecia que alguém queria muito a minha infelicidade e agora espremia o ar ao meu redor, e puxava o chão sob meus pés.

  — Estou parecendo o Herman, não estou? – murmurei calmamente, muito constrangida. Não houve resposta. Assenti com a cabeça em conformação e funguei. — Me desculpem.

 Saí do refeitório às muletas em direção ao salão colorido. O aviso dado pela voz na minha cabeça na Clareira, sobre eu ser um risco para eles, ganhava cada vez mais sentido. Senti vontade de chorar, mas as lágrimas não vieram. Larguei-me num grande sofá vermelho, os ombros caídos, meu corpo completamente relaxado. O medo de dormir começava a voltar. Minha imagem, eu tinha certeza, nunca parecera tão infeliz.

 Meia hora depois, eu estava encarando o teto, afundada em pensamentos, quando Thomas parou ao meu lado com os braços estendidos.

  — Você é a médica mais contraditória que conheço. – ele disse, balançando o prato em que continha dois sanduíches.

 Guardei a resposta sarcástica para mim mesma e peguei a comida para mim, louca para molhar minha garganta com o suco. Thomas se sentou ao meu lado e comecei a comer devagar, desfrutando da explosão de sabores. Por enquanto, era tudo no que eu queria pensar.

  — Disseram não ter dormitórios, vamos ter que passar a noite aqui. – ele comentou.  

  — Ótimo. – respondi, chupando o molho dos dedos. — Assim não nos separam outra vez.

  — O que acha que podem fazer? – perguntou interessado após segundos de silêncio.

  — Sei o que você está tentando fazer. E me ofende. – descansei o prato numa mesinha e peguei o suco, apoiando meu cotovelo no joelho para encará-lo.

 Thomas desviou o olhar pacientemente.

  — Por quê? – disse.

  — Não é o tipo de pergunta que você faria, não desse jeito, muito menos para mim. Ofende ver que você acha que sou estúpida o suficiente para não perceber isso.

  — Você era Socorrista. Sabe identificar quando alguém está doente.

  — Já sei que tem alguma coisa de errado comigo. – admiti logo. Encarei o copo de suco, batucando minha unha nele. — Só não quero baixar a guarda e deixar que elescuidem de mim.

 Eu suspirei, pesando meus pensamentos ainda sem olhar para ele. Os segundos pareceram durar horas, e trouxeram lágrimas gradativamente.

  — Pode ficar tranquilo, sei que preciso me policiar melhor. – reclinei-me em direção ao sofá de novo. — Não podemos deixar que façam isso por nós, não é? – voltei a fita-lo, captando a tristeza e o cansaço nele. Soltei um muxoxo e repousei minha cabeça em seu ombro, perdendo meu olhar no nada. — Estou com aquela sensação de querer ir para casa... mesmo sabendo que não tenho uma.  

 Sua mão tocou meu ombro e o apertou, e eu fechei os olhos por um momento para respirar fundo. Quando os abri de novo, Newt acabava de parar na nossa frente. Olhei para ele e me desencostei de Thomas devagar, lembrando a minha conversa com Mike no Deserto. Estava começando a me apavorar com a frequência de momentos assim.

  — Podemos conversar? – ele perguntou a mim, mas olhando para as minhas pernas com muita seriedade, e ainda um pouco de raiva.

 Assenti com a cabeça e peguei as muletas, seguindo-o por um corredor próximo a entrada do Berg. Viramos à direita e ele entrou numa sala escura. Eu fiz o mesmo e lhe dei as costas para fechar a porta, e quando fui encará-lo, Newt pôs a mão na minha nuca e me beijou. A urgência nos toques dele fez meu coração encolher em direção à parte mais funda do meu peito. Eu correspondi da mesma forma, com medo do que quer que ele fosse dizer depois. Não sabia direito o que imaginar, mas mesmo assim temia.

