Presente do Tempo escrita por Hunter Pri Rosen


Capítulo 1
Capítulo Único


Notas iniciais do capítulo

Oi, gente!

Na medida do possível, todo mês vou postar uma oneshot por aqui kkkk

Desta vez, o grupo Café com Letra (procurem no Facebook e participem!) propôs o tema viagem no tempo através de um objeto para o desafio de maio. E a princípio, eu imaginei a trama para uma longfic ou pelo menos para uma shortfic.

Foi difícil fazer um recorte que coubesse no limite de palavras e estrutura do desafio. Portanto, os fatos acontecem rapidamente, de forma proposital, para possibilitar a narrativa dentro de um único capítulo.

Espero que gostem!



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Sempre que alguém me pergunta sobre relacionamentos, questionando-me se eu já conheci o grande amor da minha vida, eu costumo responder que já desisti da ideia de encontrá-lo há muito tempo pois, se almas gêmeas existem mesmo, a minha parece não ter nascido ainda, ter morrido há séculos ou simplesmente se perdeu no meio do caminho até mim.

Note-se que eu sempre disse isso em tom divertido, fazendo piada da minha própria solidão e fracasso com o sexo oposto. Nunca pensei que pudesse existir alguma verdade em minhas palavras.

O que eu nunca disse a ninguém é que desde que me entendo por gente, eu vejo um rosto. Ou quase isso. Na verdade, um semblante oculto por raios de sol que me impedem de enxergá-lo com clareza, um vulto cercado de mistério, um homem desconhecido, inalcançável e, ainda assim, muito real.

Costumo vê-lo quando durmo. Ele aparece com frequência nos meus sonhos mais profundos, mas sempre se dissipa antes que eu possa me aproximar o suficiente para tocá-lo ou fazer uma simples pergunta — quem é você?

De repente, eu acordo, e ele se foi. Toda vez.

O que eu nunca poderei contar a ninguém é que eu encontrei este homem há uma semana. Ou quase isso. Esbarrei numa representação sua, na verdade. Um antigo quadro que achei no porão da minha nova casa, durante uma faxina despretensiosa e chata, como toda faxina.

Mudei-me para cá há um mês, buscando um aluguel mais em conta e um pouco de sossego, já que a pequena cidade fica, literalmente, no meio do nada. Apesar disso, estou mais próxima da faculdade onde curso Artes Visuais; o que otimizou o meu tempo e tem me dado mais qualidade de vida.

Mesmo nunca tendo visto os traços do homem dos meus sonhos com clareza, quando bati o olhar na pintura a óleo, tive uma forte e estranha sensação de déjà vu. Mais do que isso, tive absoluta certeza que o rapaz solitário, com um olhar vazio e misterioso retratado na tela é o mesmo que habita a minha mente há anos. De repente, foi como se uma cortina se abrisse e me revelasse o seu verdadeiro rosto.

Uma rápida pesquisa no Google, no site da imobiliária e nos registros da prefeitura me levaram a algumas informações sobre os primeiros moradores da propriedade: uma família abastada, ligada ao setor de café, que viveu em meados do século XIX e se perdeu no tempo, para sempre, quando o único filho do casal faleceu muito jovem, vítima de uma forte pneumonia.

Pela descrição que encontrei dele, logo concluí que o rapaz no quadro esquecido no porão e dos meus sonhos tinha, de fato, um nome: Pedro Cavalcante.

Sei que tudo isso parece loucura e soa fantasioso demais ouvindo assim. Acreditem, eu mesma demorei a aceitar que não estava ficando maluca nem imaginando uma semelhança inexistente entre sonho e arte.

Sinceramente, ainda não sei o que isso pode significar. Tudo o que realmente sei é que, desde que me mudei e encontrei o quadro, venho sonhando cada vez mais com um homem que nunca conheci. Com alguém cercado de mistério e que morreu muitos anos antes dos meus próprios pais nascerem. E o mais estranho é que, às vezes, tenho a impressão de que Pedro está tentando falar comigo durante os sonhos, olhando-me de volta de um jeito terno demais para um fantasma ou uma ilusão.

