Socorristas escrita por BlueBlack


Capítulo 19
A cor magenta


Notas iniciais do capítulo

Olaaa!! Voltei, gente! Porque aqui é assim, vocês pedem, eu obedeço kkk
E admito que amo esse capítulo, então espero de verdade que gostem também.

Obrigada pelos comentários! ♥

Boa Leitura, povo!



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Assim que acordei na manhã seguinte, meu primeiro pensamento foi o garoto que esfaqueei na briga com Herman. Atravessei a cerca do Sangradouro e o encontrei tocando galinhas para uma espécie de galinheiro mal feito, o arame esburacado e enfeitado com penas soltas.

  — Daniel? – chamei.

 Ele olhou para mim e franziu o rosto em desprezo.

  — É Dante.

  — Certo... Olha, sinto muito pelo machucado com a faca. – pausei e procurei o que dizer, e ele apenas ergueu uma sobrancelha. — Não foi de propósito... e você sabe disso.

  — Eu sei? – ele começou a fechar o galinheiro.

  — Teria acontecido pior se eu não tivesse feito nada a respeito.

 Dante soltou um suspiro irônico e se virou para mim, e senti cheiro de fritura. Seu braço estava envolvido por um pano manchado de sujeira e sangue, mas não parecia tão ruim.

  — Qual é, tem algum motivo para você não me desculpar? – indaguei.

  — Não fui a favor de nenhum de vocês dois ficarem nessa mértila, então imagine a minha felicidade quando achei que seria morto pelos malucos.

  — Pode me chamar do que quiser, eu ainda sou Socorrista e tenho feito meu trabalho muito bem.

  — Não tira o fato de você...

  — Me desculpe, ok?! – exclamei. — Eu estava com medo de ver as coisas piorarem e não fazer nada, então me desculpe por ter tentado ajudar do jeito errado. – respirei fundo e cerrei os punhos brevemente. — Imagino que não confie em mim depois de tudo o que Herman falou, mas os Encarregados estão mantendo esse lugar de pé há dois anos, então acho que na decisão deles você deveria confiar.

 Dante revirou os olhos e trocou a perna em que apoiava seu peso, cruzando os braços.

  — Uma garota nova acabou de chegar e há meses já não é novidade que as coisas estão mudando. E eu sei que você está com medo, cara, porque todo mundo está. – continuei. — Não uso isso como desculpa, mas depois de ter passado dias sentindo a minha vida ameaçada, eu quase não conseguia mais pensar no que fazer. Só sabia que era errado ficar parada vendo-o machucar mais alguém...  

 Ele me encarava de cabeça baixa e batendo o dedo indicador no braço, como se pensasse no que fazer.

  — Fedelha! – Caçarola gritou da Cozinha e me fez quebrar o contato visual com Dante.

 Ele inclinou-se por trás da quina da pequena casa e agarrou dois sacos com o que acreditei serem pedaços de carne, e jogou-os para mim. Estendi os dois braços para ampará-los e senti o sangue gelado através do plástico.

  — É isso o que ele quer. Faça seu trabalho e está de bom tamanho. – Dante disse.

 Sustentei seu olhar por mais um tempo, e então dei-lhe as costas e atravessei a Clareira para fora dali, percebendo que eu deveria me contentar com aquilo como a aceitação das desculpas, ou viveria assombrada pelo mês com Herman.

— Ei! – exclamei mais tarde quando Tagarela pulou sobre mim com as duas patas no meu abdômen e me derrubou na grama da entrada do Campo-Santo. — Meu, como eu senti sua falta... – murmurei rindo e o acariciando, desta vez divertida com as linhas azuis esverdeadas que brincavam alegremente ao meu redor, enquanto ele atacava o lanche que eu levava comigo. — Tem ideia do que aconteceu nesses últimos dias? Você tem? – disse segurando seu rosto entre minhas mãos. — Vamos, não tenho muito tempo.

 Deitei na grama de barriga para baixo e comecei a contar todo o ocorrido no maior bom humor possível, enquanto ele atacava o meu sanduíche e a minha maçã.

