Socorristas escrita por BlueBlack


Capítulo 20
Fluorescente


Notas iniciais do capítulo

Dito e feito! Ou quase... Sorry, não tive como postar mais cedo :/

Boa Leitura!



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Diferente de tudo naquele lugar, o dia seguinte amanhecera estranho.

 O sol havia literalmente sumido do céu acima de nós e fora substituído por uma fraca claridade cinzenta, trazendo uma comoção geral na Clareira. Eu me encontrava sentada num banco da entrada do Campo-Santo, observando todo mundo, fazendo uma trança com uma mecha do meu cabelo. Os Corredores foram os únicos que continuaram o trabalho normal, mesmo que todos parecessem perturbados. Somente Thomas tratava aquilo com tranquilidade, fazia parecer muito óbvio que o céu ali era artificial. Eu não conseguira ter nenhuma reação ao acordar e olhar para cima, e essa teoria dele fez eu me sentir desconfortavelmente mais calma. Não era o fim do mundo, mas a falta do sol prejudicava os animais e as plantas, então ainda assim estávamos ferrados.

 Vi todos os Construtores reunidos em frente à pilha de destroços da torre de vigilância, falando alto e ao mesmo tempo para alguém que eu não conseguia ver. Prendi a trança ao rabo de cavalo e caminhei até eles, contornando a multidão. Gally era com quem gritavam e ele gritava de volta. Mike estava logo atrás dele, observando todos impacientemente e calado.

  — O que foi? – perguntei ao parar ao lado dele e conseguir me dar conta da quantidade de rostos vermelhos que gritavam. Tive certeza que alguns ali nem eram Construtores fixamente.  

  — Gally está tentando fazê-los consertar essa mértila, mas ninguém quer fazer nada com o céu assim. – Mike explicou, fazendo linhas marrons girarem acima da cabeça dele, quase me distraindo.

 Não soube dizer quem exatamente era mais idiota, mas já tinha tido briga demais em pouquíssimo tempo. Agarrei Gally pelo braço e comecei a puxá-lo para longe de todos, ouvindo os garotos protestarem.

  — Calem a boca, imbecis! – Mike gritou com a voz extremamente grave e todos silenciaram por alguns segundos, até começarem a descarregar tudo nele.

 A uma distância razoável, parei e me virei para Gally.

  — É sério que vai querer piorar as coisas logo agora? – indaguei.

  — Olha, o sol desapareceu. Certo. Grande coisa. Se dermos mole agora, esse lugar vai se acabar de vez.

  — Gally, não é essa mais a questão. Os Corredores foram para o Labirinto como sempre, isso sim pode nos ajudar em alguma coisa. Agora, reconstruir uma torre de vigilância... – deixei a frase morrer e soltei um suspiro cansado, revirando os olhos. Mesmo depois da conversa e do ocorrido de ontem, era esquisito falar com ele sem precisar pensar numa resposta afiada. — Eu nem sei por que estou me dando o trabalho de dizer alguma coisa, na verdade. Mas vai ser menos estressante para todo mundo se você entrar na onda e ficar na sua.

 Ele cruzou os braços e ergueu uma sobrancelha.

  — É só um conselho, não estou te dizendo o que fazer. – acrescentei com outro revirar de olhos.  

  — Tá e a garota? Alguma novidade?

  — Continua na mesma. Tenho que ir vê-la, até, não sei como esqueci... Pode segurar a vontade de dar ordens desnecessárias? – indaguei retoricamente, fazendo que me viraria para sair. Mas ele continuou extremamente sério e até estranho. Gally abriu a boca para dizer algo, então parei e acenei com a cabeça num incentivo. Seus olhos me mediram de cima a baixo. Não do modo que fez ao zombar de mim na primeira noite da fogueira que tive; ele parecia pensativo e distante, em vez disso. Senti cheiro de terra molhada e uma cômoda sensação de lar. Por fim, deu de ombros numa indiferença relativamente triste. Dei-lhe as costas e caminhei até a Sede, tentando entender o significado daquilo.