— Talvez você esteja enlouquecendo sim, Amanda. Aceita, que dói menos — digo a mim mesma, um tanto cansada desse intrigante mistério do qual não tenho conseguido me desligar nos últimos dias. — Nada disso faz sentido e você precisa esquecer essa história para o seu próprio bem.

Tentando seguir meu conselho, abaixo a tela do notebook sobre a escrivaninha em meu quarto, fecho os olhos e pressiono as pálpebras com os dedos, fazendo certa força. Está muito tarde e eu já devia estar dormindo há pelo menos duas horas.

Lembrando disso, vou para a cama e logo me aconchego sob o cobertor. Meu corpo está exausto, minha cabeça girando com tantas perguntas que venho me fazendo, meu coração... estranhamente inquieto.

Nunca fui do tipo que se impressiona por qualquer coisa. Aliás, sempre fui bem cética em relação a tudo. Até mesmo em relação ao amor verdadeiro. Porém, sinto-me diferente desde que encontrei o quadro. É quase como se eu não estivesse mais sozinha. Foi como se o homem no quadro tivesse me chamado ou estivesse a minha procura. Ou as duas coisas.

— Maluca. Doida de pedra. Você perdeu completamente o juízo, Amanda — resmungo. — Francamente...

Meu lado racional diz para eu me livrar do quadro o mais rápido possível. Entregá-lo em alguma galeria de arte ou na própria imobiliária. Na dúvida, jogá-lo fora de uma vez e seguir com minha rotina normal como se nunca o tivesse achado. Mas quem disse que eu consigo fazer isso? Sinto que estaria traindo a memória de alguém que não merece ser descartado assim.

Então, indo totalmente contra a razão, acabei por colocar o quadro no meu quarto mesmo. Por algum motivo que desconheço e por um sentimento que não entendo ainda, o quero por perto.

Não cheguei a pendurá-lo em uma das paredes, mas da cama consigo distingui-lo muito bem na penumbra parcial do recinto. Perto da porta, escorado num canto, os olhos solitários de Pedro me fitam de volta. Tão expressivos que parecem realmente estar lá. Ou aqui. Olhando para mim.

— O que está acontecendo comigo, santo Deus?

Respiro fundo e dou as costas para o quadro, convicta a dormir de qualquer jeito e esquecê-lo por algumas horas. Demoro e ainda me reviro algumas vezes pela cama. Por fim e realmente exausta de tudo, pego no sono.

***

Acordo de um sono agitado, suada, no meio da madrugada e com a nítida impressão de que ouvi alguém chamar pelo meu nome.

Pela primeira vez em muitas noites, não me recordo exatamente com o que estava sonhando. Ou com quem. Sim, de certo era com ele.

— Amanda...

Ao ouvir meu nome de forma clara, arregalo os olhos e pulo da cama. Em alerta, espio o quarto em meio à escuridão parcial, à procura da origem ou do dono da voz masculina tão suave e, ao mesmo tempo, firme. Um sussurro e uma intimação ao mesmo tempo. Algo que não consigo ignorar.

Apesar do sobressalto inicial, não estou de fato com medo. Estou mais inclinada por uma curiosidade irresistível e tomada por uma ansiedade que mal cabe em meu peito. Eu devo mesmo estar enlouquecendo.

Pensando que a voz foi fruto da minha imaginação fértil e desejo de desvendar algo desconhecido, preparo-me para voltar para a cama. Antes que eu faça isso, no entanto, meu nome ecoa de novo pelo quarto. Desta vez, ainda mais claro:

— Amanda... aqui. Eu estou aqui.

