Relíquia escrita por André Tornado


Capítulo 2
Vais carregar esse peso durante muito tempo


Notas iniciais do capítulo

Boy, you're going to carry that weight
Carry that weight a long time
I never give you my pillow
I only send you my invitations
And in the middle of the celebrations
I break down
Carry That Weight por The Beatles, do album Abbey Road, Lennon & McCartney



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A noite estava agradável, coisa estranha naquele sítio onde havia sempre qualquer percalço climatérico que tornava o ambiente desconfortável. Vento forte, brisa gelada, chuva incessante, nevoeiros húmidos, geada cortante.

Ele olhava pela janela minúscula do seu quarto ainda mais minúsculo. Não percebia por que motivo tinham de viver naquelas condições humildes, num regime de abstinência material, quando havia dinheiro disponível, em somas bastante avultadas conseguira investigar por sua conta, para erguer aquele projeto, fazê-lo vingar e posteriormente prosperar. A Nova República investia com avidez num corpo reconstruído de guardiões da paz.

Os créditos eram usados, sem dúvida, mas de uma forma tão parcimoniosa que faria corar um avarento. Todas as construções daquele recinto austero tinham sido erguidas desse os alicerces, nada tinha sido aproveitado porque naquele buraco galáctico não existia nada antes daquele templo, designação exagerada para classificar o complexo acanhado. Já tinha conhecido albergues para refugiados com melhor apresentação.

Desconfiava também que os créditos eram gastos em buscas pela galáxia que nem sempre tinham bons resultados. A Ordem Jedi fora integralmente desmantelada no início do Império Galáctico, perseguida por Darth Vader que não poupara esforços para eliminar todos os Jedi que teriam sobrevivido à purga inicial. Não havia qualquer informação disponível, ou sequer acessível, sobre as antigas tradições republicanas. Mas como em todos os momentos dessa odiada História, havia sempre alguém que, algures, contra todas as probabilidades, constituía um tesouro de algum objeto estranho, perdido, com valor sentimental. E essas coisas podiam valer muito dinheiro se fossem procuradas com fanatismo pelas pessoas que sabiam o que essas coisas, verdadeiramente, eram. Bastava acenar-se com uma recompensa que logo apareciam interesseiros que afirmavam possuir o que se buscava.

A maior parte dos preceitos usados no templo provinham de holocrons recuperados por essa via dúbia. Antigos depósitos de sabedoria Jedi, milagrosamente salvos da sanha destruidora de Vader, que algum crente, louco ou ingénuo tinha guardado, por causa da sua fé, do seu desapego à vida ou por pura inocência. As informações nem sempre estavam completas, mas eram estudadas ao pormenor para decifrar os seus ensinamentos.

Por causa dessa caça incessante ao antigo conhecimento Jedi, que custava bastante dinheiro, quase a totalidade do orçamento disponibilizado pelo Senado, ele habitava aquele quarto despojado, onde experimentava tédio e frio. Era injusto. Aliás, tudo que se relacionava com aquela condição era injusto. Ele nunca tinha pedido nada daquilo. Fazia-o por imposição da mãe, por persuasão do tio, fazia-o por não ter nada melhor para fazer.

Ocultou esses sentimentos.  

A presença do mestre invadiu o quarto, penetrou-lhe no reduto mental. Sem dor ou outro malefício, simplesmente entrou ali e na sua cabeça, como uma luz impossível de reter atrás de uma barreira protetora. Ele ofegou, incomodado. Era sempre assim quando o mestre chegava. A aura que se desprendia do seu corpo seco e pequeno preenchia o espaço, afirmando a sua presença, o seu poder. Não o fazia voluntariamente, mas acontecia e era embaraçoso.

— Ben.

Ele revirou os olhos. Não gostava do seu nome, mas gostava menos desse diminutivo que reduzia a cinzas a nobreza do seu batismo real. Trucidava aquele comboio sonante de apelidos em carvões que eram facilmente consumidos pelo fogo, até não restar sequer a lembrança do seu calor. Cinzas frias.