 Eu ainda estava imersa em pensamentos quando uma discussão no quarto da Novata puxou-me de volta para a realidade.

  —... e aí o quê? Ahn? Você está com cada ideia, cara, não sei o que tem acontecido... – Newt dizia. Eu estava me aproximando da porta, prestes a ter a certeza de que ele falava com Alby. — A última coisa de que a gente precisava era mais uma garota.

 Eu tinha acabado de chegar à soleira e deixei meu corpo tombar para o lado e se apoiar no batente, observando Newt com os dedos na lacrimal, de costas para mim e de frente para a cama da Novata. Alby me viu e deu um tapa no braço dele. Newt virou e me encarou. Olhei para o lado distraidamente, passando a língua pela bochecha, e perdi toda a vontade de ajudar a Novata.

 Saí do quarto e desci as escadas rapidamente, respirando pela boca ao sentir um nó ridículo na garganta. “Claro que ele acha isso”, pensei com um sorriso nervoso e inconformado. Eu andava mais rápido do que parecia para mim e nem percebi para aonde estava indo depois que passei pela porta de entrada.  

  — Nelly! – ele gritou atrás de mim e fechei o punho para não procurar uma pedra e arremessar nele. Só conseguia sentir raiva com o apelido agora e com o quão fluorescente o amarelo cintilou. — Espera! Espera...  

 Newt pôs sua mão ao redor do meu braço com delicadeza para me parar e ainda assim o puxei de volta com força e me virando.

  — Não! Você... Nem pense em começar a fazer uma cena agora, não preciso que sinta pena de mim. – chiei com o dedo apontado para ele. — Volte para lá e faça seu maldito trabalho...

  — Não foi o que eu quis dizer...

  — Eu não me importo! Não me importo com qualquer droga que seja... Não sabemos de nada do que está acontecendo, eu não culpo você por ter correspondido por impulso naquela noite, ninguém sabe mais o que fazer! Mas não venha atrás de mim agora com fingimento! Isso... Isso não ajuda ninguém.

 Newt baixou os ombros com a típica ruga entre as sobrancelhas.

  — E não faça isso! – continuei, mesmo certa de que ele não tinha ideia do que eu estava falando. — É irritante demais, parece que você nunca sabe o que fazer! Não se torna o líder, não enfrenta o próprio amigo e não toma culpa nem pelo que faz com uma garota! Já estamos ferrados o bastante com o maldito Labirinto, os malditos suprimentos, a maldita vida e os Criadores! – eu enumerava a cada passo para mais perto, descarregando minha raiva em cada palavra. — Será que entendeu o que eu disse ou vou ter que fazer um maldito...

 Newt deu um passo à frente, pôs sua mão na minha nuca e colou seus lábios aos meus antes que eu terminasse a frase. O arrepio de sua mão fria com minha pele quente tirou-me as forças para afastá-lo, e ainda mais quando ele me aproximou pela cintura. Ele aprofundou o beijo e por alguma razão parecia mais confortável do que da última vez, passeando seus dedos entre os fios do meu cabelo e traçando um arco imaginário com o polegar na minha bochecha. Ouvi um grito de vitória vindo de algum lugar da Clareira, mas não pude ter nem ideia de onde. Demorei a perceber minhas mãos já em seu braço e ombro. Meu estômago estava despencando, causando o mesmo frio na barriga de antes, mas ainda assim eu me sentia quente. Quis descarregar tudo o que eu sentia naquele beijo, havia acontecido coisa demais...

 Antes que eu pudesse me controlar, afastei-o levemente com a mão em seu peito.

  — Você... é tão baixo... – minha teimosia sussurrou, meus olhos encarando sua camisa firmemente.

