Socorristas escrita por BlueBlack


Capítulo 29
Bem-vindos ao Mosteiro




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Newt e eu fomos enxotados para fora do quartinho com os brutamontes logo atrás de nós. Ainda estava perdida no torpor de emoções do nascimento da criança quando ouvi um deles.

  — Reymond não te mandou ir vigiar o Mosteiro?

  — Mandou, mas soube que tinha gente nova por aqui.

 Assim que reconheci a voz que respondeu, tal como o gosto azedo na minha boca, ergui a cabeça do chão e toda a felicidade de segundos atrás se esvaiu instantaneamente. Herman estava parado ali, bem na nossa frente, baixando os olhos inexpressivos para mim. Deixarem Gally vivo após ele ser levado pelos Verdugos era uma coisa... Mas Herman... Apenas pensar nessa comparação me deixava enjoada.

 Avancei na direção dele com o ódio à flor da pele, mas Newt gritou meu nome e segurou meus braços. Um dos homens se colocou entre eu e Herman e o outro pôs a lâmina da faca no meu pescoço.

  — O que está fazendo aqui?! Vivo?! Não acredito que aqueles mértilas deixaram você ileso! – eu gritei, tentando me puxar do aperto de Newt e ignorando completamente a faca.

  — Conhece ela? – um deles perguntou.

  — Conheço. – Herman respondeu e engoliu em seco ao me medir de cima a baixo. — Longa história.

  — Espere mais alguns minutos e acabo com essa história de uma vez por todas. – falei entre dentes, meus olhos cravados nele como se pudesse mata-lo dessa forma. As mãos de Newt apertavam-se cada vez mais nos meus braços.

  — Comovente. – um dos brutamontes zombou.

 Não demorou mais um minuto para sermos empurrados até o outro lado do armazém. Custou para que eu conseguisse desviar meu olhar de Herman e precisei de muito esforço para não lutar contra todos eles e ataca-lo.

  — Acalme-se. – Newt disse, segurando minha mão e falando bem próximo do meu ouvido. Tentei me concentrar na cor amarela e esquecer o gosto azedo que a voz de Herman havia trazido. — Já estamos em desvantagem suficiente.

 Todo aquele lado do armazém possuía uma escada larga, um lado levando a um corredor e o outro diretamente para uma porta alta e de ferro. Descemos os degraus em direção à porta e um dos homens girou o leme que a trancava, depois deu espaço para que entrássemos.

  — Ele disse que faríamos um acordo. – Newt falou com uma nota de incredulidade.

  — Ele disse que eu ia pensar. – corrigiu. Fez um sinal para que entrássemos de uma vez e o outro nos empurrou de novo.

 Senti minhas mãos suarem mais à medida que passávamos pela soleira e meu coração deu um pulo quando a porta bateu. Não estávamos sozinhos.

 A sala era tão grande quanto o meu quarto no prédio do CRUEL, mas sem o mínimo de conforto. As paredes eram lisas e frias, com algumas manchas de sangue seco. Os únicos móveis eram dois bancos de metal presos ao chão em cada canto, uma pia alta e um penico do outro lado. O cheiro de suor, urina, cocô e algo muito pior imperava. Luzes fluorescentes no teto tornavam o local ainda mais sinistro.

 No chão, deitadas, sentadas ou em posição fetal, havia pessoas. Homens, mulheres, idosos e duas crianças de pelo menos dez anos. Todos tinham o olhar amedrontado, ou perdido, ou inexpressivo. Estavam sujos, alguns descalços, uma mulher apenas de sutiã e calça, uma menina com as roupas em frangalhos. Que maldito lugar era aquele?

  — Deus... – Newt sussurrou ao meu lado.

  — Sem Deus por aqui. – uma idosa largada contra a parede disse com a voz rouca. Tinha aparentemente oitenta anos, estava magra e os olhos fundos, e sua voz fez a cor laranja fluorescente brilhar no ar.

  — Bem-vindos... ao Mosteiro. – um homem, de olhar e tom alucinados, disse, sentado num dos bancos.

 Newt e eu nos entreolhamos, meu coração martelando o medo contra meu peito.