 Soltei as muletas de qualquer jeito e corri minhas mãos pelos ombros dele, pelo pescoço, pelo rosto. Até me atrevi a sentir a pele por baixo da camisa. O desespero começava a me tomar outra vez. Eu não queria dormir e acordar sem ele; e se Newt não fosse Imune? E se depois de tudo que passamos, eu tivesse que ceder ao CRUEL para tê-lo comigo? Os pensamentos me sufocaram como um punho de ferro. Arranhei sua cintura de leve e Newt prendeu mais seu corpo contra o meu, mas interrompeu o beijo. Eu ainda podia sentir a respiração dele, ouvi-la. Sentia o calor do corpo dele nas minhas mãos. Tive vontade de chorar.

 Seu braço se movimentou ao meu lado e a fraca luz da sala foi acesa. Ele ainda não encarava meu rosto, mantinha a cabeça abaixada. Seu nervosismo era palpável. Parecia que toda a tensão que sentimos à espera do Verdugo no quarto da Sede se concentrava nele agora. Tentando manter o máximo de calma e delicadeza possíveis, ergui sua cabeça pelo queixo, e acabei vendo as lágrimas que enchiam seus olhos.

  — Newt... – sussurrei trêmula.

 Nós dois estávamos destruídos com tudo. Eu não tinha ideia do que dizer ou fazer naquele momento. Minha consciência estava perdida demais no medo de absolutamente tudo que nos cercava. E se eu não conseguisse ajudar Newt, estaria ferrada.

 Ele puxou e soltou o ar pela boca sonoramente, como se prendesse um soluço, balançou a cabeça e tornou a baixa-la. As lágrimas cintilaram ao pingar no chão. Afaguei seu cabelo enquanto olhava para cima, impedindo que meus olhos despejassem tudo também. Newt apoiou o topo de sua cabeça contra o meu peito e rapidamente a beijei, respirando fundo, deixando o tempo passar da forma que quisesse. Eu não estava com um bom pressentimento, de qualquer jeito. Não tinha a menor pressa de sair dali.

 Newt recuou um passo ainda sem erguer o olhar, fungando e passando os dedos por baixo do nariz. Esperei pacientemente pelos três segundos que ele levou para começar a falar.

  — Eu acho que... sempre fui o primeiro a reagir quando você estava com problemas. Justo agora não me vem uma maldita lembrança de um desses momentos... Mas, no começo, fiz aquilo porque você era a Novata. Talvez tenha a ver com eu ser o maldito Grude também, se Thomas estiver certo... Eu sabia exatamente o que você sentia vendo aquele lugar pela primeira vez; sabia o quanto estava assustada, e perdida. Era óbvio para mim que você era importante, a primeira garota depois de dois anos... Era meu trabalho como segundo em comando. Mas depois, percebi que estava fazendo aquilo sem nem me dar conta há muito tempo. – ele finalmente me olhou. — Eu tive raiva todas as vezes em que você ficou sozinha dentro daquele Labirinto, e eu fui covarde demais para entrar lá e salvar quem eu, desde o começo, sabia que era valiosa. Tive raiva quando vi que você não confiava em mim o bastante para falar de Herman; eu ficava me perguntando que maldita coisa eu estava fazendo de errado para não ter a confiança da pessoa que salvou minha vida. Tive raiva de todas as vezes que você foi atacada, que estava em risco, ou sozinha, ou sofrendo por nós mais do que por você mesma. Depois que te encontramos daquele jeito no Deserto, eu soube que era a minha última chance de provar para mim mesmo que eu merecia tudo que você já tinha feito. Posso ter errado ainda várias vezes. Mas... – seu queixo tremeu quando ele cerrou os dentes. — não consigo ir mais longe. Tive raiva por não ter usado o tempo direito. – Newt fechou os olhos por um momento e desviou o olhar para o lado, antes de voltar a me fitar. — Mas essa não é a raiva que eu sinto agora, Nelly. Essa raiva... me consome... e não passa. Enquanto eu vejo as coisas, não importa o que eu faça ou o que eu saiba, ela não vai embora. Às vezes sinto como se pudesse matar esses Criadores. Fazê-los pagar de todas as formas possíveis, fazê-los passar por tudo o que passamos. Honrar Alby, Chuck, Winston, Gally... Eu me afundo nesses pensamentos por horas. E então eu me lembro... do momento em que você disse que ajudar os outros te faz sentir mais humana e menos como um Experimento. É esse momento que faz eu me lembrar de quem eu sou... e de quem eu não posso ser... por mais que esteja enraizado no meu maldito cérebro.