 Assim que encontrei seus olhos, trouxemos um ao outro para perto outra vez e retomamos o beijo com mais urgência, minhas unhas arranharam seu pescoço e depois cobri a área como se quisesse retirar a marca que ficara. Seus braços me envolveram completamente. Com o caos imperando na Clareira, a única coisa certa era o que eu sentia por ele, que eu não sabia dar nome, mas sabia o que significava. Por isso, joguei para o alto a raiva e a tristeza e suspirei entre o beijo. Eu não me importaria se aquele lugar explodisse ou o que fosse. De repente, com ele ali, todo o resto perdera a relevância. Eu me sentia tão inocente e mesmo assim tão corajosa...

 Diversas coisas para dizer passaram pela minha cabeça, mas não consegui formular as palavras. Interrompi o beijo e encarei os olhos dele, abrindo a boca para soltar a primeira coisa que viesse. Mas ela havia secado, então só conseguimos manter os corpos ainda entrelaçados um no outro.

  — Desculpe... de verdade, Nelly. Não queria ter dito aquilo; se eu tivesse me lembrado do que houve no Campo-Santo, teria dito completamente o contrário...

 Aproximei mais meu rosto como se fosse recomeçar o beijo e ele se calou imediatamente, o semblante tímido como sempre, o que me fez procurar pele nos lábios para puxar. Eu não precisava ouvir nenhuma declaração agora, não depois de tudo que aconteceu.

 Antes que eu pudesse responder, olhei para o que havia atrás de Newt e meu meio sorriso sumiu na hora com a quantidade de olhares voltados para nós. Ele olhou para o lado e também percebeu, então desprendemos nossos braços um do outro rapidamente, meu rosto tão quente que tive vontade de virar de costas. Newt olhava para o chão, os dedos mexendo nervosamente na parte de trás da cabeça. Alguns garotos tinham parado no meio do trabalho, outros não tinham dado atenção. Até Thomas estava ali, mas sua expressão era mais de surpresa.

  — Fiquem à vontade. – Mike disse com um sorriso sarcástico e cruel, na minha opinião, gesticulando com as mãos.

  — A garota acordou! – ouvi Clint gritar da porta da Sede e em seguida o som de vidro quebrando soou de um dos quartos.  

 Os garotos transferiram o interesse de um espetáculo para outro em questão de segundos, dirigindo-se às pressas para a Sede e formando uma barreira na pobre porta de entrada. Eles começaram a pedir para passar e tive um vislumbre do Socorrista tentando impedir. Alby, Thomas e Minho vindo até nós me distraiu disso. Thomas parou a meio caminho com uma expressão estranha e perturbadora para o chão. Enquanto os outros continuavam vindo até nós, ele se virou e correu em direção ao Campo-Santo, sumindo na mata. Eu estava prestes a fazer algo a respeito, quando minha atenção desviou-se outra vez.

  — Encontraram alguma coisa? – Newt perguntou.

  — Acho que está na hora de darmos uma vasculhada melhor no Penhasco. – Minho disse. — Fizemos uns testes para saber como o Verdugo desapareceu e o outro Corredor não, e descobrimos um buraco de um metro quadrado no centro exato daquele lugar.

  — Uma passagem? – Newt disse com as sobrancelhas erguidas em surpresa.  

  — É o que parece...

  — Esse lugar está caindo aos pedaços. – Alby resmungou de braços cruzados, o semblante fechado.

  — Que foi? – Minho indagou, provavelmente reconhecendo o tom do amigo.

  — Os suprimentos não subiram hoje. – respondi.

 O Corredor soltou um muxoxo e balançou a cabeça, olhando para o outro lado.

  — Aí! – ele disse e todos nós olhamos na mesma direção. A Novata corria em disparada até o Campo-Santo, entrando quase pelo mesmo caminho que Thomas.

  — Ela vai falar com aquele Fedelho... – Alby murmurou e deu um passo até lá, mas Newt segurou seu braço.

  — Primeiro vamos descobrir o que aconteceu, ela não tem para onde ir de qualquer jeito. – disse com o olhar firme e decidido, e por mais que eu quisesse, pela primeira vez, fazer o mesmo que Alby, todos nós cedemos e entramos na Sede.  