Poucos ali naquela sala falavam. E esses eram justamente os que menos queríamos ouvir. Além das cores extremamente ofuscantes que preenchiam minha visão com o tom deles, a Idosa sempre falava em divindades, Inferno, pecados e preces com morbidade demais... Tudo com a voz carregada de sarcasmo. Ela estava presa há anos, provavelmente a única que tinha passado tanto tempo ali. O Alucinado vivia brigando com ela, desprezando suas falas, em especial as que envolviam religião. Não tive dúvidas de que ele estava começando a ser consumido pelo Fulgor. Havia uma cicatriz recente em seu pescoço, que ele mesmo fizera, e seus braços estavam arranhados. As crianças olhavam para ele claramente espantadas. Ele ria sem motivo algum às vezes e não respondia quando a Idosa perguntava a graça.

 Newt e eu estávamos sentados lado a lado, contra a parede, os braços colados um no outro.

  — Estão vendo aqueles dois ali? – ela apontou para um canto. Contra uma quina, um homem estava com a cabeça apoiada na parede, olhando para o nada, o braço cercando os ombros de um garoto que tremia. Um pouco mais longe, havia a Mulher de Sutiã acarinhando o cabelo de uma menina, os olhos também fora de foco. – Ele chegou aqui há uns dois ou nove anos. Há muito não tenho uma boa noção de tempo, mas pensem em muito tempo. Eu já estava aqui. Estava acabado. Perdeu os filhos para um bando de Cranks e os Pagãos o trouxeram para cá. A moça chegou há uns meses com as crianças. Desde então, ele acha que o menino é seu filho, e não deixa ninguém chegar perto dele.

 Voltei a olhar para os dois. O homem agora nos encarava, inexpressivo, mas suas unhas arranhavam febrilmente sua canela, ferindo-a. Quase pedi para a Idosa parar o relato.

  — Ele vai se transformar? Num Crank? – perguntei.

  — Se ele vai? Todos aqui vamos, mocinha. Imunes ou não, cada um de nós está enlouquecendo à sua maneira.

  — Que mértila são os Imunes? – foi a vez de Newt. Suas sobrancelhas estavam franzidas após tirar os olhos do homem.

  — Ah, costumamos chamar de Privilegiados. Privilegiados. Sim, sim, sim. Por mais que respirem o mesmo ar que os malucos do mundo de hoje, nunca serão um deles. Ora, meu neto está me esperando, acho que ele vai se atrasar para a escola. É, atrasado. Eu sempre disse que ele era um incompetente. Não sabe fazer nada sozinho. Sozinho, me entenderam? Nós estamos sozinhos.

  — Cale a boca, velha. – o Alucinado mandou num chiado irritado e olhou para nós com um sorriso zombeteiro. — Ela perde a linha de raciocínio às vezes. Um pouco biruta.

  — O que está falando de mim aí, bunda mole? – a Idosa reclamou rouca. — Ora, pelo menos não tento arrancar meus próprios dedos durante o sono. – ela olhou para mim e sorriu ternamente. — É o que esse lugar faz com as pessoas, meu bem.

  — O Fulgor se espalha pelo ar? – perguntei, meus pensamentos longe da discussão dos dois. — É assim que as pessoas são infectadas?

  — Temos uma aluna exemplar aqui. – um outro homem disse. Estava sentado de qualquer jeito no chão, as costas certamente doloridas pela posição, os ombros completamente caídos. Ele movia as mãos como se estivesse engatilhando uma arma, a analisava, mirava em alguém, fingia disparar, depois abaixava e resmungava alguma coisa. E então começava tudo de novo.

  — Ora, quantos anos você tem, meu bem? – a Idosa perguntou a mim, ignorando o Atirador. — Deve ter sido escondida pelos seus pais por um tempo, sim? Sim, claro. Não, impossível que estejam vivos agora. O que me diz? Valeu a pena fugir com seu namorado bonitinho e deixa-los morrerem sozinhos? Sozinhos? Você parece meu filho ingrato... Você o conhece? Robert era o nome dele... Eu acho. Não fui eu quem escolhi...