 Dei um passo desajeitado para mais perto dele e coloquei seu rosto entre as minhas mãos, fitando seus olhos com seriedade, ignorando o fato dos meus demonstrarem a mais pura fraqueza. Ele abriu a boca para continuar, mas eu não aguentava ouvi-lo falar daquele jeito.

  — Newt, você não é uma má pessoa. – afirmei. — Você é o único, na minha vida toda, que me dá uma razão para estar viva nesse lugar. Eu só entrei nesse Berg porque você entrou primeiro. Porque enquanto você ver alguma esperança, eu vou saber que há esperança para mim também.

 Eu não sabia mais o que fazer ou dizer para convencê-lo daquilo. Pensar que até hoje parte de seu sofrimento me envolvia plantava o desespero dentro de mim. Eu precisava que Newt acreditasse. Qualquer um dos Clareanos poderia me abandonar; àquela altura do campeonato, se Newt o fizesse, eu não teria a mínima ideia de como lidar.

 Continuamos encarando um ao outro, prolongando o silêncio, apesar de por um momento eu achar que tinha transformado meus pensamentos em palavras.

  — Sei que teve alguma lembrança quando viu aquela garota no Deserto. – ele disse. Suas lágrimas tinham ido embora, deixando apenas um semblante cansado. — Senti alguma coisa quando a vi também, mas não chegou nem perto de acender uma maldita luz na minha cabeça. Eu só senti... Se sabe alguma coisa dela do passado, sabe de mim também, com certeza. De mim... e do Fulgor.

 Virei a cabeça ligeiramente para o lado, sem tirar os olhos dele, um movimento aleatório de negação.

  — Sabe algo sobre mim e o Fulgor que não está me contando, Nelly?

 Seus olhos imploravam para que eu dissesse a verdade, ainda que nem eu mesma tivesse conhecimento de qual era ela. Newt estava desesperado para saber. Seu olhar era urgente, suplicante, sedento pelo antídoto que faria aquela ansiedade pela resposta passar. Nunca fui tão grata pela perda de memória.

  — Sei o que você quer ouvir. Mas não sei por quê. – falei.

  — Eu só quero a verdade como todos os outros.

  — Não, não quer.

  — Apenas me diga! – Newt gritou realmente furioso, espalmando a mão na porta bem ao meu lado. Deixei minha expressão o mais apática possível. Newt continuou encarando minhas íris, até desviar sua atenção para o chão, enquanto se livrava da raiva. Coloquei minhas mãos ao redor de sua nuca, ignorando completamente todos os sinais de que havia algo ruim nele. Eu simplesmente não queria ver.

  — Não quero e nem sei nada sobre isso, Newt, eu juro. Por que você quer? – busquei palavras na tentativa de expressar tudo que se passava pela minha cabeça, mas elas estavam tão embaralhadas como numa piscina de bolas.

 Ele fungou outra vez para o chão.

  — Porque de um jeito ou de outro, eu estou diferente. – seus olhos encontraram os meus. – E preciso que fique longe de mim. Só quero ter um motivo palpável para isso.

  — Acha que a probabilidade de você ter um vírus vai me afastar de você? – indaguei cética, com uma sobrancelha arqueada.

  — Não. Vou fazer sozinho, se for preciso.

