Socorristas escrita por BlueBlack


Capítulo 25
Delírio é equilíbrio


Notas iniciais do capítulo

Heey!

Título tirado desta vez da música Levanta e Anda do Emicida ^^ Espero que gostem!
E sejam bem-vindos os novos leitores! ♥

Boa Leitura!



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Fui deixada sozinha num dormitório imenso daquele edifício. As paredes eram forradas com beliches, mesas e escrivaninhas, os cobertores eram de várias cores diferentes, assim como as cortinas e tudo o que era possível. Depois de tanto ter visto branco e cinza, aquilo me deixava tonta. Ou era apenas a sensação de ter sido arrastada para longe dos Clareanos outra vez e trancafiada sozinha.

  — Devem se sentir completos imbecis por deixar um objeto de estudo escapar por entre os dedos, não é? – indaguei cinicamente enquanto dois guardas do tamanho de armários me puxavam, interrompendo a circulação do meu sangue nos braços com a força que usavam. Era só um modo falsamente indiferente de fingir que não estava frustrada por ter sido pega.

 Debati-me enquanto andávamos, tentando me livrar deles, mas era uma atitude ridícula. Eles pararam em frente a uma porta de metal e um deles passou um cartão num sensor ao lado. Foi ouvido um chiado de vento e ela se abriu, e não levaram mais tempo para me empurrarem para dentro brutamente. Tropecei nos meus pés e caí de encontro ao chão, machucando a maçã do rosto. Assim que me levantei para tentar investir contra eles, fecharam a passagem.

 Deram-me comida, água, roupas novas e artigos de banho. Quase me neguei a aceitar a boa ação, mas logo meu cheiro começou a ficar insuportável, e demorei o que devia ter sido uma hora debaixo do chuveiro. Sequei meu corpo ao sair, vesti a roupa, e estava secando meu cabelo na tolha com o olhar pensativo para o chão, tentando raciocinar o que eu faria para sair dali. As janelas possuíam barras de ferro, o que me fez entender o motivo das cortinas coloridas. Não havia um teclado digital do lado de dentro do quarto desta vez. Devia haver alguma coisa... Nem que fosse algo que eu pudesse usar para explodir aquele lugar.

 Respirei fundo e baixei os braços cansados do esforço, larguei a tolha por cima de uma cadeira e a exaustão me consumiu. É claro, fazia pouco mais de vinte e quatro horas que eu não dormia de verdade, e depois de toda a confusão no complexo...

 Eu não acreditava nem por um segundo que aquele bom tratamento era real. Estava bom demais para ser verdade. O aroma floral que me envolvia deitada na cama, meus músculos todos relaxados, a sensação de estar num quarto normal... Minha mente estava relaxando aos poucos, por mais que eu tentasse resistir. Não adiantaria. Não havia como escapar. E meu corpo apagaria em breve sem o meu consentimento.

 Levantei da cama e fui até outro beliche, respirei fundo e o puxei com esforço até a porta, imaginando que eu dependeria disso para pelo menos não ter o quarto invadido durante a noite e ser levada para algum pátio de execução. Conseguir posicionar bem aquilo custou minhas últimas gotas de energia. Larguei-me na cama de qualquer jeito. Não demorou dois segundos. Fui envolvida pela escuridão do sono.

 Uma massa de pessoas que mais pareciam zumbis me perseguia. Eu dava várias voltas no prédio tentando despistá-los, mas obviamente não funcionava. Era mais um teste do CRUEL. O teste final. Claro que me separaram dos outros, apenas eu merecia aquilo. Não sabia como eu sabia, mas eu sabia. O mau pressentimento que tomava conta de mim era muito claro: eu morreria em questão de minutos.

  — Vem! – gritei ao passar por uma porta e puxar a pessoa que me acompanhava. Não tinha ideia de quem era. E não havia ninguém além de nós e aqueles zumbis no prédio todo.

 Fechamos a porta e arrastamos uma mesa para frente dela, e, quando olhei de novo, havia uma pilha de poltronas e mesas bloqueando a abertura. Nós dois recuávamos aos poucos, de olho na porta e no movimento que as coisas faziam com o esforço dos zumbis do outro lado. O medo me consumia. O que faríamos se eles conseguissem entrar? Como eu tinha conseguido ser tão estúpida de entrar ali, depois de tudo o que eu já havia feito?