  — Pelo ar, isso. – o Alucinado respondeu e deixei de prestar atenção nela. — Onde vocês estiveram para não saberem disso? Eu gosto dessa história. O mundo explodiu com o sol. Ou o sol explodiu... Não importa. O nosso querido Fulgor de todos os dias se espalhou e ninguém conseguiu contê-lo. Ele ataca em etapas, meus caros doidinhos. Primeiro os delírios e depois temos fome de olhos e língua de criancinhas! – ele exclamou para a menina e o menino, que se encolheram mais, calados. Cheguei a pensar que talvez não fosse a primeira vez que ele dizia algo assim, e por isso os dois eram tão quietos. — O governo tenta manter separados os malucos dos Privilegiados, mas, ah... – ele riu. — Eu trabalhava para o governo. Todos eles pensam apenas no próprio traseiro.

  — Os funcionários do CRUEL contaram a mesma coisa. – Newt comentou em tom mais baixo. — Quando estavam nos levando do Labirinto para o prédio...

  — CRUEL! – uma mulher gritou ao se levantar subitamente, esquadrinhando o local, minuciosa. Seus olhos pararam em mim e Newt e ela aproximou-se rapidamente, fungando como se quisesse nos reconhecer pelo cheiro. — O CRUEL! Ah! Vocês o viram?! Estão vindo me resgatar! Ah, eu amo o CRUEL! Temos sorte de ter o CRUEL liderando as coisas! Que esperto foi usar aquelas crianças! Vocês sabem onde elas estão?! CRUEL!

 Ela berrou a palavra mais uma vez. Seus olhos estavam marejados e, por mais insano que parecesse, de alegria. Ela sorria esperançosa para nós.

  — O CRUEL matou pessoas. – falei brandamente, minha língua coçando para tirar aquele sorriso do rosto dela ao se referir àquelas pessoas.

  — O quê?! Não! Você está completamente enganada!

 Ela agarrou-me pela roupa e me pôs de pé com um puxão, seu rosto tão próximo que assustava.

  — O que você quer dizer com isso?! – gritou.

 Newt tinha se levantado e me ajudava a afastar as mãos dela. A mulher nos deu as costas e começou a caminhar para um canto perto da porta, cantarolando uma música tristemente.

  — Ela tinha um marido que sempre dizia que tudo isso era culpa do CRUEL. – a Idosa contou e voltamos a nos sentar. — Os Pagãos jogaram os dois aqui, mas ele estava completamente infectado e ela não acreditava nele. Meu não tão querido esposo gostava de sangue. – ela sorriu diabolicamente e apontou para o canto atrás dela. — Acho que Deus quis dar a ele um fim agradável.

 Um velho estava largado ali, a pele flácida, pálida. Estava morto. Seu pescoço parecia ter sido comido até a metade, era possível ver o osso de seu esqueleto em meio à carne e o sangue.

  — Os Pagãos disseram que o tirariam daí, mas às vezes gosto de contemplá-lo. – disse a Idosa.

  — Quem são os Pagãos? – Newt perguntou e o Alucinado soltou uma gargalhada, olhando para o teto. Olhamos na mesma direção, mas não havia nada, e ele permaneceu calado.

  — Ora, são os Cranks que deixaram vocês aqui. – a Idosa respondeu. — Eles se denominaram assim quando apareceram na minha casa. Sabem, soa leve e nada perturbador. Quem imaginaria que tanta escuridão pudesse tomar conta desses cerebrozinhos? Deus não permitiria que isso acontecesse.

  — O Diabo permitiria. – disse o Alucinado, ainda olhando para cima.

  — De qualquer forma, meu querido neto ficou trancado no porão. Ele tinha saído. Não arranjem amores nos dias de hoje, é o que eu digo. Quando voltou para casa, estava infectado. E me infectou também. Aquele menininho... Ora, precisava de um castigo, não concordam? Sim, sim. Mas esqueci ele lá. Acho que ele nunca mais cometerá esse erro outra vez, ham?

  — Não estamos interessados na sua ladainha, velha. – a Mulher do CRUEL resmungou.

