Socorristas escrita por BlueBlack


Capítulo 12
Quase normais


Notas iniciais do capítulo

Olaaaa! Tudo bom com vocês??

Que tal um capítulo pra respirar um pouco nesse domingo?

Boa Leitura!



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O estrondo dos muros movendo-se me despertou do sono no dia seguinte. Assim que me sentei e olhei para frente, vi Minho entrando no Labirinto com o Novato. Levantei e segui para os chuveiros, forçando-me a não olhar para trás.

(...)

— Ei, acalme-se... Acalme-se... — eu dizia para Peter sentado no chão, que puxava a própria blusa desesperadamente. Ele balançava a cabeça para os lados, os olhos arregalados, sibilando com extrema dificuldade um “não consigo”. — Consegue, consegue, sim. Apenas fique calmo e o ar vai entrar. Confie em mim, ele vai entrar. Concentre-se na sua respiração, devagar...

Comecei a inspirar e expirar lenta e teatralmente, tendo os olhos dele vidrados em mim. O garoto fechou os olhos e me imitou, sua mão ainda agarrando a camisa na altura do peito com força, seu abdômen contraindo-se com soluços. Eles ficaram audíveis, até rarearem e pararem completamente. Seu peito foi subindo e descendo devagar de acordo com a normalidade da respiração. Sorri de canto e ele abriu os olhos.

— Aí. — Jeff chegou ao meu lado correndo e batendo no meu ombro. — Carl está todo empipocado lá na Sede, melhor dar uma olhada.

— Tudo bem? — perguntei ao garoto sentado. Ele tinha seus olhos ainda arregalados, provavelmente com medo que não pudesse respirar outra vez. Mesmo assim, assentiu com a cabeça. — Bom isso. — sorri de novo e dei palmadinhas em sua perna antes de me levantar e sair às pressas com Jeff.

Havia um aglomerado de garotos ao nosso redor, pois ficaram alarmados com a crise de Peter no meio das plantações. Quando passei por Newt, ele colocou a mão no meu ombro para que eu parasse.

— Vai dormir como um maldito anjo hoje, não vai? — disse sorrindo, o rosto franzido contra o sol.

— É, acho que sim. — respondi risonha.

Desde o início do dia precisei agir como Socorrista e Helmy teve que lidar sozinho com quem precisava de ajuda nos outros trabalhos. Parecia ter havido um surto de mal estar da noite para o dia na Clareira. Não tomei café da manhã porque Max estava reclamando de dores no tornozelo; depois um garoto teve o pulso cravado por uma estaca quando tropeçou com ela na mão (o tratamento custou toda a hora do almoço); depois eu, Jeff e Clint precisamos correr por toda a Clareira procurando ingredientes para um chá que brotara na minha mente quando um garoto começou a sofrer de vertigem. Ficamos desesperados, pois ele começou com uma forte tontura, depois vômitos, disse que não estava ouvindo direito e então desmaiou. Fomos da Cozinha para os Jardins e até ao Campo-Santo à procura do necessário. Nossa dificuldade ficou tão evidente que Newt e mais outro Clareano resolveram ajudar. Agora um rapaz novo, um pouco mais velho que Chuck, começara a sofrer por falta de ar. Ficava impressionada que nós Socorristas não sofrêssemos por falta de ar, com aquela movimentação toda.

Jeff e eu subimos as escadas da Sede em direção ao quarto do adoecido. Assim que cheguei à porta e coloquei os olhos nele, estiquei os braços para os batentes da porta para me impedir de continuar.

— Uou, uou! — exclamei e senti Jeff parar bem perto de mim.

— Que foi? — ele perguntou.

Empurrei-o para trás e continuei a contemplar o garoto de longe. Seu rosto e seus braços estavam cheios de erupções vermelhas. Sua camisa estava molhada de suor, seu corpo tremia e seus olhos estavam inflamados. Soube de longe que estava com febre, mas não tive ideia de qual era o real problema dele.

— É contagioso. — foi a primeira coisa que me veio à cabeça ao pôr os olhos nele. Além disso, a cor vermelha era alarmante na minha visão, preenchendo o local.

— O quê? Como sabe?

— Você ainda me faz essa pergunta? Tem mais de uma doença que deixam as pessoas assim. Não chegou perto dele, chegou?

— Não, ele veio para cá sozinho. Eu o vi e fui te chamar.

— Certo... Vamos pegar uns panos para não respirar perto dele e assim posso ver o que fazemos.