 Newt esticou sua mão por trás de mim e segurou a maçaneta da porta, e eu imediatamente segurei seu pulso, cerquei sua perna com a minha e o aproximei mais. Nossos quadris ficaram muito colados um no outro e ele soltou um suspiro pesado. Meus dedos se entrelaçaram com os fios do cabelo dele, e de repente me vi travada. Eu não sabia o que fazer. E era a primeira vez que agir sem pensar parecia a coisa certa, por isso hesitei.

 Balancei a cabeça levemente para os lados em negação. Em negação a deixar que se afastasse de mim; em negação aos possíveis sintomas do Fulgor estarem se manifestando nele; em negação a qualquer outra coisa que nos fizesse ainda mais infelizes. Um bolo se formou na minha garganta, mas fiz de tudo para engoli-lo e impedir que as lágrimas viessem. O cheiro dele e sua respiração eram tudo que eu sentia. Por um momento, esqueci o que acontecia exatamente. Tirei minha mão de seu pulso e a deslizei por seu braço, subi até a manga da camisa, descansando-a em seu peito. Para a minha surpresa, o coração dele batia forte. Newt entreabriu os lábios, como se para dizer algo, e se aproximou mais, de modo que seu corpo colou completamente com o meu. Eu queria dizer um monte de coisas e ao mesmo tempo não queria dizer nada.

 Newt me beijou e fui ainda mais pressionada contra a porta. Suas mãos acariciaram meu rosto, entrelaçaram-se no meu cabelo, desceram pelo meu pescoço e senti sua hesitação ao alcançar o peito. O beijo ficou mais lento enquanto as pontas de seus dedos roçavam meu seio, continuando a descer para a minha cintura. O cheiro e o gosto de chocolate nunca tinham sido tão apaixonantes.

 O toque de sua mão fria contra a minha pele quente por baixo da blusa me obrigou a apertar sua perna para prendê-lo mais a mim. Arranhei sua nuca com um pouco mais de força, sentindo seu polegar girar na minha cintura. Pus minha mão sobre seu pulso e o guiei até meu seio, ansiosa para começar a quebrar a barreira até a intimidade entre nós. Depois de tudo que aconteceu, eu lá sabia quanto tempo ainda teríamos? Era o paraíso poder sentir Newt acariciar a lateral do meu seio, e devagar tocar a ponta e eriçá-lo. Era algo muito simples, mas ao mesmo tempo o único prazer de verdade que eu sentia desde, provavelmente, sempre.

 Sua ereção sob a calça ia de encontro ao meio das minhas pernas e minha mente começava a se perder totalmente da razão. Eu quase não me importava mais por estarmos num quartinho de qualquer coisa, dentro de um Berg, cercados pelos cientistas que faziam da nossa vida a pior. Subi um pouco minha perna enlaçada na dele, dando muito mais espaço ao seu membro e sentindo que logo a excitação seria demais para eu conter; a pressão no meu baixo ventre me tirava o fôlego.

 Divertia-me pensar que apenas alguns meses atrás eu nunca teria imaginado esse tipo de momento com Newt realmente acontecer, como segundo em comando, como quem me pedia para parar de me intrometer e ir fazer algo útil, e que ficava constrangido quando eu começava a dar sinais de que não via ele apenas assim. Newt podia ser inteligente e o melhor líder que já conheci, mas estava errado em dizer que não tínhamos usado o tempo do jeito certo. Nós não poderíamos ter feito melhor com quase três meses, na verdade.

 Assim que agarrei a barra de sua camisa e esquivei minha mão por dentro para subi-la, Newt interrompeu o beijo devagar e desencostou seus lábios dos meus; retirou sua mão do meu seio e a manteve apenas na minha cintura. Encaramos os olhos um do outro e quis ter o poder de ler mentes naquele momento.

  — O que foi? – perguntei.

 Mais alguns segundos depois, ele olhou para o chão e se afastou de vez, passando a mão pelo cabelo e me dando as costas. Suas mãos ficaram escondidas num movimento insinuativo pela parte da frente de sua calça.

  — Newt, qual o problema?