  — O CRUEL é mau, querida. – a Idosa disse e pareceu saber o efeito daquelas palavras ao sorrir quando a mulher começou a bater a cabeça contra a parede.

  — Por que estão mantendo vocês trancados aqui? – perguntei ao Alucinado.

  — Ela não é tão boa aluna assim... – o Atirador cantarolou zombeteiro, mirando sua arma invisível na menina de dez anos.

  — Eles acreditam que alimentando os Cranks teremos a saúde do planeta de volta. Dizem que o sol apenas está nos testando, que ele espalhou a doença e quer que os Cranks sejam alimentados para ver o quão altruístas nós somos. O SOL É EXIGENTE, NÃO É?! – o Alucinado berrou para as paredes e fechou os olhos, e sorriu ligeiramente, respirando fundo. — Não sei por que eles mesmos não se dão de comida para os malucos...

  — Somos comida? – perguntei, incrédula.

  — Sim, sim, sim. – a Idosa respondeu, olhando atentamente para um fio branco de seus poucos cabelos.

  — Azar o seu de estar tão conservada assim. – o Alucinado disse, relanceando para mim. — Ainda não entendi como eles escolhem os próximos.

  — Acho que são por quantos fios de cabelo ainda restam. Quanto menos tiverem, mais você vale para os Cranks. – ela puxou o fio com força, a língua tocando o canto da boca.

  — Não, acredito que seja pelo mais bem humorado.

  — Vou mata-los da próxima vez que vierem. – disse o Atirador, mirando sua arma invisível para a porta numa posição extremamente profissional, e parecia estar mesmo concentrado. — Mas não contem para ninguém.

— AI! – eu gritei quando minha mão esbarrou na panela de água fervente no fogão. Eu parecia ter dezesseis anos.

 Minha mãe entrou correndo na cozinha no instante seguinte.

  — Shh, shh... – ela disse nervosa e me levou até a pia, abrindo a torneira para a água fria cair sobre a queimadura.

  — Desculpe... Desculpe, eu me assustei.

  — Tudo bem.

 Mas pelo seu semblante extremamente preocupado, eu sabia que não estava nada bem. Precisávamos ficar em completo silêncio. Cranks costumavam passar pela casa a todo momento, esperando ouvir alguma coisa. Fora difícil parar de brigar com Herman, mas era uma questão de sobrevivência.

  — Bruno foi verificar se ainda estão lá fora. – ela disse num sussurro muito cuidadoso, encarando o vermelho do meu machucado. — Não temos remédio. Isso vai doer bastante...

  — Tudo bem, não se preocupe.

 Ouvi um baque vindo da entrada da casa e passos apressados atrás de nós, e Herman parou ao lado de nossa mãe para falar o mais baixo possível.

  — Ele está tentando mantê-los longe, mas estão arrombando a porta. – disse com a voz trêmula.

  — Não foi ajuda-lo? – perguntei, perplexa.

  — Certo, vocês dois, vão para o porão e não saiam, independente do que ouvirem. – ela começou a nos empurrar para fora da cozinha.

  — E vocês? – indaguei.

  — Me escute bem. – ela segurou meu rosto entre as mãos. — Tem que me prometer que não vai sair de lá.

  — Mãe, você é a última que pode...

  — Não vou deixa-lo sozinho e sabe disso.

 Eu sabia. O forte sentimento entre Bruno e minha mãe era uma das coisas que mais me inspiravam a ser forte também e lutar para ter algo assim com alguém um dia. Às vezes, parecia um amor mais forte do que ela contava ter sentido por nosso pai.

 Herman e eu descemos para o porão e deixamos apenas uma vela acesa, enquanto nos encolhíamos contra a parede atrás da escada. Minha queimadura começou a arder como se ferro em brasa estivesse sendo pressionado contra ela e eu mantinha a mão parada no ar para que nada encostasse nela. O tempo ia passando, nem minha mãe nem Bruno voltavam, mas era possível ouvir os Cranks berrando e lutando contra eles. Com meu ferimento doendo mais a cada segundo, a mistura de emoções me obrigou a tampar a boca quando comecei a chorar.