De repente, resolveu partir para o confronto.

— Ben Solo… É um bom nome. Não achas, tio?

Luke Skywalker sentou-se na cama. Não havia outro lugar para se sentar. O maldito quarto só tinha uma cama. Nada de mesas ou bancos, nada de armários, uma prateleira. Nada do nada.

— O que queres dizer? – perguntou Luke, sinceramente admirado.

Era divertido apanhar o tio desprevenido. Ele sorriu para a janela. Não quis sentar-se, teria de fazê-lo também na cama e não queria estar perto do mestre Jedi. Tanto poder, tanta luz, tanta perfeição… Duplamente embaraçoso.

— Dois proscritos. Ben, o eremita de Tatooine. Solo, o contrabandista corelliano fora-da-lei – explicou sorrindo. Voltou-se para o mestre Jedi.

O suspiro de Luke denotou cansaço.

— Nunca percebi por que não gostas do diminutivo Ben. Quando te chamo assim, faço-o com carinho. O mestre Kenobi foi alguém muito querido, para mim… sobrinho.

Evitou usar novamente o estúpido diminutivo que ele detestava, optou pelo grau de parentesco. Ficava ainda mais estranho, deslocado. Resolveu prolongar o desafio:

— Podes chamar-me Obi-Wan, é esse o meu nome.

— Muito bem, Obi-Wan. Faremos como desejas.

— A formalidade, neste caso, não será a mais adequada… tio.

Luke baixou a cabeça, juntou as mãos. Optava por não haver qualquer tratamento pelo nome, naquela conversa. Ele conseguiu captar esse pensamento do experimentado guerreiro e classificou-o como uma pequena vitória. Oscilou na ponta dos pés.

— A tua mãe falou comigo.

Ele espreitou o astromec que piava discreto junto à porta aberta.

Outro detalhe que não entendia, a razão das portas estarem sempre escancaradas. No templo, a privacidade era inexistente, todos deveriam viver numa comunidade em que o convívio seria tão estreito que não havia necessidade de se resguardarem atrás do que quer que fosse. Quartos acessíveis, refeições numa sala enorme, exercícios num pátio comum, intervalos partilhados com jogos participativos, mentes livres e desprotegidas.

Já em relação a Artoo, tinha desistido de compreender a razão que levava um Jedi a andar sempre acompanhado de um androide astromecânico. Aceitava, talvez, que fosse por causa do caça X-Wing estacionado na pista que servia o templo, a nave que pertencia ao tio e que ele usava como o seu meio de transporte pessoal. Contudo existia outra nave, um transportador que levava vários passageiros e que era usada para viagens curtas a sistemas inóspitos onde treinavam determinados ensinamentos que requeriam variados graus de concentração.

Voltando ao que o seu tio dissera…

Imaginaria que a mãe iria tomar a iniciativa por ele, temendo que, uma vez chegado ao templo, resguardasse as suas questões e resolvesse enfrentar-se sozinho à evidência de ter Darth Vader na sua árvore genealógica. A senadora continuava a não confiar no seu julgamento, continuava a tê-lo em baixa consideração.

Ele tinha acabado de chegar, só tivera tempo de pousar o saco, de tomar um banho e mudar de roupa, num balneário asqueroso e comunitário, e de se postar a olhar para a noite agradável através da janela diminuta. Se a mãe tinha falado com o seu querido irmão, fizera-o logo a seguir que ele levantara voo do sistema Hosniano, o seu cheiro ainda devia pairar no quarto. A pressa da senadora Leia Organa para eliminar mais essa ameaça do espírito do seu único filho seria comovente, se não se tivesse tornado caricata.

A preocupação urgente da mãe tê-la-ia obrigado a contar a sua versão dos factos, disfarçando a verdade numa pequena e inocente mentira. Ela tentara-o, quando conversara com ele, com aquela triste alusão de que o lado sombrio que seduzira Anakin Skywalker era uma doença. Não estava com paciência para aturar semelhantes subterfúgios, nem achava credível que um mestre Jedi se escudasse atrás de argumentos falsos para sustentar a sua posição naquela ou em qualquer outra matéria.