Tratar do garoto, Carl, sem dúvidas tinha sido o mais interessante daquele dia, ainda que cansativo. Tanto nós Socorristas quanto ele usávamos panos ao redor do nariz e da boca ao ficarmos perto e ainda assim não era tão perto.

Todos os Clareanos foram avisados para não entrar no quarto enquanto ele estivesse doente e a comoção foi geral quando dissemos que era contagioso.

— Contagioso? — Gally repetiu. — Desde quando somos infectados com alguma doença contagiosa nesse lugar?

— Pode acontecer com o resto de nós mesmo sem chegar perto dele? — outro indagou.

— Conseguem tratar disso? — Newt disse de braços cruzados e a expressão séria, mas, com certeza, menos ameaçador que os outros.

— Não sei como ele pegou essa coisa, também não sei exatamente o que é nem se podemos ficar do mesmo jeito sem chegar perto dele. — falei simplesmente. — Mas vamos conseguir curá-lo, tenho certeza.

Vi Newt virar a cabeça e entreolhar-se com Alby. Não soube dizer se estavam duvidando de mim, mas eu ainda não tinha errado em nenhum dos tratamentos, então estava confiante.

Como sempre, fiquei com o turno da noite. Garanti que ele bebesse mais de dois litros de água e comesse apenas coisas leves (parte habitual do tratamento de qualquer um que caísse em minhas mãos). Precisamos trocar as compressas frias para baixar a febre várias vezes ao longo do dia e ficar atentos ao indício de vômito, pois Carl não fazia muita questão de avisar.

Acordei na manhã seguinte e cruzei o corredor para ir até o quarto dele. Newt tinha achado melhor que nós três dormíssemos no andar de cima da Sede para o caso de uma emergência. Carl reclamou de dor de garganta apenas; nada mudara de um dia pra o outro.

— Vou ver se faço um chá para você. — avisei e deixei que Clint tomasse conta do resto.

Alby estava parado nos degraus da escada quando comecei a descer.

— Você mima demais esses trolhos, sabia disso?

— Se quer um chá também, Alby, é só pedir. — retruquei ironicamente, parando ao seu lado na escada apertada.

— Jura? — disse falsamente surpreso, mas então se recompôs. — Sabe quanto tempo até ele ficar bom?

— Alguma coisa me diz que não vai demorar.

— Alguma coisa te diz, é?

— Já percebeu o quanto o restante das coisas está estranho? — desviei o assunto antes que começasse a me questionar. — O Verdugo, a onda de mal-estares, uma única garota no meio de garotos...

— Não, preciso de uma trolha para me fazer perceber. Infelizmente não temos o que fazer sobre essa mértila toda, lamento te informar.

— Ok. — disse por fim e retomei meu caminho. Era sempre um beco sem saída quando eu tentava falar civilizadamente com ele, por isso evitava alongar o assunto antes que minha paciência me largasse sozinha.

Assim que passei pela porta de entrada da Sede, trombei fortemente com o ombro de alguém. O Novato.

— Olhe para frente, trolho. — chiei e o olhei por brevíssimos segundos, vendo sua boca silenciosamente aberta. Não dei chance para ele responder, virei as costas e apressei os passos para a Cozinha. — Quer dizer que o plong do Novato não prestou para ser Corredor? — falei agressivamente assim que me sentei ao lado de Newt à mesa.

— Até que serviu, Minho disse que ele foi bem.

— E por que diabos ele não está no Labirinto?

— Ele não está? Mandei ele entrar com o Thomas! Mértila... — ele largou seu pão no prato com raiva e saiu desembestado. Balancei as sobrancelhas em indiferença, ignorando as bolhas de raiva dentro de mim, e me virei para frente, encontrando Mike sentado com um sorriso sacana.

Nelly... — zombou.

— Por que não enfia esse garfo...

— Anda logo, Mike. — Gally disse severamente, dando um tapa forte no ombro de Mike ao passar. — Suas cuecas mertilentas vão ficar penduradas nos ganchos do Sangradouro se aquele armário continuar daquele jeito.

Mike franziu o rosto e abriu a boca para protestar, mas meti-lhe um chute na canela por baixo da mesa. Ele cerrou os dentes entre um gemido e me olhou com raiva, mas não retrucou.

— Eu já vou. — disse.

— Bom isso.

Bom isso. — repetiu entre dentes e Gally foi embora dando-lhe um último olhar colérico.

— Você ia mesmo falar abrir essa sua boca de novo? — indaguei descrente.

— Duvido que você se meteria de novo para atrapalhar, então sim.