  — Não faça barulho. – Herman advertiu. Eu fechei os olhos e concentrei-me em segurar a raiva de ouvir uma coisa daquelas vindo dele. Não sabia como ele conseguia pensar daquele jeito com nossa mãe exposta aos Cranks daquela forma lá em cima. Estávamos perdendo ela, por mais que estivesse sendo difícil para eu acreditar nisso.

 A porta do porão foi aberta abruptamente e pressionei minha mão contra minha boca com mais força. Mas não era nenhum dos Cranks avançados.

  — Calma, calma... – minha mãe disse ao nos ver, pousando o olhar na queimadura por um tempo. Apertei os olhos, fazendo mais lágrimas caírem e respirando fundo. Era como se o ferro quente estivesse tentando abrir caminho de dentro da minha mão.

 Ela sentou ao meu lado e abraçou-me contra seu peito, balançando seu corpo como sempre fazia para me acalmar. Eu lembrava-me de quando ela disse que eu nunca seria grande o bastante para ela parar de fazer isso e não cantar para mim. Mas ela não podia cantar desta vez. Ouvindo os Cranks berrarem lá em cima, comecei a pensar em quanto tempo mais eu a teria para fazer isso. Para me ensinar como cuidar dos outros. Para ser minha mãe.

 Abri os olhos e encarei os pés do banco de metal presos ao chão. Meus olhos marejaram. Eu preferia não ter essas lembranças, agora que a tinha perdido.

 Newt estava deitado atrás de mim, seu braço passado por cima da minha cintura e seus dedos entrelaçados nos meus. Tínhamos decidido dormir quando o Alucinado disse que os Pagãos não voltariam tão cedo. Estávamos ansiosos para falar com o líder sobre o acordo, mas o cansaço era muito maior. E ficar ouvindo os malucos daquela sala recitarem suas maluquices não era lá um passatempo agradável.

 Meu corpo se balançou com os soluços que eu continha na garganta e senti a respiração dele mudar de posição na minha nuca. Newt abraçou-me com mais força contra seu corpo e eu remexi minha cabeça sobre meu braço, as lágrimas escorrendo cada vez mais. As chances de não sermos Imunes e não haver cura alguma na linha de chegada faziam meu peito ser esmagado pela angústia.

 Eu me virei e enterrei meu rosto no peito de Newt, mexendo distraidamente no cachecol em seu pescoço.

  — O nome dela também era Norma. – falei com a voz ligeiramente firme, o mais baixo possível para que só ele ouvisse. — Minha mãe. É graças a ela que eu soube cuidar de vocês na Clareira.

 Newt continuou em silêncio, acariciando meu braço com o polegar. Lembrei-me da primeira vez em que nos beijamos. Parecia que estávamos naquela mesma bolha, encubados num espaço apenas nosso, ilusoriamente protegidos da loucura que nos cercava.

  — Por isso soube fazer o parto? – ele perguntou e me senti aliviada em ver a cor amarela outra vez, ouvir sua voz e seu sotaque. Nada me deixava mais satisfeita do que pelo menos ter conseguido sentir por Newt algo tão próximo do que minha mãe sentira por Bruno. Era a única coisa que conseguia me confortar.

 Assenti com a cabeça em resposta.

  — Era meu assunto preferido com ela... e na enfermaria do CRUEL. Eles nos tiraram tudo, Newt... E se formos Imunes...

  — Ainda precisamos contar aos outros. – ele me interrompeu, sua voz também muito baixa. — E não podemos confiar no que esses trolhos dizem. Inventariam qualquer coisa para se sentirem melhor aqui dentro.

  — Nós fomos expostos ao vírus e não estamos loucos. – afastei-me um pouco e o encarei. — Sabe que os Criadores inventariam qualquer coisa para que continuássemos no Experimento.

 Newt devolvia meu olhar atentamente, as sobrancelhas franzidas, e senti como se ele estivesse lendo tudo o que se passava pela minha mente.

  — O que está querendo fazer? – perguntou.