Colocou-se na defensiva. Encostou-se à parede, ao lado da janela, cruzou os braços. Baixou os olhos e, a olhar para a biqueira das botas, declarou num tom baixo, tímido, cansado, falso:

— Eu estou bem, tio. Não preciso de conselhos, nem de esclarecimentos. Não há nada para esclarecer… Sei o que não devia saber. É lamentável… Caso encerrado. É lamentável e pronto. Não existe mais nada a dizer. – Acrescentou com alguma irritação: – Já não sou nenhuma criança, consigo lidar com os meus problemas, tenho vinte e três anos.

O mestre Jedi olhava para ele. Porém, ele não desistiu de fixar o seu calçado manchado. Andava mais desmazelado do que era costume, pensou, naquela pausa densa e curta. Usualmente podia ver-se no espelho das botas engraxadas. Não se distraía do que estava a acontecer, pensou também. Conseguiria perfeitamente suportar a observação do tio, conseguiria perfeitamente enfrentá-lo, em qualquer plano. Até com sabres de luz.

— A tua mãe pensa, e eu também penso – disse Luke Skywalker –, que precisas de conhecer o que verdadeiramente aconteceu. Não o vou negar. Darth Vader, o último dos Sith ao serviço do Imperador Palpatine, era o teu avô.

Eram os dois espertos, os irmãos gémeos, Leia e Luke. Jogavam com as armas que tinham em mãos, manipulando o cenário para que se dobrasse à sua vontade, mas de uma forma natural para que ninguém desconfiasse da pressão exercida. Se a mãe conseguia convencer através do discurso político, aparentemente solidário e compreensivo, o tio era exímio em atrair a vantagem para si soando sincero e empático, numa encarnação perfeita de um cavaleiro Jedi.

Os seus lábios curvaram-se num sorriso involuntário.

— Deverias saber como tudo se passou e não como irá ser contado, depois da calúnia que foi revelada no Senado Galáctico, com o único objetivo de prejudicar a tua mãe e atingir-te a ti, posteriormente. Não estás excluído do âmbito da perfídia que foi posta em marcha.

— Então, estás a tentar proteger-me.

— Absolutamente. Eu e a tua mãe.

— Preciso de proteção? – indagou, sentindo o corpo enrijecer.

De repente, olhou para o tio. A sua serenidade irritou-o.

— Tu és um Skywalker. Tens uma grande responsabilidade em cima dos teus ombros. – Luke abriu os braços, para indicar o lugar para além daquele pequeno quarto. – Pertences à primeira Academia Jedi que foi criada desde o fim da Antiga República, vais integrar a próxima geração de cavaleiros protetores da Força, do Bem e do Lado Luminoso, nobres almas que promovem a paz e a justiça, que defendem a harmonia da galáxia. O teu treino oficial começou há pouco tempo, aqui, neste templo. Mas tu és um privilegiado, pois recebeste treino muito antes de teres entrado para o templo. Tenho-te ensinado desde pequeno… Ensinei-te algumas noções. As nossas primeiras lições eram divertidas, lembras-te?

Ele cerrou os dentes.

— Não… Não me lembro.

Luke admirou-se, arregalou os seus olhos azuis:

— Como é possível não te lembrares? Brincávamos a fazer levitar objetos. Confundíamos os empregados da tua mãe com truques mentais. Obrigávamo-los a repetir frases sem sentido que tu inventavas.

Um ligeiro rubor aqueceu-lhe as faces.

— Sim, sim, lembro-me.

O Jedi não quis insistir na questão, para não desatar a habitual reprovação do sobrinho, pois havia momentos em que contradizia ou renunciava tudo o que lhe era oferecido no templo. Ele captou a cedência do tio. Ele captou a sua própria força nessa revolta.

— Compreendes como és alguém extraordinário?

— Oh sim, claro que sim… Tenho um nome impressionante.

— Vamos falar a sério.

— Estou aqui para falar a sério.