  — Não sei o que aconteceu, ela endoidou e desapareceu de um instante para outro. – Jeff disse assim que chegamos e perguntamos. Suas pernas estavam cruzadas numa posição entranha, o quadril apoiado no criado-mudo.

  — Ela disse alguma coisa? – Newt perguntou.

  — Chamou o fedelho do Thomas? – Alby foi mais direto.

  — Chamou. – o Socorrista assentiu. — Pedi ao Clint para ir atrás dele, mas aqueles trolhos ficaram no caminho.

 Eu queria seguir aqueles dois, era isso o que eu queria fazer. Os quatro continuaram conversando, mas eu não prestava mais atenção. Não tinha certeza de quanto tempo o momento com Newt havia durado, mas Thomas e Minho já estavam na Clareira... Meu sangue começou a correr mais quente com a conclusão que meus olhos tomaram, e senti gosto de mostarda.  

  — Pessoal!

  — Ai, mulher! – Minho exclamou irritado e percebi que eu havia agarrado seu braço e cravado minhas unhas nele.

  — As Portas. – falei cruamente e todos os olhares dirigiram-se para a janela. O Labirinto não havia se fechado.

 Cinco minutos depois, nós e mais alguns Clareanos corríamos através do Campo-Santo para encontrar Thomas e a garota. Newt liderava, talvez supondo que eles estavam no esconderijo habitual de Thomas, e não deu outra. Os dois estavam sentados de mãos dadas no chão e não pude evitar erguer uma sobrancelha para tal intimidade entre eles.

  — Como veio parar aqui? O Socorrista disse que você estava lá num instante e no outro tinha sumido. – Newt disse.

 A Novata levantou-se num pulo, relevando ser uma dos mais baixos entre nós, e depois Thomas fez o mesmo.

  — Acho que o garoto esqueceu de contar a parte em que dei um chute nele bem naquele lugar e pulei a janela. – ela disse, a voz extremamente firme e doce ao mesmo tempo, um azul claro ao redor dela. E quanta pose...

 Todos olhamos para Jeff e seu rosto enrubesceu violentamente.

  — Parabéns, Jeff. – Newt falou. — Quantos trolhos mais vão ser vencidos por garotas?

  — Continue falando assim e será o próximo. – ela disse impotente.

  — Eu adoraria te ver tentar. – murmurei com o olhar duro sobre ela, enquanto cruzava os braços. A Novata pousou olhos curiosos em mim. A lembrança da Transformação já não era a única coisa que me fazia não gostar dela.

  — O que você fez? – a voz de Alby cortou o ambiente como um trovão. – O que você fez, mértila? Primeiro o céu e agora isso.

  — Eu desencadeei alguma coisa. – ela respondeu calmamente. — Não de propósito, eu juro. O Término. Não sei o que significa.

 Trocamos olhares tensos entre nós e o silêncio reinou por um tempo. Minutos depois, em que Thomas foi informado sobre as Portas ainda estarem abertas e Alby mandou Teresa para o Amansador (uma decisão muito bem-vinda por mim), outra erupção de confusões se formou.

 Todos os Clareanos receberam tarefas para transformarmos a Sede na nossa fortaleza daquela noite, para que conseguíssemos dormir com o máximo de segurança possível em relação aos Verdugos que (era horrível admitir) viriam. Levamos alimento para os quartos, para o caso de ficarmos presos; Minho e Thomas tiraram as armas e as lanternas do porão e distribuíram por cada canto do decrépito prédio em que um grupo de garotos ficaria. Eu e Mike tínhamos acabado de terminar o transporte da comida quando Newt veio até nós. Seu semblante estava mais sério que nunca, um reflexo perfeito de tudo o que estava acontecendo.

  — Avisem os Construtores para construírem barricadas na Sede, nas janelas, em todo lugar que os malditos Verdugos possam atravessar. Reunimos os Encarregados para distribuírem as tarefas, só o grupo de vocês não recebeu nada. – ele disse.