  — Esse é o problema... – sussurrei com minha garganta dando um nó e as lágrimas voltando aos meus olhos. — Eu não sei...

 Newt puxou-me contra seu corpo e me abraçou com força, uma de suas mãos no meu cabelo. Pude sentir seu maxilar cerrar. Contive o barulho dos soluços, incomodada por alguma razão que os outros naquela sala me ouvissem chorando, mas meu corpo balançava claramente.

  — Nós vamos sair, vamos encontrar os outros, e então decidimos o que fazer. Não temos outra escolha se não fingir que concordamos com a mértila do Experimento, Nelly. Mas ainda vamos fazer os Criadores pagarem.

 Suspirei algumas vezes contra seu peito, meus olhos fortemente fechados. Era a primeira vez que me sentia fraca e impotente àquele ponto. Contudo, isso não me incomodava como me incomodaria enquanto estivera presa sozinha naquele prédio. Alguma parte de mim me permitia agir daquela forma quando estava com Newt, porque só com ele eu me sentia segura para isso.

  — Herman... – falei numa voz ainda fraca.

  — Esqueça aquele plong. Se não quiser que ele vá conosco, ótimo. Provavelmente nunca mais vamos precisar ver ele. Se quiser, acho que consigo conter a vontade de empurrá-lo numa maldita vala de Cranks.

 Eu sorri de canto e, inesperadamente, consegui sentir-me bem, guardando tudo o que eu queria dizer a respeito de Herman.

  — O que acha que aqueles trolhos estão fazendo agora? – ele indagou e soltei uma risada nasal involuntária. No segundo seguinte, uma outra risada me acompanhou.

  — Você fala engraçado.

 Nós olhamos para os nossos pés e o menino agarrada pelo homem, desacordado agora, encarava-nos com um sorriso infantil. Com certeza era a coisa mais doce daquela sala. A única. Mas sua expressão se fechou rapidamente e eu senti mais frio do que deveria. Newt e eu trocamos um olhar singelo um com o outro e nos sentamos contra a parede.

  — Qual o seu nome? – perguntei o mais calmamente possível.

 O menino baixou os olhos tristes para o chão e olhou para o homem ao lado por um momento, notoriamente assustado.

  — É Isaac. – ele respondeu. Uma linha azul deslizou pelo chão como uma serpente e eu duvidei da sua resposta, principalmente se o Obcecado ao lado era tão louco por ele quanto parecia.

  — Você gosta desse nome? – indaguei. Ele arregalou os olhos para mim, olhou para o Obcecado e voltou-se balançando a cabeça energicamente em negação. Depois se virou para sua mãe, que o observava com um sorriso ligeiro no canto da boca. Nós quatro nos sobressaltamos quando uma mulher exclamou de repente:

 

Senhor Deus dos desgraçados!

Dizei-me vós, Senhor Deus!

Se é loucura... Se é verdade

Tanto horror perante os céus?!

Ó mar, por que não apagas

Com’a esponja de tuas vagas

De teu manto este borrão?

Astros! Noites! Tempestades!

Rolai das imensidades!

 

 Ela estava ajoelhada de frente para a parede, as mãos unidas como numa prece, cada verso sendo gritado. Seu cabelo era escorrido e preto. O Obcecado acordara de repente e prendera o menino contra si, como se o protegesse.

  — Ela já começou? – a voz de um garoto mais velho que as duas crianças foi a primeira a cortar o ar sobre a dela.

 Ele parecia ter em torno de dezesseis anos e estava sentando-se contra a parede oposta à nossa, aparentemente acabando de acordar. Mesmo sob o olho roxo, o lábio inchado e todos os outros hematomas que cobriam seu corpo, tive certeza de que ele me era muito familiar.

  — Joe?! – Newt exclamou de repente, os olhos arregalados, e então um sorriso realmente feliz ao encarar o garoto.

  — E aí, seus trolhos? – Joe cumprimentou em meio a um gemido, enquanto ajeitava sua postura.

  — Cara, achei que estivesse...

  — Morto? Sendo comido por um Crank? Ou espetado pelos Criadores?