 Ainda estávamos recuando quando a pessoa ao meu lado gemeu e agarrou minha camisa, quase me derrubando. Segurei seu braço com força ao ver que ele cairia e o puxei para junto de mim pela cintura. Estávamos de frente para um rombo que atacava toda a parede, a apenas um passo de cair. Tudo na rua lá embaixo era muito miúdo. Eu sabia a medida exata da altura em que estávamos, e que uma queda seria letal.

 Olhamos de volta para a porta. Muitas coisas haviam caído, só restava a mesa bloqueando os zumbis. O braço em carne viva de um deles passava pela fresta. Encaramo-nos com o olhar firme. Não havia nem sinal de lágrimas ou medo ou hesitação. Na verdade, a mensagem estava muito bem subtendida. A eu de verdade assistia aquilo com horror. Não podia ser isso que estava passando pela minha cabeça...

 A porta cedeu. Os gritos insanos encheram o local, mas nós dois ali parecíamos surdos, imersos no olhar um do outro. Prendemo-nos um ao outro com mais força, esticamos um dos pés para o ar do rombo, e demos impulso com o outro.

 O vento erguia meu cabelo, o frio na minha barriga me tirava o fôlego. Eu queria gritar, mas então soube quem estava comigo. Newt. A cor amarela.

 Acordei com o coração prestes a saltar pela minha boca, puxando e me debatendo nos lençóis como se isso impedisse a queda de continuar. Arrastei-me até que eu ficasse sentada na cama e joguei todos os cobertores com força para o chão, só para ter algo em que descontar a angústia. Corri as unhas pelo meu cabelo, entrecruzando as pernas e apoiando o cotovelo nelas, tentando assimilar tudo o que se passava pela minha cabeça.

 Os zumbis do sonho não eram zumbis. Minha mãe não havia sido um zumbi. Eles estavam infectados. Tudo o que a garota que eletrocutei tinha era uma doença. Alguma doença perigosa, que atacava o cérebro das pessoas e aos poucos destruía sua humanidade, deixando os instintos animais à flora, e os faziam parecer insanos. Não eram apenas minhas habilidades de Socorrista me informando. Eu definitivamente me lembrava disso.

 Eu havia sido levada à força até o CRUEL quando tinha ainda onze anos. Eles queriam uma cura e queriam me usar para isso. Então esse era o complemento das lembranças de Thomas. Haviam tirado todos nós de nossas famílias porque algo em nosso cérebro era útil para a cura. Criaram-nos no CRUEL, nas tais escolas especiais. Finalmente comecei a sentir que os lugares pelos quais passei no complexo me eram muito familiares. Principalmente a enfermaria. Não havia necessidade de questionar por quê.

 Mas se éramos úteis para a cura, qual a necessidade de nos fazer passar por tudo aquilo? Por que matar? Havia tantas maneiras de estudar o nosso cérebro... Por que nos submeter a uma vida como a do Labirinto?

 Ergui a cabeça para a porta e vi o beliche ainda barrando a passagem. Foi então que o barulho horrendo de pessoas gemendo e gritando perfurou meus ouvidos. Não entendi como não havia notado antes. O quarto estava muito escuro, a não ser pelo feixe de luz que vinha da fresta no banheiro. Levantei e me virei para o barulho, que saía de lá de dentro, mas muito mais abafado do que deveria ser. Ainda assim, olhei ao redor à procura de algo que servisse de arma. Quase tudo era feito de metal. Havia apenas uma cadeira de madeira num canto, um pouco desgastada. Segurei seu espaldar com força e golpeei-a contra a parte de baixo de um beliche. Mais duas vezes e suas pernas se quebraram. Agarrei uma delas e caminhei até o banheiro, mirei a ponta da madeira na porta e a empurrei, já recuando vários passos. Estava vazio, mas os barulhos ficaram mais altos. Não demorei a perceber que vinha de trás da janela dentro do box.

 Entrei no banheiro, estiquei o pedaço de madeira até a cortina colorida e a afastei para o lado. Não foi uma surpresa ter visto mais daqueles infectados, amontoados uns sobre os outros na tentativa de entrar pela janela. Esperei sentir um cheiro ou algum gosto horroroso, mas nada veio.

  — Preciso de roupas novas! Preciso de roupas novas! – a moça da noite anterior estava no meio de todos eles.