Viro-me devagar e olho para o quadro. A pintura parece exatamente igual, a não ser por uma discreta mudança nos lábios de Pedro. Agora, ele parece sorrir de um jeito discreto e sereno. Feliz. Além disso, noto que a moldura dourada está brilhando de uma forma diferente agora, como se uma luz emanasse direto dela. Aos poucos, começa a pulsar e ficar mais forte, iluminando todo o quarto.

Imagino que uma pessoa normal sairia correndo agora mesmo, acreditando que o quadro é mal assombrado e sem o menor interesse em ficar para descobrir o que vai acontecer. Acho que não sou a pessoa mais normal do mundo então, já que tudo o que faço é seguir o meu instinto e curiosidade crescente.

A certeza inexplicável de que não serei machucada por quem me chama me faz abaixar diante do quadro e fitar seus olhos por um longo instante.

— Amanda...

A voz soa mais audível do que nunca, o que faz meu coração — já acelerado — dar um salto e bater com urgência.

Guiada por uma estranha emoção, toco o rosto de tinta seca. E é então que algo ainda mais insano ocorre. Sinto uma forte energia se espalhar por meus dedos, aquecendo-os e espalhando uma onda de calor por todo meu corpo. Ao mesmo tempo, minha mão simplesmente mergulha na superfície da tela, como se ela fosse feita de gel.

Pela primeira vez assustada, afasto-me de imediato, recuando um pouco e caindo de bunda no chão. Hesito por algum tempo, perguntando-me se isso foi real, se imaginei, se bebi antes de dormir ou se estou sonhando.

— Amanda.

Querendo descobrir o que diabos está acontecendo aqui e o que anda se passando comigo desde que encontrei o bendito quadro de Pedro Cavalcante, fecho os olhos e torno a tocar seu rosto. Sinto uma mão mergulhar primeiro. Em seguida, a outra. Meus braços.

— Seja lá o que Deus quiser, não é mesmo? — Impulsiono meu corpo para a frente e sinto-o atravessar a tela, enquanto a forte energia volta a me abraçar. Desta vez, por completo.

É como mergulhar num túnel. Ou despencar dentro de um buraco sem fim. Parece um vórtice. Um turbilhão de luzes e movimentos me envolvem enquanto meu corpo gira de um jeito rápido e brusco. Estou descendo por um ralo, é isso. Não, estou dentro de um liquidificador enorme! Num redemoinho eterno! Vou desaparecer, me desintegrar, morrer. Socorro!

Maldita hora em que decidi alimentar essa maluquice! Eu devia ter me afastado do quadro, do quarto, da casa, de tudo! Maldita hora...

Paro de me martirizar com arrependimentos que de nada adiantam agora quando finalmente algo detém o movimento frenético do vórtice. Uma superfície sólida. Graças a Deus! Reconheço o assoalho do meu quarto com certo alívio, porém, ao mesmo tempo, fico um pouco frustrada por ter voltado ao ponto inicial desse mistério sem fim. Também fico intrigada pelo piso parecer tão conservado, está quase novo. Acho que nunca reparei nele de verdade.

Ao que tudo indica, tive um sonho muito esquisito, banquei a sonâmbula e acordei estatelada no chão. A claridade do recinto indica que dormi mais do que deveria, pois já amanheceu e a luz do sol está muito forte sobre mim.

Estou quase acreditando em tudo isso, quando olho para a parede de frente para mim. Uma tela com um rosto esboçado e nenhum sinal de tinta me encara de volta. Atordoada, deduzo que ainda estou dormindo e que, neste sonho, o quadro de Pedro ainda não foi finalizado.

É neste momento que sinto uma leve vibração no piso e ouço o ruído de passos suaves. Olho imediatamente para trás, na direção da minha cama — ou de onde ela deveria estar ao menos — e vejo uma silhueta próxima da janela. Os raios de sol que rompem através dela me impedem de enxergar o seu rosto com clareza, mas pelo porte físico sei que se trata de um rapaz.