— Não me meteria mesmo, seria melhor que esfolassem essas caras imundas um do outro logo.

Mike revirou os olhos e, devolvendo o chute, levantou-se. Ele passou por mim e soquei de leve seu abdômen duro, e ele empurrou minha cabeça. Afastei sua mão e nos estapeamos infantilmente antes de se afastar de uma vez, seu joelho estalando como sempre.

Pouco depois, Newt voltou e sentou-se no mesmo lugar.

— E aí? — perguntei.

— Ele já foi, disse que queria falar com você antes de entrar.

Revirei os olhos indiferente e voltei a comer, percebendo-o fazer o mesmo.

— Estranho que ele saia de lá conhecendo algum de nós. Conhecendo logo você.

— Ele não conhece mais ninguém? — perguntei ainda sem mostrar muito interesse, por mais que o desejo de ter certeza disso ardesse dentro de mim.

— Sei lá... O cabeção decidiu virar mudo quando perguntamos sobre isso. Mas parece que é a única diferença entre ele e todos nós quando chegamos.

— As coisas não deixam de serem estranhas... — murmurei.

Ouvi Newt suspirar e largar os talheres no prato, e por visão periférica percebi que virou-se para me encarar.

— Nelly, não me leve a mal, mas as coisas estão estranhas há muito tempo. Primeiro, essa sua sabedoria divina; depois o Verdugo no meio do dia e agora um Novato que conhece você. Tem certeza de que não sabe quem ele é? Que ele não apareceu na sua Transformação ou algo assim?

— Acha que tenho alguma coisa a ver com o episódio do Verdugo? — perguntei asperamente, o encarando na intenção de não precisar responder à pergunta e ignorar as linhas amarelas que pareciam zombar de mim em cima da mesa. Depois de tudo que Newt tinha feito para mim, eu me opunha rigorosamente a mentir para ele. — Acha que ser picada foi divertido?

— Óbvio que não. — respondeu.

— Então não comece a me culpar.

Levantei e saí antes que ele pudesse dizer mais alguma coisa para me fazer sentir pior e segui para a parte de trás da bancada, reconhecendo seus olhos seguindo cada movimento meu. Eu não estava me ajudando. Meu nervosismo em falar do Novato me tirava do controle. Ficava mais que claro que eu não gostava de falar do assunto e Newt não era idiota.

Peguei uma caneca de alumínio e a enchi com água, levando ao fogo com a tremedeira da minha mão me irritando. Pensando no que mais fazer ao longo do dia que me impedisse de pensar nisso, dei início à preparação do chá.

Àquela noite, os Clareanos acenderam a fogueira novamente e levaram os espetos de carne. Não fiquei feliz ao perceber que não poderia ficar com eles por precisar cuidar de Carl, mas Newt ofereceu-se para tomar meu lugar daquela vez. Eu simplesmente balancei a cabeça em agradecimento, sem me dar o trabalho de dizer alguma coisa, assim como ele. Viramos as costas um para o outro no momento em que percebemos ser o fim da conversa.

Sentei num tronco próximo ao círculo de luta, assistindo Mike e Zart se enfrentarem. Ri quando Zart empurrou Mike para trás e ele cambaleou pateticamente antes de cair sentado com uma careta raivosa. Mas logo a diversão esvaiu-se de mim com o choque de uma lembrança.

Um rapaz muito forte me acertou um soco na boca e caí de cara, sem muito sucesso ao tentar usar as mãos para me apoiar. Era um chão liso e frio, como o ar. As paredes ao redor brilhavam com a luz branca. Vários pés me cercavam. Ergui meu olhar e vi uma garota de cabelo escuro observando-me sem a menor expressividade no rosto por trás de dois corpos de jaleco.

Tentei me levantar, cuspindo sangue no chão, uma cor avermelhada terrivelmente bonita no piso lustroso. O rapaz chutou minhas costelas e tombei fortemente para o outro lado, puxando o ar desesperada, minha garganta chiando. Assim que pude respirar de novo, desferi um chute na perna dele, mas em vão; sua mão agarrou meu tornozelo e arrastou-me até ele. Seus joelhos foram colocados de cada lado do meu corpo e seu antebraço começou a fazer pressão contra a minha garganta.

Aquele rosto – justamente aquele rosto – encarando-me com brutal raiva, foi a imagem que destruíra minhas esperanças e plantara o ódio dentro de mim naquele dia. Eu podia sentir isso na lembrança. E era meu maior motivo para ignorar a existência do Novato.