— Compreendes por que motivo… precisas de ser protegido de determinadas influências?

— O lado negro da Força?

— Para além do lado negro, o Mal consegue ter muitas faces.

— A intriga política faz parte do Mal maior? Não me conseguem afetar quando inventam histórias sobre a minha mãe. São mentiras, à partida. Não me interessam… Servem propósitos mesquinhos de homenzinhos desprezíveis.

— No entanto, acreditaste naquilo que contaram sobre a relação de parentesco de Darth Vader com a senadora Leia Organa.

— Isso não é uma mentira! – refutou ele, ruborizando novamente. – Eu… Eu sinto que não é. – O gaguejo mostrou todas as suas carências. Aclarou a garganta e afirmou, enfatuado: – Eu sei que Vader está ligado… a mim. Existe um laço de sangue, somos família. De qualquer modo acabaste de mo confirmar, dizendo que ele foi o meu avô.

— Tens essa sabedoria e no entanto mostras-te tão confuso.

— Não estou confuso.

— Sim, estás. Existem… verdades disfarçadas em enganos. Estou aqui para te orientar nessa desordem que te perturba. A tua mãe pretende que sejas esclarecido. O objetivo é o mesmo. Não te deves esquecer do teu caminho.

— A Força é forte na nossa família… Não podem existir hesitações, de qualquer espécie. É esse o caminho, conheço-o desde que nasci. O que vocês temem, tu e a minha mãe, é que me torne demasiado instável e que fuja ao vosso controlo.

— Ninguém te quer controlar. Muito menos eu ou a tua mãe, sobrinho.

De seguida, notou o espírito do Jedi fortalecer-se, compactar-se, condensar a luz e todo o seu poder dentro dos contornos da sua alma. Uma estrela pujante aprisionada dentro de limites físicos que seriam desatados em caso de extrema urgência. Chegava a ser assustador, como o seu tio era poderoso e inatacável. Gostaria de ser assim, um dia… Invencível. Respeitado. Temido. Sabia que o podia ser, mas não naquele templo.

— Queres saber como foi que tudo aconteceu? – perguntou Luke num tom grave, a voz tinha enrouquecido e assemelhava-se à da irmã.

— Vais contar-me, sem receios?

— O medo é enganador… Nunca nos protegerá numa situação de perigo ou de hesitação, nunca será nosso aliado. Não devemos confundir a prudência com o medo. Este irá tolher-nos o braço, diminuir a nossa confiança, expor-nos ao inimigo. E depois será demasiado tarde para reagir… Não, sobrinho. Não terei qualquer receio, pois o medo não me vai ajudar. E sim, vou contar-te tudo.

Levantou-se. Passou a mão robótica pelos cabelos. Tinha deixado a pele apodrecer e arrancou-a quando a coloração tornou-se doentia e esquisita, revelando a artificialidade do membro. Um desleixo imperdoável num cavaleiro Jedi, mas ele alegara, na altura, que tinha outras preocupações em mente e não se incomodava por usar apenas o esqueleto metálico da mão, se tal não incomodasse os seus alunos. Ninguém se tinha afirmado impressionado e o assunto foi esquecido. Ele, um dia, perguntara-lhe o que tinha realmente feito a prótese perder o revestimento que obviamente se tinha estragado. Tinha sido há muito tempo, contara Luke Skywalker com os olhos embaciados. Um tiro laser, durante um salvamento, abrira um buraco na pele até ao mecanismo… E não contara mais.

Esperava que sobre Darth Vader não se pusesse com meias palavras, frases partidas e insinuações. Mas ele não tinha medo, afirmara, ele iria contar tudo.