Meu coração volta a bater depressa, mas não estou com medo. Não recuo um milímetro sequer nem mesmo quando o desconhecido dá alguns passos em minha direção, finalmente revelando seu rosto tão familiar para mim, e me estende sua mão.

— Por que você demorou tanto?

Seu gesto e sua pergunta me pegam de surpresa. De repente, não sei como reagir, fico estagnada feito uma estátua.

Só desperto do estado de torpor quando Pedro sorri de um jeito gentil e indica sua mão ainda estendida, à espera da minha.

Pisco algumas vezes e tento, sem sucesso, controlar a forte emoção dentro de mim, antes de aceitar a ajuda para me levantar. Em choque, observo o rosto que me perseguiu por anos, por noites e por incontáveis sonhos, ganhar forma definitiva.

— Eu podia te perguntar a mesma coisa — rebato por instinto, intrigada com a situação, mas no fundo apreciando demais a experiência de conhecê-lo.

Mais perto dele, consigo enxergar melhor cada detalhe de sua feição. Cada detalhe lindo e perfeito que a pintura não fez jus. Se este é o mesmo rapaz do quadro — e tenho certeza que é — tenho que pensar num jeito sútil de lhe dizer que ele é um péssimo pintor de auto-retrato, deixa muito a desejar nesse quesito.

Controlo o ímpeto de rir e lembro que ainda estou segurando sua mão — e com mais força do que deveria. Solto-a rapidamente e quebro o silêncio com a primeira dedução que me vem à cabeça:

— Isso é um sonho. Aposto que é um sonho.

Pedro, que até então me analisava com certo fascínio, parecendo absorto em pensamentos desconhecidos, também desperta, se concentra nos meus olhos e propõe em tom de desafio:

— Então tente acordar.

Por um instante, cogito acatá-lo. Porém, a simples possibilidade de perder esse momento para sempre é o suficiente para que eu descarte a proposta prontamente. Então, limito-me a confessar:

— Eu tenho medo de acordar.

— Eu também — Pedro admite e, na sequência, me surpreende ao tocar meu rosto com muita delicadeza, mas ainda assim espalhando um calor imediato e intenso em minha bochecha. — Eu sonhei com você a minha vida inteira e não sabia por quê. Na verdade, ainda não sei, mas você está aqui e, de alguma forma, é só o que importa.

Suas palavras me atingem em cheio porque me dou conta que me sinto da mesma forma. Não sei como foi possível, mas tenho certeza que viajei no tempo para conhecer alguém muito especial, alguém com quem sempre sonhei, mas que nunca terei em minha vida no curso normal dos acontecimentos. Sinto-me confusa, é verdade, porém o mais importante é que estou muito grata e feliz por esse encontro.

— Eu também sonho com você — confidencio, envolta por uma forte e crescente emoção. Toco sua mão ainda em meu rosto, arrancando um lindo sorriso de Pedro. — Mas nunca tinha te enxergado com tanta clareza.

— Eu tive mais sorte então. — O homem dos meus sonhos segura a minha mão junto a sua agora. — Eu sempre lhe vi assim. Mas confesso que você é muito mais bela em carne e osso.

Seu galanteio faz minhas bochechas corarem de imediato. Acanhada, solto sua mão e cruzo os braços contra o peito, encolhendo-me dentro do pijama flanelado. Só então reparo como estou ridícula desse jeito, sendo que estou diante de um rapaz extremamente bem vestido e perfeitamente arrumado.

— Eu disse alguma coisa errada? Que lhe desagradou?

Suas perguntas me despertam do pensamento anterior e percebo que o que menos importa agora é o tipo de roupa que estou usando.

Reflito sobre essa situação como um todo, sobre o que significa, sobre a forte emoção que estou sentindo com esse encontro, sobre a tristeza inevitável que arranha a minha mente com suas garras afiadas quando me dou conta de que isso não tem o menor futuro. Mais cedo ou mais tarde, voltarei para o meu tempo. Pedro continuará no tempo dele. Por mais importante e agradável que essa experiência esteja sendo para mim, sinto que logo ela terá um desfecho.