  — Sou um Crank! Sou um Crank! – um homem berrava, cuspindo saliva e escancarando a boca podre.

  — Soa melhor que zumbi. – comentei comigo mesma num murmúrio fraco, sentindo a familiaridade da palavra estranha.

 Eles tentavam passar os braços e até a cabeça pelas grades. O vidro já havia se estilhaçado no chão, alguns cacos perfuravam a pele deles. Era muito pior vê-los agora pessoalmente e sob a luz do dia. Soltei um suspiro e me voltei para o espelho acima da pia, finalmente podendo observar o estrago em mim. A perturbação do sono tinha me trazido olheiras. Não sabia explicar, mas toda a minha feição me incomodava. Ocupei-me em limpar meu ferimento no braço, porque estava com uma aparência melhor, e molhei meu rosto com a água fria para acordar de vez. Estava passando a mão pelo meu pescoço para verificar os machucados causados pelos cacos de vidro do carro, quando minha gola afastada revelou algo escrito ali na lateral, estendendo-se na direção das costas.

Propriedade: CRUEL. Grupo A, Indivíduo A14. A Reparadora

  — Que ótimo... – resmunguei. — Agora eles fazem tatuagens no meio da noite sem eu perceber.

 “Mas como poderiam ter passado pela porta e deixado o beliche do mesmo jeito?”. Esfreguei os olhos, pisquei e molhei o rosto de novo, e a marca continuava ali. Aquilo não fazia sentido nenhum. Principalmente porque tudo estava escrito em preto. Nenhuma palavra nem número eram inteiramente pretos desde que esse fenômeno dos sentidos começou. Os dígitos das senhas do CRUEL intercalaram-se em verde, vermelho e azul na noite anterior; mas aquele 14 estava num simples preto.

 Saí do banheiro com a estaca na mão e a prendi entre as pernas para empurrar o beliche para longe da porta. Forcei a maçaneta e ela, obviamente, estava trancada.

  — Aí, idiotas! Tem alguns malucos querendo me devorar aqui! – gritei enquanto esmurrava a passagem e, após mais alguns berros, percebi que não me responderiam.

 Agarrei um extintor de incêndio da parede e dei pancadas até que a maçaneta caísse. Para o meu espanto, foi ouvido o chiado de vento. Hesitante, puxei a porta de uma vez só, a estaca em prontidão outra vez.

 O corredor que se seguia para os lados estava completamente escuro, já que a luz vinda do banheiro não o alcançava, e o silêncio me fez ponderar que pelo menos dentrodo prédio os tais Cranks não estavam. Inclinei-me para ver algo, mas era impossível. E não havia nenhuma lanterna no quarto, havia verificado tudo depois de ser largada lá. Mas as palavras tinham cores para mim. Quem sabe alguma coisa eu conseguisse ver?

  — Five, four, three, two, one... Five, four, three, two, one...

 A música da Transformação era muito mais clara agora, depois daquele sonho. Minha voz ecoava pelo corredor sinistramente, mas por alguma razão agradeci por estar sozinha ali. Contanto que eu encontrasse os outros logo...

 O gosto de canela não veio desta vez, mas linhas coloridas dançaram por toda parte, formando os números. Elas se esgueiravam como cobras pelas paredes, pelo chão e pelo teto. Comecei a andar em direção à porta que levava ao refeitório, sem parar de cantar a música.

  — He holds... the gun... against... my head... – olhei para trás e as linhas corriam por ali também. Elas iluminavam muito pouco o caminho, mas percebi que, sempre que eu parava de cantar, conseguia ver mais claramente as paredes e a porta. — I close... my eyes... and bang... i am dead...

 Estiquei a mão à frente do meu corpo e a vi como um borrão que não se estabilizava, mesmo parada. Continuei indo em frente, sem parar de cantar. De certa forma, as cores conseguiam me tranquilizar. As linhas da porta para o refeitório enfim entraram no meu campo de visão, tão borradas quanto minha mão e as paredes, mas ainda assim reconhecível. Correntes maciças mantinham-na trancada. Corri de volta para o quarto, agarrei o extintor outra vez e comecei a golpear as correntes. Contudo, por mais que eu tentasse, elas não caíam. Continuavam imponentes, uma linha verde de sensor subindo e descendo no cadeado à espera do que o liberaria; bloqueando a passagem, como se os Criadores dissessem que não havia nada ali que pudesse me interessar. E era justamente por isso que eu queria entrar.