— Depois do encontro infeliz com o Império na Cidade das Nuvens, no sistema de Bespin – começou Luke –, apenas eu sabia a verdadeira identidade de Vader. Guardei o segredo comigo até que me fosse possível regressar junto do mestre Yoda para confirmar se Vader não me teria enganado, para me converter ao Lado Sombrio. Lamentavelmente correspondia à verdade… A essa verdade com a qual tu também te deparas. Darth Vader fora, em tempos, Anakin Skywalker, meu pai. Mais tarde, antes da batalha de Endor, que deu a vitória à Aliança, antes de partir para o meu encontro decisivo com o Imperador e o lorde Sith, contei o que sabia à tua mãe. Se alguma coisa me acontecesse, Leia deveria seguir o legado dos Skywalker na Força.

Nesta fase do relato, duvidou que a sua mãe faria como lhe tinha sido pedido. Leia era uma lutadora, mas haveria de se esquivar a um combate que fugiria dos seus padrões. Não a via a empunhar um sabre de luz, a usar a Força… A ter alunos para transmitir o legado milenar dos Jedi. Podia, todavia, ser surpreendido. O desespero conduzia às ações mais anormais.

— Também lhe contei que éramos irmãos, nessa altura também não se sabia. Eu e ela tínhamos sido separados e escondidos, para evitar que Vader soubesse da nossa existência e que viesse atrás de nós. Quero com isto dizer que, quando me encontrei com o Imperador e com Vader na segunda Estrela da Morte, só eu e Leia sabíamos sobre o nosso parentesco com o lorde Sith. – Aqui, Luke silenciou-se. Engoliu saliva, a sua garganta moveu-se. – No fim, eu não cedi à tentação do lado sombrio, Palpatine foi derrotado e Darth Vader… eliminado.

A declaração surpreendeu-o.

— O que queres dizer? – perguntou ansioso.

— Vader deixou de existir ao salvar-me do Imperador. Quando morreu… olhei para o rosto de Anakin Skywalker. Voltou-se para a luz no momento em que decidiu renegar as trevas.

Um azedume queimou-lhe o estômago. Deixou-o hirto e incrédulo.

— Como vês, sobrinho. Não faz sentido julgares que existe alguma ligação entre as sombras e Darth Vader. O último dos senhores Sith foi fabricado por Palpatine e desapareceu com a queda do Imperador e do reino de terror que estendeu pela galáxia. A verdade, a simples verdade, é que só existe e sempre existiu Anakin Skywalker.

— Não foi o que a minha mãe me disse – rebateu, indignado.

— Estás a escutar a história pela boca da testemunha principal.

— Então, como aparece a gravação invocada por Casterfo, uma prova irrefutável da veracidade dos factos, segundo as palavras desse senador?

Luke respondeu:

— Não nego que Vader seja o meu pai e o pai da tua mãe, tonando-se assim no teu avô. Enquanto Vader existiu, não existia Anakin, o primeiro foi uma sucessão do segundo, um desvio no percurso brilhante de um magnífico cavaleiro Jedi. Não é mentira que Vader pertence à nossa família. Em Endor, a tua mãe contou ao teu pai o que tinha acontecido. Han sempre foi demasiado prático para puxar conversa comigo sobre o que se tinha passado na Estrela da Morte e nunca conversámos sobre Vader. A maldita estação espacial tinha rebentado e isso era quanto bastava. A gravação descoberta em Birren por Lady Sindian foi feita… pela tua mãe.

— Ela não me contou – remoeu, ressentido.

— Fazia parte de uma série de relatos pessoais da senadora Leia, desabafos que ocorreram em dias… menos felizes, digamos. Guardou-os em arquivos que depois apagou, gravando declarações e memorandos por cima. Foram doados a Birren, integrados numa coleção de discursos políticos dos Organa, já que os governadores desse sistema pertencem, desde incontáveis gerações, a essa casa real. Houve alguém mais curioso que descobriu que existiam gravações iniciais e quando o nome Vader surgiu, julgaram que poderia existir material interessante. E encontraram também a tua mãe, uma confissão íntima que não devia ser devassada.

— Um erro.

Luke sorriu com brandura.

— A tua mãe não errou ao querer desabafar. O erro partiu daqueles que estão a usar uma memória privada da senadora Leia Organa para colherem dividendos políticos. Simples jogo sujo, meu sobrinho.

Acenou com a cabeça.