Pesando tudo isso, finalmente respondo:

— Não. A única coisa errada nessa história é que nós estamos separados por mais de um século e meio. — Analiso sua expressão, que fica consternada de repente, mas nem um pouco surpresa. — Você já sabia disso, certo?

Tornando a me encarar, o fantasma do passado admite:

— Desconfiava. Com base nas vestimentas e no linguajar informal que você apresenta nos meus sonhos, eu sabia que, se fosse real, você não podia ser do meu tempo, Amanda. Então... — Ele me mede da cabeça aos pés por um instante, limpa a garganta e questiona: — É assim que as mulheres se vestem no futuro?

— Não exatamente.

Chego a rir um pouco do seu comentário inocente e até penso em explicar alguns conceitos da moda contemporânea. Todavia, algo que ele deixou escapar no meio da frase rouba toda a minha atenção, e me lembro automaticamente dos chamados que ouvi há pouco, quando estava no meu quarto e no meu tempo normal.

— Como você sabe o meu nome mesmo?

Indicando o quadro atrás de nós, Pedro explica pausadamente:

— Eu te ouvi. Parecia vir daquele projeto de quadro ali; ainda estou trabalhando nele. Você estava falando sozinha e mencionou o próprio nome. Eu reconheci sua voz dos meus sonhos.

— Então você me chamou.

Apesar de não ter soado como uma pergunta, Pedro acrescenta em tom de resposta:

— Mais do que isso. Eu desejei, com todo o meu coração, que você estivesse aqui comigo. Desejei não estar enlouquecendo por querer algo assim.

Nem sei por que, mas suas palavras me deixam profundamente pensativa e com uma ideia na cabeça. E se foi exatamente isso? E se Pedro quis tanto conhecer a mulher que habitava seus sonhos, que algo impossível se tornou possível? E se eu senti e quis o mesmo? E se essa sintonia entre dois desejos sinceros e fortes nos trouxe até aqui, até esse encontro atemporal?

Acho que acabo ficando com cara de paisagem enquanto reflito sobre essa possibilidade, já que Pedro une as sobrancelhas de um jeito intrigado e indaga:

— O que foi?

Embora eu não queira me precipitar e ainda esteja assimilando essa história, sinto-me à vontade com Pedro, como se o conhecesse desde sempre, desde o princípio de tudo, desde antes de nascer. Portanto, sinto-me à vontade o suficiente para admitir:

— Eu desejei a mesmíssima coisa. Aliás, eu nunca quis tanto algo na vida do que estar com você, frente a frente, e desvendar o mistério que me persegue há anos.

Esboço um sorriso, mas que logo se esvai quando torno a pensar na distância cronológica que nos separa.

— Desapontada? — o fantasma pergunta, parecendo receoso e sem graça.

— Não, longe disso — apresso-me em esclarecer, a fim de tranquilizá-lo. — Apenas triste porque, embora isso seja um presente do tempo, também é uma crueldade e tanto com nós dois. Eu e você não podemos ter mais do que esse encontro, entende? Eu não posso te alcançar, você não pode me alcançar, é impossível.

Desta vez, Pedro me analisa por um longo e significativo momento. Não parece desgostoso com o que eu disse. Ao invés disso, seu olhar sereno me transmite uma esperança genuína. Daquele tipo de esperança otimista. Algo que as pessoas que preferem ver o lado positivo de tudo exibem com naturalidade, sem o menor esforço e com profunda fé.

É com esse espírito que ele volta a se pronunciar, rebatendo meu argumento:

— Tão impossível quanto uma forte e desconhecida luz emanar daquele quadro sem explicação aparente? Tão impossível quanto você brotar através dessa mesma luz? Quanto você estar aqui agora? A mulher dos meus sonhos? — Após uma breve pausa, Pedro dá um passo na minha direção e envolve o meu rosto de novo. — Eu não sei você, Amanda, mas eu estou inclinado a acreditar no impossível hoje. No doce impossível. Além disso, você já me alcançou. Quem sabe eu consiga retribuir sua visita no futuro?