 Olhei através da pequena janela na porta e pude perceber que o outro lado estava completamente escuro também. As mesas, os bancos e as pilastras formavam uma paisagem deserta, não havia mais nada além disso ali. E foi então que me dei conta. Voltei-me para o corredor no completo breu e percebi que não havia nenhuma janela, nem nas paredes nem no fim do corredor. Mas quando estiquei minha mão, eu ainda podia vê-la. Como eu podia vê-la sem a ajuda de luz alguma? Como eu podia ver o refeitório sem nenhuma lâmpada acesa lá?

 Arfei uma vez e olhei ao redor. Havia câmeras ali também, como no quarto. Cerrei os olhos para o fim do corredor e percebi que ele virava para a direita. Com a estaca e o extintor nas mãos e uma grande expectativa, corri até lá e virei. Mas apenas a pouco mais de seis metros, só o que havia era uma parede lisa e lustrosa. Aproximei-me e bati por toda a sua extensão, cada palma calculada para que não restasse um espaço sequer. E só o que descobri era que a parede me trazia a sensação de cobiça.

 Queria ter passado mais tempo tateando a parede e me perguntando até onde aquela minha condição mental poderia me levar, como meus sentidos ainda poderiam ser misturados e como aquilo me beneficiaria ou prejudicaria... Porque assim que me afastei e me convenci de que as respostas não cairiam do céu tão fácil, percebi a imensa fome que eu sentia.

 Não havia nenhuma porta por ali a não ser a do meu quarto e a que levava ao refeitório e isso me preocupou.

  — EI! – berrei entre cada golpe com o extintor contra a porta. — SEUS MÉRTILAS INFELIZES! PARECE QUE ESQUECERAM ALGUÉM AQUI!

 Continuei berrando até que minha garganta não suportou mais, só para descontar a raiva da situação, pois eu sabia que não haviam me esquecido. Provavelmente haviam me deixado ali para morrer de fome, enquanto os outros eram levados a mais um lugar horrível. Talvez estivessem amarrados no complexo principal, com as máscaras de metal presas em seus rostos obrigando-os a receberem as memórias de volta. Pensar assim era até reconfortante, se comparasse com todo o resto que os Criadores poderiam fazer. Lembrar-me de Gally fez meu coração se apertar. Ele ainda estava lá, sofrendo de todas as maneiras. Devia estar se arrependendo de não ter me seguido, mas eu sequer conseguia culpa-lo por isso. Só conseguia punir a mim mesma por não tê-lo arrastado de lá.

 “Que diferença faz, afinal? Você está tão ferrada quanto ele...”, pensei com uma careta para as câmeras. Encostei-me a parede do corredor e escorreguei as costas até cair sentada. Em alguma coisa eu teria que pensar. Não podia deixar que ficasse por aquilo mesmo.

 Levantei num salto e corri de volta para o quarto, já me dirigindo às gavetas das mesas e às portas dos armários do banheiro e dos guarda-roupas, abrindo-as com força e pressa. Cada gaveta era espalhada às minhas costas enquanto as puxava, todas vazias. Empurrei cada cabide de roupa, verificando bolsos e as tateando. A única coisa ali era um relógio de pulso. Suspirei com o objeto nas mãos e o taquei de volta. Eu já sabia exatamente que horas eram sem aquele negócio. Os compartimentos no banheiro também não revelavam nada. Eu estava empurrando violentamente os artigos de higiene para todo lado de um armário embaixo da pia, quando reparei no silêncio que se fazia. Fui até a janela no box e puxei a cortina, e não havia mais nenhum dos Cranks. Na verdade, havia um muro de tijolos avermelhados cobrindo cada centímetro a abertura, por trás das barras de ferro. Não me permiti pensar a respeito. Estiquei as mãos até o muro e fechei os olhos, respirando o mais calmamente possível, movendo a língua dentro da boca, apurando meus ouvidos. Outra vez, não senti nada. Pisquei fortemente e várias vezes, olhando para o restante do banheiro. Não havia lâmpadas em todo o quarto. E, mesmo com a luz que a janela não emitia mais, eu não tinha dado falta disso. Estava começando a ficar assustada comigo mesma.