  — Qual o problema? – ele repetiu, virando-se para mim rapidamente, uma das mãos na cintura e a ruga entre as sobrancelhas. — Olhe ao redor, Nelly, não foi bem assim que eu imaginei que seria.

 Fechei os olhos por um momento e respirei fundo, colocando minhas mãos uma sobre a outra atrás de mim, largando mais meu peso contra a porta e uma das pernas. Saber que Newt havia mesmo pensado nisso algum dia atiçava mais uma daquelas chamas de fascínio por ele, com certeza; fazia eu me sentir mais especial do que de costume. No entanto, nossa realidade me impedia de achar aquilo prudente.

  — Você quer esperar? – indaguei.

  — Para quê? O Fulgor se espalhar completamente pelo meu maldito cérebro até lá? Não quero que façamos pelo desespero sobre o tempo que temos.

 Ergui os ombros uma vez num sinal de indiferença.

  — Pode achar que estou infectada e que por isso agi daquele jeito no cubículo do túnel lotado de Cranks... Mas se ponderarmos um pouco, vamos perceber que só o que temos de vida é o tempo entre quando acordamos na Caixa e sabe-se lá quanto vai levar até o Fulgor ou os Criadores nos matarem.

 Observei seu corpo e a pequena sala por um momento, batucando meu dedo na porta.

  — O fato de você pensar na nossa primeira vez como algo especial só faz eu me apaixonar mais por você. Só que... – mordi o lábio brevemente. — nós não somos normais. Nenhum de nós. Passamos por um labirinto, por um deserto, vimos gente morrer, matar, enlouquecer e fazer coisas que nenhum pesadelo seria tão ruim quanto... Isso não é vida para ninguém, Newt, então... não... Se você me perguntasse se quero esperar, eu diria não. Porque isso sim faria com que eu me sentisse uma adolescente.

 Newt fungou, sem tirar os olhos de mim. A tristeza neles me doía.

  — Newt, você veio parar no mundo errado... – murmurei com uma careta de incredulidade, meneando a cabeça. — Eu queria muito poder tirar você daqui e explodir o planeta com essa doença e toda essa praga. Foi sorte eu ir para o seu Grupo, e não foi pouca.

  — Por que diz isso?

 Revirei olhos e comprimi os lábios com certa força.

  — Nem sei o que você viu em mim. – respondi. — Eu já matei pessoas, Newt... Fui ingrata com você na Clareira, fui pirracenta... E não posso mais dizer que me conheço, ainda que as lembranças continuem voltando. Estou perdendo a cabeça, de verdade, e não sei aonde isso vai me levar. – olhei para o chão e movi meu pé distraidamente. — Morro de medo que se afaste de mim.

  — Nelly, você sabe o que eu vou me tornar se estiver infectado...

  — E se eu também estiver? Eu só não queria preocupar você, mas a cada segundo que passa eu me odeio mais...

 Ele se agitou, umedecendo os lábios, e se aproximou de mim em dois movimentos, já tomando meus braços em suas mãos, mas o fez com tanta delicadeza que mal senti.

  — Não quero que pense nisso. Me ouviu? Lidou com tudo muito melhor do que qualquer um poderia esperar. Se tiver alguma coisa de errado agora, é por causa da droga dos Criadores. Eu ainda sou apaixonado por você... Então talvez estejamos na mesma loucura.

 Foi a minha vez de fungar.

  — Então acho que não precisa se afastar de mim. – concluí.

 Newt abriu a boca para responder e baixou suas mãos, ainda me encarando, mas pareceu não encontrar o que dizer. Ainda calado, ele assentiu com a cabeça. Sorri fracamente, começando a sentir o cansaço se manifestar no meu corpo, e de repente reparei no pequeno corte que ele possuía na maçã do rosto, sem ter ideia de onde o tinha arranjado. Pus minha mão sobre sua bochecha e deslizei meu polegar por ele devagar, apoiei-me mais na perna boa e selei seus lábios. Newt se manteve parado.