Embora uma parte de mim deseje acreditar também, pego-me ponderando com certo pessimismo:

— E se você não conseguir? E se essa for uma chance única? Uma exceção que o tempo, de alguma forma e por algum motivo, nos concedeu?

Pedro fica pensativo, abaixa o olhar por um segundo. Volta a me fitar nos olhos, o que faz o meu coração dar um salto de novo. Sinto-me incrivelmente bem ao seu lado.

Ainda estou tentando compreender essa sensação de cumplicidade, quando o rapaz enigmático diante de mim responde:

— Bem, se este for um momento único, façamos com que ele valha a pena.

Imagino que sua intenção não foi sugerir algo mais íntimo. Pedro é um homem das antigas e um perfeito cavalheiro. Mesmo assim, suas palavras despertam um desejo forte e genuíno dentro de mim. Talvez impróprio.

O fato é que todas as vezes que sonhei com ele e tentei me aproximar, eu queria mais do que simplesmente ver a sua aparência. Eu queria contato, tocá-lo, sentir seu toque recíproco e acolhedor.

É me lembrando disso que assinto:

— Você está certo. Se isso nunca mais se repetir, eu não quero ter arrependimentos.

Antes que Pedro assimile minha resposta, termino com a nossa curta distância, fecho os olhos e encaixo meus lábios nos seus com uma ternura impetuosa, movida por algo que comecei a sentir por ele através dos sonhos e que ganha força dentro de mim ao estar diante dele de verdade.

Sua boca quente e macia faz com que eu prolongue o beijo mais do que deveria. Uma parte de mim, tem medo de abrir os olhos e descobrir que tudo isso não passou de um sonho. Por outro lado, se for um sonho, pelo menos eu consegui algo especial para guardar de recordação. Valeu a pena.

Finalmente rompo o nosso contato e, com alívio, constato que continuamos aqui. Sentindo um calor crescente em minhas bochechas diante do seu olhar indecifrável, me justifico:

— Inesperado e impulsivo, eu sei, mas eu só estava seguindo o seu conselho.

Há um longo momento de silêncio entre nós. Pedro parece realmente surpreso com a minha atitude. Com certeza, as mulheres de sua época são mais comedidas e jamais tomariam a iniciativa assim.

Estou quase me questionando se foi mesmo uma boa ideia beijá-lo, quando ele sussurra um pedido:

— Siga-o de novo, por favor.

Abro um largo e inevitável sorriso. E sem pensar duas vezes, volto a me aproximar. Envolvo sua nuca com uma das mãos, enquanto as suas deslizam e se fincam na minha cintura de um jeito respeitoso. Estou quase fechando os olhos mais uma vez, quando uma claridade intensa toma conta do quarto.

Automaticamente, Pedro e eu nos afastamos. Olhamos ao mesmo tempo para o esboço do quadro atrás de nós. A moldura brilha e pulsa de forma incisiva e um vento repentino atinge meu rosto. Quando dou por mim, estou sendo puxada em sua direção por uma energia desconhecida e que não aceita não como resposta.

Por mais que eu não queira, acabo soltando a mão de Pedro. Ele permanece imóvel no mesmo lugar, estagnado e preso pela mesma energia, também incapaz de lutar contra ela.

De repente, estou envolvida pela luz intensa do vórtice de novo, girando e me afastando cada vez mais do quarto de Pedro. Despencando pelo espaço infinito. Logo, estou de volta ao meu quarto, ao meu tempo, ao meu próprio século. A moldura do quadro para de brilhar antes que eu consiga me recompor e mergulhar em sua tela de novo. Ou pelo menos tentar.

— Pedro... — chamo, quando tudo o que os meus dedos encontram é a tela rígida e seca da sua pintura solitária.

— Amanda...