  — Enfim, não é novidade que coisas estranhas acontecem aqui. A coisa menos estranha, eu juro, foi aquilo com Newt. Pode me achar idiota, mas... Ah, eu me sinto exatamente assim. Digo, ele é um garoto. Quais as chances de ter tido para ele o mesmo significado que teve para mim? E mesmo com o modo que ele reage, bom, deve ser só timidez.

 Tagarela estava com a cabeça deitada no chão, cada pata de um lado, minha mão acariciando uma delas, pensativa.

  — Uma timidez muito fofa, por sinal. – acrescentei e mordi o lábio; a sobrancelha de Tagarela se moveu para cima e eu ri. — Não saia espalhando isso por aí, já basta a donzela deitada naquela cama.

 Olhei ao redor para me certificar de que não havia ninguém por perto ouvindo, pois realmente não seria agradável ser zombada por uma coisa daquelas, e meus olhos acabaram encontrando Gally no topo da decrépita torre de vigilância. Ele estava com os braços apoiados na armação, o olhar perdido para o nada. Uma nota musical leve e aguda tocou algumas vezes, apenas para mim.

  — E quanto ao Gally, Tagarela? – falei ainda observando o Construtor. — Duvido que ele sofra de bipolaridade. O que você acha?

 Tagarela bateu a outra pata contra a minha mão quando parei de acaricia-lo. Passei a mão por seu pelo uma última vez e me levantei, juntando o lixo e caminhando em direção à torre.

  — Tomara que eu não tenha engordado... – murmurei ao analisar a construção e começar a subir as escadas.  

 Gally não pareceu notar minha presença, e, quando parei ao seu lado, também apoiando os braços e olhando para frente, ele não disse nada. Eu não tinha muita ideia de por onde começar a perguntar, as atitudes dele haviam mudado muito de repente. Minhas mãos começaram a suar e me vi realmente nervosa por estar tão perto dele sem gerar uma discussão. No momento, o gosto de um bolo fofo e quente era a única coisa que me reconfortava ali. Eu pigarreei, mas minha voz ainda começou trêmula.

  — Por que tentou me impedir de entrar no Labirinto?

 Nenhum de nós se olhou, a Clareira parecia bem mais interessante.

  — Porque era burrice. – ele deu uma pausa, o ponto de cor magenta sumindo de repente da minha visão. — E por que você não tinha nada a ver com as vontades suicidas dele.  

  — Você sabia que ele queria ser picado?

 Gally assentiu com a cabeça.

  — Desde a noite da fogueira.

 Lembrei-me de Herman e ele conversando antes da confusão comigo começar e ainda assim fiquei confusa. Caímos no silêncio enquanto eu tentava entender, mas ele auxiliou.

  — Ele te provocou de propósito. – recomeçou. — Tinha dito que queria ver até onde você ia com a raiva que estava sentindo e falou que talvez você o atirasse para os Verdugos. Achei que fosse alguma piada doentia, mas não era.

  — Vi vocês conversando várias vezes. – comentei aleatoriamente, mais uma coisa que estivera me intrigando.  

  — É, eu já sabia que ele não estava gostando do modo que era tratado. Ele disse que ia confrontar você, arrancar a verdade de um jeito ou de outro... Eu até falei sobre a nova regra, mas... – Gally deu de ombros e balançou a cabeça para os lados. — Só na noite da fogueira eu entendi o quão pessoal e sério ele estava levando aquilo tudo.

  — Porque era pessoal.  

  — Ele não sabia de mértila nenhuma. – replicou e me encarou, a impaciência evidente. — Ele queria causar problema só porque não tinha respostas, mas ninguém aqui tem respostas. E pelo que ele me contou, você nunca admitiu ter algo relevante também, mesmo depois da Transformação.

 Encarei minhas mãos e Gally desviou o olhar de volta para a Clareira.

  — Por isso eu sabia que não era boa ideia você entrar lá com ele. – acrescentou. — Eu vi que você o conhecia e que não gostava disso, mas até então não tinha feito nada de mais. E ele parecia obcecado...

 Gally parecia estar sendo mais do que sincero enquanto falava e eu não via motivo nenhum para ele fingir tudo aquilo, se quisera me desprezar desde que eu chegara. O silêncio reinou outra vez, mas minha mente ainda trabalhava com energia.