  — Como assim? – perguntei, extremamente confusa.

 Newt alternou o olhar entre nós dois algumas vezes antes de responder.

  — Gally desapareceu. – informou.

  — Como assim, Newt? – repeti impaciente, mas ele desviou o olhar para o lado. Soube que era um mau sinal assim que a ruga reapareceu entre as sobrancelhas dele. Mas que sentido aquilo fazia?

  — Quando foi a última vez que alguém o viu? – Mike indagou e Newt deu de ombros.

  — Quando brigaram com ele sobre a torre de vigilância. É bem a cara dele, ter ficado revoltado porque ninguém mais quis fazer o que ele queria.

  — Não foi bem assim. – contrariei.

  — Que seja. Duvido que demore a aparecer com os Verdugos vindo aí. Construam as barricadas, está bem?

 Sem esperar por resposta, ele se virou e saiu apressado para qualquer outra tarefa. Mike e eu instruímos os Construtores e começamos a juntar todo o material que servisse de proteção para a Sede, que no caso eram objetos soltos que empilhávamos nas entradas e tábuas de madeira que prendíamos. Todos nós tentamos, mas não havia como fazer algo decente com aquilo. Um garoto teve a ideia de quebrarmos as pernas de algumas cadeiras para tampar os buracos e precisamos usar pregos enferrujados para isso. Os recursos eram ridículos e, mesmo que ninguém admitisse, era claro que não havia como nos protegermos dos Verdugos.

  — Ai... – resmunguei agudamente ao martelar meu dedo em vez do prego. Larguei a ferramenta e apertei-o na palma da mão, respirando fundo de modo dramático.

  — O que há de errado com você? – Mike perguntou, tendo terminado sua parte e tomando o martelo para fazer a minha.

  — Gally... – murmurei com uma careta de dor. — Ele... Não sei, estou preocupada.

  — Ele não tem coragem para enfrentar os Verdugos, a menos que o último parafuso daquela cabeça tenha caído.

  — Não consigo acreditar que ele tenha sumido por conta própria, Mike... Foi muito rápido, uns quarenta minutos? Ele estava estranho mais cedo, mas não desse jeito... Parecia incomodado... ou com medo.

  — Todos nós estamos com medo. – ele disse, interrompendo o serviço para me encarar. — Não se preocupe, ele vai aparecer. E só um Verdugo poderia tê-lo tirado daqui, mas, se fosse o caso, há cinquenta trolhos aqui para terem visto.

 Voltei-me para frente e observei a Clareira com o olhar desolado. Aquilo não me fazia sentir nem um pouco melhor. Todos nós estávamos com o mesmo olhar amedrontado e alerta desde que o dia começara com aquele céu todo cinza, mas Gally com certeza tinha tido a reação mais diferente quando conversei com ele; hesitante, pensativo. Alguma coisa no olhar dele insinuara querer dizer alguma coisa.

 Com meu dedo latejando, fui procurar outra parte da Sede que precisasse de proteção.

 O único modo de saber que a noite estava chegando era pelos relógios que alguns usavam, pois o céu continuava na mesma claridade pálida daquela manhã. Newt já estava enxotando todos para dentro da Sede quando comecei a ouvir os tão conhecidos gemidos dos Verdugos esgueirando-se pelas curvas do Labirinto.

 O prédio principal não tinha sido feito para brigar tantas pessoas ao mesmo tempo, então terminamos divididos entre os quartos do segundo andar e as salas do primeiro, e mesmo assim muito apertados. Poucos preferiram ficar no saguão principal pela falta de confiança na pilha de objetos em frente à porta, mas Alby surpreendentemente foi um deles por decisão própria.