 Sentei numa das camas e me pus a pensar, não sobre a mértila de mistério do sumiço dos Cranks e a construção do muro; eu ficaria maluca se tentasse desvendar os truques deles. Nem sobre a maldita visão noturna. Mas sobre sair dali. Deveria haver algum jeito. Alguma coisa para destruir as correntes da porta do refeitório. Eu olhava ao redor com o máximo de atenção possível, refletindo como cada parte daquele quarto poderia ser útil. Meus olhos pousaram na câmera. Quem sabe o que eles precisariam fazer se não pudessem mais me observar?

 Arrancando peles do lábio, levei uma das cadeiras até aquela quina. Com uma risada fraca e o extintor de incêndio firme nas minhas mãos, acertei a câmera brutalmente. Pulei de volta para o chão e esperei. Olhei para a porta do quarto (que eu não me lembrava de ter fechado, mas era assim que estava), para o banheiro, para o teto. Podiam bem desabá-lo sobre mim para que fosse menos um camundongo com que lidarem. Contudo, dez minutos depois nada havia acontecido ainda. Respirei fundo e agarrei o extintor de volta, saindo para o corredor. Senti algo gelado e mole bater no meu rosto no primeiro passo que dei do lado de fora e estapeei a coisa para longe. O cheiro dali estava horrível e não tinha nada a ver com a mistura dos sentidos. Recuei um pouco e olhei para cima. Precisei de longos segundos para entender os borrões, mas, assim que o fiz, tive ânsia de vômito. Vários corpos estavam pendurados no teto por correntes ao longo do corredor. Pisquei algumas vezes, esfreguei os olhos e os apertei, e eles continuavam ali, apenas bem mais definidos. Não eram mais borrões. Estavam com a coloração pálida da morte, os pescoços roxos pela pressão das correntes, as línguas rosadas pendendo para o lado de fora da boca, os olhos abertos, perdidos. Enfim encontrei alguma coisa para me preocupar mais do que com ver no escuro. Todas aquelas pessoas penduradas ali eram alguém que eu tinha visto trabalhar no CRUEL.

 

Passei horas sentada em frente à porta do refeitório, observando cada rosto pendurado para entender que droga era aquela. Eu havia ficado dez minutos dentro do quarto. Não era possível, em qualquer realidade existente, que tivessem colocado todos eles ali sem que eu ouvisse alguma coisa. A boa notícia era que nenhum deles era algum Clareano.

 Respirei fundo e verguei a cabeça para trás. Aquilo não era real. Estavam brincando comigo por alguma razão. Voltei ao quarto e peguei uma das cadeiras de metal, colocando-a perto de um dos corpos e subindo. Soltei o corpo do envoltório; ele bateu pesadamente no chão. A corrente estava simplesmente enfiada no teto. Como aqueles imbecis esperavam que eu acreditasse que era real? Puxei algumas vezes, aumentando a força gradativamente, até desistir e simplesmente me pendurar nela, balançando-me para os lados. Ela se soltou e eu gemi logo antes de me chocar contra o chão. Deixando os xingamentos rolarem soltos para fora da minha boca, arrastei-me para a parede e permaneci sentada ali, a corrente firme na minha mão. Passei os dedos por ela, puxei-a com as duas mãos, girei-a no ar... Fiz tudo que me diria ser real ou não. E eu ainda podia senti-la.

 Fechei os olhos e respirei fundo outra vez, concentrando tudo o que eu tinha no meu tato. Qualquer coisa que eu tocava, desde que descobri aquela parede no outro corredor, trazia-me algum gosto, um cheiro, uma nota musical ou uma temperatura. Mas com aquela corrente eu não sentia nada, como com o muro de tijolos. E após mais alguns minutos de concentração, nem ela mesma eu senti. Minhas mãos pareciam segurar o ar. Abri os olhos. Realmente não havia nada no meu colo. Pisquei e lá estava ela. Movendo os olhos e piscando sem parar, a imagem não se estabilizava. Sumia e reaparecia, às vezes borrada, às vezes nítida, ainda sem me trazer sensação alguma.

 Não era real.

 

Acordei horas mais tarde e a corrente havia desaparecido, tal como os corpos. Os tijolos na janela do banheiro eram quase transparentes agora, insistiam em tentar ficar ali. Calculei ser talvez três horas da madrugada, a julgar pelo céu escuro. Recomecei a tentar vencer os Criadores. Usei o extintor nas correntes, nas barras de ferro (que, sim, eram reais), nas câmeras do corredor; gritei até que eu perdesse a voz; tentei quebrar a pequena janela na porta, mas o vidro era resistente. Tudo aquilo numa tentativa de não pensar na fome. Nada funcionava.