  — Vamos. Quem garante que nenhum deles vai entrar aqui a qualquer momento mesmo, não é? – falei ao me afastar e pegar sua mão, que pude sentir mais rija.

 Saímos para o corredor e voltamos ao salão, minha panturrilha recebendo pontadas agudas no local do ferimento.

  — Acho que forcei até demais a perna naquela luta. – reclamei com uma careta, procurando um lugar vago para dormirmos. Newt disse alguma coisa, mas minha mente voou para bem longe ao ver Teresa adormecida ao lado de Thomas, e o medo de pegar no sono voltar. Olhei ao redor e percebi que os Grupos A e B eram os únicos ali; sem cientistas nem guardas.

  — Não vão conseguir tirar você de perto de mim sem que eu perceba. – Newt afirmou baixinho, como se as paredes pudessem ouvir. Quem sabe não ouvissem?

  — Fico pensando se não tem chance de me darem uma mão nova. – Mike disse ao se aproximar de nós por trás. — Sabe, com todo o dinheiro que possuem.

 Eu o encarei com o semblante apático.

  — Está falando sério?

  — É claro que não. – respondeu. – Se não forem devolver minha mão e tudo o que tiraram de nós, exatamente como eram antes, não quero nada deles.  

  — Bom isso. – Newt concordou com um aceno de cabeça.

  — Boa noite para vocês, caras de mértila. Não deixem os monstros puxarem seu pé.

 Ele começou a se afastar para o outro lado da sala e uma vontade imensa de gritar me preencheu. Cheguei a tomar ar para isso, mas me controlei. “Vamos dar um jeito nesse pessoal de uma vez por todas”, repeti a frase de Thomas na minha cabeça, lembrando-me de acreditar no que ele disse. Era necessário.

 Newt e eu nos recolhemos para uma cama estranha, tão baixa que quase tocava o chão, mas pelo menos confortável. Ele deitou de modo a me dar espaço entre seus braços e, apesar de toda a tensão que me preenchia, algo no meu âmago me fez sorrir. Devia ser a ilusão. Estávamos limpos, bem alimentados, descansando numa cama de verdade e sem Cranks ao nosso redor. Era ingênuo da minha parte, eu sabia, mas me senti bem com isso. Tirei uma pele solta do meu lábio e comecei a descrever círculos pequenos com o polegar na camisa dele, perdida em pensamentos.

  — O que faria se acordássemos com uma vida diferente? – perguntei baixinho e curiosa, desejando fantasiar um pouco antes que eu tivesse alguma crise de ansiedade e não conseguisse dormir. — Sabe, imagine que amanhã saímos daqui realmente livres de tudo e daí teríamos que nos virar sozinhos.

 Newt remexeu a cabeça no travesseiro e permaneceu quieto por um tempo, fazendo apenas o som da respiração. Eu me aproximei mais e fechei os olhos contra seu peito, ouvindo e sentindo seu coração bater.

  — Duvido que depois de tudo que passamos algum de nós ia preferir se afastar. – ele começou. — Então imagino que o Grupo do Aris ia ficar conosco. Acho que a decisão de ir para bem longe daqui seria unânime, então procuraríamos até encontrar um lugar menos afetado. A política da Clareira voltaria, com os Encarregados e os trabalhos... com algumas mudanças, claro, não precisaríamos de Corredores.

  — Precisaríamos de quem lutar para o caso de Cranks atacarem.

  — Acho que seríamos todos nós. Passamos pelas mesmas mértilas e chegamos aqui por uma razão. Não teríamos um grupo para nos defender, seríamos nossa própria defesa.

  — Já sei quem seria o primeiro em comando. – disse entre um sorriso fraco e o senti balançar a cabeça.

  — Você iria brigar com Minho e Tommy por causa disso.

  — Não... Eu apenas votaria sim.

  — Bom, eu votaria não, então acho que temos o resultado.

  — Quer dizer que já sabe quem seriam os líderes? – indaguei com uma sobrancelha arqueada, por alguma razão imaginando Minho e Thomas sentados em tronos, usando coroas de ouro.