 Thomas, Mike, Newt e eu ficamos num mesmo quarto com mais garotos, todos nós deitados no chão quase corpo a corpo, enrolados em cobertores e ouvindo apenas suspiros e fungadas. Eu estava com os dedos das mãos cruzados sobre o peito, fitando o teto, prestando atenção nos sons do lado de fora que aumentavam gradativamente. Muitos tinham falado em dormir, mas eu sabia que ninguém passava muito tempo de olhos fechados, ainda que completamente imóvel. Newt era um deles, deitado na única cama do quarto, olhando para o nada enquanto roía as unhas. E Thomas revirava-se em seu cobertor diversas vezes.

 Meus olhos pesavam de sono e ora ou outra eu tentava cochilar para que o tempo passasse mais rápido e minha ansiedade diminuísse. Porém, era impossível. Meu corpo reagia desesperadamente ao mínimo som sobressalente dos Verdugos.

 Meus músculos endureceram quando os sons ficaram mais audíveis, mais próximos. Os batimentos do meu coração me ensurdeceram e me obrigaram a permanecer imóvel, até ver alguém se levantar. Sentei-me e vi Thomas e Newt dirigindo-se à janela, abaixados, cautelosos. Parecia haver um Verdugo bem do outro lado da parede, no chão de rochas, e imaginei-o olhando para cima, refletindo sobre subir ou não. A suposição de que aquelas coisas pensavam só serviu para aumentar o meu medo.

 Thomas espiou o lado de fora por entre uma das grandes brechas das tábuas. Quem sabe algum deles não mirasse seu globo ocular com uma daquelas agulhas? Eu estremeci. Nunca poderia ser mais pessimista.

 Eu estava prestes a dizer para ele sair dali, quando os dois afastaram-se por conta própria. Newt sentou-se na beirada da cama e Thomas recostado à parede.

 Os guinchos, os silvos e os ruídos continuaram alongando os minutos. Minhas mãos estavam completamente rígidas, esmagando o cobertor, como se eu dependesse dele para não ser levada dali. Eu encarava fixamente a janela do outro lado, bem a frente de mim; qualquer um dos Verdugos que se atirasse por ali e conseguisse atravessar as tábuas me atingiria em cheio. Todos nós estávamos quietos, esperando, ouvindo e torcendo inocentemente para que as coisas não piorassem.

 Doce imaginação de adolescentes.

 O prédio inteiro estremeceu quando um Verdugo cravou seus ferrões de metal na parede daquele lado da janela. Quase todos se levantaram, mas eu não consegui. Ele começou a subir. Eu subestimara bastante a estrutura da Sede, pois, ao contrário do que pensei, ela não cedeu ao peso do animal. Os garotos recolheram-se para o mais longe possível da janela, de modo que fiquei embolada no meio de todos eles, sentindo-os tremer e se apavorar. Talvez contaminássemos uns aos outros com a adrenalina.

 A espera pelo pior continuava crescendo, cada segundo contado pelas investidas dos ferrões escalando a parede. Alguém se sobressaltava de susto sempre em algum momento. Era mesmo assim que os Criadores tinham planejado terminar com tudo? Matando todos nós de uma vez só num decrépito prédio que nós mesmos construímos?

 Uma sombra cobriu a luz que atravessava a janela. Nossa visão piorou, alguns garotos que eu sabia que estavam ao meu redor não podiam ser vistos. Sorte a deles. As respirações tornaram-se mais audíveis, enquanto o Verdugo ia e vinha em frente à janela. Uma parte de mim desejou que ele atacasse de uma vez e nos matasse de susto; aquilo era insuportável.

 Segundos depois, ele se afastou. Continuei olhando para uma das brechas, tentando prever quando ele atacaria. A porta do quarto se abriu violentamente e gritos e exclamações explodiram. Eu não conseguia ver o que era, então, sem pensar, passei entre os garotos até ficar na frente de todos eles. Cobri a boca com a mão e todo o corpo trêmulos. Gally estava parado ali, os olhos arregalados, as roupas em frangalhos e imundas. Ele caiu de joelhos, o peito subindo e descendo rapidamente pela respiração alterada. Seu braço estava coberto de sangue, e ver isso fez meu coração encolher.