Tinha duas versões para digerir, considerou ele, confuso e irritado. Não havia, nunca, uma versão clara de qualquer assunto! Existiria sempre qualquer pormenor ínfimo que maculava a compreensão, que fazia surgir uma dissensão, uma nova interpretação. Onde estava a simplicidade cristalina de um argumento irrefutável? Julgava que o Jedi seria transparente. Aparentemente, ter-lhe-ia acabado de contar a verdade mas se ele aprofundasse a exploração veria que era a verdade do Jedi, torcida de acordo com o seu olhar de vencedor.

A História escrita, mais uma vez, por aqueles que ganhavam a contenda.

Luke levantou-se.

— Continuo a sentir em ti alguma agitação e impaciência.

— Estou bem – admitiu, dissimulado. – Só preciso de refletir sobre o que tu me contaste, sobre o que a minha mãe me disse.

— Um pouco de meditação ajudaria, concordo. Amanhã não te irei incomodar com os exercícios, não te vou chamar para que te juntes aos teus colegas. Deixo a câmara de meditação vazia para que a utilizes, pelo tempo que precisares.

— Obrigado, tio.

Luke perscrutou-o com um interesse genuíno, tão bondoso e altruísta que lhe causou asco. O estômago revolvia-se entre ácidos e contrações. Colocou um braço sobre o abdómen, mordeu o lábio inferior. Estaria mais pálido do que o costume, sentia-se também tonto e demasiado exausto. Já não conseguia lutar mais contra toda aquela hipocrisia bonita que o rodeava. Baixou o rosto de maneira a que os cabelos compridos e escuros criassem uma cortina que ocultava a sua aflição. Escondia-se também da perceção apurada do Jedi, que sentia apenas parcialmente as suas dores atuais.

— Não existe nada que me queiras perguntar?

— Tenho… muitas perguntas – confessou.

— Alguma que consideres não conseguir responder sozinho com a tua reflexão de amanhã? Não quero dar-te todas as respostas, sabes que precisas de encontrar algumas por ti próprio.

— Onde está Vader?

— Em lado nenhum.

— Isso é impossível! – exclamou entredentes.

— Não é. Sempre existiu e apenas existe Anakin Skywalker. A Força envolve-nos a todos com a sua luz e é através dela que as criaturas vivas comungam com a energia cósmica. A ligação nunca se perde, nem com o desaparecimento físico. O espírito de Anakin Skywalker, meu pai, visita-me. Vader nunca teria essa capacidade. As trevas bloqueiam e dissolvem os dons divinos, impedem a vida em qualquer forma. Até aquela que será possível pós-morte. Se Vader existisse, Anakin não podia estar comigo.

— Isso é mentira – rebateu ele calmamente.

O tio não vacilou.

— Anakin fez-me companhia, durante muito tempo. Desde que Vader foi derrotado, via o seu fantasma azul, na serena companhia de Kenobi e de Yoda. Deu-me alguns conselhos sobre paixão e arrebatamento, sobre paciência e até… sobre pilotagem de uma nave. – Riu-se para dentro. Um riso que soou anormal naquele contexto. – Agora deixou-me. Não se despediu, mas sei para onde foi…

— Desistiu?

— Não! Quando um espírito da Força decide reencarnar ou é apontado para tal honra funde-se com a luz e deixa de aparecer àqueles que o convocam e que têm contacto com ele. – Revelou com um ligeiro tremor de emoção nas palavras: – Anakin Skywalker obteve a graça de poder nascer novamente e viver uma nova vida.

— Quando foi que isso aconteceu? – indagou ele, com as pernas a enfraquecer.

— Pouco depois de teres nascido…

Não, alguns anos depois, corrigiu mentalmente.

— Quando senti a Força pela primeira vez? Quando completei dez anos?

— Muito provavelmente.

— Estás a querer dizer-me que o espírito de Anakin Skywalker… reencarnou em mim?

— É possível, sobrinho. Não te posso afirmar inequivocamente o fenómeno.