  — É óbvio, não é? Assim como é óbvio quem seria a Encarregada dos Socorristas.

  — Está se esquecendo das outras garotas.

  — Acha que alguma delas iria superar visão noturna, mistura de sentidos e um dom de cura? Sem contar todas as outras coisas que soube fazer na Clareira.

  — Devo ser a única aberração diferente dos Cranks no mundo. – comentei indiferente.

  — Gente como você poderia estar em maioria depois da coisa toda com o sol, se não fosse raro. Achei que tivesse dito que isso te ajudou.  

  — Ajudou. Mas achei que estivéssemos fantasiando um pouco aqui.

 Newt permaneceu quieto por alguns segundos após isso e preferi fazer o mesmo, ainda que entrar num clima tenso fosse a última coisa que eu quisesse.

  — Sabe que isso é incrível, não sabe? O que você pode fazer. – ele disse.

 Eu me remexi como se houvesse um calombo no colchão e me deitei de barriga para cima, encarando o teto.

  — Eles disseram tudo aquilo para você antes da fuga do Labirinto porque sabiam que ia preferir ficar longe de nós a arriscar nos machucar. – Newt emendou; pude sentir que ele me fitava. — Você não é nenhuma aberração, Nelly.

 Eu fechei os olhos e soltei uma risada muda, um ligeiro sorriso congelado em meu rosto tentando impedir que as lágrimas se acumulassem. Antes que eu pudesse me concentrar o suficiente, Newt pôs a mão no meu rosto e me obrigou a encará-lo.

  — O que você não conseguiu aguentar, não conseguiu porque os Criadores não deixaram, e não tem como lutar contra uma coisa que não vemos, uma coisa que controla nosso cérebro.

 Meus olhos arderam de verdade após fita-lo por tanto tempo e mirei o teto. As íris de Newt continuaram sobre mim e seu polegar acariciou minha bochecha. A ternura dele puxou minha atenção de volta. Eu queria sonhar com aqueles olhos a noite inteira.

  — Você fez o que pôde. – ele afirmou.

  — Você também. Não se culpe, nem por um segundo, sobre qualquer coisa que tenha dado errado. Okay?

 Sua expressão se abateu outra vez, como se, internamente, ele tentasse convencer a si mesmo de que era, sim, culpa dele, fosse lá o que fosse. Ninguém entendia melhor que Newt mesmo o conflito que ele enfrentava desde que decidiu tirar a própria vida no Labirinto.

 Ele assentiu ligeiramente com a cabeça.

 Um soluço involuntário escapou da minha garganta. Newt cruzou minhas costas com o braço, de modo que afundei meu rosto em seu peito e deixei as lágrimas descerem. Eu tinha, tinha feito o que pude, e era difícil deixar de imaginar que eu podia ter feito mais, especialmente em relação a ele. Que diabos eu estava fazendo quando ele se atirou daquele muro? Aquela impotência me matava. Eu sabia que não podia resolver nada sozinha, e ao mesmo tempo parecia que o meu melhor nunca seria o bastante.

 As fantasias acabaram sendo deixadas de lado e caímos no sono daquele jeito. Deixamos as lágrimas lavarem tudo, deixamos o cansaço nos tomar entre o calor que compartilhávamos.

 Eu cedi. Cedi pela primeira vez, bem debaixo do teto do CRUEL, com o pressentimento de que aquela era a pior coisa que eu poderia fazer latejando no meu peito. Eu ignorei.

Acordei depois, sem ter ideia de que horas eram. Não queria saber, tampouco. Minha perna explodia em dor, quase como se fosse câimbra, e foi por pouco que não acordei Newt com o movimento brusco que fiz para me sentar. Tínhamos nos separado inconscientemente durante a noite, de modo que agora ele dormia de bruços sobre o travesseiro.