  — Meu Deus, você... – sussurrei, dando um passo até ele já pensando no que fazer a respeito do ferimento, mas Newt segurou meu braço para me impedir.

  — Eles vão matar todos vocês! – Gally gritou. — Os Verdugos vão matar todos vocês... Um por noite até tudo estar acabado!

 Estávamos perdidos. O Verdugo com certeza estava apenas esperando o momento certo para nos atacar. A sensação de um som grave e vibrante nos meus ouvidos só aumentava meu pânico. Gally levantou-se com esforço e caminhou até nós, arrastando a perna direita, mancando pesadamente. Fiz de novo que avançaria e Newt aumentou o aperto de sua mão. Mais um pouco e eu não aguentaria continuar vendo-o daquele jeito. Ele parou na frente de Thomas, que estava logo ao meu lado, e ergueu o dedo ensanguentado para ele.

  — Você... É tudo culpa sua! – sem avisar, Gally desferiu o punho contra a orelha de Thomas. O Corredor cobriu-a com a mão em meio a um grito, inclinando-se para o lado. Newt deu um empurrão em Gally com as duas mãos, e ele cambaleou para trás em longos passos, caiu sobre a escrivaninha ao lado da janela e derrubou um abajur no chão.

 O pânico me dominava. O Verdugo estava bem ali, eu sentia isso.  

  — Não tem mais jeito. – Gally recomeçou, encarando-nos enlouquecido. — O maldito Labirinto vai matar todos vocês, seus trolhos... Os Verdugos vão matar todos vocês... Um a cada noite até tudo estar acabado... É... É melhor que seja assim... – seus olhos projetaram-se para o chão e meu coração pesou e se apertou mais o vendo daquela forma. Como era possível que ficasse daquele jeito em apenas algumas horas? — Eles vão matar todos vocês... Um por noite... Suas estúpidas Variáveis...

  — Gally, por favor... – murmurei, tentando pensar no melhor jeito de me aproximar dele.

 Ele ergueu seus olhos e me encarou, inexpressivo. Eu não tinha ideia do que passava pela cabeça dele.

 Newt deu um passo à frente.

  — Gally, cale essa maldita boca. Tem um Vergudo bem em cima da janela. Agora sente aí e fique quieto, e talvez ele vá embora.

 Quase tive raiva por ele me dar essa esperança.

 Gally olhou para Newt com os olhos apertados.

  — Parece que você não entendeu nada, Newt. Você é idiota demais... Sempre foi um grande idiota. Não tem saída, não há como vencer! Eles vão matar todos vocês, todos vocês! Um por um!

 Assim que terminou de falar, Gally se dirigiu à janela e começou a tentar arrancar as tábuas. Já havia arrancado uma quando Newt gritou e ele e Thomas foram até o Construtor. Gally devia ter previsto a aproximação deles, pois arrancou a segunda tábua e girou-a para trás com as duas mãos, e acertou em cheio a cabeça de Newt, que caiu duro sobre a cama esborrifando sangue nos lençóis. Eu perdi o fôlego. Não demorei mais um segundo para parar ao seu lado.

  — Newt... Newt... – eu sussurrava com a voz fraca, ajoelhada sobre a cama e arrancando a fronha do travesseiro para cobrir o ferimento com o máximo de cuidado que minhas mãos trêmulas pela adrenalina permitiam. O gosto de algo extremamente doce quase me fez vomitar.

 Gally e Thomas gritavam um com o outro e só desejei que parassem. Eu não conseguia ter certeza da respiração de Newt...

 Ergui minha cabeça para eles quando a janela estourou para dentro do quarto, espalhando vidro por todo lado. Os outros Clareanos correram para fora do quarto no mesmo instante. Senti minha bochecha ser cortada por um dos cacos. O corpo bulboso do Verdugo tentava atravessar a janela, as armas metálicas já esticadas para agarrar alguma coisa. Newt se tornou o alvo delas e fiz força para puxá-lo para longe, cercando seu peito com os braços e tentando manter a fronha no lugar.  