  — Não sei, não paguei para ver ficando naquele maldito lugar, seu cabeça de mértila. – Newt disse irônico. — Como veio parar aqui?

  — Nelly não te contou? – Joe ergueu uma sobrancelha para mim. Eu o observava atentamente para ter certeza do que se passava pela minha cabeça.

  — Você foi um dos que decidiram não receber a memória de volta antes de ser solto pelos Criadores. – concluí e ele confirmou com a cabeça.

  — Que coisa, não? Dois anos de espera para sair e encontramos essa maravilha do lado de fora. – Joe comentou com Newt. — Nunca fui um dos trolhos mais espertos daquele lugar, então faz um tempo que esses plongs me pegaram.

  — Vamos incluir você no acordo, cara. – Newt disse francamente.

  — Não se incomodem.

  — Estamos indo atrás da cura. Restaram alguns do grupo ainda, vai ser bem melhor do que ficar esperando pela morte aqui dentro.

  — Restaram alguns? – Joe repetiu, cínico. — Quantos vão restar até acharem essa cura?

  — É uma nova chance para tentar.

  — Sem essa, Newt. – ele riu nervosamente, negando com a cabeça. – Já estou infectado. Já sei que sou um Crank. A comida daqui não é cinco estrelas, às vezes da vontade de arrancar uns olhos.

 Joe encarou alguém ao nosso lado e o Alucinado o encarava de volta com os olhos cerrados. Ele sorriu o sorriso maníaco de sempre para o garoto.

  — Entendam, pombinhos. – a Idosa disse, sentada bem ao lado do cadáver de seu esposo. — Não é por que somos revistados do lado de fora que os nossos cérebros não são como armais letais aqui.

 A porta abriu-se com um rangido e três pedaços de carne vermelha crua voaram até o meio da sala. Mal tinham tocado o chão quando pelo menos dez pessoas avançaram para agarrá-los. A Mulher do CRUEL acertou uma cabeçada no Alucinado para defender seu pedaço de carne, e o Obcecado aproveitou sua distração para puxar um pouco para si com os próprios dentes. Três mulheres debatiam-se, arrancando tufos de cabelo umas das outras e se arranhando, a carne disputada esquecida ao lado no chão; a mãe das crianças pegou-o e o escondeu trás de si discretamente. Mas não foi discreta o suficiente para que uma loira violentada não percebesse. Ela arranhou o rosto da menina de dez anos com suas unhas e a mãe gritou, puxando-a para si, desesperada, deixando que a comida lhe fosse tirada. Um homem arrancava um pedaço pequeno das mãos de um velho, mordendo-as e o fazendo urrar de dor. O Atirador mirava sua arma e ameaçava alguém invisível aos gritos, dizendo que era um assassino profissional antigamente. Eu não duvidava nem um pouco disso.

 Outras brigas aconteciam e a única além de nós que não se envolvia era a Idosa. Ela apenas conversava com seu falecido, aparentemente comentando sobre a carnificina. Pude ver uma moça ter a cabeça acertada várias vezes contra a parede, manchando-a de sangue. Quis ir ajuda-la, afastar o cara que fazia aquilo, mas meu medo de que Newt se envolvesse e pagasse o preço era maior. Aliás, não havia altruísmo nenhum que salvasse aquelas pessoas. Por fim, a moça caiu morta no chão com a cabeça amassada. Ela e mais dois morreram pela carne.

 Quando tudo se aquietou e pude perceber que a mão de Newt suava ao segurar a minha, e tudo o que se ouvia era o som das mastigações (nem sempre da carne que havia voado pela porta), o responsável pela comida resolveu finalmente entrar.

 Herman olhou para alguns de nós, mas sem dar muita atenção. Talvez estivesse ali há tempo suficiente para estar acostumado àquele tipo de coisa. O gosto azedo de sempre que o via voltou com tanta força que cuspi para o lado antes de voltar a encará-lo. Essa era uma das maiores diferenças entre eu e ele: não importasse quanto tempo, eu nunca me acostumaria a ver uma coisa horrível daquelas. Herman prezava demais a si mesmo para envolver-se e descobrir a manta de covardia do seu traseiro.