 Abracei e mordi o meu para não gritar com as pontadas agudas, tão fortes que causavam uma sensação estranha atrás do meu ombro. Apertei os olhos, respirando forte. Fiz de tudo para aguentar o máximo possível, certa de que passaria. Precisava passar. Deitei de costas, cobrindo o rosto com as mãos, sentindo meus braços tremerem. Era agonizante. Meu corpo começava a suar e assim percebi que lágrimas desciam dos cantos dos meus olhos. Um soluço escapou e ressoou pelo local com uma pontada mais forte, como se o Fulgor estivesse tendo um ataque dentro de mim. Pensar nisso me deixou nervosa.

 “Preciso de analgésicos”, admiti mentalmente. E joguei a resistência para o ar.

 Eu me levantei, apertei os olhos para enxergar a sala com as fracas luzes vermelhas de emergência, e comecei a caminhar como uma aleijada, tentando vencer a tremedeira das pernas. Repentinamente me lembrei das muletas e as puxei bruscamente. Perder a noite de sono por causa daquela dor não estava nos meus planos e a raiva começava a realmente me tomar naquele momento. Com pressa e desastrada, atravessei as portas duplas mais próximas, sem ao menos pensar para aonde estava indo. Em algum lugar teria que dar ou alguém mexeria comigo para saber por que diabos eu não estava descansando.

 Continuei vagando aleatoriamente pelos corredores, realmente muito furiosa por ninguém aparecer. Sequer havia guardas por ali. Pensei em abrir alguma das portas, mas acabei não o fazendo. Após mais alguns minutos, eu parei e olhei para cada uma das maçanetas, sentindo gosto de menta, açúcar, abacaxi, algo podre... Estava levando a mão a uma delas quando o surgimento de uma figura no fim do corredor me fez erguer a cabeça naquela direção.

  — Preciso de algum analgésico. – falei logo, sem paciência para esperar a mulher perguntar.

  — Tudo bem, venha comigo.

 Ela era uma das enfermeiras que vi nos atendendo mais cedo, tinha o cabelo escuro amarrado num rabo de cavalo, e parecia usar um robe por baixo do jaleco.

 Eu a acompanhei ao longo de mais um corredor e então ela abriu uma porta que dava para um espaço escuro. Entrei sem fazer cerimônia, realmente apenas desejando engolir logo qualquer coisa que me ajudasse a ter uma noite de paz. Ela seguiu até uma mesinha do outro lado, a única luz vinha de um abajur, e pude ouvir a porta se fechar atrás de mim. Certa de que eu estava muito grogue de sono, vi uma figura se aproximar rapidamente do meio das sombras. Eu me esquivei para trás, cambaleante e deixando as muletas caírem, e em seguida minha mão foi agarrada por uma terceira pessoa e forçada para as minhas costas, assim como com a outra. Eu me debati, sentindo a raiva e o medo tomarem uma proporção sem tamanho dentro de mim. Algo gelado tocou minha mão e imaginei algemas. Lancei minha cabeça para trás e acertei alguém dolorosamente, forcei minhas mãos e consegui desferir o soco mais ridículo da minha vida em alguém. Antes que eu pudesse sequer pensar num próximo golpe, mãos firmes seguraram meus braços e o que pareceu o corpo de um homem me forçou a me jogar no chão, minha bochecha indo de encontro ao piso liso e frio. Pernas imobilizaram as minhas. Tentei me debater, mas só consegui mover a cintura. Quem quer que fosse era duas vezes maior que eu.

 Óbvio. Os próprios Criadores manipularam aquela dor sobrenatural na minha perna para que eu saísse da sala.

 Pude ver vários pares de sapatos me cercarem aos poucos e tive certeza de que estava mais ferrada do que nunca. Alguém caminhou até parar bem perto da minha cabeça. Senti a pessoa se aproximar, e então algo espetou meu pescoço. Comecei a respirar pela boca, forcei meus músculos para que lutassem de qualquer forma, mas a sensibilidade ia embora do meu corpo gradativamente. Senti como se todo o cansaço fosse sugado de mim e me vi obrigada a fechar os olhos.


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