Apertei o copo na minha mão com tanta força que jurei tê-lo sentido vacilar. Baixei a cabeça e fechei os olhos. Era tanto remorso borbulhando dentro de mim que parecia sair pelos meus poros. Eu queria que saísse, estava me matando ter aquilo dentro de mim sem poder descontar em alguma coisa. Arremessei o copo para a árvore do Campo-Santo mais próxima, e a vibração de ouvi-lo e sentir quebrar foi um alívio. Apoiei minha testa na mão e respirei fundo. Depois pus o queixo entre o polegar e o indicador das duas mãos e voltei a observar a luta, que já envolvia dois Clareanos que eu não conhecia.

— Tenho a impressão de que um dia você vai entrar lá e chamar alguém. — Thomas comentou, vindo sentar ao meu lado comendo seu espetinho. Sorri para ele um sorriso fraco, mas sincero. A cor marrom rondava por ali com as vozes de todos misturados, mas a dele sempre trazia um gosto mais doce à minha boca.

— Quem sabe aconteça... Com toda essa anomalia dos últimos dias, daqui a pouco as regras não vão ser mais as mesmas.

— Tenho certeza que acabaria com todos eles de uma vez. — disse e virou sua bebida na boca. Seu tom pareceu tão verdadeiro que quase acreditei. Empurrei seu ombro de brincadeira e ele engasgou, arrancando-me risadas enquanto eu batia em suas costas. — Tudo bem... — silvou com dificuldade.

— Acho que às vezes perco a noção da força.

— Eu que o diga. — Thomas tossiu mais algumas vezes e tornou a virar a bebida, que só então notei não ser água e sim um líquido âmbar num pote de vidro. — É pior do que parece. Receita do Gally.

Mordi meu lábio entre um sorriso, entorpecida pelo ânimo que ele de repente me causou, e arranquei mais uma talisca de pele da boca. Peguei o copo da mão dele e entornei o líquido pela minha garganta, sentindo-a arder e minha boca salivar.

Thomas riu e balançou a cabeça em reprovação, voltando a olhar para os lutadores. Bebi quase tudo de uma vez só, quando senti meu corpo protestar e fui obrigada a tossir.

— Toma. — empurrei nas mãos dele e limpei a boca.

Permanecemos um tempo em silêncio, apenas observando os Clareanos. Eu não queria perguntar a ele do Labirinto ou dos mapas, nem sobre o que ele achava do Novato, nada disso. Por pelo menos algumas horas, quis pensar em outra coisa.

— Como você está? — Thomas indagou de repente, fitando-me.

— Você não tinha pergunta melhor para me fazer? — retorqui com uma careta melindrosa. Ele deu de ombros.

— Vi como Alby e o garoto picado mudaram depois da Transformação. Mas você parece bem... e sabe que isso é estranho.

Assenti com a cabeça.

— Nem tudo foi ruim. — respondi. — Lembrei de uma música... Trechos dela, na verdade, e a canção. Acho que foi a melhor parte. Foi como se eu nem soubesse o que era isso até ouvir, até porque quem de nós lembra exatamente como é ter uma vida de verdade? — ele inclinou a cabeça em concordância. — Mas eu lembrei e me sinto melhor quando penso nela. Difícil não pensar, parece um grude que nunca vai sair. É alguma coisa como...

E aqui vou eu

Oh oh oh oh

Oh oh oh oh

Oh oh oh oh

Thomas começou a batucar o ritmo distraidamente com o vidro do copo contra o tronco de acordo com as pausas da minha cantoria e eu sorri, pois era exatamente daquele jeito.

Ele segura meu corpo em seus braços

Ele não quis fazer nenhum mal

Oh, ele fez tudo isso para me poupar das coisas terríveis na vida que vêm

E ele chora e chora

— Não é muito feliz. — ele comentou por fim.

— Bom, pelo menos não sou eu no lugar dela. Vamos comer, é a única noite de folga que terei. — falei e ele se levantou comigo.

Chuck, Minho e Caçarola juntaram-se a nós mais tarde e, por incrível que parecesse, consegui dar boas risadas com eles e com as lendas bizarras e mal feitas que circulavam por ali. Surpreendeu-me mais que Thomas tivesse dado indícios de se divertir com as fúteis brincadeiras; ele costumava ser o mais sério e o mais focado no problema.

— Como ela partiu um Verdugo ao meio? — Chuck questionou quando Minho terminou de contar a lenda que a maioria já parecia ter ouvido.

— Garotas são estranhas, cara, ainda não percebeu? — Minho replicou e eu revirei os olhos, bebendo mais do líquido forte.