Juro que o ouço me chamar baixinho através do quadro, antes do quarto ficar totalmente escuro. Com tristeza, constato que estou de volta à madrugada de antes.

Um vazio desolador se mistura com a agradável sensação dos meus lábios ainda formigando em virtude do beijo roubado.

***

Desde essa experiência surreal, tenho passado noites em claro. Perambulando pelo quarto, checando o quadro a cada dois minutos, tentando entender como a minha viagem no tempo se deu exatamente e o que eu preciso fazer para que aconteça de novo. Mas a cada noite perdida e tentativas frustradas, eu me convenço de que o encontro com Pedro foi mesmo uma exceção à regra cronológica natural de nossas vidas. Apenas um presente do tempo e que não se repetirá nunca mais.

Parece que eu estava mesmo certa quando dizia para as pessoas que o possível amor da minha vida tinha se perdido de mim através do tempo. Parece que nós dois estamos fadados à solidão. Continuaremos separados por muitos anos de distância. Pela vida e pela eventual morte.

Com frustração e um triste vazio se alastrando no meu coração, observei a expressão solitária na pintura por longas madrugadas. E já estou mesmo perdendo qualquer resquício de esperança, uma vez que até os sonhos com Pedro desapareceram, quando me deito ao final de mais um dia.

Fecho os olhos, lembrando da sensação cúmplice que o nosso encontro causou em mim e da felicidade genuína que senti ao beijá-lo.

Suspiro sem perceber e abraço o travesseiro com força contra o meu corpo.  Ainda de olhos fechados, desejo com todo o meu coração:

— Tudo o que eu mais quero é estar com você de novo, Pedro. Eu quero tanto.

Alguns segundos se passam enquanto tento dormir. Porém, esse desejo me impede de pregar os olhos.

Logo, uma estranha e súbita claridade no quarto me deixa em alerta também. Viro-me e olho na direção do quadro, ainda encostado na mesma parede, totalmente envolto por uma luz forte e pulsante que emana da moldura antiga.

Com o coração acelerado e uma alegria irresistível tomando conta de mim, protejo os olhos da claridade mágica, usando uma das mãos. Quando ela finalmente cessa e um semblante conhecido me encara de volta com muita satisfação e ansiedade, coloco-me de pé num pulo.

Convencida de que o tempo nos concedeu mais um presente, e profundamente agradecida pelo doce impossível acontecer de novo, deixo-me levar até Pedro e o abraço com força e calor, jogando-me em seus braços sem me importar se minha reação é adequada ou impulsiva demais.

Quando ele me abraça de volta, tenho certeza que tudo vai ficar bem. Mais do que isso. Acredito que os sonhos que Pedro teve comigo, e eu com ele, não foram apenas sonhos. Algo no meu coração está apostando que eram lembranças de outros encontros que ainda viveremos. Era o tempo tentando nos mostrar que, apesar da distância, nossa história é sim possível. Porque apenas uma coisa é capaz de vencer o tempo e nós estamos construindo isso.

Não precisamos mais dos sonhos. De alguma forma, temos a realidade agora. Basta desejar, de todo o coração, e o tempo fará o seu trabalho por nós. Ele irá unir o que separou por acidente ou ironia. Irá promover outros encontros, outras viagens, outros momentos que reduzam a distância cronológica a um mero detalhe no curso do nosso destino em comum. Porque Pedro é o meu destino, eu sou o dele e o tempo não é capaz de ignorar tal fato.

Ainda não sei como farei para salvar Pedro da morte prematura ou aonde esses encontros através do tempo e espaço nos levarão. Tudo o que sei é que enquanto não descubro, quero que cada momento único entre nós valha a pena. Quero viver as lembranças e dar vida aos sonhos que tivemos.

— Por que você demorou tanto? — indago, à procura do seu rosto.

De repente, é como se eu não o visse há séculos.

FIM


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Notas finais do capítulo

Reviews?

Beijos de luz, chuchus!