  — Ninguém nunca entendeu! – Gally tornou a gritar; eu fechei os olhos com o desespero que a cor magenta fluorescente e vibrante trouxe. Os braços do Verdugo recolheram-se como se precisasse delas para ouvir e observar; o corpo pegajoso continuou pulsando, desfazendo a parede em pedaços na tentativa de passar. — Ninguém nunca entendeu o que eu vi, o que a Transformação fez comigo! Não volte ao mundo real, Thomas! Você não... quer... se lembrar!

  — Gally! Gally! Olhe para mim! – berrei, desesperada para que tirasse os olhos de Thomas antes que fizesse mais alguma coisa sem pensar. — Fique calmo... E não se preocupe... – falei trêmula, a coisa mais inútil que eu poderia dizer naquele momento, mas que precisava convencer alguém. — Gally...

 Ele enfim me encarou, um olhar demorado e assombrado, cintilante pelas lágrimas. O mesmo sentimento de lar e conforto anterior voltou com linhas calmas e serenas de cor magenta deslizando pelo ar. Quis agarrá-lo e tirá-lo de perto da janela naquele instante. As coisas com ele estavam mais erradas do que parecia e meus olhos marejaram também.

 Ainda tomado pelo terror, ele se virou e mergulhou de encontro ao corpo enroscado do Verdugo. Thomas gritou enquanto os braços metálicos agarravam os braços e pernas de Gally, prendendo-o completamente. O corpo dele afundou na gosma do animal, esmagando-se. Meu pânico estourou. Pulei da cama e agarrei a primeira arma que vi largada no chão, já avançando sobre os dois e desferindo a lâmina onde suas armas se projetavam. Uma delas caiu, um braço de Gally pendendo para o lado de fora, e eu estava prestes a fazer o mesmo com outra quando um ferrão de repente me atingiu no braço e congelou o tempo. Parei todos os meus movimentos, assombrada com os longos segundos em que o ferrão permaneceu no lugar. Então, o Verdugo o levou de volta e imediatamente o ferimento liberou uma quantidade absurda de sangue, cobrindo meu braço como uma luva vermelha.

 O ar ia e vinha pela minha boca enquanto eu olhava ao redor, cambaleando para trás, desesperada por alguma coisa para estancar aquilo. Com mais pressa e violência do que alguém poderia acompanhar, agarrei um dos lençóis no chão e dobrei-o de qualquer jeito. Thomas falava alguma coisa, mas eu já colocava o pano sobre o ferimento e enrolava, segurando com os dentes para puxar.

 Thomas aproximou-se de mim rapidamente e amarrou o lençol com mais força, e logo eu estava de volta na cama para checar a fronha na cabeça de Newt.  

  — Cara... – sussurrei ao vê-la muito manchada. Newt começou a mexer os olhos sob as pálpebras antes que eu pudesse verificar sua respiração. Ele piscou, fitou o teto por um tempo e me encarou. — Por favor, diga que está bem e que sabe quem eu sou. – pedi, sentindo o medo influenciar o drama e entrelaçando meus dedos em seu cabelo, encarando-o com urgência.

 Newt abriu a boca, mas apenas assentiu com a cabeça em resposta, soltando o ar e contorcendo o rosto com a dor, levando a mão ao machucado. Viu-a manchada de sangue e arregalou os olhos.

  — Você vai ficar bem. – afirmei com um sorriso forçado e ajudei-o a se sentar. Olhei para o restante do quarto, sem ninguém além de nós dois, e minha mente não conseguiu pensar em nada que não fosse medo. 


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Notas finais do capítulo

Comentários? O que acharam?
Dessa vez foi mesmo mais parecido com essa parte do livro, logo teremos umas mudanças!
Vou deixar para colocar o gif mais tarde.

Bjs, amores ♥



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