 A cada vez que eu acordava, ia verificar se algo havia mudado. Perambulava pelo quarto, pelo corredor, cantava para ver as cores... Mas após dois dias inteiros sem comer, parei definitivamente com isso. Sentir gostos de frutas, assados e doces já fazia meu estômago se contorcer. Quando o que não era comestível começou a amargar minha boca, desisti de produzir qualquer som.

 Depois de acordar e verificar o lugar, eu passava todo o restante do dia deitada, tentando dormir, principalmente quando tive a surpresa da menstruação outra vez. Meu corpo funcionava normalmente, mas eu ficava imaginando até quando, com apenas a água da pia para ingerir.

 Eu tinha aproximadamente pouco mais de um mês até morrer de fome, mas soube que a estabilidade do meu psicológico estava chegando ao cúmulo quando comecei a sonhar com comida. Senti-me ridícula, mesmo que fosse apenas meu instinto reagindo à fome. Acabei descobrindo que meu prato preferido costumava ser peixe com batatas fritas e queijo derretido, e que minha mãe fazia todo fim de semana. Os sonhos estavam me enlouquecendo.

 Numa mesma noite eu conseguia sonhar com minha mãe atacando aquele homem ou os Clareanos e depois reunir um bando enorme de Cranks malucos para comerem juntos, como num almoço de família normal, com comida normal. De alguma forma eles não pareciam querer matar ninguém. Em todos os sonhos, independente de qual, ela possuía um estetoscópio ao redor do pescoço que não caía de jeito nenhum. Uma vez, ela dizia para mim que tudo ficaria bem e depois que a fome era um dos meus menores problemas. Eu não tinha certeza se isso era um conselho ou um aviso, e às vezes eu chegava a pensar que tudo aquilo podia ser lembranças, mas não perdi um segundo tentando ter certeza; minha ansiedade estava me deixando mais paranoica que nunca e não queria ter alguma imagem equivocada da minha mãe. Além disso, eu sabia que, após quatro dias ingerindo apenas água, minha mente estava tentando encontrar algum jeito de se safar da angústia mental.

 Eu não conseguia entender bem aquela receita.

 Minhas noites se resumiam em imagens extremamente felizes e de repente extremamente tristes dos Clareanos. Aquilo me matava aos poucos.

 A nitidez das cenas oscilava muito e as vozes e risadas iam e vinham abafadas. Eu estava sentada num tronco, comendo os espetos de carne às gargalhadas enquanto assistia à luta de Mike e Thomas no círculo improvisado. A fogueira estava acesa em algum lugar ao meu lado. Diversas risadas me cercavam.

  — Obrigada. – falei ainda rindo ao aceitar a bebida estranha, famosa receita secreta de Gally, que Newt me ofereceu ao sentar ao meu lado.

  — Por acaso isso tem algum gosto diferente quando você toma? Sabe, com aquela sua condição. – indagou com a ruga entre as sobrancelhas.

  — Não... – respondi e virei um grande gole na garganta. Já estava tão acostumada que mal sentia arder. — Mas me deixa mais quente. – ironizei.

 Ele riu e voltou a observar a luta, mas permaneci encarando-o com o olhar abobado de sempre. Um orgulho e felicidade imensos borbulhavam no meu peito por ter Newt próximo a mim daquele jeito, desde a noite no Campo-Santo em que nos beijamos pela primeira vez. Eu sabia que eu era apenas mais uma trolha sendo testada pelos Criadores, principalmente depois que Teresa chegou à Clareira. Mas sempre que Newt me tocava, ou sorria para mim, ou retribuía com o mesmo olhar que eu, sabia que o tinha de um modo que ninguém mais. E era o que intensificava no meu peito a sensação de ser única no meio de todos eles. Talvez os Criadores tivessem implantado minhas habilidades como Socorrista; tirado minhas lembranças e minha família; manipulado minha mente. Mas o que Newt e eu sentíamos um pelo outro pertencia apenas a nós.

 Ele tornou a me encarar e seu sorriso se tornou mais inocente. Sincero, infantil e tímido.

  — Que foi? – perguntou.