  — Foi isso o que te fez votar a meu favor? – perguntei e ele baixou a cabeça de olhos fechados. — Ir atrás de mim antes e depois do Conclave...?

  — Pra começar, como sabe que fui atrás de você depois?

  — Mike me contou tudo que aconteceu. – virei-me de frente para ele e apoiei apenas o cotovelo na armação. — E também falou de uma briga ridícula entre você e Newt depois da noite da fogueira.  

  — Ele é tão bocudo quando o mértila do Chuck. – resmungou e olhou para o outro lado antes de voltar-se para mim. — Foi só uma discussão, porque Newt achava que eu tinha dado a ideia para Herman de te provocar. Mas ajudei todos eles a fazer o Fedelho ser banido.

  — Por quê? – perguntei imediatamente, quase antes de a frase terminar. Minha língua quase coçava de verdade com aquela questão.

 Gally suspirou e empertigou-se, ocupando-se em observar a Clareira com atenção, o rosto franzido contra a claridade.  

  — Daria tudo para não ter passado pela Transformação. – ele murmurou. Após um longo minuto, em que eu tentava entender o porquê de ser tão difícil ele falar, Gally tornou a baixar a cabeça. — As lembranças que recuperamos não ficam claras por muito tempo, você sabe. Eu soube que Thomas era problema assim que ele chegou, mas não tive certeza do por que tão rápido; assim como ainda não tenho certeza de quem você é, mesmo sabendo que te conheço.

 Gally me encarou e abri a boca para dizer algo, mas nada me veio; minha boca secara de repente. Ele poderia dizer qualquer coisa, nada me surpreenderia mais que aquilo. Umedeci meus lábios e desviei o olhar por um momento, mordendo-os.

  — Como assim? – indaguei, desejando gravar cada centímetro das reações dele na tentativa de montar algo lógico.

  — Não sei. – deu de ombros. — Mas sinto que nos conhecíamos muito bem antes de vir para a Clareira. Eu...

 Gally deixou a frase morrer, apoiando o punho cerrado na armação da torre. Os olhos azuis dele ficavam muito mais claros com a luz do dia, mas apresentavam algo sombrio por trás. Ele definitivamente era o mais afetado pela Transformação.  

  — Sei lá, percebi isso quando você jogou o Fedelho no círculo da fogueira, senti como se já tivesse te visto fazer aquilo antes. É estranho... – murmurou e balançou os ombros como se houvesse um bicho ali que o incomodasse. — Nem sei se entendi direito o que vi também. Você falava coisas sobre cores e sensações que não eram bem reais e que só você via... E por alguma razão isso era um assunto muito comum.

  — Sensações? – repeti sem pensar, um entusiasmo crescendo no meu peito. — Tipo vozes que tinham algum gosto?

  — É... – disse com o cenho franzido e remexeu-se sobre os pés. — Isso aí. Quer dizer...

  — Ainda tenho isso, Gally. – falei com uma risada involuntária, dando um passo para mais perto dele, numa tentativa inconsciente de convencê-lo. — Eu falava sobre... temperaturas, linhas coloridas no ar e cheiros, que na verdade não estavam ali?

  — É... – respondeu com um aceno de cabeça, o olhar conciliador. — É, bastante.

 Tornei a rir, aliviada que alguém além de mim soubesse daquilo e não estivesse me julgando. Apoiei minhas duas mãos na armação, pensando com a mente muito mais leve.

  — Eu conversava disso com você? – indaguei ainda sorrindo e o encarei. Seu semblante estava de repente muito sério e ele assentiu silenciosamente outra vez. Por alguma razão, era incrível para mim que eu não precisasse me envergonhar de falar disso com alguém, mas Gally me dava a impressão de não estar tão confortável. Meu sorriso diminuiu aos poucos com a sensação da minha língua amarrada e eu desviei o olhar, mordendo o lábio. — Lembra de algum lugar ou alguma situação em que essas coisas aconteceram? Se você preferia tanto assim não lembrar, deve ter sido...

  — Não, não foi o que eu quis dizer. – ele me interrompeu dando um passo para mais perto. — Sabe bem a mértila que é a Transformação e depois de um tempo a maior parte do que lembramos é o sentimento de tudo que voltou.