  — Já faz horas. – Newt disse para chamar a atenção dele e ele caminhou até nós. – Queremos o maldito acordo.

  — Pega leve, valentão. Você não tem mais a moral que tinha naquele lugar. – Herman disse.

  — Só aqueles malucos para fazerem o completo oposto com você, não é? Só alguém sem cérebro nenhum. – falei com a cabeça apoiada na parede, sem tirar os olhos dele.

  — Ainda não faço nada de mais. – deu de ombros e olhou ao redor brevemente. — Organizo tudo. Limpo as coisas...

  — Não me interessa.

 Herman pousou seus olhos em mim e me mediu com o olhar, analisando-me. Era bizarro como até nesse detalhe ele me tratava diferente.

  — Se as coisas tivessem corrido um pouco melhor na Clareira, Perenelle, eu tiraria vocês daqui.

  — Para as coisas terem corrido bem você nunca devia ter entrado. Para não arranjarmos problemas você devia ter ficado na sua; não devia ter me provocado por birra, me machucado, virado eles contra mim; deixado nosso padrasto morrer, feito o mesmo comigo várias vezes, fugido da própria mãe; entregado um bebê de comida para os Cranks enquanto fugia... Herman, as coisas estariam melhores se você nunca tivesse nascido.

 Pude ver sua pálpebra tremer enquanto ele devolvia o olhar. Seu punho se abriu e fechou algumas vezes e ele cerrou os dentes.

  — Se você nos tirasse daqui, eu mataria você. – acrescentei.

 O silêncio imperou por um tempo e, mesmo com os olhos cravados nele, soube que a maior parte da sala prestava atenção em nós.

  — Você deu um bebê para os Cranks comerem? – o Alucinado indagou, sua boca toda manchada de vermelho.

 Ele avançou para cima de Herman com os dentes trincados num urro de raiva, mas o infeliz tirou uma faca de trás do cinto e esticou na direção dele para mantê-lo longe. O Alucinado parou e encarou a faca, começando a soltar risadinhas. Ele gargalhou com a cabeça vergada pra trás e se afastou.

  — Meus amigos são um pouco exóticos, melhor ir com calma no que diz. – Herman me ameaçou, guardando a faca com um movimento exagerado.

  — Você nem acredita nessa mértila. – repliquei com a testa franzida.

  — Ainda estou do lado mais forte. – ele abriu os braços, as sobrancelhas erguidas.

 O choro baixinho e discreto da menina entre os braços da mãe fez com que eu relanceasse para ela.

  — Está vendo aquelas crianças? – indaguei e desencostei minha cabeça da parede, lembrando-me do momento em que as Portas do Labirinto se fecharam com Herman. — Durma com isso.

 Pude ler nos olhos dele a sua vontade de me agredir, como sempre queria fazer quando éramos mais novos, mas se contentava com apenas empurrões. Ele se controlou desta vez também. Herman não tirou os olhos de mim enquanto não se virou para sair da sala.

 A porta se fechou e eu soltei o ar que prendia, descansando a cabeça na parede outra vez.

  — Parece que vocês são dos nossos agora. – a Idosa comentou maldosamente, mas ignorei.

  — É verdade? O que ele fez? – Newt perguntou, a testa franzida em descrença ao desviar o olhar da porta para mim.

 Eu respirei fundo, fechei os olhos e assenti.

 

São os filhos do deserto,

Onde a terra esposa a luz.

Onde vive em campo aberto

A tribo dos homens nus...

São os guerreiros ousados

Que com os tigres mosqueados

Combatem na solidão.

Ontem simples, fortes, bravos

Hoje míseros escravos

Sem luz, sem ar, sem razão


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Notas finais do capítulo

Escrevi esse cap. inspirada em Heathens, do Twenty One Pilots. Recomendo!
E a "oração" da mulher é um trecho do poema Navio Negreiro, de Castro Alves. É muito bonito, recomendo também!
Herman está de volta, hein? E olha que desta vez ele tá em posição de fazer qualquer maldade que passe por essa cabecinha.
Espero que tenham gostado ♥

Até o próximo!



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