 Mordi o lábio inferior entre um sorriso.

  — A cor amarela está me cegando.

 Mais alguns longos segundos o encarando e uma sensação ruim se apoderou de mim. Eram as emoções da eu que sonhava vindo à tona. Ainda sorrindo, meus olhos marejaram.

  — Qual o problema? – Newt indagou com as sobrancelhas franzidas em preocupação, sua mão ao redor da minha nuca e seu rosto mais próximo.

 Balancei a cabeça, negando-me a pôr para fora tudo o que me afligia e contaminá-lo também. Colei meus lábios aos dele e transformei o toque num beijo intenso, entrelaçando meus dedos em seu cabelo e o aproximando mais. Mal conseguia acreditar que a última vez que o beijaria antes de morrer seria num sonho.

 Senti uma estranha necessidade de abrir os olhos em meio ao beijo, mas me arrependi de fazê-lo. Atrás de Newt, a vários metros de distância, Gally se debatia em meio às chamas da fogueira, gritando na tentativa de apagar as labaredas por seu corpo. E de repente, várias vozes encheram meus pensamentos.

“Sinto que nos conhecíamos muito bem antes de vir para a Clareira”.

“Se vocês conseguirem sair, torço para que você e Newt se casem”.

“A última coisa de que a gente precisava era mais uma garota”.

“Vou estar com você”.

 Gally continuava em chamas, ninguém parecia notar o que estava acontecendo. Desviei os olhos da cena e interrompi o beijo, apoiando minha cabeça no ombro de Newt e me encolhendo, negando me meter desta vez.

 Toda vez que eu acordava de sonhos como esses, o corpo tremendo de soluços e a sensação dos meus olhos maiores que o normal, prometia a mim mesma não voltar a dormir. Mas sempre que o cansaço batia eu acreditava que conseguiria lidar com isso depois.

 A cada segundo que passava eu me arrependia de uma coisa diferente. Não ter contado a Newt sobre essa mistura dos meus sentidos; não ter verificado se os curativos de Mike estavam bem; não ter ajudado Gally na hora certa; não ter lutado com mais força contra os guardas.

 Agora eu estava presa ali apenas à espera da morte.

 

No nono dia eu acordei, não só suando após ver a morte de todos os Clareanos, impotente com minhas mãos amarradas por trás de uma árvore, como também com uma enorme dor de cabeça. Eu sabia que meu estado físico não era pior só por causa da boa alimentação na Clareira e por todo o exercício que fiz lá. Eu sequer sentia fome àquela altura. Há dois dias perdera a vontade de beber água e não me importava mais com o cheiro insuportável do meu corpo. Não fazia a menor diferença.

  — Talvez isso fosse até previsível, Tagarela. – comentei, deitada no chão e olhando para o teto. — Uma trolha de dezessete anos com uma deficiência mental e sem uma boa memória da vida passada. Quem veria um final feliz? Assassinos não possuem um final feliz, de qualquer forma. Eu matei aquele homem, lembra? Mesmo que estivesse infectado, ainda tinha humanidade. E mesmo que eu conseguisse fugir daqui, – rolei no chão e o encarei com o queixo apoiado nas mãos. – viveria com essa lembrança me assombrando. Newt me veria com outros olhos e isso se eu tivesse coragem de contar a ele. Não consigo mais me imaginar corajosa em qualquer situação, na verdade.

 Tagarela soltou um baixo ganido, deitado de frente para mim e me encarando, desviando o olhar aleatoriamente vez ou outra. Não havia linhas azul-esverdeadas dançando ao redor dele.

  — Você está bem, não está? Acho que cachorros não podem ser infectados... Por que será que eu não virei uma Crank ainda, Tagarela? Já estou definitivamente enlouquecendo, percebe?

 Rolei mais duas vezes e parei com o cotovelo apoiado no chão frio e a cabeça apoiada na mão.

  — O que será que os Criadores conseguem concluir da minha mente nesse momento?

 Olhei para a janela do banheiro e o céu já estava escuro. Relaxei minha cabeça sobre meus braços com um suspiro perdido.

  — Boa noite, Tagarela.  


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Notas finais do capítulo

Hehe'! Até visão noturna a gente tem por aqui!
O que acharam? Nelly pode não ser Imune? Tagarela, amigo fiel até fora da Clareira...

Até o próximo! ♥



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