  — Se você sentia que nos conhecíamos, por que me tratou daquele jeito quando cheguei? Não que eu tenha ficado sensibilizada, só estou querendo entender...

  — Porque quando reconheci Thomas, eu sabia que tinha algo ruim acontecendo e logo depois encontraram o Verdugo morto no Labirinto. Achei que tudo recomeçaria quando você entrou...

  — Gally... – comecei com um sorriso nervoso, incrédula.

  — Escuta, eu não sou dos caras maus, ok? Esses são os Criadores, eu só quero manter as coisas em ordem como todo mundo. Esse lugar está se contorcendo do avesso há muito tempo, e sem mais nenhum trolho novo estamos ferrados.

  — Não é bem assim...

  — É claro que é! – ele se afastou com as mãos na cintura, parou de costas para mim e permaneceu quieto. As tábuas sob nossos pés rangeram e tive a impressão de sentir a torre oscilar.

  — Só precisamos melhorar a segurança, principalmente com os Corredores. Com Newt no comando damos um jeito de controlar as coisas...

  — Alby não vai deixar Newt no comando logo agora e vai enlouquecer com alguém agindo pelas costas dele.

  — Então vamos ter que fazê-lo entrar num acordo, eu sei lá... Mas perder a cabeça não vai ser útil em nada.

 Após um tempo, Gally assentiu e se virou para mim outra vez. E jurei ter ouvido algo rachar. Contudo, o olhar que ele pousou em mim por quase um segundo me distraiu.  

  — Melhor falar de uma vez, antes que mais alguma coisa piore o humor dele. – Gally disse e involuntariamente sorri de canto; era estranho tê-lo concordando comigo, mas minha quantidade de inimigos parecia quase nula agora.

 Gally cruzou o espaço até a escada, mas estacou e tornou a me encarar.

  — E, olha...

 O movimento dele foi tão repentino que, sem dúvidas, a torre oscilou. Nós dois paramos de nos mover completamente, os braços abertos para nos equilibrarmos. Meu coração começou a bater tão rápido que aumentou meu pânico. Permanecemos quietos, esperando.

  — Gally... – murmurei com a voz fraca e rolei meus olhos na direção dele, que observava a parte de baixo com atenção e o desespero mistos em seu rosto. Um gosto terrível de abacaxi tomava minha boca. — Vocês não consertaram isso direito, não é? 

  — Achávamos que estava seguro, subi aqui sem o menor problema.

  — Bom, parece que subir os dois não foi uma boa ideia!

 Ele balançou a cabeça em concordância, ainda olhando para baixo.

  — Ok... Desça.

  — O quê? – sussurrei nervosa com como a cor magenta tinha escurecido; como se cada pedaço de madeira nos ouvisse.

  — É mais fácil que tudo caía antes que eu chegue à metade da escada, sou maior que você. Anda logo.

  — Temos a mesma altura, cabeça de mértila.

  — Mas não... Olha, eu não vou discutir com você, desça logo ou nós dois vamos cair.

 Suspirei pesadamente e virei a cabeça levemente para o lado tentando ver lá embaixo, mas desisti. Ainda com os braços abertos, dei um passo cauteloso até a escada e a torre balançou de novo, fazendo-me perder muito do equilíbrio. Gally agarrou minha mão e apertamos uma à outra com força na tentativa de nos equilibrar sem mover os pés. Minhas mãos ainda suavam e meu corpo inteiro estava paralisado. Seriam dezessete metros de uma obscura queda.

 A torre finalmente parou e de novo achei ter ouvido algo rachar.

  — Está muito frágil, vai cair com qualquer um de nós dois. – concluí e comecei a pensar como seria ficar parada ali em cima pelo resto da minha vida. — Gally, grite alguém.

 Da onde estávamos não era possível ver se tinha alguém perto, mas ele gritou, tentando controlar todo o restante do corpo para não mover e apertando minha mão mais forte. Eu estava de costas para a Clareira, só conseguia ver os muros para não arriscar olhar para baixo e mexer a cabeça.

  — Mértila...