Luke apoiou as mãos nos seus ombros. Ele arrepiou-se com o gesto, estremeceu, tão pronunciadamente que o Jedi percebeu. Apertou os dedos, mão humana, mão metálica. Queria que fosse reconfortante, amigável, ele sentiu-se ameaçado e agredido. Aprisionado em toda aquela bondade, num mundo demasiado branco, puro e perfeito. Cerrou os dentes.

— Tens dentro de ti toda a luz dos Skywalker – afirmou o Jedi convicto. – Não precisas de desvendar o mistério do paradeiro do espírito livre do teu avô, Anakin. Não precisas de procurar pela essência de Vader nas sombras esquivas do Universo. Que estas palavras te sirvam de guia na tua meditação de amanhã. Encontra o equilíbrio. O brilho de Anakin e a escuridão de Vader. Tu irás decidir o teu caminho e fá-lo-ás com sabedoria. E nunca tenhas vergonha de revelar-me o que descobriste. Disse-te que o medo é enganador, mas até dominares os teus impulsos vais sentir medo. Tive medo muitas vezes.

Respondeu para que o tio o soltasse, para que se fosse, finalmente, embora:

— Eu sei.

— Estarei sempre do teu lado, serei sempre o teu aliado. No Bem… e no Mal.

Arrepiou-se com essa declaração. Não acreditava que Luke Skywalker fosse magnânimo ou inocente a esse ponto, de o apoiar numa escolha contrária à luz. Ou quisera o tio afirmar que se ele se voltasse para o Mal iria resgatá-lo? Como fizera com Vader?

A noção de ser salvo pelo tio de um abismo de nuvens negras nauseou-o. Preferia largar a mão e deixar-se cair para as trevas eternas, engolido pela garganta aberta na terra. Preferia sucumbir a viver para sempre com um perdão imposto sobre o seu orgulho. Nunca… Se escolhesse o Mal seria fiel a essa decisão até à morte. Um matrimónio amaldiçoado forjado nos insondáveis trilhos do Universo que ninguém podia quebrar ou desonrar.

Fez uma segunda tentativa para se libertar daquela situação opressiva.

— Eu sei.

O tio puxou-o e abraçou-o. Havia calor no corpo do Jedi envelhecido.

Pela primeira vez classificou Luke Skywalker como velho. Via-o como ele realmente era. Um idealista arreigado às suas convicções antiquadas, noções bafientas de uma ordem que deixara de fazer sentido gerações atrás, seria insensato ressuscitá-la quando tanto tinha mudado. Era um homem acabado, limitado, deslumbrado com o passado feliz que ele tinha construído e que já não existia no tempo presente, nem havia lugar para que existisse. A galáxia iria mudar em breve. Havia um pressentimento.

Quando ficou sozinho, estendeu-se na cama mas não conseguiu adormecer.

Tu irás decidir o teu caminho e fá-lo-ás com sabedoria.

Deixou o templo nessa madrugada.

Haveria de regressar, uma última vez, àquele lugar que ele detestava para destruí-lo.


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Notas finais do capítulo

“Carry that Weight” é a canção que se segue a “Golden Slumbers” no famoso medley de Abbey Road, tendo as duas sido gravadas em conjunto. Também cantada por Paul McCartney, que a compôs, é acompanhada mais tarde pelas vozes dos restantes Beatles. Nesta canção mais agitada, temos a evidência pelos próprios de que o peso dos Beatles irá acompanhá-los para sempre. E assim acontece…

A conversa entre Luke Skywalker, mestre Jedi e tio, e Ben, aprendiz e sobrinho, não foi esclarecedora, normal ou sequer amistosa. O conflito esteve sempre latente...
No fim, Ben escolheu desertar e abriu a porta para o aparecimento de Kylo Ren.

Neste capítulo existe uma referência muito subtil à Rey - quando se menciona que o espírito de Anakin Skywalker reencarnou quando Ben tinha dez anos. Foi então que a Rey, a órfã de Jakku, nasceu.

Próximo capítulo:
Juntem-se, agora, a mim