— Principalmente as Pinguças. — Gally disse relanceando para mim com uma carranca ao passar por nós em direção à fogueira.

— Você já é de um tipo bem feioso, Gally! — devolvi para as suas costas e ele apenas olhou para outro lado. Mordi o lábio entre um sorriso e baixei a cabeça, ainda que fosse estranho a voz de Gally sempre fazer linhas de cor magenta serpentearem o ar com ousadia, quase como se fossem vir até mim e me sufocar pelo pescoço.

— Ele ainda é mais feminino que você. — Minho ironizou.

— Cale a boca, Minho.

À medida que entardecia, os Clareanos começaram a se dispersar pela Clareira para irem dormir. Eu não queria ir, queria adiar o máximo possível o dia de amanhã, queria que aquela noite não tivesse fim. Tinha sido a primeira vez que consegui sentir como se nada estivesse errado, como se fosse uma simples comemoração com amigos numa noite qualquer, como adolescentes normais, e que não existia dia seguinte. Por àquelas horas, acreditei de verdade que estava tendo uma vida comum. Um cheiro muito fresco apoderava-se do ar.

Desse modo, fui me vendo cada vez mais sozinha ao redor da Clareira.

— Melhor ir dormir, trolha. — Alby resmungou ao passar por mim em direção à Sede.

— Sim, capitão. — respondi ironicamente e virei a bebida estranha e forte pela minha garganta.

Agora havia apenas um Clareano loiro que eu não conhecia, sentado num tronco, palitando os dentes com o que parecia uma lasca de madeira. Quase abri a boca para dizer os danos daquilo, mas balancei as sobrancelhas em desprezo à ideia. Ser Socorrista me fazia muito bem, mas a folga tinha sido um grande alívio. Além disso, tinha certeza de que o garoto não se importava muito com os próprios dentes.

Não demorou e ele foi embora também. Com um suspiro, levantei para aproximar-me da fogueira e joguei o espeto vazio no meio das chamas. Encarei-as por um tempo, hipnotizada, ouvindo a música da Transformação soando no fundo da minha mente. Fechei os olhos e me concentrei nela, tentando dar significado às palavras, fixando o ritmo enquanto batucava com o dedo na perna.

Não consegui lembrar-me de mais nenhum verso além daqueles, mas a entonação de quem quer que fosse que cantava ganhava sentimentos reais em mim por alguma razão. Ela falava de misericórdia, não parecia ter medo de ser morta por alguém que gostava; parecia aceitar ter uma arma apontada para a sua cabeça. Quando me dei conta, eu balançava a cabeça e uma perna com o ritmo. Estiquei a mão e passei os dedos rapidamente pelas chamas avermelhadas, sentindo o calor por breves momentos.

Tornei a cantar a música, rodeando a fogueira com os dedos entrando e saindo do fogo energicamente, quase alegre, quase inventando mais trechos para a canção. Descobri que eu não era boa nisso e soltei uma risada.

— And here i go, oh, oh, oh, oh... oh, oh, oh, oh…

Abri os braços e comecei a girar entorno de mim mesma e da fogueira, alternando a mão que entrava e saía das chamas. Era uma grande estupidez, eu quase sentia quando aquilo daria errado, mas ignorava imediatamente. Prosseguia cantando e girando, rindo como uma completa doente mental que não tinha com o que se preocupar e não sabia dizer mais nada além daqueles versos. Peguei uma estaca de madeira em cada mão, as pontas flamejantes, balançando os braços ao redor do corpo, para cima, para baixo, ziguezagueando pela área de lutas, sem parar de girar e cantar.

Após certo tempo, que decerto tinha sido um longo tempo, fiquei tonta com os rodopios fortes e resolvi parar um pouco. Larguei uma das estacas na fogueira e oscilei a outra no ar, vendo o dobro das chamas, cambaleando para vencer a tontura, risonha como se estivesse embriagada. Mesmo assim, notei a silhueta que me observava por umas das janelas da Sede. A julgar pelo cabelo e as dobras da camisa nos cotovelos, quase pude afirmar ser Newt, mas a escuridão não me deixava ter certeza. Assim que ele pareceu notar que eu o encarava, afastou-se da janela rapidamente, sumindo dentro do quarto.


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Notas finais do capítulo

Quem sabe os sintomas do Fulgor não estão aflorando na Nelly? U.u
O trecho da música que ela cantou era de Murder Song, da Aurora, e ainda vai aparecer mais algumas vezes...
Comentem para eu saber o que acharam, hum?

Até o próximo!



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