  — Que foi? – perguntei num fio de voz.

  — O Campo-Santo... Não dá para ver ninguém que esteja perto...

  — Quer dizer que também não podem nos ver, certo? Que maldita torre de vigilância é essa? Por que não consertaram essa joça antes daquela confusão toda?!

  — Vou fingir que não escutei isso. – ele replicou e olhou para a escada, mas claramente ainda não tinha ideia do que fazer. E o pânico e o abacaxi não me deixavam pensar.

 Respirei fundo e lembrei que algumas tábuas continuavam rachando mesmo que não percebêssemos. Ou um de nós morreria ou morreriam os dois.  

  — Vá. – murmurei.

  — Ouviu o que eu disse?

  — Ouvi, mas um de nós tem que sair ou vamos ser muito contraditórios com o que acabamos de conversar. Não podemos perder mais gente. Desça e relaxe os músculos, assim vai se machucar menos se cair.

  — Isso é maluquice...

  — Gally... eu não vou gritar com você... – falei entre dentes, perdendo a paciência.  

  — Você vem logo depois de mim então, ok?

 Eu estava prestes a dizer que não, mas entendi a tentativa dele de não parecer egoísta e assenti. Gally deu um passo de cada vez, esperando a torre parar de balançar a cada um. Eu não ia conseguir nem chegar perto da escada; já estava ouvindo mais tábuas racharem daquele lado.

 Ele alcançou a escada, que pelo menos parecia firme em comparação ao restante, mesmo colada ao longo dos dezessete metros, e virou-se para pôr o pé no primeiro degrau. Suas mãos agarraram cada lado dela e seu torso ficou ereto para que não apoiasse o peso no restante da construção. Mas não havia muito como evitar afetar todo o resto. A torre balançou e prendi a respiração quando meu corpo tombou para o lado, meus pés duros para não se moverem.

  — Gally, se você for rápido...

  —... eu consigo descer e você não, sei disso! – completou raivoso e resolvi que eu já estava perdida, era só esperar. — Mas não fiz tudo aquilo para banir o Fedelho e deixar você morrer, então cale a boca. Se você...

  — Ei! – Chuck gritou de algum lugar e rolei os olhos nervosamente para ver. – Pessoal, venham ajudar!

 “Eu te amo, Chuck”, pensei.

  — Fique parada e vamos conseguir sair. – Gally disse, mas era uma recomendação muito desnecessária.

 Não demorou mais de dois minutos e pude ver uma horda de garotos carregando colchões para fora da Sede. Avistei Newt no meio deles, mas, antes que eu pudesse sentir qualquer serenidade, as tábuas recomeçaram a rachar. O canto mais longe de mim cedeu e tombou para baixo, tirando-me o fôlego ao me obrigar a remexer os pés para todo lado involuntariamente. Precisei firmá-los com mais vontade e manter meu corpo inclinado na direção de Gally para não rolar pelo outro lado. Eu tremia assombrosamente. Os garotos ainda estavam longe...

  — Não vai dar tempo... Gally, anda logo!

 Ele olhou para mim, para baixo, para todo lugar, aterrorizado. Até que me estendeu a mão.

  — Vem. – murmurou.

 Era uma burrice tão grande que nem havia tempo para medir o tamanho. Não havia tempo para mais nada, na verdade. O som das tábuas se rompendo ficou muito mais alto e de repente o piso sob meus pés desabou. Eu me debati tentando encontrar o equilíbrio, mas meu corpo foi todo para frente. O mundo girou perante meus olhos. O chão abaixo de mim de repente foi tudo o que vi. Algo prendeu meu torso, e meus braços agarraram um dos lados da escada antes mesmo que eu me desse conta. Olhei imediatamente para cima e encontrei os olhos azuis de Gally mais loucos de terror do que eu nunca tinha visto. Ficou óbvio para mim nesse momento por que todos eles prezavam tanto a confiança. Tão óbvio que me envergonhava ter demorado tanto para entender. Gally tinha me odiado desde o começo e, mesmo com as lembranças, não parecia ter motivos para gostar de mim. Mas o risco de escorregar que ele correra ao me impedir de cair era alarmante.

 Meus membros estavam paralisados com a grande possibilidade da escada de desabar. Minhas unhas fincavam a blusa dele e eu sentia que, se eu as tirasse, despencaria na hora.

  — Vamos cair... Vamos cair... – sussurrei com a voz trêmula. A escada já estava tombada para frente com a queda do piso de cima.

  — Com certeza. Ei. – a cor magenta piscou fluorescente. Ele remexeu seu braço no meu torso e me fez encará-lo. – Precisa pular de costas e com os braços abertos quando eu disser.  

 Não questionei e nem pensei. Não era mesmo a primeira vez que eu chegava tão perto de morrer. Mesmo com o pânico, uma indiferença começou a crescer dentro de mim.

  — Tá... – falei fracamente, olhando para o que havia abaixo de nós, e senti sua mão remexer-se na minha cintura. Estaríamos muito ferrados se tivéssemos medo de altura.

  — Um... dois... três!

 Seu braço me soltou devagar e usei minhas pernas e a outra mão para me afastar da escada. Abri os braços e o vento gelou minha nuca. Vi o rosto de Gally por brevíssimos segundos antes de me chocar contra algo. Meus olhos se fecharam, mas ainda sentia minha respiração.

 Mãos me seguraram e começaram a me puxar. Eu estava sentada numa pilha de três colchões. Fiquei em pé com as pernas bambas e alguém cercou minhas costas com o braço. Antes que eu pudesse ver quem, tornei a ouvir a torre rachar. Foi um crack e depois uma sequência de vários deles, até o barulho de cada piso, tábua e tronco encher o local. Os Clareanos começaram a gritar para Gally pular e eu não encontrava voz para fazer o mesmo. O pânico ainda me dominava, por isso vi tudo em câmera lenta quando a torre começou a se desfazer. Os berros se tornaram mais urgentes, ele estava levando muito mais tempo do que deveria para pular.

 Gally enfim soltou a escada e pendeu seu corpo na nossa direção, mas não tomou muito impulso. Imaginei que a mira estivesse errada, que seu corpo se espatifaria no chão em sangue e carne para me amaldiçoar com pesadelos. Foram longos dois segundos. Seus pés bateram no colchão, talvez na tentativa de equilibrar-se de alguma forma sobre ele, mas não funcionou, e Gally acertou as rochas.

 Sua garganta soltou um grito e sua mão segurava um dos ombros, cobrindo-o completamente. Ele puxava o ar com força em meio a grunhidos de dor, reprimindo mais gritos. Abaixei-me ao lado dele com Newt e afastei sua mão.

  — O piso do meio estava fraco. – Mike disse próximo a nós. — Foi mal, caras, achei que tinha consertado.  

  — Eu desloquei... – Gally disse, a respiração cada vez mais pesada. Por mais que meu bom senso me repreendesse, não tive coragem de lhe causar mais dor para ter certeza do que realmente se tratava o ferimento.

  — Vai ser rápido. – falei e ele deitou de lado, deixando o ombro torto virado para mim. Coloquei as mãos sobre ele do modo certo e sua garganta disparou outro grunhido. Reunindo toda a minha força, desloquei o osso para o lugar.  

 Gally largou o corpo deitado no chão com mais um gemido e bufou possivelmente todo o ar que estivera prendendo, os olhos pregados no céu, até que se voltaram para mim. Sua testa brilhava com o suor, e de repente eu sentia calor e frio ao mesmo tempo.

  — Tudo bem? – perguntou.

 Eu havia me sentado e abanei a mão numa falsa displicência.

  — Estou ótima. – ironizei. – Só preciso parar de me meter em problema.

 Olhei para Newt e ele sorriu um sorriso nervoso e aliviado e voltou a olhar para Gally.  

  — Bom isso. – Gally disse.

 Arfei uma última vez para me acalmar, enquanto todos começavam a retomar as tarefas.


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Notas finais do capítulo

͡° ͜ʖ ͡°
E então, o que acharam?
Muito errado? Muito plong? Muito ótimo? Kkkk comentem, quero muito saber!
O próximo cap. desta vez deve sair lá pelo domingo, no máximo.
Espero que tenham gostado ^^

Bjs, bjs! ♥



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